A tarifa que não terminou Brasil e Chile levaram multidões às ruas em 2013 e 2019; entenda as semelhanças e diferenças dos fenômenos populares que abalaram a América Latina
Por Amaury Ferreira, Guilherme Dias, Luiza Fernandes e Rafaela Reis Serra
A
s manifestações populares ocorridas no Brasil, em 2013, e no Chile, em 2019, ambas desencadeadas pelo aumento da tarifa do transporte público, evidenciam uma das semelhanças que os dois países latino-americanos vivenciam cotidianamente. Marcadas por muita truculência policial e repercussão midiática, as manifestações mudaram o rumo dos dois países, os desdobramentos dessa insurreição popular resultaram em um impeachment brasileiro e um plebiscito ocorrido em 25 de outubro deste ano, pelo qual foi aprovada a formulação de uma nova Carta Magna chilena, a ser redigida por uma Convenção Constituinte.
© Tiago Queiroz
Brasil 2013 Para entender o início das manifestações no Brasil, é preciso contextualizar o surgimento de outra organização popular: O Movimento Passe Livre (MPL). Pioneiro nas reivindicações de 2013, e centralizador das pautas por mobilidade em diversas cidades do país, o MPL surgiu em janeiro de 2005, em uma Plenária Nacional pelo Passe Livre, na cidade de Porto Alegre. O Contraponto conversou com Gustavo Henrique, professor de filosofia e militante do Passe Livre em 2013, que descreveu o perfil inicial da organização. “Na época, o MPL era visto como uma frente de massas. Ele não era um grupo só compostos de pessoas, era um enlace de várias organizações que reverberam essa ideia de luta pelo passe livre”, explica. De acordo com Gustavo, as características autonomistas começam a surgir em 2012, quando outras frentes passam a compor o movimento. Para ele, a autonomia foi essencial nas manifestações de 2013, de maneira a radicalizar mais a postura. O embrião de 2013 começa em uma manifestação organizada pelo MPL. Em 6 de junho do mesmo ano aproximada-
Polícia atira contra manifestantes em 2013
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mente 3 mil pessoas participaram do ato na Avenida Paulista. Elas criticavam o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus e metrô. Outros dois dias de protestos deram sequência às reivindicações. Ambos foram marcados por enfrentamentos com a polícia e os manifestantes receberam duras críticas da mídia hegemônica. Estes atos iniciais contaram com a participação majoritária do movimento estudantil e blocos de esquerda. O próximo dia de manifestação, 13 de junho, levou em torno de 12 mil pessoas às ruas. Essa data é considerada um marco para compreender 2013. “Foi nesse dia que o fotógrafo Sérgio Silva perdeu a visão de um olho e a Giuliana Vallone, que tava comigo, também tomou um tiro no olho. Teve muita truculência e isso acabou movimentando a cidade. Uma parte da população entendeu que precisava ir”, recordou o jornalista Leandro Machado, que cobriu as manifestações daquele ano pela Folha de S. Paulo. Para o internacionalista Aldo Sauda, a forte repressão policial ocorreu em decorrência da Copa do Mundo, que foi realizada no ano seguinte. “Há um legado da Copa. A violência era uma tentativa de abafar os protestos, era um projeto de preparar o país”, avalia Sauda. As impressionantes imagens de abuso policial com os manifestantes e os ataques a jornalistas viralizam nas redes e atribuíram outra perspectivas aos atos. A mídia hegemônica mudou a narrativa e os jornais do dia seguinte exibiram opiniões favoráveis às manifestações. Com a sua mão de obra em perigo, os veículos da imprensa , dessa vez, repudiam a abordagem policial. O fotojornalista do Estado de S. Paulo, Tiago Queiroz, contou ao Contraponto como foi estar na redação naquele momento. “Os jornais criticavam as primeiras manifestações, e a polícia viu nisso um respaldo para a violência. Depois daquelas imagens fortes, a imprensa mudou e percebeu que a truculência do Estado estava exagerada”, ponderou. Com apoio da mídia, o próximo ato reuniu 300 mil pessoas e se distribui pelo Brasil. Foram registradas manifestações por cinco capitais, entre elas, Brasília, onde manifestantes ocuparam a cobertura do edifício-sede do Congresso Nacional.
O aumento dos manifestantes registrou também uma mudança nas reivindicações, que não mais exigiam apenas a diminuição na tarifa, como também, mudanças na classe política, que vinha carregada de reclamações nas áreas da saúde e da educação. A frase “Não é só por 20 centavos” repercutiu entre os manifestantes e sintetizou a aglutinação de muitas insatisfações. Os atos também passam por um esvaziamento político; a bandeira de um movimento “sem partido” passa a ser levantada, afastando-se de seu formato inicial e registrando ataques à organizações e partidos de esquerda. Após o prefeito e o governador de São Paulo terem decidido abaixar a tarifa, o MPL anunciou que não iria mais participar das manifestações. “Acho que passou a ser uma coisa meio sem nexo. Tinha uma cara de festa, com bandeira do Brasil. Mudou totalmente o perfil, uma classe média direitista descontente com a Dilma”, pondera Machado. Com as novas exigências voltadas para mudanças estruturais, foi iniciada uma oposição à ex-presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT). O fato do Brasil ter sido governado pela esquerda foi central para que, a partir de então, fosse percebida uma guinada direitista às manifestações.
Chile 2019 Para o mundo e, principalmente, para o Brasil, o Chile serve como ponto de referência quando se trata do desenvolvimento econômico que o país sofre desde a implementação do neoliberalismo feita pelo general Augusto Pinochet, em 1973. A imagem de país próspero difundida pelo mundo foi confrontada pela série de manifestações ocorridas em 2019. O despertar da mobilização ocorreu pelo aumento de 3,75% da passagem do transporte público de Santiago, a capital do país, cuja tarifa é uma das mais caras do mundo, segundo a Universidad Diego Portales. “O aumento da tarifa simboliza apenas 1% da insatisfação da população chilena. Estávamos cansados da desigualdade social que desde Pinochet sempre nos condena a ser deixados de lado”, desabafa a artista plástica chilena María González Cuervo, ao Contraponto. A desigualdade social assola o país. A isso, soma-se problemas na previdência, saúde pública, educação e até mesmo no consumo de bens básicos, como na distribuição de energia elétrica e água. Segundo Marcelo Segura, membro do Conselho Nacional de Televisão do Chile, semanas
CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP