jornal coletivo sÓ, oitava edição, setembro/outubro de 2009

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S Ó - O I TAV A E D I Ç Ã O , A N O 2 , S E T E M B R O / O U T U B R O D E 2 0 0 9 I P R E Ç O C O L A B O R AT I V O R $ 1 , 0 0


Expediente Edição, reportagem e diagramação - Lucas Rodrigues de Campos Ilustrações e arte - Chuck Dedo Amarelo Edição e revisão de texto - Tatiane Klein Colaboração - Elton Amorim, Paulo Fávero, e Fábio Batistine e Raymundo Raine 6000 cópias Centro Cultural Popular Consolação http://so0jornal.wordpress.com Consolação, 1897, (11) 2592-3317 http://www.ccpc.org.br ccpc@ccpc.org.br Contato so.contato@gmail.com Endereço - Rua Navarro de Andrade, nº 20, ap. 22 05418-020, São Paulo, SP Telefones - (11) 7600-5699 por Lucas Rodrigues de Campos, Chuck Dedo Amarelo e Paulo Fávero

Dentro de um curso de música que atende a regras antiquadas na música, o surgimento de novos sons: A Banda do CANIL _ registra momentos importantes de nossa música; Fé cega e faca amolada, é um deles. Há dois anos, a música surgia na versão dos Doces Bárbaros. Hoje se assemelha à viagem e competência exploradas na gravação original da canção grafada no long play Minas, do Milton Nascimento de 1975. A forma de lidar com os sons é ingênua privilegia o primeiro contato no ato. Em meio ao show, os músicos parecem tocar a expressão das faces. O agrupamento de tardes improvisadas tornou o som físico, quase palpável, um estalo musical na pele. Provoca coletivizando o entendimento musical que só pode ser sensível aos olhos dos ouvidos, coisa de organismo. Mesmo. A música, autoral e de domínio público, é produzida por todos os presentes no espaço público. Dança das vísceras, gritos, luzes, fogo, atuações, pulmões, tinta, câmeras, ação! Por vezes ação, mais ação, pausa, libertação! Muitas outras mais: Gil, Lênin, Gordin, Lanny, Trosky, Jim, Sauno, Gal, Soul, latidos e grunhidos. Sugestão ao grito para os que conhecem e os que avistam a ilha pela primeira vez. Piratas caolhos, a ilha tem cerveja, o rum é sonho,

paulo fávero

aos malditos

Segundo número em parceria com o Centro Cultural Popular; oitava do coletivo sÓ - a primeira foi lançada em 2005, em formato revista -, sétima edição como jornal: um especial sobre o Rock da Mortalha. Diferente dos últimos números, esta edição de coletivo sÓ dá destaque às entrevistas, uma das ferramentasm mais importantes no registro da memória. Em nosso caso, aplicamos-na na recuperação do passado e no registro do presente: um que surge das catacumbas do Rock da Mortalha e outro que vem do instrumental Mama Gumbo e da fluência de sons e uivos vindos de um canil forjado à marretadas. Parceiros de Arnaldo Baptista no grupo Patrulha do Espaço, Dudu e Koko Genari são lembrados pelo amigo Giácomo Paolo, espécie de manager do Rock da Mortalha. Ambos são fundadores do Patrulha, e Kokinho, como era conhecido no meio musical, fez sua última aparição em vida em Loki. O documentário trabalha de forma dúbia; enquanto constrói o mito de Arnaldo, amaldiçoa o termo rock progressivo e as contribuições do mutante Sérgio Dias em “Tudo foi feito pelo Sol”. Na época em que floresciam Iacanga, outros malditos do progressivo - alguns já relatados aqui (Som Nosso de Cada Dia e Terreno Baldio) - o trio de hard macabro da Vila Liviero, São Bernardo do Campo, causava espando no público do Festival de Águas Claras. Em Loki, aqui apresentado por uma resenha crítica, é possível notar a dificuldade de se tornar artista com obra reconhecida. No caso de Arnaldo Baptista, o reconhecimento veio após uma sucessão de traumas: foi preciso voar e ficar em exílio durante anos. Hoje o filme alça Arnaldo à confusa extratosfera dos gênios.

também nostalgia. Mas o grupo é de piratas públicos e sonoros às quartas-feiras. O número das caravelas sonoras que já aportaram no porto é hoje, quase incontável. Alfândega originária em Haight-Ashbury, com tarifas um pouco mais baixas. Meretrio, Saunoflex, Baratas Organolóides, Soul Barbecue, Zé Brasil, Banda de Argila, Gangsters, além da banda batizada pelo local, estão na história do espaço apossado pelo ímpeto e pela autogestão. Jams, treinos, músicos acadêmicos e bêbados loucos de plantão. Com todo respeito à etimologia mundrunga, sempre hippie, suja, louca, e contestadora. Consagradas sejam as quintas feiras de boa música e cerveja sem entrada. Até o sol raiar, ou às vezes, até mais. É nas QuintasiBrejas do CANIL _ Espaço Fluxus de Cultura, onde o fenômeno acontece, a balada é mesmo eter-

na: a fossa, o atraso preguiçoso no serviço, sono entorpecido: o mundo das idéias em efervescêcia analgésica, antitérmica e proparoxítona. O cansaço...levantai-vos! Isso remete, em devaneio, à tradição perdida da Escola de Comunicação e Artes. Aos anos setenta. Vilanova. Arrigo e companhia, como muitos outros, não são nostalgia, são criatividade presente em um CANIL _, grunhindo contemporaneamente, mas, experimentando por conta. Aí está o passado atual, compor e experimentar como antes. Reciclagem não de riffs, mas de uma formar de enxergar o que se ouve. Música boa é música viva. Isso os integrantes da matilha Zé Motta (vocal e percussão), Ed Woiski (guitarra), Kiko Woiski (baixo), Henrique Gomide (teclado) e João Fideles (bateria) e o iluminador Paulo Fávero sabem muito bem. É como se a boa música ainda fosse de alguma maneira valorizada pela maté-

CANIL_

ria humana que a executa durante todos os procedimentos. Ou seja, o lance é criar. O espaço recebia o gerador de eletricidade da antiga REI_toria. O gerador não funcionava, o espaço era obsoleto. Virou canil. Dezenas de cães bastardos amontoavam-se, latiam, degladiavam-se presos. Marretadas políticas, marteladas de dimensões críticas, diversas, abriram outro caminho. Arte que virou vídeo, música. Em 04 _05 _006, estudantes reocuparam o espaço público. Arquitetura de vanguarda, dita de Artigas: abandonada, porca, nula, amarela, fantástica, nave espacial indestrutível, possibilitou o redondo aberto horizontal, sem portas, grades ou jaulas para novas articulações criativas. Mais nostalgia, a prova da nostalgia válida. Armaram um palco no teto. Hoje o teto é questionado. Agüenta ou não agüenta? Agüentou todas as esferas de Dark Side of The Moon. O lançamento ao Espaço Fluxus de Cultura. Os cães da matilha hoje são livres ao menos no seu CANIL _: correm no verde, perseguem carros. E se os deuses da música ainda rezam por algo, os cães ainda mijam livres nos postes. Isso sim é resistência!


