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Vozes que mudam a história: 15 anos da Lei Maria da Penha

No último ano, uma em cada quatro mulheres com mais de 16 anos foi vítima de violência, totalizando 17 milhões

© Hadna Abreu

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Por Danilo Zelic, Laís Bonfi m, Maria Eduarda Frazato e Vicklin de Moraes

No dia 28 de julho de 2021, foi aprovada a Lei 14.188, que criminaliza a violência psicológica contra a mulher, prevista anteriormente na Lei 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Apesar dessa legislação já existir há 15 anos, somente este ano essa categoria deixou de ser apenas um artigo e tornou-se um crime.

Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de dupla tentativa de feminicídio – homicídio causado por razões de gênero – por Antônio Viveros, seu cônjuge colombiano, em 1983. Na primeira investida, ele lhe deu um tiro na coluna, que atingiu duas vértebras. Como resultado, Penha fi cou paraplégica. Na segunda tentativa, Antônio a manteve em cárcere privado e tentou eletrocutá-la durante o banho.

Ocorreram dois julgamentos. O primeiro em 1991, quando o agressor foi condenado a 15 anos, porém, com recursos da defesa, foi absolvido. No segundo, em 1996, sua sentença era de 10 anos e seis meses, mas, com alegações de irregularidades processuais, a pena não foi cumprida.

Depois das duas tentativas de feminicídio sofridas por Maria da Penha, no ano de 2006 foi sancionada a lei que levava seu nome. Depois dessa aprovação, foram ampliados os canais de atendimento para mulheres vítimas de violência doméstica, tais como: Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), Centros Especializados em Atendimento Psicossocial (CAPS), além de juizados de violência doméstica e familiar.

De acordo com Mariana Alves Machado Nascimento, Delegada da Delegacia da Mulher da cidade de Jales-SP, “algumas situações nós já tínhamos como incluir na legislação, então aspectos que eram considerados violência psicológica já conseguíamos encaixar na queixa, mas somente com o novo texto, conseguimos confi gurar como crime.”

Coincidentemente, o mesmo lugar em que a delegada atua, é a cidade natal de Janete da série Bom dia, Verônica (Netfl ix). Na trama, a personagem sofre violência doméstica nas mãos de seu marido Brandão, que a agride psicológica, moral e fi sicamente. No entanto, Nascimento explicou que, em sua trajetória, nunca atendeu um caso de violência tão extremo quanto o do seriado. “Eu acho que é importante não fl orear esse tipo de relacionamento. Não entrarei no mérito do enredo romantizar ou não a violência, pois aquilo é uma fi cção, mas é importante observar o quanto a personagem idealiza a relação, e as mulheres reais não podem fazer isso.”

A série também retrata algo que é frequente em relacionamentos abusivos. Segundo a psicóloga Soraia Duarte, que já atuou no CREAS (Centro de Referência e Assistência Social), “nesse tipo de relação, a pessoa abre mão de quem é e das suas vontades. Ela não se percebe como um ser de ideias. É uma relação opressora, o abusador não chega de forma revelada, ele vem de uma forma mansa, sedutora, envolvente e com um certo cuidado. A pessoa não percebe a toxidade da relação.”

A partir do relacionamento abusivo, o casal entra no Ciclo da Violência, o qual é dividido em três partes. Primeiro, há a fase da “Lua de Mel”, quando está tudo bem entre o casal. Depois, ocorre o “Aumento de tensão”, quando piadas e ameaças levam a próxima etapa: o “ataque violento”. Nesse estágio, ocorrem explosões de humor e agressões, as quais são seguidas de um arrependimento e leva o ciclo a recomeçar. Às vezes, a sequência pode não se repetir por conta de diversos problemas que, em casos mais graves, resultam no feminicídio.

Ao contrário do que se pensa, todas as mulheres, independentemente do grau de instrução, são vítimas em potencial. De acordo com Duarte, “a própria Maria da Penha não era desprovida de conhecimento e não se casou com um desconhecido. Ele se apresentou de uma forma amorosa. Após ele tirar a cidadania brasileira, começou a revelar-se.”

Uma pesquisa feita pelo instituto de Inteligência em Pesquisa e Consultoria (IPEC) revela que, 13,4 milhões de mulheres sofreram algum tipo de violência durante a pandemia, por algum parente, atual ou ex-companheiro. Desse total, 12% foram vítimas de agressão psicológica.

Segundo esse mesmo estudo, ao menos 33% das entrevistadas tiveram alterações no sono, sintomas de ansiedade, mudanças de humor, irritabilidade, aumento no consumo de álcool e no uso de medicamentos. “No ano passado, enquanto a quarentena estava mais restrita, por exemplo, as vítimas fi cavam confi nadas 24 horas com seus abusadores, o que levou a diversos problemas com a saúde mental”, conta a psicóloga.

O novo texto sobre a violência psicológica prevê que qualquer conduta que cause danos emocionais, diminua a autoestima, prejudique à saúde psicológica e à autodeterminação, é crime.

Para denunciar, a mulher vai até a delegacia e faz um boletim de ocorrência. Depois, ela é orientada sobre a Lei 11.340, as guias de exames do Instituto Médico Legal (IML) são expedidas e a medida protetiva é solicitada. Uma outra forma é o disque 180, especializado na área de violência doméstica.

“A maioria das mulheres se apoiam na igreja ou em espaços não ofi ciais do Estado, onde não há atuação do governo.

© Reprodução/UOL

Ciclo da Violência Doméstica dividido em três partes

Por isso, é importante que ela procure as instituições oficiais, como a delegacia, a promotoria de justiça e o CREAS”, afirma Nascimento. A delegada também acrescenta que “é importante que a mulher se conscientize da procura desses instrumentos para que eles sejam efetivos para ela. O que precisa fazer valer a aplicação da lei é o pedido de ajuda.”

Conforme relembra a psicóloga, “somos culturalmente trabalhados para não nos metermos na vida do outro. Vemos uma violência, mas não fazemos nada. Nós temos que começar a ser ensinados que, em briga de marido e mulher, metemos, sim, a colher”.

De acordo o Instituto Maria da Penha, a violência física contra mulher é “qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal”. Segundo a pesquisa Visível e invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, produzida pelo instituto Datafolha e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgada este ano, uma em cada quatro mulheres com mais de 16 anos foi vítima de algum tipo de violência nos últimos 12 meses, totalizando 17 milhões. Além disso, a cada um minuto, oito mulheres são agredidas fisicamente no Brasil.

A pesquisa ouviu um total de 2.079 mulheres, entre os dias 10 e 14 de maio, em 130 municípios. Desse total, 6,3% já levaram tapas, chutes ou empurrões, 3,1% foram ameaçadas com faca ou arma de fogo e 2,4% foram espancadas.

Em comparação com o ano de 2019, houve uma redução no número de mulheres vítimas de violência, de 27,4% para 24,4%, indicando uma estabilidade. Entretanto, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do FBSP, contabiliza um aumento de 7,1% no número de feminicídios em 12 estados brasileiros depois do isolamento social em 2020. Com base em uma apuração feita de forma colaborativa pelos veículos Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo, 1.005 mulheres foram assassinadas durante o ano passado: isso significa que, por dia, pelo menos três mulheres são mortas no Brasil. Esses dados têm como base as estatísticas das Secretarias Estaduais de Segurança Pública.

De acordo com o relatório O papel da arma de fogo na violência contra a mulher, produzido pelo Instituto Sou da Paz em 2019, 26% dos feminicídios causados por arma de fogo ocorrem nas residências das vítimas. O decreto n° 9.685, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, possibilita que um cidadão comum tenha até 4 armas em casa ou no estabelecimento em que trabalha. Segundo o estudo Harvard Injury Control Research Center, da escola de saúde pública da universidade, feito com 25 países, quanto maior a disponibilidade de armas de fogo, maiores são os casos de homicídios.

Como parte de um serviço de acolhimento estatal, A Casa da Mulher, que opera durante 24 horas por dia, atende vítimas de violência. Outro programa é a Casa Abrigo, que acolhe mulheres correndo risco de vida, e esse espaço contém um atendimento interdisciplinar: social, pedagógico, psicológico e de orientação jurídica, além de oferecer condições de repouso, material de higiene pessoal, vestuário e alimentação para as mulheres e um dependente físico, como um filho. A permanência das vítimas varia conforme a avaliação feita pela equipe interdisciplinar, que pode durar até 90 dias.

Em 1985, na cidade de São Paulo, foi criada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), com o intuito de amparar judicialmente as vítimas. Mônica de Mello, professora de Direito Constitucional na PUC-SP e defensora pública do estado de São Paulo, afirma que, além das DDMs, os movimentos sociais e as funcionárias públicas do Estado também “tiveram papel central para que parte da sociedade civil passasse a exigir do Estado uma ação de combate a esse tipo de violência que não existia antes”.

Um levantamento produzido pela revista AzMina, Mapa das Delegacias da Mulher, mostra que o Brasil possui 400 delegacias da mulher, sendo 32% no estado de São Paulo, mas somente 7% das cidades no país tem pelo menos uma. Segundo a professora, a obtenção de dados a partir das queixas nas DDMs “é essencial para subsidiar qualquer política pública, não só dados que estão nas delegacias em relação aos processos, mas também outras pesquisas, porque nem toda mulher faz

© Reprodução/Tribunal de Justiça do Espírito Santo “Violentrômetro”, marcador dos níveis de violência doméstica

denúncia embora possa estar em uma situação de violência”. O relatório Visível e Invisível, do FBSP, revela que 44,9% das mulheres que sofreram violência física não fizeram nada, 21,6% procuraram ajuda da família e 11,8% denunciaram em uma delegacia da mulher. Entre aquelas que não procuraram a polícia, 32,8% delas resolveram a situação sozinhas, 15,3% não quiseram envolver as autoridades e 16,8% não consideraram importante fazer a uma queixa. A defensora pública sinaliza que não existe uma resposta clara sobre as mulheres que escolhem não agir perante a violência sofrida, porém considera algumas hipóteses. “Essa situação pode acontecer por vários motivos. Pode haver um descrédito, muitas vezes no sistema de justiça, de fazer essa denúncia. Talvez não seja a resposta que aquela mulher gostaria ou precisaria naquele momento”, afirma. Mello também avalia que falta uma participação feminina na formulação de leis estatais e acrescenta que é necessário “ouvir mais o que essas mulheres gostariam do Estado, talvez uma mediação naquele conflito. Acho que elas querem muito mais uma resposta no sentido de cessar as agressões.”