Jornal do CELG - 72

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ano 24 • julho 2013 • nº 72 15

ordem. Não há como desqualificar a preocupação de Maquiavel com a ordem e o bem-estar social e político como objetivos finais e recomenda que um príncipe não deve se desviar da conduta correta se possível. Tais considerações nos lembram Freud quando no Mal-estar na Cultura afirma que “Eros e Ananké, Amor e Necessidade, se tornaram os pais da civilização humana”. Maquiavel encara o “estado de natureza” na volúpia do domínio cruel e, ele próprio parece se deleitar com a brutalidade que descreve os atos do temível César Bórgia, seu venerado e temido contemporâneo. O animal usa sua ferocidade impiedosa em proveito próprio para defender-se e garantir sua sobrevivência, o homem pode e deve usar como referencial o “ferocíssimo leão e a astuciosíssima raposa”, afirma no capítulo XVIII ( O Príncipe). No apogeu das cruentas lutas políticas do século XVI Maquiavel percebeu a importância de reverter a dinâmica da violência e instituiu como ponto nuclear do raciocínio a estratégia de utilizar o ímpeto destrutivo enquanto elemento precioso à serviço da própria sobrevivência individual e social. Aqui reside a escandalosa elegância do seu raciocínio: conceder cidadania aos elementos primordiais da “pulsão de morte” que o aparato civilizatório preferia, ou prefere, ignorar. As teses maquiavélicas escandalizaram mais fortemente que os próprios fatos imorais e cruentos que se desenrolavam inescrupulosamente no seio das Casas Reais e da poderosa Igreja. Impossível não associarmos Maquiavel e Freud: “nossas mais elevadas virtudes desenvolveram-se, como formações reativas e sublimações, de nossaS piores disposições”, e “a educação deve escrupulosamente abster-se de soterrar essas preciosas fontes de ação” (Freud, 1923, vol. 13, pag. 225). Não havendo como negar a força da pulsão enquanto parte irrevogável da natureza humana, importa fusioná-la com Eros, princípio de vida e, assim, contornar o caráter errático do poder destrutivo. Decorridos quinhentos anos e, hoje, munidos do arsenal psicanalítico, podemos apreciar e, de alguma forma, resgatar o que existe de melhor no pensamento maquiavélico. Mais do que cinismo ou ceticismo a leitura destes autores, “mestres da suspeita” - Maquiavel e Freud - revela os aspectos sombrios e a fragilidade humana sem cair no niilismo mas, ao contrário, apresentando a alternativa de que estes mesmos aspectos podem se tornar fontes “preciosas de ação”. Todavia, antes de tudo e acima de tudo, é necessário a coragem para penetrar neste “sub-mundo” e encarar a verdade crua afim de poder utilizar seu potencial libertador. A coragem de pensar a natureza humana

“Mais do que cinismo ou ceticismo a leitura destes autores, “mestres da suspeita” Maquiavel e Freud - revela os aspectos sombrios e a fragilidade humana sem cair no niilismo mas, ao contrário, apresentando a alternativa de que estes mesmos aspectos podem se tornar fontes “preciosas de ação”

no seu em-sí dilacerado em tendências opostas sem demonizá-la mas, ao contrário, aproveitando-a produtivamente, como se faz com a corrente impetuosa de um rio visando transformá-la em energia disponível. Sem dúvida, utilizando a experiência e a sabedoria acumuladas durante cinco séculos, incluindo o instrumental psicanalítico, podemos criticar algumas teses “maquiavélicas” que parecem justificar um estado de “infantilização” das massas populares através do culto idealizado da figura do Soberano como, por exemplo, aparece no capítulo XXI de O Príncipe onde louva as qualidades e a virtú de Fernando de Aragão, rei da Espanha, que “sempre fez e urdiu grandes coisas, as quais mantiveram os ânimos de seus súditos continuamente suspensos, admirados e concentrados em seu êxito”. Segundo Maquiavel, o Soberano pode e deve tirar proveito de tudo para manter sua imagem idealizada. Ao defender que o Príncipe deve se impor como um objeto de admiração e temor, utilizando todas as artimanhas necessárias, termina por justificar a “idealização” do líder através do mecanismo psicológico que hoje, segundo o entendimento psicanalítico, chamaríamos de “identificação projetiva”. As massas projetam seus ideais narcísicos, sua segurança pessoal e a própria pulsão agressiva na figura do chefe o qual, como um pai onipotente, fica detentor, por projeção, destas capacidades e tendências. Mantêm-se, justifica-se e perpetua-se a polaridade do circuito senhor-escravo, líder-liderado, esvaziando conceitos como autonomia e cidadania, festejadas conquistas da nossa contemporaneidade. Seja como for, e este mérito temos que reconhecer: o referencial “maquiavélico” resiste ao tempo como um grande legado do pensamento e nos fascina por sua crua honestidade. Seu despudor é o eterno alerta da nossa força e da nossa fragilidade e importa registrar aquilo que teria sido a grande tônica da sua mensagem: O Príncipe prenuncia uma sutileza psicológica que hoje podemos bem avaliar à luz de outros “mestres da suspeita”, na sua real profundidade e “escandalosa” realidade.

Bibliografia: FREUD, Sigmund (1913). O interesse educacional da psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro; Imago, 1974. v.13. FREUD, Sigmund (1930). O Mal-Estar na Civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro; Imago, 1974, v. XXI. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010. SKINNER, Q; PRINCE, R. (ed.). The Prince. Cambridge, 1988 SKINNER, Quentin. Maquiavel. Porto Alegre: L&PM, 2010.

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