As vontades coletivas de Mama Gumbo (ou retrato de um artista quando jovem) Lucas Rodrigues de Campos: Vocês [Mama Gumbo] participaram do festival PIB [Produto Interno Bruto, festival que já está em sua segunda edição e que este ano aconteceu no clube Belfiori (CB Bar), Barra Funda]. Em 2007 vocês concorreram e ganharam, e nesse ano foram a banda madrinha, tocando inclusive com uma lixadeira elétrica. Há quanto tempo vocês estão trabalhando o set apresentado? AC: Temos cerca de 20 músicas prontas, todas criadas de um ano e meio pra cá. São as que tocamos nos shows, variando conforme o público. Dez entraram no novo CD. LRC: Como as influências musicais de cada integrante aparecem no processo de criação das músicas? AC: Nós tivemos três formações e em cada uma delas o som foi diferente, apesar de continuar com uma essência. Cada vez que entra uma pessoa muda tudo, pois é outro universo, com referências diferentes. Todos contribuem de alguma forma. Geralmente eu faço os temas, proponho no ensaio e vamos mudando, adequando. Às vezes [o tema] aparece em uma brincadeira e vamos seguindo aquilo, lapidando. As músicas acabam sendo a expressão dessa vontade coletiva que é a banda. Por mais que eu faça um tema, ele acaba sendo construído por todos. E o Mama tem um direcionamento, desde o primeiro disco, uma cara. Isso é incorporado pelos integrantes. LRC: Qual é essa cara? AC: É a de uma música instrumental livre de populismos, dançante, mas também tensa, com referências variadas que passa por uma estrutura de composição idealizada. Temos um conceito de jazz e somado a isso temos uma camada de influências que se sobrepõe: como o rock, a música de vanguarda, o blaxploitation. É um jazz mais visceral, mais simples, com um pouco de afrobeat, com uma estrutura às vezes or-

Alex Cruz tem 32 anos. Está há 16 na empreitada musical. Bacharel em Filosofia, hoje participa de diversos projetos musicais, em que se afasta de um emprego alienado e manifesta seu profundo desejo de criar. O combo Mamma Gumbo pode ser considerado o carro chefe da carreira musical de Alex. Nesse coletivo, ele desfila um arsenal de teclados psicodélicos e manifesta a música mundial no palco; só no último foram quase sessenta shows. No Dharma Samu, outro de seus projetos musicais, ele se digladia com os deuses do rock e remodela canções de Led Zeppelin em pranchas instrumentais. Em suas participações no Zói de Gato, trabalha os caminhos modernos da MPB. Em entrevista ao Coletivo Só, Alex Cruz revela uma personalidade musical gritantemente citadina, critica a indústria cultural e mostra um pouco do que é estar no circuito underground de São Paulo. Leia abaixo, na íntegra.

questral e que se apóia nas dinâmicas. Uma espécie de montanha russa, com partes bem definidas. Não ficamos apenas “fritando”, existem muitas partes organizadas que se misturam às partes livres para dar um respiro... LRC: Quando diz populismo em música você se refere exatamente a quê? AC: Sobre o populismo, eu digo essa mania de sempre se misturar a música regional brasileira que está na moda no momento. Hoje em dia tudo tem um pouco de regionalismo nordestino, toques de MPB e resquícios de jazz brasuca chato. Não que isso seja um problema quando é natural, mas geralmente não é. Existe uma necessidade de sermos extremamente brasileiros e para quem mora em uma cidade como São Paulo é um pouco difícil ser tão regional. Mas sempre aparece um pouco da música brasileira, não tem como fugir disso. LRC: A música do Mama Gumbo traz poucas referências à música nacional? No Brasil há uma linhagem de jazz bem autoral... AC: Nós fugimos dessa linhagem. Somos uma mescla com outros estilos: não podemos ser apenas jazz. Mas temos influências de nomes como Sansa Trio, Zimbo Trio e todos esses nomes conhecidos (principalmente desse samba-jazz dos anos 60). Não sei se isso aparece tanto, mas em algumas músicas fica claro que temos um pé no Brasil. Não ficamos presos só nisso: procuramos outras áreas; é aí que a coisa começa a mudar. Somos uma banda mundial [risos]. LRC: De quais outros grupos você faz parte? AC: Eu toco em mais dois projetos: um se chama Dharma Samu, que é uma banda que faz versões

instrumentais jazzísticas e funkeadas das músicas do Led Zeppelin; e um projeto novo, um trio de jazz ainda sem nome. Tem outro projeto, de que participo como convidado, chamado Zói de Gato, uma coisa mais MPB. LRC: Hoje você dedica todo seu tempo produtivo em prol da música? AC: Não. Infelizmente tenho que trabalhar em um emprego fora da música. O que ganho com a música ainda não me proporciona uma vida sequer razoável. LRC: Você sonha em ser músico profissional? AC: Músico profissional... Estranho isso... Sou músico. Não compreendo essa coisa de profissional. Só não ganho dinheiro suficiente com isso, mas viver de música é o que nós pretendemos. LRC: Você acompanha com afinco a cena musical aqui da cidade ? AC: Bastante. Vou a muitos shows e escuto a maioria das bandas undergrounds, que é a parte boa da música brasileira atual. LRC: Ultimamente algum grupo ou músico tem chamado a sua atenção? AC: Gosto mesmo é dos undergrounds. A grande cena não me traz nada, me parece tudo muito falso e sem alma. Atualmente tenho ouvido uma banda chamada Malditas Ovelhas, de São Carlos; eles são muito bons. Há uma ótima cena de bandas instrumentais no Brasil de agora; bandas como Retrofoguetes, Gasolines, Reveba Trio, Aerotrio, Elma, Fantasmagore, Macaco Bong e muitas outras. Instrumentais ou não, como Sotádicos, Vaca de Pelúcia, Mamma Cadela, Biggs, enfim. Muitas bandas bacanas, em diferentes

por Lucas Rodrigues de Campos

níveis de produção, mas que estão meio escondidas, com um espaço restrito para aparecer. LRC: Como você vê o underground? Como entende esse termo? AC: É um vício de linguagem, né? [risos]. Eu vejo como as bandas que tocam por aí. Sem vínculo com as grandes empresas ou a grande mídia, geralmente bandas que se autoproduzem, gravam seus discos, correm atrás de shows. É claro que no momento, aqui no Brasil, isso está meio confuso. Existem bandas que estão no meio termo e mesmo o circuito “independente” não é tão underground assim. Já temos a Abrafin [Associação Brasileira de Festivais Independentes] e um monte de bandas que já rodam o Brasil – aparecem na mídia e são meio independentes. O negócio está bem confuso. Se juntar essa caça desesperada pelas leis de incentivo, pessoas que vivem dessa galinha de ovos de ouro. Mesmo pra você ser independente é complicado hoje. Tem que entrar nesse meio, o que não é assim tão simples, nos festivais, nos coletivos, na Abrafin, nas leis de incentivo. Você tem que ser meio burocrata para ser músico hoje no Brasil – digo músico “independente”. Os undergrounds são mais livres, se viram, fazem música e pronto. LRC: Você acha que a cidade de São Paulo influencia seu modo de fazer música? AC: Totalmente. Eu nasci e cresci aqui. O mais longe que fui foi para Brasília, tocar em um fim de semana; de resto nunca sai daqui. O meu regionalismo é ônibus lotado de uma hora e meia para o centro, terreno baldio [o mais perto que eu cheguei da natureza, de pegar frutas, essas coisas], asfalto, prédio, violência, sujeira, poluição, cinema, música, baladas, periferia, subemprego, instrumentos “classe C”, faróis, trânsito, Santos em feriados, hot dog, comercial com fritas, escritórios, Zona Leste, moradores de rua, trem, metrô, calçadas quebradas, pracinha do bairro, happy hour, antenas de TV etc. LRC: O que seriam “instrumentos classe C”? AC: Você não tem grana para comprar uma


quarta, dia 7/10 LEANDRO BONFIM E MAMA GUMBO LEANDRO, A PARTIR DAS 22:00 MAMA, A PARTIR DAS 23:00 CENTRO CULTURAL P OPULAR C ONSOLAÇÃO 1897

guitarra Gibson (que custa de 6 a 20 mil reais). Então você tenta uma Epiphone, mas ela também custa uns três mil ou dois. Então você vai abaixando, até comprar uma de 500 contos. Isso com os teclados, com a bateria, com o baixo, a percussão etc. É impossível ter um instrumento descente aqui no Brasil, pelo menos para minha classe. E olhe que eu gasto toda a minha grana em instrumentos. Já deve ter uns 20 mil em instrumentos “C” e alguns “B”. LRC: Como é essa adaptação técnica dentro do Mama Gumbo? AC: Fazemos com o que temos. Sempre queremos ter mais e vamos acumulando instrumentos e técnicas. Felizmente temos um equipamento razoável, que dá pra se expressar bem. Eu toco com três teclados: um stage piano, um synth de orgãos, rhodes e coisas assim. E um synth maluco, estilo moog e tal. É o que eu levo para os shows. Em casa e para gravar eu tenho um suette dos anos 80 (uma espécie de rhodes nacional que pesa uns trocentos quilos). um piano de parede; e dois teclados pipoquinhas para uns timbres mais bizarros. Eu ainda uso um wahwah e uma distorção. O baixista usa uma distorção também, tipo um fuzz. Tem a percussão com um milhão de coisinhas que fazem os barulhos mais malucos; um sax esquizofrênico a que se soma a flauta; e uns efeitos tipo rádio, lixadeira elétrica e chapas de metal e o batera que toca um didgeridoo, às vezes... Ufa! LRC: Atualmente você tem ouvido o quê? Algum som na linha dessas últimas doideras? AC: Como eu disse, estou ouvindo o Malditas Ovelhas, que usam uns efeitos de synth e outras maluquices, e tudo soa bem bacana. Gosto do Ananda Shankar (coisa antiga), do Frank Zappa. Estou ouvindo e conhecendo o Weather Report (nem tudo é bom, mas tem umas coisas demais); tem os discos do Miles [Davis] da fase fusion; os do Herbie Hancock, umas trilhas de filmes eróticos dos anos setenta, muito blaxploitation, jazz fritadeira, Black Sabbath, Stones, Silver Apples, Santana, muita coisa e coisas diferentes. LRC: Voltando a falar de São Paulo. Quais os melhores shows que vocês protagonizaram nas casas daqui? AC: Todas as vezes que tocamos no Berlin [casa de shows na Barra Funda] foram demais. No festival PIB, no CB Bar [Clube Belfiori] foi muito bom também. Temos shows no Teta [Jazz Bar], que são mais intimistas, mais jazz, que são bem bacanas e diferentes. Tem as festas na Gruta [Bar, na Vila Buarque],que são muito viscerais e malucas. Em cada lugar nós reagimos diferente. Dependendo da proposta da casa, da reação do público, do nosso bom humor no dia [risos]. LRC: Você gosta desses espaços? AC: Gostamos da maioria desses lugares. Cada um tem sua particularidade. A única coisa que tem e comum é que não dão muita grana [risos]. LRC: Você acha que existe uma solução para que os músicos noturnos aqui de Sampa tenham melhores condições de trabalho? AC: Claro que existe. É só os donos das casas serem mais humanos e levarem em consideração o trabalho e a importância da música do estabelecimento deles. Quando você quer servir alguém você paga um garçom; para limpar tem a faxineira; tem o barman para atender e o músico para entreter. A questão é que músico sempre ganha menos do que qualquer um desses profissionais. As pessoas confundem arte com brincadeira. Não acham que existe profissionalismo, nem esforço, nem investimento, nem gastos. Eles acham que estão dando uma oportunidade e estão fazendo muito em repassar algum valor pra você. Isso em 99% das casas de Sampa. Poucas são as que sabem lidar com os músicos, são honestas, repassam o que combinaram – muitas roubam descaradamente nas contas, alterando as comandas, escondendo os números reais, não pagando o cachê descaradamente, enrolando dias pra pagar etc. Não é fácil ter uma casa noturna, bar ou qualquer coisa desse tipo, mas temos que ser vistos como profissionais. A maioria das casas que mexem com música nem equipamento têm [risos]. É nossa obrigação levar [risos]... É uma piada. Só maluco entra em um negócio destes [risos]. LRC: Qual é sua motivação para entrar nessa maluquice? AC: A música é uma coisa superior, difícil de explicar. É o que faz as coisas fazerem sentido. Algumas pessoas têm a religião, o trabalho, os filhos, sei lá. Pra mim é a música, o ato criador da coisa. O fato de ter esse poder de trazer algo ao mundo, de gravar uma coisa que você pesquisou, executou, criou. Além da questão ritualística da coisa, o clímax, uma coisa transcendental, o desprendimento na hora do show, quase como um êxtase religioso, a catarse mesmo, difícil explicar. Mas o negócio vicia, como uma droga mesmo... Além da alegria de ter algo pronto, das pessoas poderem ouvir o que você fez... Coisa de louco [risos]. LRC: Sua vida profissional está amparada em que hoje? AC: Tenho um subemprego burocrata qualquer, free lancer total. O que me ajuda a tocar por aí.

LRC: Há uma oposição entre trabalho alienado e trabalho criativo? AC: Total. É uma venda corpórea. Na verdade não é nem uma venda, pois não se pode negociar. É uma necessidade de subsistência. Não há nada de criativo ou de digno nisso. É um outro nome para escravidão, pois a maioria das pessoas não escolhem em que vão trabalhar. A maioria só tem que trabalhar. Eu faço parte disso como muitos outros. O que sou, só passa a existir quando estou fora de lá e se manifesta em alto grau quando toco. LRC: Tocar é um manifesto contra tal situação para você? AC: Funciona como um modo de vida, então também entra esse lado manifesto. É uma maneira de você sair, gritar, ir contra de uma maneira talvez lúdica demais, mas ainda sim importante. É como se quando você tocasse, vingasse todas as coisas ruins do mundo, inclusive as que estão em você mesmo. LRC: Sente que hoje em dia tem diminuiu a vontade das pessoas, e dos jovens em geral de se manifestar? AC: Não sei se diminui, mas mudou. Todos querem se manifestar, mas como e para quê é que são as chaves da coisa. Hoje em dia, as pessoas começam a tocar para imitar alguém, para ganhar dinheiro ou para comer meninas. O que é um erro. Não que não se possa fazer nada disso [risos]; é que as coisas começam errado. Quando comecei, pensava em criar músicas tão boas quanto as dos [Rolling] Stones; pensava até em ser melhor que eles, em criar melodias, em inovar, usar instrumentos estranhos, mudar a maneira de como se vê música, de como se ouve, de como se vende. Queria dizer que o mais importante é ser verdadeiro e criativo. Tinha 16 anos e queria mudar todo o mundo. Hoje tenho 32 e ainda quero. LRC: Você já se pegou elocubrando sobre como seria fazer música em outra época, em que parecia haver um público mais seletivo quanto ao gosto musical? AC: Já pensei e quando era mais novo esse era meu sonho [risos]. Mas depois percebi que queria era estar aqui e agora, fazendo exatamente o que eu faço, atingindo as pessoas agora e com esse tipo de som. Gosto de ser um fruto da minha época, um apanhado de influências de tempos e pessoas distantes, mas que se somaram em mim e se mesclaram com a minha maneira de ver o mundo – que, por sua vez, é influenciada por diversos fatores do mundo de hoje e de ontem. Além do mais, acho que em todas as épocas existiram um público que gosta de “música de verdade” e escuta as coisas mais bizarras. E tem o fato também de que hoje é um momento muito bom, a internet abriu as portas para muita coisa, para muitas possibilidades. Eu não queria estar em outra época [risos]. As gravadoras desabaram; ninguém sabe o que fazer direito; estamos entrando em uma nova fase; é um momento crucial, de mudança. Hoje você tem acesso a milhões de tipos de música, tem como ir atrás e só ouvir aquilo que te interessa. Há 10 anos era foda comprar um CD ou disco; era caro e não se achava nada. Ficávamos presos ao que a indústria achava que deveríamos consumir e muitas bandas genias caíram no esquecimento. Hoje podemos ouvir quase tudo e estudar a obra de diversos malucos que estavam perdidos. É uma espécie de resgate, de abertura cultural. Tem pessoas que têm bibliotecas gigantes nos computadores e liberam isso pra outras – pode-se ouvir diversas bandas undergrounds e boas pelo MySpace . Hoje só engole essa merda toda mercadológica quem quer. LRC: Você acha que os músicos de hoje estão preparados para propor uma nova situação depois da quebra do status quo das grandes gravadoras? AC: Apesar de esse ser um momento crucial, eu não acho que essas organizações independentes estejam preparadas. Todas as ações são marcadas por uma politicagem forte, uma burocratização, uma dependência do estado. No fundo eles estão agindo de maneira análoga. O que é um problema, pois quando as grandes sacarem que esse negócio é extremamente rentável, vamos voltar para o mesmo lugar ou quase para o mesmo.


entrega de ter. a dom., das 18:00 às 24:00

PIZZARIA POLLY, Av. João XXIII, 05 Vila Formosa, 2911-5087 e 2216-0446


30/10 no CCPC

SEGUNDA EDIÇÃO UDIGRUDI EM FESTA aquecendo as turbinas para o P S I C O D Á L I A

J A Z Z , R$2,00 JONATAS JAZZ QUARTET

No mês de setembro, a banda Jonatas Sansão (Bateria), Lucas Macedo (Sax), André Soratti/Kiko (Baixo) e Davi Sansão (Piano) - comemorou um ano de jazz no CCPC. Para celebrar, a banda recebera, como convidado, no dia 14, o exímio guitarrista Michel Leme, que tem em sua Firma, grupo que o acompanha, a presença de Jonatas. Há um ano, quem passa às segundas pelo CCPC distorce o triste início da semana ao tomar contato com temas clássicos do jazz, como Maiden Voyage e Cantaloupe Island, ambas de Herbie Hancock, influência declarada dos músicos. Além do quarteto liderado por Jonatas, outro grupo bate cartão às segundas-feiras: o instrumental Água Viva, que destila o melhor do instrumental brasileiro.


