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Mais água no feijão

Juliane Capparelli

O aumento no preço dos alimentos traz a insegurança alimentar como problema adicional para as famílias de baixa renda durante a pandemia

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Juliane Capparelli Letícia Fortes Maria Eduarda Souza Além da crise sanitária, a pandemia resgatou um problema secular no Brasil: a insegurança alimentar. Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de Brasília (UnB) constataram que mais de 125 milhões de brasileiros conviveram com refeições menores, incompletas e até mesmo com a falta de alimentos, como a família da trabalhadora autônoma Juliana Cristina de Souza. Ela assumiu o sustento integral da família com seis filhos há mais de seis meses, quando seu marido ficou desempregado e teve que procurar outra alternativa para gerar renda. “Ele agora me ajuda a fazer lanches em casa para tentar juntar um dinheirinho, e assim a gente tenta sustentar os nossos seis filhos”, diz.

A família de Juliana compõe 55% dos lares brasileiros sem acesso regular a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para sua sobrevivência. Ela relata que não tem mais condições de comprar os alimentos que os filhos pedem. “Antes, eu ia no mercado e levava bastante coisa. Agora, já não consigo comprar nem o básico, a carne, o leite, o arroz, tudo subiu.”

A alta dos preços também reduziu o consumo e a diversidade alimentar na casa de Camila Aparecida da Silva, desempregada e mãe de três filhos. “Aqui em casa não tem mais variedade de comida, não. A gente sempre come do mesmo e procura seguir a vida assim. Não temos mais nem condição de comprar comida diferente”, afirma.

Camila relata que a renda do marido os ajuda a comprar apenas o necessário para a alimentação de seus filhos, e o restante do sustento alimentar vem da contribuição de outras pessoas. Ela fica mais tranquila com esse apoio que recebe da comunidade, mas nem sempre é suficiente. “Hoje é o básico, arroz e feijão, e mesmo assim às vezes falta.”

“Hoje é o básico, arroz e feijão, e mesmo assim às vezes falta.”

- Camila Aparecida da Silva, desempregada

A inflação que reduziu o poder de compra dos salários tanto de Juliana quanto de Camila é calculada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) e Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), responsáveis por medir a variação do custo de vida médio de famílias com renda mensal de um a cinco salários mínimos e famílias de renda mensal de um a 40 salários mínimos, respectivamente. Em julho, o INPC teve uma elevação de 1,02%, contra 0,60% do mês anterior. Já o IPCA subiu para 0,96% em julho, sendo a maior variação dos últimos 19 anos. Em comparação com o mês anterior, houve uma diferença de 0,42%, como mostra o gráfico.

Inflação, instabilidade climática, safra ruim, variação do dólar e alta no preço das commodities são os principais fatores que trouxeram algum grau de desnutrição e fome para os lares de 55% das famílias em 2020. Embora a inflação seja apontada como principal influência para o aumento dos preços das mercadorias, o economista Ricardo Kureski afirma que a causa para esse fenômeno é a procura da população por uma safra de alimentos reduzida. “Existem duas causas para o aumento da inflação: primeiro, a seca, porque ela afeta a produção dos alimentos ao diminuir a colheita e gerar uma safra menor para o consumo da população. A outra questão é o dólar, que causa a variação no preço das commodities”.

O economista explica que proteínas e vegetais essenciais na alimentação

do brasileiro são commodities, como o frango, a carne bovina e o milho. Esses produtos são recursos estratégicos para manter a produção alimentar e industrial de todas as economias do mundo e, portanto, têm seus preços fixados em dólar para facilitar sua comercialização internacional.

No entanto, a variação da cotação do dólar e a desvalorização do real em relação à moeda americana aumentou o custo dos alimentos ao longo de toda a cadeia produtiva, isto é, do produtor ao consumidor. “Por exemplo, o frango: ele come milho até chegar ao peso certo para o abate. Só que, como a colheita de milho no Brasil foi baixa, a demanda pela produção de milho em outros países para alimentar esses frangos no Brasil se torna maior. Sendo o milho uma commodity, com preço em dólar, o produtor de frangos repassa ao consumidor o valor, em dólar, do milho que ele utilizou para produzir o frango que está no mercado. Por isso, o preço do frango sobe para o consumidor”, explica o economista.

A nutricionista Gizella Mingardi expressa preocupação com as consequências da inflação no preço dos alimentos. A diminuição da quantidade e da qualidade dos alimentos nas famílias de Juliana e Cristina são indícios da volta da insegurança alimentar no Brasil, cujos prejuízos incluem o aumento nos índices de desnutrição e fome.

