CONTRAPONTO 126 OUTUBRO/NOVEMBRO

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Relembrar para não repetir A importância da preservação da memória no período pós-ditadura militar no Chile e no Brasil

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preservação da memória histórica, e consequentemente da memória política, é fundamental para a construção de um pensamento crítico. Carla Cristina Garcia, antropóloga e professora da PUC-SP, revela: “Você vai conseguir, a partir da memória e da recuperação do que aconteceu, tentar fazer com que coisas desse tipo não aconteçam nunca mais”. Ao comparar Chile e Brasil, que tiveram em suas histórias governos autoritários, a professora afirma: “O Chile jamais deixou de preservar a memória do que aconteceu. Vemos que ali, nós temos um povo que tem uma relação diferente com a política. No Brasil nós temos o problema de querer varrer tudo para debaixo do tapete, desde que a ditadura terminou”.

Conservação da memória chilena Antes mesmo do decreto do fim da ditadura militar no Chile, a transição para democracia já soava entre a população e o governo. Em 1980, foi promulgada a Constituição que até hoje é vigente no país. Por meio dela, a democracia chilena começou a reascender, porém ainda com explícitos aspectos ditatoriais, por exemplo, o ditador ainda tinha total poder, a repressão e a censura ainda eram comuns e o fim do mandato pinochetista seria prorrogado. Em outubro de 1988, o povo chileno presenciava mais de perto a democracia: é convocado um plebiscito que derruba a ditadura de Pinochet e é realizada então a primeira eleição presidencial democrática após 17 anos. Em 1990, Patrício Alwyin Azócar sobe ao cargo de presidente e cria a Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, um grande marco para a democracia no Chile. Em seguida, em 1992, cria a Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, que reafirmou a relevância de uma conservação da memória e demonstrou respeito aos 2.279 desaparecidos e 3 mil assassinados durante a ditadura chilena, segundo a conclusão do próprio relatório. Recentemente, em 2003, o então presidente Ricardo Lagos Escobar, cria a Comissão sobre Prisão Política e Tortura, que seguiu esclarecendo a verdade sobre as graves violações que ocorreram no período. Além da lembrança, homenagem e identidade nacional que a conservação da memória proporcionou ao povo chileno, a resistência também foi despertada. É por meio dela que a nação condena os

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Além dos museus físicos, vale a exisatentados cometidos contra a democracia e contra a liberdade pública, temendo que tência de uma biblioteca virtual, a Memoesses se repitam. A premissa dessa luta foi ria Chilena, que também preserva todo a prisão de Pinochet, em 1998, o que re- tipo de material e documento relacionado ao regime militar de Augusto Pinochet. presentou uma vitória popular. O sentimento chileno de resistência No entanto, há a criação de um museu ultrapassa ideologias e relatórios. Com que contradiz a persistência pela memótransparência em suas ações, a causa ria. Em Santiago, o Museo del Presidente repercute até hoje em diversos âmbitos Pinochet, homenageia o ditador e o retrata sociais. Um retrato disso é o repúdio de como “salvador da ameaça comunista”, o líderes chilenos aos ex-ditadores e apoia- que agrada uma parte da população a fadores do regime, diferentemente do Bra- vor do período ditatorial. Mais uma amostra do sentimento de sil, onde Jair Bolsonaro se mostra a favor do que aconteceu no país de 1964 até resistência concedido pela conservação da 1985 e homenageia os maiores torturado- memória foi o alto número de documenres do período, como Carlos Alberto Bri- tários e longas-metragens produzidos que lhante Ustra. Em contrapartida, no Chile, retratam as histórias, dificuldades e angústais posicionamentos não são tolerados. tias da época. O filme “La Frontera” (1991), Em 2018, o presidente chileno Sebastián de Ricardo Larráin, relata a condenação de Piñera destituiu o então diretor da Escola um professor ao exílio e a sua vivência duMilitar, coronel Germán Villarroel, após rante a punição, a qual sempre revive nas o mesmo ter homenageado o brigadeiro memórias das torturas que já sofreu. Há também o filme “NO” (2012), de Miguel Krassnoff, que foi um sequestrador Pablo Larraín, o qual conta os bastidores da ditadura de Pinochet. Outro exemplo ocorreu em outubro do plebiscito realizado que decidiria o fude 2019, quando os chilenos reafirmaram turo do poder de Pinochet, sendo consideseu poder e consciência social e foram às rado um filme histórico para o Chile. ruas para protestar contra o aumento de 3,75% na passagem do transporte público. A manifestação de estudantes secundaristas, como ficou conhecido o movimento, tomou grande proporção por conta da repressão com que foi recebida, o que recordou a sociedade sobre o que sofreram no período militar. As medidas de ordem militarizadas demonstraram-se ineHomenagem para os mortos e desaparecidos durante a ditadura ficazes para conter a militar chilena no Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, insatisfação popular e Santiago, Chile o governo buscou, então, ceder a algumas “A Espiral”, um ‘filme-dossiê’ dirigido das reivindicações do movimento e mudar por Chris Marker e Armand Mattelart, foi o discurso empregado até então. gravado durante o golpe militar e conta com provas em documentos, entrevisCultura chilena Os museus construídos também são tas, recortes de jornal, imagens de arquiformas de evidência e resistência e são vo, gravações de vídeo e áudio realizadas de extremo valor para a população, como de maneira direta. Tinham o objetivo de o Museo de la Memoria y los Derechos Hu- construir uma consciência histórica, commanos, Memorial de los detenidos desapa- batendo a visão de que a ditadura corrigirecidos y ejecutados políticos IV Región e ria o possível “caos comunista” no país e Memorial de los Ejecutados y Detenidos De- denunciando que o governo de Salvador saparecidos de San Antonio, entre outros Allende havia sido vítima de um golpe organizado pela direita. espalhados pelo país. David Von Blohn / Fonte: ellibero.cl

Por Danilo Zelic, Isabella Pugliese Vellani, Maria Sofia Aguiar e Victoria Nogueira

CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP


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