Sexta Samba Rock projeto Groove à Brasileira

O principal objetivo do Groove à Brasileira é trazer a música negra brasileira e internacional desde a década de 70, como o soul e o funk, para a noite paulistana. Entre outras vertentes, será explorado o que há de mais contemporâneo neste cenário musical, abrindo espaço a cada noite para convidados que fazem a cena da música negra paulistana. Toninho Crespo e Banda trazem seu samba rock e influências da música negra brasileira, soul music, rap e dub, todos presentes no recém-lançado CD Estilo Samba Rock. O Dj Adauto Dhemix, atuante desde os anos 70 na arte da discotecagem em São Paulo, traz em seus vinis os clássicos do samba rock e também mixagens de produções inéditas da black music de diversos estilos e épocas. Dj Guinho contribui com sua experiência com os clássicos do breakbeat, do hip hop, do funk e do soul . w w w . m y s p a c e . c o m / t o n i n h o c r e s p o

sáb., 11h00

qua., 19h30

seg., 18h l os documentários produzidos, serão exibidos em uma sessão especial no mês de dezembro

qui., 19h30 l curso de percepção a partir da experiência com escaleta

qui., 19h30

Além da extensa e contínua programação musical, som ao vivo todos os dias emendando semana a semana, o Centro Cultural possibilita tomar contato com diversas criações que mesclam capacitação na áerea de produção de cultural: Rádio, Documentário, Teatro, Orquestra de Escaletas. Ao

oficinas

final, as , que duram de um a três meses, transformam a experiência laboratorial em projetos concretos. Veja a descrição completa de cada atividade em www.ccpc.org.br

qui., 19h30


L o k ia construção de um gênio

por Erich Jones Estudante de Ciências Sociais, baixista do MudShark e fã inveterado de Mutantes RESENHA DO DOCUMENTÁRIO LOKI, EM CARTAZ NO CANAL BRASIL E LANÇADO EM FORMATO DVD FICHA TÉCNICA BRASIL, 2008, 120 MIN. DIREÇÃO / ROTEIRO / EDIÇÃO: PAULO HENRIQUE FONTENELLE PRODUÇÃO EXECUTIVA: ANDRÉ SADDY DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: ISABELLA MONTEIRO PRODUÇÃO DE FINALIZAÇÃO: TEREZA ALVAREZ DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA: MARCO MOREIRA EDIÇÃO DE SOM: CARLOS TORÉ PRODUÇ ÃO: CANAL BRASIL

Um conto sobre um garoto de extrema criatividade, nascido e criado no bairro ítalo-paulistano da Pompéia. Cercado e maravilhado pela cultura ocidental produzida em larga escala nos meados da década de 60, o filme alça o menino à condição de um gênio. Fã de histórias em quadrinhos, Três Patetas, discos voadores; fã de rock and roll próximo das bandas bairristas que imitavam os Beatles. Ele foi além: criou, inovou e foi ponta-de-lança do movimento tropicalista, segundo as palavras do maestro Rogério Duprat ao falar sobre a vida de Arnaldo Dias “Loki” Baptista. Dirigido por Paulo Henrique Fontenelle, o documentário Loki apresenta um apanhado de depoimentos de personagens curiosos, que acompanharam ou eram próximos d´Os Mutantes. Um deles é Raphael Vilardi, que foi um dos que participou da criação do maior conjunto de rock brasileiro, que ainda em 66, integrante d’O´Seis - célula inicial da banda - compôs “Não vá se perder por aí” e “O Suicida/ Apocalipse”. Vilardi trocou o grupo para ser um “tremendão” de Erasmo Carlos – no documentário ele revela não ter assimilado o som brasileiro de “Domingo no Parque”, quando foi apresentado ao som de Gilberto Gil através de Arnaldo. Outro depoente fundamental é o artista plástico Antônio Peticov, quem apresentou o LSD aos Mutantes para embarcar na lisergia, durante sua alucinada excursão em Paris, para a gravação de Technicolor, em 1970; e quatro anos depois, na Itália, conviveu durante dez dias com um Arnaldo cosmonauta que o convidou para planejar a construção de um disco voador. Ganham destaque as imagens de época. O Festival Internacional da Canção, produzido pela Rede Record, posiciona o nascimento do sentimento tropicalista a partir da antológica parceria de Os Mutantes com Gilberto Gil, em “Domingo No Parque”. Esse fato é reforçado pelas análises do jornalista Tárik de Souza e pela visão filosófica de Tom Zé. Imagens ra-

ras feitas por uma câmera Super8 (do acervo do Canal Brasil) mostram o trio ainda imberbe, tirando uma onda em Walt Disney, com alegria e molecagem. A mistura tropicalista: Disney e Mutantes. Para os aficionados pelos trabalhos do músico e compositor Arnaldo Baptista, as imagens mais valiosas são os registros de banda e palco: já sem Rita, Os Mutantes da época de “O A e o Z” mandando “Ainda vou transar com você”; um longo e notável trecho de “Será que eu vou virar bolor?”, canção presente no disco Loki - estréia de Arnaldo como artista solo; a execução da então inédita em vídeo “Sunshine”, apresentando o super-grupo Patrulha do Espaço (Koquinho, John Flavin e o ex-Aeroblues Rollando Castelo Jr), que gravou com o protagonista do documentário o disco Elo Perdido. Nesta peça, a interpretação de Arnaldo e banda são de pirar o mais frio espectador. Ainda sobre o quesito estritamente musical, o filme mostra como a entrada de Dinho [Leme] na bateria e de Liminha [Arnolpho Lima Filho] no baixo transformou e amadureceu musicalmente

o grupo, em um movimento de emancipação dos pais biológicos e padrinhos musicais. Um renomado crítico inglês – responsável por trazer a banda de volta depois de décadas de esquecimento, em 2006, para uma apresentação em um evento sobre a Tropicália em Londres – ressalta a superioridade do conjunto brasileiro em relação aos Beatles, pelo fato de entre esses não haver uma mulher. Segundo o crítico, isso diferencia e torna os Mutantes um conjunto mais completo e versátil. Apesar de sua importância, Rita Lee, a mulher de que se fala, não participa do longa sobre a vida do ex-companheiro de grupo e vida, Arnaldo Baptista. Sérgio Dias, irmão de Arnaldo, mostrou-se maduro ao tratar da ex-Mutante do mesmo modo que Arnaldo se refere à ex-esposa Rita. Em partes, é visível que o declínio dos Mutantes se deu pela saída da vocalista e pelas condições da saúde emocional de Arnaldo – agravada pela conturbada separação do casal. Até a definitiva “queda”, ocorrida durante a virada do ano de 1982 – marca maior da quinta internação de

Arnaldo –, há diversas tentativas frustradas de retomar o sucesso de antes, o que resultou no amargo esquecimento por parte da mídia, da crítica e dos fãs, tudo associado à depressão de Arnaldo. Nesse momento, surge aquela que realmente reabilitou o mutante para a vida: sua esposa Lucinha Barbosa. Ela o acompanhou durante a recuperação no hospital até a reabilitação mental e social, no famoso refúgio do artista em Juiz de Fora (MG). Lá o músico recuperouse durante décadas pintando, desenhando, escrevendo, compondo e respirando muito ar fresco. É comovente. São também significativos os depoimentos daqueles que reergueram ou, ao menos, não deixaram o artista parar de criar: Luiz Calanca (produtor do selo Baratos & Afins), Lobão, Tom Zé, Devendra Banhart, John (guitarrista do Pato Fu, que produziu o disco “Let It Bed” de Arnaldo), Kurt Cobain e até mesmo Sean Lennon – que considera o Mutante Arnaldo um Syd Barrett brasileiro. Sean levou Arnaldo ao palco no ano de 2000, para apresentação no Free Jazz Festival, um dos momentos mais catárticos do longa. O sorriso de Arnaldo gruda na mente. Concluído em 2008, Loki recupera e ressalta a importância histórica de Arnaldo Baptista para a música brasileira, bem como para toda a cena musical e cultural, embriagada pelo movimento tropicalista da época. Loki acompanha uma onda de documentários que resgatam e re-valorizam geniais artistas da época. Artistas condenados a um longo período de ostracismo, condenados ao passado, vêm sendo reconhecidos: Fabricando Tom Zé (2007), Loki (2009), Wilson Simonal (2009), Coração Vagabundo (2009), sobre Caetano Veloso, e Jards Macalé: Um Morcego na Porta Principal (2008). O vazio de nossos dias impõe a recuperação dos artistas e ousadias do passado: a busca para encontrar o que resta de nossa identidade cultural, autônoma e original.


por Lucas Rodrigues de Campos com colaboração de Elton Amorim

A cidade de São Paulo reúne número considerável de pesquisadores musicais, garimpeiros

de grupos que passaram por bares, boates e, de alguma forma, marcaram época. Esse roteiro comumente é esquecido. Como em um filme mal guardado, os fungos da história corróem parte da película e a narrativa acaba embebida numa esfera mítica. A combinação de quadros deixa de ser combinação e a história é montada de forma fractal, como cacos colhidos do chão compondo um mosaico. Para contar o Rock da Mortalha, o parágrafo acima é reformulado, carregado de suspense e elementos soturnos. Os agentes são outros. O garimpeiro se veste com um avental imaculado e carrega os instrumentos de um investigador forense. A atuação fica por conta de um lojista que surge detrás da poeira de vinis velhos, ou de um músico tarimbado, parceiro dos integrantes, quase todos falecidos antes de completarem seis décadas, alçados ao céu, ao inferno, pelo rock. Outra personagem central da história é àquele que não deixa o corpo sair do IML antes de uma cuidadosa perícia, papel encenado por aquele que esteve presente em alguma apresentação épica: Orlando Lui liderava o ritual empunhando um crânio enquanto evocava avatares oriundos das profundezas. De repente: explosão e fogo no palco. Como em um thriller ou um conto de Ed-

gar Allan Poe, esse agente caminha por uma sala decorada por velas vermelhas. A mão se aproxima do armário semiaberto vestido de teias. Ao esbarrar no pegador, caem os corpos, apodrecidos de esquecimento. Dentro dessa mística lutam o bem e o mal. Vence o bem. O investigador, agraciado por um dom clerical, toca os corpos com um bálsamo. Mesmo mortos pela penosa vida de rockeiros, aqueles corpos tornam-se vida e história na película corroída. A divindade do bálsamo é restaura e apóia-se na necessidade de rememorar biografias, nomes, cidades. As informações sobre esse obscuro grupo de hard setentisa circula como boato na boca de cabeludos aficionados pelo gênero. A trama é carregada de carga dramática e envolve alcoolismo, esquizofrenia, show gratuito em uma lage, bateria confeccionada por um operário do ABC. Aqui ela é contada por três personagens, sobreviventes que vivenciaram um pouco do submundo que permeou o cenário do rock underground durante a segunda fase da década de setenta. Tem como cenário um braço de suma importância para o funcionamento da Grande São Paulo: o industrial ABCD, em especial São Bernardo, berço do Rock da Mortalha. Segundo Filippo Baldassarini, “existia uma miríade de grupos pequenos no ABC”. Foi na Vila Liviero, bairro eminentemente industrial, onde ocorreram os ensaios e surgiu a concepção xamânica,

a la Aleister Crowley, de jovens roqueiros desafiados por outra banda de berço industrial. O distrito de Aston, na cidade inglesa de Birmingham viu o nascimento do Black Sabbath. Henrique Meneghini é remanescente de uma estrada tortuosa. Em depoimento enviado a Elton Amorim, o técnico de som mostra como acompanhou de perto as misteriosas explosões de equipamentos ocorridas nos palcos do Rock da Mortalha e hoje dá relevo a nomes até então cravados somente em lápides perdidas em cemitérios. Seu depoimento ajuda a desvendar uma das histórias de maior impacto do nosso rock. Filippo Carlos Baldassarini é mais um nome esquecido na historiografia musical brasileira. Hoje o guitarhero vive na Itália, onde continua ativo apresentado em pequenos clubes seu heavy blues. Na pátria da bota, ele ainda brinca no estúdio ao executar os riffs da banda que é cabeçalho do capítulo Bandas Obscuras, dentro do extenso Livro Negro do Rock Brasileiro: o Rock da Mortalha. Em 1975 o músico usufruiu da coqueluche lisérgica, chaga maior da catarse musical da malucada: subiu ao palco do Festival de Iacanga e conheceu um trio de rock pesado que junto de uma lenda viva, o dançarino Lola (que hoje vive em espécie de retiro na cidade Campinas), foi ovacionado em Águas Claras. Lippo, como ficou conhecido no meio rocker, esteve com Orlando, Baccas, Marcos Carvalhanas entre 77 e 79, quando

a Mortalha mudou seu nome para Xock e passou a assimilar influências brasileiras -algo semelhante ao início da Cor Do Som. Como guitarrista, Lippo viveu importante transição dentro da cena musical daquela época, experimentou o rock progressivo com o performático Fogo de Santelmo, depois dedicou-se ao heavy metal. Mais tarde, os abusos naturais de um jovem músico romântico abateram o vôo sem asas de Lippo. Ele deixou um Made In Brazil no auge, as filas de groupies e os shows organizados junto de seu irmão Giácomo - que aconteciam em clubes típicos de grandes metrópoles, quadras de basquete, teatro, campos esportivos e festivais pelo interior. Recuperado, registrou participação junto de outro nome marcante do heavy metal brazuca, o Harpia. Além de clarear o céu de nuvens negras que vem à cabeça quando se lembra da Mortalha, Lippo conta suas experiências durante anos pouco laureados do rock brasileiro. Depois da metade da década de 70, o mercado nacional retraiu-se para lançamentos “puro rock”, o que foi retomado logo depois do início dos oitenta com o surgimento de selos independentes e as invasões do metal e do punk. Giácomo, o irmão de Lippo, também vive na Itália e foi amigo próximo de Orlando Lui, líder e mentor da Mortalha, além de ter sido agitador cultural da época e manager do grupo que logo veio incluiu Lippo e alterou seu nome para Xock. Giácomo foi responsável inclusive

pelo show que deu fim à fúnebre alcunha “Rock da Mortalha”, em festival ocorrido na Concha Acústica do Taquaral, em Campinas, 1977, junto da Patrulha do Espaço e Fogo de Santelmo.

Confira, os depoimentos e conversas com as personagens acima citadas e que dão luz a esse roteiro. Os italianos Giácomo e Lippo contam das parcerias com Orlando Lui e dominam a última perna da história da Mortalha. Henrique esteve junto do grupo naquela que é considerada a fase áurea da turma, quando os shows tinham uma estética puxada para a temática do terror e do misticismo e contava, com Lola como dançarino e Julinho na bateria. Na fase em que Lippo acompanhou o Rock da Mortalha/Xock, o batera foi Marcos Carvalhanas.


que sair. O som do sintetizador do meu xará [Henrique Bonvino] e a imagem do grupo vestindo roupas pretas e botas douradas eletrizaram o público. Quando o som iniciou, levantou a galera que estava presente. Teríamos que apresentar três músicas, mas a reação do público foi motivo para ficar mais tempo no palco e apresentar várias músicas. Foi por esse motivo que saiu a matéria na revista POP da época; eu guardei um exemplar por muito tempo, mas sumiu. A banda, após o festival e a matéria da Revista POP, se apresentou em vários lugares de SP cujos nomes eu não me lembro, mas posso citar o teatro Gloria no Cambuci; Clube Atlético Ipiranga; um colégio no bairro Taboão (onde o Landinho morava); o clube Italo Seti em São Bernardo do Campo; algumas boates etc. Chegamos a tocar até carnaval no início da carreira para levantar uma grana, pois na época não havia quem desse uma força. Chegamos a fazer show numa lage

depoimento de Henrique Meneghini, técnico de som e amigo próximo dos integrantes da Mortalha

Não posso dizer como tudo começou, mas sei que o Landinho [Orlando Lui] e o Baccas eram vizinhos, foram criados juntos. O Baccas era filho único, já o Landinho tem uma irmã que, por coincidência, foi a minha primeira professora. Minha participação foi como aquele que dava uma força, pois fui criado com o Julinho (baterista da formação original da Mortalha). Éramos vizinhos, então, quando o Julinho foi convidado para ser o baterista, eu acompanhei. O pai do Julinho (Sr. Teodoro) era modelador na General Motors e foi ele quem fez a maior parte da batera do filho, depois de ter comprado uma batera simples na GOPE, além de ter feito as caixas de som. Meu pai, na época, era técnico de rádio e TV e me dava as coordenadas para a montagem de falantes e ligações das caixas de som. As composições, as letras e músicas, eram criadas pelo Landinho e pelo Baccas, acompanhados de um baseado. Me lembro que o Landinho tinha um pé de maconha plantado num vaso que ficava no quintal de sua casa. O Landinho era muito exigente na hora de compor as músicas, ou seja, queria um toque diferente no baixo, na guitarra e principalmente na batera. As batidas e as pedaleiras da batera tinham que ter um toque a mais. Acho que é por isso que o Julinho foi considerado o melhor baterista do Brasil, segundo os músicos da época. Quando o Julinho entrou, o grupo chamava-se Missa Negra. Acredito que o Landinho se referia a um Black Sabbath brasileiro (não posso afirmar), mas o nome passou a ser Rock da Mortalha, por que o Landinho queria algo maior do que Sabbath. Considerava-se superior. Meu pai apenas me orientava na parte eletrôni-

ca; ele nunca foi assistir a um ensaio que, no geral, era feito na garagem, na casa do pai do Julinho. Minha mãe, Dona Eva, também nunca quis saber, mas por ser costureira, confeccionava as roupas. A foto que aparece o grupo com aquela roupa preta... foi uma das roupas que minha mãe fez e, foi eu quem bateu aquela foto, por esse motivo não apareço. Já o pai do Julinho acompanhava o grupo sem saber o que rolava. Na verdade ele só queria ganhar as menininhas que apareciam no show. A idéia das roupas era sempre do Landinho; a maquiagem veio por acaso na entrada do Lola, que surgiu após um show que fizemos em Itu. Lola acompanhou o grupo em alguns shows (pelo menos na minha época). Era um maluco, no bom sentido. Quanto aos instrumentos, já te disse sobre a batera e as caixas de som. O Baccas usava uma guitarra que era uma adaptação de um violão, ele mesmo quem adaptava, pintava e modificava. Quanto ao baixo do Landinho, foi construído por ele mesmo; o braço liso sem as divisões, facilitava tirar o som que só o Landinho sabia fazer. No show em Águas Claras, só haviam três componentes, Landinho, Baccas e Julinho. A participação do grupo se deu por ter sido convidado pelo antigo baterista dos Mutantes, o Dinho. Foi uma loucura. O grupo teve que entrar às pressas, porque o grupo anterior foi vaiado e teve

entrevista com Giácomo Paolo Baldassarini Lucas Rodrigues de Campos: Giácomo, conte um pouco da sua relação com o Rock da Mortalha. Giacomo: Eu fiz um festival na concha acústica do taquaral em 1977, Rock da Mortalha, Patrulha do Espaço e Fogo de Santelmo. LRC: Você já era chegado da banda nessa época? Giácomo: Desde o começo. Saía todo mundo pintado de morcego pela rua... Coisa de louco (risos)! Pecado que meus amigos morreram. LRC: Eram garotos na época... deviam ouvir muito som. Lembra dos vinis que ouviam juntos? Quais foram os primeiros discos de hard com que vocês tiveram contato? Como conseguiam os discos? Vocês compartilhavam os sons? Giácomo: No centro de Sampa, alguns [vinis] eu recebia da Itália, mas o barato mesmo é que o Orlando e o Baccas

quase não ouviam nada, eles criavam. Em 80, fui pra Argentina e voltei só cinco anos depois, quem ficou com eles foi o Lippo. Acho que da parte original dos anos 70, ficou só ele mesmo [vivo]. Ele ainda toca algumas músicas; me dá até arrepio quando escuto. LRC: Você acompanhou todo o progresso do grupo? Como foram as transições, evoluções sonoras do Rock da Mortalha? Giácomo: Depois que houve o acidente com o filho do Orlando, que caiu em um poço, eles pararam com coisas macabras e montaram o Xock, que era menos hevy metal macabro e virou mais heavy hard. Muito, muito bom! Não sei como não ficaram ricos. Era o Iron Maiden dez anos antes. Tinha o Baccas na guitarra, Orlando no baixo, o Lippo na outra guitarra e o Marcos Carvalhanas na bateria. LRC: Giácomo, eu queria saber como foi seu contato inicial com o Orlando. Qual

FESTIVAL COM ROCK DA MORTALHA, PATRULHA DO ESPAÇO, FOGO DE SANTELMO E TIO MELLIUS

era seu envolvimento com música nessa época? Giácomo: Eu, o Orlando e o Baccas trabalhávamos pelo rock. Eu fiz vários shows no metrô São Bento e tínhamos a Toca do Rock na 24 de Maio, no Salão Luar Paulista. Tocava todo mundo do underground. Fazíamos também no Sberock, em São Bernardo. LRC: Esses locais eram alugados? Havia problemas na hora de divulgar o Rock da Mortalha, devido à temática tétrica? Giácomo: Não era tão tétrica assim, não. O Alice Cooper já tinha tocado no Anhembi. Os locais eram arrendados pelo dia; tinha rock no Luar Paulista na quinta e quarta. O resto era rala-bucho (risos), música careta! No Sberock foi foda. Acabamos todos na delegacia, com um monte de tapa na orelha. A gente realmente lutou por um

que ficava em cima da casa do pai do Julinho. Montamos todo equipamento na lage e o público lotou as ruas próximas à casa. O Landinho era um místico, mas não havia envolvimento com magias ou ocultismo, apenas as letras das músicas que eram satânicas. Confesso que fiquei surpreso quando soube da morte do Baccas, pois a ultima vês que o vi, era tarde da noite e, ele estava embriagado, assim como está o Julinho hoje. Aliás, nem sei se está vivo. A pedido de sua mãe, eu tentei ajudá-lo, mas não tive como, pois ele bebia desde as primeiras horas do dia. Quando encontrei a comunidade Rock da Mortalha no Orkut, resolvi entrar, pois um dos membros havia dito que tinha uma fita cassete com gravação de algumas músicas do grupo. Até recebi essas gravações por e-mail, mas apesar de ser um rock pesado, não tem nada a ver com as músicas do grupo. Eu nunca retornei uma resposta para não entrar em conflito com o dono das fitas, pois nem as letras das músicas pertenciam ao grupo. A última vez que estive com o Landinho, muito abatido pela doença, ele me contou ter comprado uma carreta dessas “cegonha” para montar um trio-elétrico com os filhos. Acho que não chegou a acontecer. Quanto a mim, moro em Guararema. Estou em uma cadeira de rodas, sem as duas pernas por ter problemas de falta de circulação de sangue. Uso um aparelho auditivo por ter perdido a maior parte da audição, mas estou feliz. Com 53 anos de idade, estou fazendo faculdade de pedagogia, dou aulas de Macramé (técnica de entrelaçamento de linhas) e de LIBRAS (língua brasileira de sinais). A matéria que você tem é verdadeira, tirando alguns detalhes e colocando outros. Espero ter ajudado de alguma forma”.

sonho. Eu aluguei uma fábrica abandonada no Morumbi e fizemos todo mundo: Made in Brazil, Cetro, Rock da mortalha, Mummia, Lírio de Vidro, Fogo de Santelmo. Era uma época maravilhosa. Meu amigo Baccas morreu, o Dudu da patrulha morreu, morreu tambèm a Deborah [Carvalho]. E agora morreu o Kokinho, que era o baixista da Patrulha, durante uma excursão que fizemos até Porto Alegre, em 1979. Olha, o Lippo é um dos poucos que sobraram. LRC: E sobre a estética do grupo? Giácomo: Depois que o Rock da Mortalha tocou no Festival de Iacanga, eles tiraram aquelas roupas ligadas ao Black Sabbath e viraram um grupo de heavy hard voltado à sonoridade mais nacional. Tipo a Cor do Som, com duas guitarras muito bem tocadas e vestidos mais normalmente. Mas o Orlando tinha o vício da mulherada... Aí pegou alguma doença que jamais ficou muito clara, mas que não era AIDS. Eu montei um jornal de rock na Teodoro [Sampaio] chamado Musical Shop. Foi o maior sucesso, mas eu resolvi voltar pra Itália.


