Ante o fascismo genocida, há de ser primavera Em tempos de instabilidade social e humanitária, a política vigente é “um genocídio silencioso, é um deixar morrer”, diz psicanalista
Abriu a Caixa de Pandora no Brasil Há quem se choca, quem se apavora e há quem sempre viu Quem sempre se serviu de um sistema vil (...) Em salas fechadas, Salles que passam boiadas Males que vivem há décadas, matando mata e vales (...) Vetando o máximo pra quem pede o mínimo Votaram no extermínio por fissura ou por fascínio De uma volta à ditadura pros gringo ter o domínio 520 ano e, no comando, os mesmos assassinos (Souto MC, Primavera Fascista 2, 2020)
Por Danilo Zelic, Hadass Leventhal e Vanessa Orcioli
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as 5.570 cidades brasileiras, 98% possuem menos de 300 mil habitantes. Com o crescente número de vítimas do coronavírus, estamos indo rumo a uma nação deserta. É o que nos lembra Aldo Quiroga, editor-chefe e âncora do Jornal da Tarde da TV Cultura e professor de jornalismo na PUC-SP. “Pode escolher. Praticamente, tirando as grandes capitais, qualquer cidade no mapa do Brasil e imaginar ela sem o ser humano”, diz ele. O vírus escancarou a desigualdade já existente no país. Quanto mais baixos os indicadores socioeconômicos, maior o risco de morte por COVID-19, conforme os resultados de um estudo feito em maio de 2020 pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), da PUC-RIO. A pesquisa revela que 71,3% das pessoas sem escolaridade contaminadas pelo COVID-19 faleceram, enquanto somente 22,5% das pessoas com ensino superior sucumbiram ao vírus. Nota-se, também, os impactos da desigualdade racial nas mortes por Sars-CoV-2. A mesma investigação aponta que, de 10 mil pessoas brancas contaminadas, 38% faleceram. Ao mesmo tempo, 55% do total de nove mil pessoas negras foram mortas pelo vírus. Tal desequilíbrio perpassa todas as faixas etárias. A doença evidenciou a falta de infraestrutura necessária para arcar com as consequências geradas pela desinformação. Rafael Pardo, infectologista e diretor administrativo do grupo Omegha Infectologia Ambulatorial, vê “grande dificuldade da população em aderir às medidas” porque “as pessoas estão muito desinformadas”. O desconhecimento chegou até o consultório de Pardo, que relata episódios nos quais pacientes lhe pediram prescrições
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de cloroquina. Surpreso, ele conta que “foi uma média de mais de 25 pessoas”. Como lembra Pardo, o aumento da procura por cloroquina, assim como hidroxicloroquina e ivermectina foi crescendo à medida em que o próprio governo promoveu medicamentos sem comprovação científica. Um exemplo foi o lançamento do aplicativo “TrateCOV”, plataforma oficial que recomendava a médicos e enfermeiros o uso do “tratamento precoce”. Outro, é o constante apelo da parte de Bolsonaro para o uso dos remédios durantes lives e pronunciamentos oficiais. Roberto Dias, advogado e professor de Direito da FGV-SP e PUC-SP, condena a recomendação, produção e distribuição do “tratamento precoce”. “Isso é ilegal, deveria gerar uma responsabilização política, administrativa, civil e penal claríssima de quem está fazendo isso”. Acredita, ainda, que o próprio Conselho Federal de Medicina e os conselhos regionais deveriam se posicionar contra essa ilegalidade, e que “estão se mostrando anticientíficos”. O professor de Direito repudia a movimentação federal “contra o uso de máscara, o uso das vacinas, o isolamento social, tudo o que a ciência diz que se deve fazer.” Para ele, a única explicação possível é que Bolsonaro contraria recomendações de contenção à pandemia “porque, de fato, é um governo negacionista, anticientificista e antiintelectual.” Um dos ataques à ciência mencionados por Dias é a recorrente recusa de compra de vacinas para brasileiros. No dia 30 de julho de 2020, 4 meses e 18 dias após o primeiro óbito por COVID-19, o Instituto Butantan ofereceu milhões de vacinas para o governo federal, mas não obteve resposta. O Brasil acumulava 91.377 vítimas. Em 15 de agosto do mesmo ano, o governo federal não respondeu a oferta de compra de 70 milhões de doses do
imunizante Pfizer/BioNTech. O país acumulava 107.297 mortes. Três dias depois, o Instituto Butantan, novamente, ofereceu milhões de vacinas ao governo federal e não obteve resposta. O número de óbitos havia aumentado para 110.019. No dia 7 de outubro, pela terceira vez, o Instituto Butantan ofereceu vacinas para o governo federal. Mais uma vez não obteve resposta. O número de mortos chegava a 148.304. Em 20 de outubro, durante uma reunião com 24 governadores, Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, firmou o compromisso de compra de 46 milhões de doses da Coronavac. No dia seguinte, quando o país acumulava 155.459 mortes, Jair Bolsonaro desautorizou o acordo. Seis meses depois, a quantidade de vítimas dobrou. Quiroga, assombrado pela imagem de uma cidade deserta, sente pelas 300 mil famílias que perderam entes queridos. Para além do número de mortes, o professor de jornalismo nos alerta que aproximadamente 70% dos falecidos tinham mais de 60 anos de idade. De acordo com uma pesquisa de mapeamento do perfil de idosos publicada pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), em fevereiro de 2021, 3 em cada 4 idosos garantem ao menos metade da renda domiciliar. “Nós estamos falando de praticamente 300 mil famílias que perderam seus principais provedores. Isso é muito mais grave quando a gente pensa nos rincões e no interior do país, onde cidades inteiras dependem do dinheiro da aposentadoria dos seus idosos.” Quiroga preocupa-se com a morte cultural da nação que, segundo as convenções de Genebra do Direito Internacional Humanitário, a memória e a cultura de um povo devem ser preservadas até durante conflitos armados, pois a ruína desses aspectos é, também, uma forma de extermínio. “A gente tem diversos exemplos disso na história. Todos eles são promovidos por genocidas, em que você extirpa, de uma determinada comunidade, a sua capacidade de relembrar, de deter as próprias raízes, de passar de uma geração a outra aquilo que é sua própria história”. No Brasil, conforme dados disponibilizados pelo portal da transparência da Arpen (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais), pelo menos 236.818 idosos já morreram de COVID-19. Entretanto, o âncora nota que condições misantrópicas precedem o governo Bolsonaro. “O prenúncio dessa crise humanitária que começa em 2020 com a pandemia, já estava feito em 2018, quando se admitiu que povos originários, como quilombolas e indígenas, perdessem as suas garantias constitucionais protetivas.”
CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP