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Casamento infaltil

Casamento infantil

Brincar de casinha deixou de ser um passatempo de criança e se tornou uma realidade muito antes do que deveria

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Alice Putti e Rafaelly Kudla

Para a Organização das Nações Unidas (ONU), o casamento infantil é caracterizado por toda a união, formal ou informal, em que um dos integrantes possui menos de 18 anos.

O Brasil está apenas atrás da Índia,

Bangladesh, e Nigéria no ranking mundial desse tipo de matrimônio. Estar neste top 4 não é motivo de orgulho nenhum. Pelo contrário, é alvo de inquietação e vergonha. Segundo a Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em todo o mundo, 650 milhões de mulheres se casam antes dos 18 anos. Estima-se, portanto, uma a cada cinco meninas. No Brasil, os casos estão na base dos 3 milhões.

De acordo com pesquisa do projeto Girls not Brides (Garotas, não noivas, pela tradução literal), um dos principais motivos está na questão econômica. Meninas pobres têm três vezes mais chances de se casar do que meninas de famílias com estabilidade financeira.

Luciana F. (nome fictício) teve uma adolescência repleta de responsabilidades, mais até do que poderia lidar. Precisava cuidar da casa e dos irmãos mais novos enquanto a mãe trabalhava. Isso era dia e noite. O pai abandonou a família logo que soube da quarta gravidez da esposa. Apesar disso, Luciana fazia questão de estudar, não por pensar no futuro, numa profissão, mas sim para escapar da bagunça do lar e poder se sentir uma menina igual as outras.

A condição financeira não era das melhores. Não faltava comida na mesa, mas também não sobrava. Luciana não tinha tempo para ela, para ser adolescente, para errar e acertar, para estudar fora da escola, e chegou a reprovar dois anos. Aos 16, descobriu que estava grávida. Ao contrário do que se imagina, para ela a gravidez era uma benção, um sinal de vida nova. Claro, como ela mesmo diz, por sorte o pai da criança se mostrou disposto a assumir o filho, diferentemente de muitos casos que vemos no Brasil. A família do rapaz disse que os dois deveriam casar e morar na casa

A Unicef divulgou um vídeo que representa a face perturbadora do casamento infantil.

Reprodução/Unicef

que fazia parte do terreno deles.

Os dois largaram a escola e foram trabalhar para sustentar a casa. Casaram-se na igreja poucos meses depois da notícia da gravidez. Segundo Luciana, tudo teve que ser muito rápido para a barriga não aparecer no vestido de noiva e ninguém notar que ela já estava grávida. “Me disseram que se o padre soubesse, não haveria casamento e meu filho seria amaldiçoado devido ao pecado grave que cometemos.” À época, ela pouco se importou, quanto antes melhor, o casamento seria sua libertação para uma vida nova.

Hoje, dez anos depois, continua casada e com mais um bebê dentro de casa. Ela e o marido contam que as dificuldades foram muitas já que ambos não tinham escolaridade completa, o que dificulta até hoje na busca por emprego e por um salário que ajude a melhorar as condições financeiras da família. Ao perceberem a importância dos estudos e visando a uma melhor qualidade de vida, os dois estão intercalando o trabalho com os estudos para concluir o ensino médio.“ “Quem sabe fazer um curso técnico depois ou uma faculdade, agora temos condições de sonhar, algo que antes parecia que não era para pessoas como eu”, diz a jovem.

Quando questionei se havia arrependimento do casamento às pressas, ela confirmou que, pensando na maturidade que tem hoje, teria feito tudo com mais calma, do jeito certo, talvez alguns anos depois, mas que ela sabe que fez a escolha certa, e tudo aconteceu como deveria ter acontecido.

O Brasil está em sétima posição entre os países da América do Sul quando o assunto é gravidez na adolescência. Em números absolutos, o país possui 400 mil casos por ano. No mundo, são aproximadamente 16 milhões de meninas entre 15 a 19 anos e 2 milhões de casos de menores de 15 anos.

Como o corpo da menina ainda está em fase de crescimento, os riscos para a saúde são altos, tanto para a mãe quanto para o feto. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS),

complicações durante a gravidez e durante o parto são a principal causa de morte de meninas entre 15 a 19 anos.

“ Meu filho seria amaldiçoado devido ao pecado grave que cometemos.”

Reprodução/Unicef

Reprodução/Unicef

O QUE DIZ A LEI

Casamento infantil não é coisa do século passado e está mais próximo do que a gente imagina.

No dia 13 de março de 2019, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei que dificulta o casamento infantil, proibindo em todas as hipóteses o casamento de menores de 16 anos. Antes da nova redação dada pela Lei nº 13.811/2019, ao art. 1.520 do Código Civil, o casamento do menor de 16 anos já era proibido, todavia, era permitido de forma “excepcional” a menor de 16 anos grávida e, até 2005, a outra hipótese era no caso de extinção de punibilidade para o estuprador que se casasse com a vítima, para evitar a imposição e o cumprimento de pena criminal.

A ex-deputada federal Laura Carneiro (PMDB-RJ) é a autora do projeto de lei que pediu a alteração do artigo e justificou a proposta como um projeto de adequação da legislação pátria ao movimento global de proteção à infância e juventude.

Para a advogada Karine Rottava Scolaro, a demora da Justiça para extinguir os casamentos infantis está ligada à cultura do nosso país.

“A demora em trazer a voga o tema, inclusive com a criação da nova lei, se deva por tendências conservadoras (patriarcado), costumes, inclusive religiosos, em que a maior preocupação era com os rituais religiosos e solenidades. O casamento é a entidade familiar mais tradicional do direito, considerando que a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado, também por isso a demora.’

Além disso, Karine também ressalta a situação socioeconômica do Brasil. “O que se vê no Brasil, principalmente em comunidades mais carentes, são meninas que, cansadas da vida cotidiana com suas famílias, muitas até por sofrerem abusos dentro de casa, preferem constituir sua própria família, até mesmo como desculpa para saírem de suas casas”, afirma. Um exemplo dessa realidade é a história da Luciana, contada acima.

Sobre as penalidades em caso de violação do código a Lei 13.811/2019 nada esclarece acerca dos efeitos

“A família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado.”

jurídicos em caso de descumprimento. Apenas esclarece que casamento com impedimento legal é nulo, não produzindo seus efeitos.

Por outro norte, o Código Penal, ao tratar dos crimes sexuais contra vulnerável, prevê em seu art. 217-A que é crime “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”. Ou seja, é estupro de vulnerável.

Quanto às próximas ações do poder legislativo, Karina aponta que no momento não há nada previsto visando à erradicação do casamento infantil até 2030, como deseja a ONU, e afirma que no momento o trabalho precisa ser coletivo, como por exemplo, implementando mais ações de políticas públicas, principalmente nas escolas na fase de ensino infantil e fundamental, juntamente com um trabalho nas famílias.

IMPACTO PSICOLÓGICO

A psicóloga Andressa Schmidt afirma que o casamento entre menores de idade pode causar impactos físicos e psicológicos para o resto da vida. Submeter uma criança ou adolescente à uma situação de extrema responsabilidade sem preparo algum, como por exemplo, emprego, filhos e até sexualidade, é uma forma de abuso.

A maturidade é uma das questões que mais implica no casamento infantil. “Atualmente, os adolescentes têm amadurecido mais tarde, mas mesmo antigamente, quando nossos avós contam que trabalhavam desde o cedo e que tinham muito mais responsabilidade que os jovens de hoje, não quer dizer que estavam preparados, maduros o suficiente tanto fisicamente quanto psicologicamente para assumir um casamento, uma família. Hoje em dia, muito menos”, explica a psicóloga.

Andressa exemplifica sua fala comentando sobre como a juventude de hoje está muito mais instável psicologicamente, com altos indices de suicidio, depressão, ansiedade e uso de remédios controlados, devido a problemas familiares que já eram sentidos na geração dos nossos pais mas menos explícitas e com mais preconceitos do que nos tempos atuais.

Priscila (nome fictício) é um exemplo das consequências psicológicas causadas pelo casamento precoce. Assinou os papéis no dia em que completou 16 anos. Conta que na época achava que o namorado era o amor da sua vida, “coisa de alma gêmea mesmo, amor à primeira vista”. Ele insistiu no casamento, dizia que ela precisava ser dele “por completo”, que ela só seria feliz quando tivesse o sobrenome dele. Ela, cegamente apaixonada, aceitou.

O primeiro ano foi um paraíso na terra, os dois continuaram estudando, ele á noite para poder trabalhar de dia e juntar dinheiro para a casa própria. Ela começava a sonhar com a faculdade. No segundo ano, as coisas mudaram. Ele queria um filho, dizia que ela não precisava mais estudar, que ele iria trazer o sustento da família e ela tinha que se preocupar em cuidar da casa e engravidar. Ela viu seus sonhos irem por água abaixo. “Mas o que eu ia fazer? Ele era meu marido eu achei que deveria obedecê-lo porque o amor era isso, e se ele, que me amava, queria isso eu também deveria querer.”

Enquanto Priscila não engravidou, o marido não a deixou em paz. A violência psicológica era frequente, e o medo que ele partisse para a violência física só aumentava. Ela engravidou. Achou que teria seus problemas solucionados, e seu marido voltaria a ser aquele menino carinhoso de sempre. Estava enganada. Quando a criança completou 3 anos, ela decidiu voltar para a casa dos pais. Pediu o divórcio. Voltou a estudar e a sonhar. Apaixonou-se novamente. As sequelas psicológicas continuam.

O casamento infantil é uma prática que infringe diversas leis previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, prejudica o desenvolvimento saudável físico e mental e alimenta os índices de disparidade econômica da sociedade. Precisamos cuidar e orientar nossas crianças e adolescentes. O CASAMENTO INFANTIL NO BRASIL

3 milhões de mulheres se casam antes dos 18 anos

Os estados com maior incidência são:

Maranhão 35,2% Ceará 28,6% Alagoas 28,3% Bahia 24,7% Pará 23,9%

Entre 10 e 14 anos, mais de 88 mil meninas e meninos vivem em uniões formais ou informais.

Casadas até os 15 anos são 877 mil

36% das mulheres entre 20 e 24 anos se casaram antes da maioridade

Fontes: UNICEF, Situação Mundial da Infância 2017; Banco Mundial (2017); Plan International, pesquisa “Ela Vai No Meu Barco” e Organização ProMundo

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