LRC: Qual era a maior virtude do Orlando? Como você o apresentaria para alguém que nunca soube da existência dele? Filippo: Cara, fudido ali [na Mortalha] era o Orlando. Um músico completo, uma força da natureza como executante - sobre humano. Tive essa impressão mais vezes: era como houvesse algo por trás, porque o Orlando ‘espiritava’ o olho e aí ninguém segurava. Um gênio adiante do próprio tempo. Fez o que Steve Harris [baixista do Iron Maiden] fez anos antes. O problema dele é que foi espezinhado pelas gravadoras, porque era um maluco do ABC; [as gravadoras] perderam uma das maiores chances. A Mortalha como banda de heavy e com a devida prensa de um produtor esperto poderia ter atingido o mercado mundial ainda nos anos 70. Tinham tudo: idéias mágicas, força de produção. O filão era aquele do King Diamond, Black Sabbath, metal clássico épico, que depois chamaram de doom metal nos anos 90. Banda veloz. Enquanto estive com eles, eram guitarras duplas. O resto [do grupo] escorregava aqui, escorregava ali. Ele que segurava tudo do início. LRC: Você esteve com eles de 77 a 79? Lippo: Isso. Em 80 eu mudei pro Made in Brazil. Meu irmão esteve com eles depois, quando se tornaram Coco Loco [trio elétrico de Orlando Lui]. Vendeu shows também. Aí ele veio pra cá [Itália]. O Orlando ainda quis vir pra Europa com o trio elétrico, mas aí ele morreu. Lembro dos ensaios lá na Vila Liviero, quase tudo, época doida. LRC: Lembra do ambiente da sala de ensaio? Lippo: Nitidamente. Era uma sala na casa do Orlando; a aparelhagem ficava na entrada. A casa dele era lá dentro. Imagina... eu ia a pé de Diadema até lá [Vila Liviero] com a guitarra nas costas. Tinha a bateria do Marcos Carvalhanas, uma GOPE de acrílico azul. O Orlando tinha uma cópia de um baixo Rickenbacker com uma borboleta. O Baccas tinha uma Sg da Snake, uma preta. Ele [O Baccas] ia em casa várias vezes por semana pra me ensinar as partes das músicas. LRC: Você também participou de uma banda de rock progressivo, o Fogo do Santelmo. Como foi essa experiência? Lippo: Um pequeno fenômeno. Pena que não durou. “Candidatos para um vôo sem asas” era um grande espetáculo. O som era baseado, por proximidade, no Som Nosso de Cada Dia, mas a guitarra dominava. Éramos teclado, baixo, guitarra, batera e vocal. LRC: Chegaram a ter músicas gravadas? Lippo: Não que eu me lembre, mas o espetáculo era único: um planeta enorme e suspenso, tudo escuro, depois luzes violeta trocando pra laranja e o cantor vestido de pregador evangélico de 1800, cantando as letras de um púlpito. Já a encontrei montada. O tecladista era Marcos, o baixista era o Biaggio D’Amore. Carlinhos era o vo-

entrevista com Filippo Carlo “UMA MUSICALIDADE ACIMA DA MÉDIA PARA A ÉPOCA. FOI UM FLASH QUE ELES TIVERAM. ELES CONSEGUIRAM ALCANÇAR NÍVEIS INTERNACIONAIS. A MÚSICA FAZIA ‘VIAJAR’ TODO MUNDO, FORAM LONGOS INSTRUMENTAIS. ELES PARECIAM FORA DA TERRA, EXTRATERRESTRES, POSSUÍDOS POR UMA FORÇA INUMANA, COISAS QUE SÓ GENTE COMO O RUSH CONSEGUIA. MAS EXISTIA PRECONCEITO CONTRA ELES PELO FATO DE SEREM DA VILA LIVIERO E POR NÃO POSSUÍREM DINHEIRO VISIVELMENTE”.

BACCAS, JULINHO, LOLA (AGAIXADO) E ORLANDO. FOTO TIRADO POR HENRIQUE MENEGHINI. O MODELO APRESENTADO É REFERENTE À ÉPOCA DO SHOW EM ÁGUAS CLARAS.

cal e eu na guitarra. Porém terminou logo e aí fui pra Mortalha. De lá pro Made in Brasil. LRC: Você sempre acompanhou shows e esteve próximo da convivência com os músicos? Lippo: Sim. Éramos muito loucos. Selvagens porém inocentes, sem maldade. Em 81, eu parei até 83, quando entrei na Santa Gang. LRC: Deixou de ser músico por um tempo? Lippo: Poucos meses, só pra me limpar de tanto álcool e droga. Aí nunca mais. LRC: Em 1975 você esteve em Iacanga, certo? Lippo: Sim. Toquei no primeiro Festival das Águas Claras, saí até na Veja. LRC: Tocou já com a Mortalha? Lippo: Não, não, sozinho. Mas já com o Tibério, futuro baterista do Harpia. LRC: Lembra como foi o set? Lippo: Eu não tocava nem a metade do que toco hoje, nem estava no programa do festival. Foi pedido pelo público, o improviso. Foi o publico que pediu, subiu uma lista de assinaturas. LRC: Então você já era conhecido por uma turma maior? Lippo: Não. Eu tinha ido pra ver com minha primeira esposa e meu neném. Hoje ele tem 35 anos e está aqui [na Itália]. É cantor de heavy. LRC: Essa lista rodava nos intervalos dos shows? Lippo: Sei não. Quando eu vi, o cara tava me chamando lá no palco. Foi um catado lá atrás. Nem lembro que raio que eu toquei, nem a guitarra era a minha. LRC: Estava chapado? Por isso não lembra? Lippo: Bem, na época não tinha quem não es-

tivesse. LRC: Esse também foi o primeiro contato com o Rock da Mortalha? Lippo: Sim. Depois toquei com eles em São Paulo. Dali entrei no Made chamado pelo Oswaldo Vecchione. Uma estrada longa demais que continua ainda em 2009. LRC: O Rock da Mortalha é um mito hoje em dia. Lippo: É, era uma piração aquilo. Eles curtiam magia negra e tal. No papo né. LRC: O público ficava impactado com as apresentações? Lippo: Porra. Tinha cara que desmaiava. Outros caiam tomados de Exu. Várias vezes os equipamentos incendiavam. LRC: Você conheceu o Henrique, que foi técnico de som da Mortalha? Lippo: Conheci o Peninha, que teve muito o que fazer com o Orlando. LRC: Peninha Schmidt? Lippo: Sim, ele mesmo. Mas meu relacionamento foi muito superficial, limitou-se a uns poucos encontros. Ele foi o técnico de som lá do Primeiro Festival de Águas Claras. A briga com o Peninha foi justamente essa. Ele não queria gravar a Mortalha, porque copiava o Sabbath, segundo ele. LRC: Essa história vai precisar de mais vários capítulos. Lippo: Porque ela se ramifica, se expande. A cena do ABC era ampla, desorganizada, um exemplo da época. Mas muito forte. Existia uma miríade de grupos pequenos no ABC. Um dos templos da Mortalha (Xock) foi o antigo bar Deixa Falar, na Santo Amaro.

