Contraponto 131 - EDIÇÃO ABRIL/MAIO

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O purista e discriminatório conservadorismo geek

Cultura e comportamento

Entenda como o Mundo Nerd deixou de ser um ambiente acolhedor e representativo para se transformar em um lugar recheado de preconceito e opressão © @lukaswerneck

Por Pedro Catta-Preta, Matheus Monteiro da Luz e Ramon Baratella

S

er nerd nem sempre foi “cool”. Anti­ gamente o bullying e a violência eram comuns na vida de alguém que per­ tencesse ao mundo geek. Na escola, fãs de videogames, RPG’s e quadrinhos sem­ pre eram excluídos pelas pessoas mais “populares”, aquelas que julgavam o que era certo e errado, inclusive, quem ousas­ se não se encaixar aos padrões impostos, estaria sujeito a opressão. De alguns anos para cá, porém, a cul­ tura nerd deixou de ser algo alternativo, agora passa a ser valorizada e domina o mainstream. Ironicamente, no entanto, al­ guns indivíduos que se consideram nerds, ao invés de usar essa sua nova posição de destaque na sociedade para integrar no­ vos fãs e expandir as fronteiras de suas histórias preferidas, preferem promover o ódio e a opressão já vividos por eles. E mesmo cercados de histórias de cunho obviamente progressistas – como as dos “X-Men”, heróis que lutavam contra o preconceito de todas as formas –, o mundo nerd tem sido tomado por uma onda con­ servadora e purista que constantemente vira manchete por problematizar pratica­ mente toda a tentativa de representativi­ dade em filmes, séries e adaptações. Evidentemente, não são todos que promovem esse discurso. Essas ofensas costumam vir daqueles que são conheci­ dos nas redes sociais como “nerds raiz”, “nerdolas” ou “nerd boomers”. Por vezes, eles mesmos ostentam essas alcunhas. Eles escondem o seu racismo e intolerân­ cia no sentimento de nostalgia, com aque­ le clássico discurso de que “antigamente era melhor”. Não podem ver sequer uma obra que contenha uma representação de alguma minoria que já a taxam como “la­ cradora”, ou esquerdista. Raphael Augusto Alves, estudante uni­ versitário e geek, contesta se esse univer­ so sequer já teve uma premissa inclusiva. Para ele, “a comunidade nerd foi realmen­ te criada nesse contexto, mas dizer que ela nasceu em um ambiente de inclusão, é exagerar. Isso porque, aquele jovem que jogava Dungeons & Dragons no porão de casa e não se sentia bem-vindo no resto das atividades, partia naturalmente para a exclusão. É aquela coisa, quando você não entende como mudar a opressão, você tende a se tornar o opressor. O conserva­ dorismo nasce do medo de mudança. Por­ que pensam que qualquer mudança que afete uma memória antiga pode ser um grande problema. Então de fato há um pu­ rismo. É um conservadorismo nascido de

Abril/Maio 2022

Halle Bailey como Ariel em desenho de Lucas Werneck um preconceito que também gera precon­ ceito. É um ciclo.” Um dos casos mais emblemáticos cau­ sado por esse fenômeno foi quando houve o anúncio de uma Ariel negra para a adap­ tação com atores reais do filme animado “A Pequena Sereia”, uma das mais famosas princesas da Disney. Os fãs da animação foram à loucura. A exceção foram aqueles que ficaram indignados pelo fato que tro­ cariam a etnia de uma das princesas mais queridas do estúdio. Em julho de 2019 divulgaram quem seria a Ariel. Muitas fontes apontavam a atriz Zendaya para pegar o papel principal, só que quem levou essa foi a atriz Halle Bailey conhecida por seu trabalho na série Grown-ish e por cantar em um duo com sua irmã Chloe Bailey. Mesmo com debates sobre racismo espalhados pelo mundo todo, Bailey não ficou imune aos ataques feitos pela inter­ net quando por três dias a hashtag “not my Ariel” (não é minha Ariel) ficou nos trend topics do Twitter mundial. Por outro lado, muitos apoiaram a ini­ ciativa, uma vez que personagens raciali­ zados das produções dos estúdios Disney geralmente ficam em forma de animais ou de seres inanimados, como a Tiana da ani­ mação “A Princesa e o Sapo” e Kuzco de “A Nova Onda do Imperador”. A dubladora de Ariel na animação de 1989, Jodi Benson, declarou apoio a can­ tora em sua entrevista para o ComicBook. com. “Não importa nossa aparência por fora, não importa nossa raça, nossa na­ ção, a cor de nossa pele, nosso dialeto, se eu sou alto ou magro, se estou acima do peso ou abaixo do peso, ou meu cabelo e a cor que for, realmente precisamos contar a história”.

Outra situação em que o discurso de ódio dominou as entrelinhas dos “nerds conservadores” nas redes sociais ocorreu logo após o lançamento do primeiro trailer da série “Senhor dos Anéis”, que está sen­ do produzida pela Amazon. Por incrível que pareça, o retorno do rico universo de J. R. R. Tolkien não foi mo­ tivo para a celebração de alguns de seus fãs, que preferiram concentrar-se em um detalhe com menos de 10 segundos de tela: um dos elfos representados na trama terá pele negra. O assunto rapidamente foi aos trending topics do Twitter e, nova­ mente, gerou calorosas discussões sobre a possibilidade de algo tão indiferente. Vale ressaltar que elfos, brancos ou negros, são personagens fictícios que sequer existem. Episódios como dos elfos interpreta­ dos por negros em Senhor dos anéis e da Ariel de Halle Bailey não são casos isola­ dos. Qualquer pessoa que tenha contato com a bolha geek nas redes sociais já pre­ senciou ou irá presenciar uma discussão onde a luta anti-racista é menosprezada. Infelizmente para o “nerd raiz” a cul­ tura está mudando, queira ele ou não, e, infelizmente, a representatividade negra está deixando de ocupar apenas espaços secundários, inclusive, com inúmeros exemplos disso. Em um quadrinho do Capitão Améri­ ca, “Truth: Red, White and Black”, há uma marcante história de um Capitão América Negro durante um periodo de grande ten­ são racial nos Estados Unidos. Essa trama é aproveitada na aclamada série em Live Action da Marvel, “Falcão e o Soldado Inver­ nal”, onde todo o grande público pôde co­ nhecer Isaiah Bradley, esse mesmo Capitão América negro das histórias em quadrinhos, e sua jornada para superar a intolerância do Governo e Sociedade Americana.

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