O fotojornalismo como meio de denúncia e repercussão das revoltas populares
Por Giovanna Colossi e Sarah Catherine Seles
A
s redes sociais surgiram por volta dos anos 2000, se popularizaram nos anos seguintes e, desde então, possuem importante papel em atividades políticas. Com o grande potencial de unir pessoas, mesmo que de maneira digital, elas se tornaram essenciais para manifestações sociais dos mais diversos tipos. Um dos grandes exemplos brasileiros, é a extensa sequência de manifestações que ocorreu em 2013. Conhecidas como Jornadas de Junho, tiveram como estopim o aumento de R$0,20 no preço da passagem dos ônibus, que logo extrapolou os limites da tarifa e insurgiu em uma revolta política popular geral ao redor do país. A escalada de violência por parte da polícia militar nesses atos foi exposta por mídias contra-hegemônicas criadas na internet, enquanto a pauta era pouco divulgada nos veículos de imprensa tradicionais do país. Entre o final de 2019 e o começo de 2020, outra ação popular ficou conhecida ao redor do mundo, também através das redes sociais: as manifestações feministas chilenas. O canto “Um estuprador em seu caminho”, criado pelo coletivo LASTESIS, foi entoado em diversas nações, do Brasil à França. As manifestações inseridas no atual contexto de insurreição popular no país, representam, assim como as Jornadas de Junho, a ponta do iceberg de uma crise política e econômica. Insatisfeitos com os altos níveis de desigualdade e as dívidas substanciais adquiridas para cobrir itens da cesta básica, como alimentação, saúde, educação, habitação e transporte, chilenos que fazem parte da parcela populacional que possui somente 2,1% da riqueza líquida do país (dados da CEPAL de 2017) continuam nas ruas e resistem à violência policial e às diversas violações de Direitos Humanos, que ocorrem desde o início das manifestações, em 18 de outubro. Já é uma das mais longas revoltas populares deste século e conseguiu colocar na agenda política do país um plebiscito, ocorrido em 25 de outubro, que optou pela abertura de um novo processo constituinte. Para uma sociedade global, em que as imagens são parte essencial da compreensão popular, a cobertura imagética desses atos é essencial para sua própria repercussão. Apesar do clichê, a expressão popular “uma imagem vale mais que mil palavras” traduz bem o trabalho de Júlio César Almeida, Daniel Arroyo e Cristóbal Venegas Vásques. Dois brasileiros e um chileno que
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não configuram em listas de fotógrafos uma forma diferente de descobrir suas forenomados e históricos, mas que fazem tos nas manifestações em que participa. parte de uma nova leva de fotojornalistas Como trabalha para um jornal que tem ou fotodocumentaristas que realizam o como foco direitos humanos, justiça e vioimportante trabalho de registrar aconte- lência do Estado, Daniel relata que o seu cimentos espontâneos, como manifes- recorte é sempre da ação policial. E por tações, protestos e vigílias, eternizando conta disso, já sofreu e presenciou violênassim, os conflitos da contemporaneidade. cia policial durante suas coberturas. O Contraponto entrevistou esses três Júlio comenta que a polícia está preprofissionais para descobrir as semelhan- sente mesmo antes do ato começar, semças e diferenças na cobertura de manifes- pre com escudo e filmando o rosto dos tações no Chile e no Brasil. participantes e diz que a polícia provoca Cristóbal Venegas, 31 anos, fotojor- os manifestantes gerando um clima tennalista freelancer situado em Santiago, já so, que se intensifica no final dos atos. Ele teve seu trabalho publicado no The Wa- classifica a atitude da polícia como “uma shington Post, The Guardian, New York Ti- das piores, bem truculenta e sempre muimes, El País, Times, La Stampa, La Jornada, to agressiva.” entre outros. É anarquista e entende a fotografia de forma sociopolítica. “Participo das manifestações desde pequeno e, quando comecei a fotografar, levei minha câmera para registrar o momento e compreendi que era uma porta para difundir o outro lado da moeda”, afirma. Para o fotodocumentarista, os jornalistas dos meios de comunicação em massa não Policiais sufocam manifestante sabem qual é a realidade das manifestações: “estão atrás de uma mesa de escritório e não sabem Daniel já foi vítima de armas não letais qual é a realidade. Daí vem a minha inicia- da polícia militar. Logo após fotografar um tiva de estar nas ruas e poder mostrar uma manifestante atingido à queima roupa por outra realidade para que todas as pessoas uma bala de borracha, seu joelho direito tenham um outro ponto de vista e não fi- também foi atingido. O fotógrafo conta: quem somente com uma informação que “o tiro não era pra mim, o tiro era para um é paga por empresários e capitalistas.” manifestante, o PM deu dois tiros nele, o O relato de Cristóbal se assemelha à primeiro eu peguei na câmera, tem um forma como Júlio César Almeida começou vergão escuro da pólvora que ficou na caa cobrir as manifestações e a forma como misa dele e a bala de borracha já caindo. leva seu trabalho. Após observar que “vive- No segundo tiro, o cara [PM] erra e eu esmos em um olhar colonial”, um processo tou atrás do cara [manifestante] e ele me que sempre diz “vamos olhar para as pes- acerta. Minha sorte foi que ele abaixou o soas pretas na tristeza, chorando, levando cano da arma.” bala”, resolveu criar seu próprio processo O fotojornalista também denuncia de fotografar, um que não mostre o mesmo que, em nota, a Polícia Militar afirmou ângulo de sempre. Buscou criar sua própria que tinha prestado socorro e que a vítima perspectiva com os meios que tinha, che- (ele) estava sendo ouvida, quando, na regando, assim, aos seus retratos delicados alidade, a situação foi outra. Precisou ir e fortes. “O processo da fotografia é mui- ao hospital de táxi porque a polícia omitiu to complicado. A fotografia é muito elitis- socorro. ta e não é feita para pessoas pretas. Esse Em meio à repressão policial, os reprocesso é muito difícil”, complementa. pórteres não são diferentes dos manifesJúlio conta ainda como procura, em meio tantes e sofrem com a mesma violência, aos atos, os retratados: “eu sempre busco “dentro da lógica da polícia não existe muiimagens que as pessoas não vão buscar”. O ta diferenciação na hora da repressão”. foco de seu trabalho é trazer sorrisos, olha- “Não é uma guerra, é o estado reprimindo res e detalhes para a fotografia. a população”, complementa o brasileiro. O fotojornalista Daniel Arroyo, que Cristóbal é categórico ao comentrabalha para a Ponte Jornalismo, tem tar sobre a relação da polícia com os
CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
© Daniel Arroyo
No centro de manifestações movimentadas, fotojornalistas conseguem capturar de maneira crítica e artística a violência, a esperança, a luta e revolta desses atos