Sem uma alimentação rica e diversa em vitaminas e minerais, as condições de saúde geral da população se agravam e geram uma série de doenças como diabetes, hipertensão, gastrite e obesidade. “Os alimentos possuem nutrientes essenciais para o bom funcionamento do organismo. Ao comer bem, estamos melhorando nossa saúde e ganhando mais disposição para nosso dia a dia”, afirma Gizella. Ainda, ela destaca alguns alimentos que são indispensáveis no dia a dia, como vegetais, frutas, verduras e legumes, carboidratos como tubérculos, grãos e cereais integrais, o grupo de leguminosas (feijões, lentilha, etc) e fontes de proteínas, sendo elas animais ou de vegetais (que são as leguminosas). O aumento do custo de vida fez com que o salário dos brasileiros rendesse menos no mercado, como aconteceu com a família da atendente de café Raimunda Reis. “Tivemos de nos adaptar comendo pouco, e comer coisas que não gostamos para não ficar com fome, como comer muitos ovos e salsichas para ter uma proteína no cardápio diário. E mal temos conseguido pagar as contas. Como conseguiremos manter nossa renda se aquilo que antes eu comprava com R $100, hoje não compro nem a metade?” Apesar de os produtos naturais serem ricos em valor nutricional, são mais caros que os alimentos ultraprocessados, produzidos por indústrias brasileiras.

Segundo o economista Ricardo Kureski, os produtos orgânicos são realmente mais caros porque não utilizam defensivos agrícolas, têm uma produtividade mais baixa e dependem diretamente do clima para ter uma boa colheita. “Já os alimentos ultraprocessados, além de serem comprados em maior quantidade pelos supermercados, não são commodities, então não têm o seu preço determinado pela cotação do dólar. O refrigerante, as bolachas, o miojo, por exemplo, não são commodities.” O gráfico apresenta alguns exemplos de ultraprocessados que ficaram mais caros no acumulado de 12 meses do IPCA de julho, como o açúcar refinado (31,12%), seguido da margarina (23,01%) e da salsicha (17,16%).

Além disso, o economista alerta que a perspectiva econômica para os próximos meses é marcada por novos aumentos da inflação. “O preço da comida até pode abaixar, mas só ano

que vem, quando vier a safra nova. Se a colheita for farta e a cotação do dólar estabilizar, o preço dos alimentos pode ficar mais em conta. A questão é a seca: será que vai chover o suficiente para termos uma boa safra? A gente não sabe. Se a colheita for boa, o dinheiro vai render mais no mercado. Se não, o aumento dos preços é certo.” O gráfico confirma esse crescimento, segundo o acumulado de 12 meses dos preços alimentícios do IPCA de agosto.

A recomendação de Kureski consiste em comparar os preços dos produtos entre os supermercados e consumir vários tipos de alimentos, para que a procura por um determinado produto não aumente mais do que sua produção. “Com a alta no preço da carne bovina, o que aconteceu? A maioria das pessoas buscou o frango como alternativa. Acontece que isso fez com que o preço do frango também subisse, já que a demanda se concentrou na compra de um único tipo de carne e provocou o aumento da inflação.”

Do ponto de vista nutricional, Gizella Mingardi recomenda a substituição das carnes por proteínas vegetais, como feijões, lentilha, grão de bico, vegetais escuros como brócolis e espinafre. Entre as proteínas animais, o ovo é uma alternativa além do frango e da carne bovina. Uma dica para economizar e manter a qualidade da alimentação é comprar os vegetais da época, pois são mais baratos e fáceis de encontrar no mês de safra. Além disso, comprar diretamente de produtores locais pode diminuir ainda mais o custo final e beneficiar a agricultura familiar.

Apesar da volta da insegurança alimentar no Brasil, o PIB do agronegócio calculado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), obteve um crescimento recorde de 24,31%. O país tornou-se o terceiro maior produtor de alimentos em 2020 devido à uma safra recorde e ao apoio do governo Bolsonaro, classificado como ruralista pela coordenadora do coletivo Arroz, Feijão e Economia Clara Saliba. “O projeto bolsonarista busca favorecer os grandes agropecuários, pautando projetos de lei que aumentam a tolerância em relação ao desmatamento e reduzem a fiscalização no uso de agrotóxicos”, explica.

Enquanto a autônoma Juliana Cristina de Souza prepara as refeições, a preocupação com os constantes aumentos dos preços dos alimentos é evidente. O dinheiro que ela ganha com os lanches não basta para alimentar a família toda. Mesmo com os cortes nos gastos, não há a certeza de comida no prato do dia seguinte. “A gente não pode desperdiçar nenhum grão.”

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