Lá eu tive a ocasião de ver o que eles eram realmente capazes de fazer. Formidável. Na época eu já não estava mais. LRC: O que eles apresentaram de formidável nesse show? Lippo: Uma musicalidade acima da média para a época. Foi um flash que eles tiveram. Eles conseguiram alcançar níveis internacionais. A música fazia “viajar” todo mundo; foram longos instrumentais. Eles pareciam fora da terra, extraterrestres, possuídos por uma força inumana, coisas que só gente como o Rush conseguia. Mas existia preconceito contra eles, pelo fato de serem da Vila Liviero e por não possuírem dinheiro visivelmente. Via-se, sentia-se no ar que eram grandes mas desprovidos. Não era como a elite da Pompéia: pais ricos, bons instrumentos, ótimas roupas, grandes carros... Era [tudo] feito no sacrifício, rodando na madrugada, romântico e inútil. Mesmo com o dinheiro que o Coco Loco ofereceu ao Orlando, no final a vaca já tinha ido pro brejo. Custou a vida a ambos. O Orlando no fundo se cansou daquilo tudo, mudou de estilo de propósito, colocou um trio elétrico na rua, mas já era tarde. E o Baccas o seguiu logo depois. Coisa que o destino traz. Eu peregrinei por grupos pequenos, médios e grandes sem achar sorte também. Estou aqui ainda, lutando cheio de problemas e ainda sonhando em tocar, ter uma banda de respeito, mesmo que eu tenha que cruzar o oceano de novo, voltar ao Brasil e reiniciar do zero. LRC: Você se lembra de alguma situação em que esse preconceito detalhado por você ficou mais claro? Lippo: Observe a coisa assim: imagine a Vila Liviero nos anos 70, 1976. Qual o nível social do lugar? Como um rapaz da Vila Liviero nos anos 70 poderia se expressar? Então você pega dois músicos da Vila Liviero e leva bem no meio dos bacaninhas da época, dos metidinhos que não possuíam o mesmo talento, nem de longe. A Mortalha criava inveja. LRC: Você se importa em citar os metidinhos? Lippo: (Risos) Você sabe quem foram. Vai querer por aí? Levantar essa energia contra você? Muitos deles estão vivos ainda. São os que queriam ser. O Orlando era um tipo duro, meio brusco, um pouco arrogante. Falava muito, dava ordens. Os outros sentiam-se meio intimidados. Ele percorria as delegacias vendendo calçados através de um catálogo. Veja você: entrava lá e dizia na cara dura: “E aí doutor, vai um sapatinho?”, e vendia. Ele dobrava até delegado [mesmo vestido] com colete, calça justa de veludo, botinha e camisão. Todo mundo conhecia ele. Os outros ainda ficavam chorando o carro do pai para sair com a namorada, sabe. LRC: Sobre a queima de equipamentos. Isso acontecia devido à precariedade dos locais em que a Mortalha tocava? Lippo: Não. Algo estranho acontecia mesmo. Mas era tudo junto: pouca manutenção, os locais ainda não eram modernos, rede elétrica ruim, fraca, não suportava som e luz. Mas tinha o fator ‘zica’ sim. No show no Sindicato dos Bancários a iluminação pegou fogo. O


chicote de distribuição se incendiou assustando todo mundo. Deixou uma risca de queimado bem no meio do carpete. LRC: Algum ferido? Lippo: Não, não. Isso nunca houve. Parava o som, só isso. LRC: Por que você decidiu sair da Mortalha? Lippo: Porque o Made chamou, ué. Eu não era louco ainda (risos). Aceitei o convite e fui fazer o teste escondido. Tinham lá uns quatro guitarristas. Eu fui o primeiro a chegar, ainda de manhã. Sentei na frente da casa do Oswaldo Vecchione e fiquei lá até as três da tarde. Abriu a porta e todo mundo entrou. Fui contratado na segunda música. Nem havia acabado de tocar e o Oswaldo abriu a porta, e gritou: “Falou gente! Achei! Muito obrigado por vocês terem vindo, o pessoal vai anotar os telefones (...)”. Aí começou minha saga. Morava em Diadema, pegava dois ônibus. Aí o Oswaldo decidiu mexer no visual e tudo: picou meu cabelo e pintou de vermelho. Malandro, que coisa chegar em Diadema daquele jeito! Logo teve o [festival] Rock Jeans do Play Center e saiu na TV, aí eu fiquei um tempão sem nem pagar na padaria. O cara oferecia todo alegre, oferta da casa. LRC: De que bairro você era? Lippo: Bem eu morava em Diadema, centro, Jardim Rosinha, apesar de ter chegado ao Brasil menino e ter sido criado no Ipiranga e depois na Vila Mariana. Às vezes eu ia a pé de Diadema até a Vila Liviero pra ficar com eles lá curtindo. LRC: Seus pais lidavam bem com a sua opção de ser músico? Lippo: Minha mãe sim... meu pai também. Ambos compraram os instrumentos. Meu paichegou a chamar um maestro do Municipal no escritório dele e gritou: ‘Diz pra esse imbecil que ele não tem talento’. O maestro me levou lá dentro e disse: ‘Toca meu filho’. Eu, muito envergonhado, cantei e toquei uma música. Ele levantou de repente. Cara fechada, foi lá no meu pai e disse: ‘Sem talento é você. O menino tem ótima voz, sabe tocar bem, é um talento natural’. Meu pai esfregou as mãozinhas rindo que nem gato, e disse: ‘Então você vai dar aulas de piano pra ele’. Putz. Sofri oito meses na mão daquele velho. Até que ele me achou uma tarde tocando boogie woogie. Acabou ali. O velho maestro se ofendeu muito. Estava tocando bem rock and roll mesmo. Mas lá em casa era uma zona. Meu pai tocava piano,

cantava, trazia os amigos tenores. Uma gritaria dos infernos. E eu no porão tentando tocar Imigrant Song do Led Zeppelin com os quatro caras da banda tudo gritando junto. Chamaram a polícia mais de uma vez. Os vizinhos diziam que era a família dos italianos loucos. LRC: A partir daí como foi a montagem do primeiro grupo do qual você fez parte? Lippo: Nas coxas. Foi quando eu voltei da BaBACCAS, FILIPPO, CARVALHANAS TO. FORMAÇÃO DO ROCK DA

hia, viajando como hippie. Isso foi um século antes da Mortalha. Achei uns malucos na praça Sílvio Romero e falando, falando, acabamos tocando juntos. LRC: Esse primeiro grupo não foi pra frente por quê? Lippo: Pelos mesmos motivos de todos os outros: falta de estrutura, indecisão. LRC: E suas memórias de Iacanga, também estão

ORLANDO EM SHOW MORTALHA EM TRANSIÇÃO

E

NO AO

METRÔ SÃO BENXOCK, 1977/79.

conservadas? Lippo: Apenas uma foto na revista Veja, juntamente com minha esposa e meu filho no colo. Mas nunca mais encontrei a foto. LRC: E memórias mesmo, na cabeça? Lippo: Isso sim. A minha é fotográfica. Desenvolvi muito este lado. Mas ali foi outra coisa, eu nem sabia o que estava fazendo ali. Era a época, a vibração como se dizia. Tocava só com um violão. Aí pediram pra que eu subisse. Mas eu nem sei o que foi que toquei. Sei que tinha o Tibério do Harpia lá. Ele tocava em uma banda chamada A Pedra. LRC: Como você ficou sabendo do falecimento do Landinho? Lippo: Através do meu irmão. Eu não via o Orlando desde 1979. LRC: Consegue descrever como recebeu essa notícia? Lippo: Com uma grande tristeza, porque apesar da época distante, eu fotografei muito bem a pessoa. Sabia das qualidades e defeitos. Sabia do valor. Sabia do caminho dele. Porém eu fazia estrada paralela. Respeito, enfim. LRC: Em 1979, houve alguma espécie de despedida entre vocês? Lippo: Não. Os vi na casa do Oswaldo uma vez. Eles foram lá, pois queriam pedir ao Oswaldo para abrir os shows algo assim. Pediram minha interferência junto ao Oswaldo, mas não foi preciso. Mas eu ia assistir a Mortalha (depois Xock, depois Crisálida) escondido no meio do público. Eu fiz parte da transição Mortalha/Xock, mas não foi por muito tempo, um ano mais ou menos. Claro que eu aprendi muito e até hoje toco as músicas. LRC: Por que escondido? Lippo: Porque preferia assim. Não mexer. O Orlando não era uma pessoa fácil, então eu ficava de longe que era melhor. Conceito meu. Meu irmão trabalhou muito com ele. Eram realmente amigos. Eu nem tanto. Toquei com ele, curti e tal, e dei linha. LRC: Você acha que sua saída foi uma perda para o Xock/Mortalha? Lippo: Imagina. Eu? Nunca fiz falta. Ninguém é insubstituível. Todos se arranjam, inclusive eu. Uma questão de adaptação. Só acho uma perda de tempo você ensaiar um músico, preparar, correr, estudar e depois ele vai embora.


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