CONTRAPONTO 126 OUTUBRO/NOVEMBRO

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As consequências do neoliberalismo e seu impacto na sociedade chilena Semelhante a invasão europeia na América Latina durante o processo colonizador, o Chile serviu como cobaia para implementação das propostas econômicas estadunidenses Por André Nunes, Guilherme Dias, Inara Novaes e Mayara de Moraes

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© Reprodução

ichada em um muro nas proximidades da Praça da Dignidade – palco dos protestos chilenos ocorridos no último ano – lia-se a frase “el neoliberalismo nasce y muere en Chile”. O país latino-americano foi berço do modelo econômico neoliberal, gestado em meio aos porões da ditadura militar comandada pelo ex-general Augusto Pinochet, após um golpe de Estado em 11 de setembro de 1973. Em consequência da queda do governo socialista, as premissas de bem estar social implementadas pelo ex-presidente Salvador Allende foram substituídas pela proposta neoliberal elaborada pelos “Chicago Boys”, apelido dado a um grupo de 25 jovens economistas, enviados aos Estados Unidos para cursar o mestrado e/ ou doutorado na Universidade de Chicago, considerada epicentro de estudos do liberalismo econômico. Fruto da mesma escola econômica que os “Chicago Boys”, o atual ministro da Economia brasileira, Paulo Guedes, também cursou o doutorado na Universidade de Chicago. No entanto, após retornar ao Brasil, o economista não recebeu as posições acadêmicas que julgava merecer, nem os cargos almejados no Governo, sendo assim, Guedes se sentiu marginalizado e foi para o Chile. Ele tinha um desejo: conhecer “de camarote” as implementações do neoliberalismo no país.

Fotograma de ‘Chicago Boys’, documentário de 2015

Foi então que Jorge Selume Zetor, diretor orçamentário de Pinochet, convidou Guedes para trabalhar na Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, onde o plano neoliberal estava sendo elaborado a todo vapor. É por isso que antes mesmo de assumir o Ministério da Economia do Brasil, Guedes já dizia apoiar a implementação do ideal neoliberal: menos Estado, mais iniciativa privada.

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Comumente conhecido como o país latino-americano que mais cresceu economicamente entre 1983 e 2004, o Chile tornou-se uma das grandes referências do governo Bolsonaro. No entanto, a mítica criada em torno da história desenvolvimentista chilena privou boa parte do mundo de conhecer a verdadeira e decadente face do neoliberalismo. Segundo a artista plástica, Maria Paz Gutiérrez Rojas, o crescimento econômico do país não reverberou no bem estar da população, ficando restrito à apenas uma camada da sociedade. “Muitas vezes me disseram aqui no Brasil que a economia do Chile vai muito bem, perguntaram por que eu saí de lá, se ‘tava’ melhor do que aqui etc. Acredito que a ideia da realidade chilena estava muito errada, já que o crescimento econômico não se refletiu muito na maioria da população. No Chile você tem que pagar por tudo, e uma parte muito pequena acessa empregos com bons salários. Com um salário normal, não dá para pagar as coisas básicas, como estudo e saúde. Talvez você possa ver uma diferença no macro da economia, mas não muito no micro”. A alta concentração de renda para uma pequena parcela e as privatizações de serviços nas áreas da saúde, educação e previdência social, foram fatores cruciais para a diminuição do poder de compra do cidadão chileno, que ficou sem estudo e qualidade de vida. Se o país não se desenvolve para sua população, que permanece até então estagnada, seu crescimento é para quem? Segundo dados do Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas, o Chile é o terceiro país com a maior concentração de renda do mundo; os 1% mais riscos da população desfrutam de 23,7% de todo o rendimento do país. Esse percentual só é maior no Brasil (28,3%) e no Catar (29%). Esse cenário de ampla desigualdade econômica e social gerou uma insatisfação profunda nas camadas populares da sociedade, culminando na ebulição dos protestos ocorridos em 2019. O estopim que deu início às ondas de manifestações foi um reajuste de 30 pesos (cerca de 15 centavos) no valor do transporte público. No entanto, em um curto intervalo de tempo, a demanda por mobilidade transformou-se em reivindicações por reformas sociais profundas. “Não são 30 pesos, são 30 anos”, diziam os

manifestantes em resposta a um regime que tem administrado a miséria e precariedade nas últimas três décadas. Maria Rojas não estava no Chile quando os protestos eclodiram, mas diz que tudo ocorreu de maneira tão intensa que foi possível vivenciar toda a realidade, ainda que de longe. “Quando vi tudo o que estava acontecendo, senti uma mistura muito grande de coisas, frustração de estar tão longe e não poder participar; mas muita emoção também, porque é uma coisa que vem de muitos anos, coisas não resolvidas desde a ditadura, muitos anos em silêncio perdurando”. “É bom ver que as pessoas se levantam depois de tanto sofrimento, as fotos que meus amigos me mandaram nos protestos e depois nas manifestações feministas participando de performances com seus corpos, a verdade é que tudo o que aconteceu parece ter sido lindo, e também me deu muita impotência e vergonha o discurso dos políticos, a forma hostil e quase ditatorial de lidar com tudo o que estava acontecendo”, completa a artista. Embora as manifestações tenham ocorrido sob a liderança do governo democrático de Sebastián Piñera, o presidente chileno respondeu violentamente às mobilizações populares. Os Carabineros [polícia militarizada] e o exército, que não saia às ruas desde a ditadura, utilizaram de bombas de gás lacrimogêneo e golpes de cassetete à tanques de guerra, e tiros com armas letais. Estima-se que 20 pessoas foram mortas, outras 1.500 foram detidas e mais de 1.100 foram feridas. “A violência policial já é histórica no Chile, e é um problema na base da instituição dos Carabineros, por se tratar de uma polícia militar, seu treinamento é projetado para seguir a ordem hierárquica, simplesmente obedecer sem nenhum treinamento de sua individualidade e pensamento crítico, deixando-os incapazes de lidar com a população civil. Mudar isso significaria uma reestruturação total da instituição, o que considero difícil de acontecer no curto prazo”, diz Maria. O entrelace entre o neoliberalismo e a violência, característica do autoritarismo, se dá porque para que a liberdade de mercado seja implementada, é preciso calar todos aqueles que a contestam. “É um modelo imposto através da violência das ditaduras, seguindo o caminho do colonialismo; reafirmando ainda mais nossa posição de latinos oprimidos por países de primeiro mundo”, diz a artista plástica, em referência ao sistema econômico e as desigualdades sociais herdadas do regime militar.

CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP


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