CONTRAPONTO 126 OUTUBRO/NOVEMBRO

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Agulhas modernas para fios de tradição

Moda

Radicado no Brasil, o chileno Marcelo Von Trapp une valores contemporâneos à pureza técnica nas roupas do ateliê paulistano que carrega seu sobrenome Por Barbara Cristina, Guilherme de Beauharnais, Mayara de Moraes Neudl e Raíssa Haddock Lobo

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© Imagem cedida pela Von Trapp

vito ver coisas de moda, até porque não gosto nem do nome ‘moda’.” Partindo de um “estilista”, a frase pode até parecer paradoxal, mas reduzir a figura de Marcelo Von Trapp a de alguém que ganha a vida fazendo roupas é negar por completo todas as histórias, ideias e projetos que existem por trás de suas peças. Mais do que um estilista, ele é um artesão, um criador, um poeta chileno-brasileiro (com origens em Valparaíso) preocupado em ressignificar as nossas relações com as roupas. E, em meio à pandemia e ao lançamento de sua nova coleção, ele contou ao Contraponto um pouco de sua trajetória, processo criativo e relação com o “mundo moda”, em uma conversa que você confere aqui. Marcelo estabeleceu relações com as roupas ainda cedo: sua mãe tinha um ateliê de alfaiataria masculina, onde ele passava horas depois das aulas (quando não se perdia entre as araras de brechós, procurando por peças para desmontar e explorar a complexidade de suas tramas e costuras). O interesse logo se tornou paixão, e levou Marcelo a estudar na conceituada Central St. Martins, em Londres, que já formou grandes nomes da moda – como Alexander McQueen e John Galliano. De volta aos trópicos, fundou, em 2016, seu ateliê em São Paulo, a Von Trapp, que é hoje sinônimo de pluralidade, criatividade, transparência e primor na produção brasileira de vestuário feminino.

Marcelo e a amiga Barbara Besouchet posam com a nova coleção “Alvorada”, feita com resíduos têxteis de algodão nacional

Outubro/Novembro 2020

Contraponto  A Von Trapp faz parte de uma geração de marcas preocupadas com qualidade e construção de identidade, ao invés de velocidade. Esses valores têm sido cada vez mais presentes em marcas europeias e norte-americanas. Você sente que essa também é uma preocupação dos consumidores brasileiros? Marcelo Von Trapp  Acredito que é um dever político do consumidor poder entender de onde vem o que consome. Dentro de uma estrutura capitalista, a única forma de moldar a sociedade é a partir das escolhas de compra. Eu tive anos de experiência com outras marcas e grupos enormes que estavam unicamente preocupadas com rapidez e eficiência fordista, mas quando abri a marca não era sobre isso, era sobre escolher e entender o que ainda fazemos de bom no país e na América Latina. A construção de identidade veio naturalmente e a partir das aberturas para abraçar todas as pessoas com quem podíamos registrar e produzir em conjunto imagens e “personas”. O processo criativo é bastante horizontal e abstrato, mas se constrói de forma orgânica, dentro da autorreferência do trabalho de todos os envolvidos. CP  Você vivenciou o fast-fashion brasileiro por 12 anos, passando pelas equipes de estilo de gigantes como Renner e C&A. Qual foi o maior ensinamento que a passagem por esse lado da indústria da moda no Brasil te deu? MVT  Existe uma ideia de produtividade dentro destas empresas que eu ainda carrego. Ser proativo é fundamental. De planejamento e estratégia, que eu às vezes ignoro e depois percebo. Mas acredito que a austeridade é um dos valores que tento diariamente conjugar, pois é algo que faz muita diferença. CP  A alfaiataria e os plissados são características fundamentais das suas criações e, em um primeiro momento, são quase antagônicas: uma é marcada pela estrutura rígida e a outra pela leveza e movimento. De que maneira essas duas formas de trabalhar o tecido refletem as suas experiências e vivências no Chile e no Brasil? MVT  Eu sinto que existe uma herança arcaica do Chile. Na alfaiataria, o ateliê é muito rígido, como os códigos de conduta do país formal que é, mas normalmente eu tento trazer tecidos moles, como a seda, que muitas vezes deixam os alfaiates loucos. Eu amava (no começo) essa onda que tem no Chile de tradicionalismo: os cabelos, os sapatos, e aquela herança inglesa falida. O Brasil e os plissados me remetem à natureza (normalmente eles vêm em formas que remetem a criaturas meio exóticas) e principalmente ao lugar de liberdade de corpo. CP  Você comentou certa vez que seu trabalho carrega uma “pureza tradicional” (especialmente na relação com os tecidos) e o seu processo carrega muito a herança experimental da moda inglesa. Essa é uma preocupação que você desenvolveu ainda em Londres, enquanto estudava na Central St. Martins, ou foi algo que adquiriu ainda cedo, no Brasil e no Chile? MVT  Na verdade eu sempre tive um dedinho Rockeffeller. Quando era criança, eu não brincava com os ursos que tinham etiquetas que o toque era ruim. Já tinha esse espírito de criança viada e fresca. Sempre gostei das coisas que minha família não podia adquirir. Mas com o tempo, comecei a entender o que era o que e, compulsoriamente, entender de tecido e fibras, que hoje são parte da minha pesquisa (além das formas). Parte do processo da marca envolveu meu retorno à costura, então tive que me encontrar nesse lugar de costureiro novamente, o que é um processo que não tem fim. CP  Como é o processo de começar uma coleção? Aonde você busca inspiração? MVT  Eu não busco muita inspiração autorreferente: nunca procuro uma foto de roupa para fazer roupa, ou uma foto para fazer um shooting. Normalmente a inspiração vem de outras formas de expressão que analogamente vão se conectando. Por exemplo, eu posso mostrar uma cena de um filme a uma bordadeira para ela entender um degradê e o sentimento da coisa. Ou uma pintura a um fotografo ou maquiadora. Criar algo “novo” demanda muita pesquisa e verdade e, mesmo assim, caímos diversas vezes em algo sem saber que já foi feito. Por isso evito ver coisas de moda, até porque não gosto nem do nome “moda”. Prefiro apenas roupas e os ofícios relacionados. Eu acredito que durante o processo de desenho, molde e costura as coisas vão se transformando e cabe a nós aceitar isso, sem perder a coerência (e não se obstinar a seguir com uma ideia fixa). Informações sobre o estilista e seu trabalho podem ser encontradas em: @vontrapp_______ e em www.vontrapp.com.br

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