Rosa Maria nº7

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junho ‘14 l dezembro ‘14 · semestral Associação Renovar a Mouraria www.renovaramouraria.pt directora l Inês Andrade distribuição gratuita


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Rosa Maria n.º 7 junho ‘14 · dezembro ‘14

reportagem

Texto Marisa Moura * Fotografia Carla Rosado

Viver sem televisão? “Não podia! Então é que morria estúpida mesmo”

Emília Costa anos

Nasceu em Belmonte no ano de 1913 e vive na Mouraria há mais de setenta. Conversou com o ROSA MARIA e respondeu às perguntas que recolhemos pelo bairro, entre os seus vizinhos, com idades dos 10 aos 90 anos.

Já partiu um pulso, um pé, um joelho e algumas costelas. E esteve prestes a ter uma perna amputada. Cataratas, audição reduzida, pedras biliares... São várias as maleitas que afectam a dona Emília, mas a maioria delas já passaram há mais de trinta anos. Hoje, aos cem, desce (e sobe) do terceiro andar que habita na Travessa do Jordão e palmilha a escadaria até ao Largo das Olarias, onde frequenta a mercearia da dona Helena. Assim fez, por exemplo, no dia em que nos concedeu esta entrevista, numa terça-feira, 13 de Maio. Sempre foi caseirinha, mas mantém este giro entre as rotinas habituais e, todos os anos, há um dia em que nunca fica em casa: 11 de Maio. Ainda este ano lá esteve ela, no Terreirinho, sentada no seu banquinho, com a nora Isaura, de 75 anos, com quem vive, como mãe e filha. É o dia da Procissão da Nossa Senhora da Saúde, a mais antiga do país, que vem dos tempos das Descobertas (em 1570), por devoção dos artilheiros de São Sebastião na Mouraria, que rogaram, com êxito, pelo fim da peste em Lisboa.

Emília de Jesus Moreira Costa nasceu no distrito de Castelo Branco – na Quinta das Pereiras, Belmonte – no dia 12 de Dezembro de 1913, três anos depois da Implantação da República. Órfã de pai ainda antes de nascer, foi a mais nova de seis irmãos e goza da maior longevidade em toda a família. Tem um filho de 75 anos e um neto de cinquenta, a mesma idade que tinha quando enviuvou e começou a trabalhar em casa como ama de crianças – uma delas, a Ana, filha da dona Helena da mercearia, que ainda lhe chama “avó”. Usa preto há meio século e, desde que perdeu o seu companheiro, nunca mais foi ao cinema. Chegou a ver o Capas Negras vezes sem conta, mas já não se lembra da história desse filme de 1947, em que a Amália Rodrigues teve um estrondoso êxito, tinha Emília 34 anos. Passou por duas guerras mundiais, entrou e saiu da mais longa ditadura da Europa ocidental (viveu-a dos 20 aos 60 anos), assistiu à massificação da electricidade, do telefone, da máquina de lavar roupa, da televisão (tinha 44 anos quando nasceu a RTP) e da internet, que a nora costuma

usar, em especial o Facebook. Não sabe ler nem escrever, mas não se atrapalhou, já com 88 anos, quando o euro substituiu o escudo em 2002, na sequência da entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, em 1986. Vive um país resgatado pela terceira vez desde a Democracia instaurada em 1974. Primeiro pelo FMI, em 1977 e 1983, e agora pela troika do FMI com o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia, até ao passado dia 17 de Maio. As telenovelas são a sua distracção, mas também acompanha as notícias e tem dois pivôs preferidos: Rodrigo Guedes de Carvalho, da SIC, e Judite de Sousa da TVI. “É muito simpática e explica muito bem as coisas. Está agora na China com o Cavaquinho [Cavaco Silva], para ver o que é que se pode fazer com Portugal, para as ajudas.” Consegue imaginar-se a viver sem televisão? “Ai, já não podia! Então é que morria estúpida mesmo.” A quem viver nos próximos cem anos, deixa um conselho: “Juizinho, muita paciência. Ser bom para as pessoas, não levantar falsos testemunhos, não matar, não roubar, nada disso.”


Entrevista

র�োউজা মারিয়া

Fotografia Marisa Moura

D. Emília responde

Margarida Guerrinha, 10 anos: Na sua infância havia tantas coisas como hoje? Ao que é que brincava? Resposta: A trabalhar! A trabalhar desde os seis anos! Tomava conta de um menino, que ainda não tinha um ano mas era um gordo e eu tinha que descer umas escadas com ele ao colo. Levava-o às costas, e um dia, pumba, vamos os dois pela escada a baixo [risos]. A patroa deu-me uma palmada e eu fugi para a minha mãe, mas ela foi-me lá levar outra vez. Só ia a casa aos domingos. Nunca tive uma boneca sequer. Depois comecei a trabalhar no que aparecia. A cavar... Ainda hoje sei tudo do campo. Só já me esqueci das datas para semear. Do resto ainda me lembro de tudo. Regar, sachar, aterrar... Tirar água para um picanço à mão com o balde... O campo tem muita coisa bonita.

Tatiana Barros, 20 anos: Como é que a chegada da Ditadura interferiu na sua vida? Destruiu algum sonho ou objectivo? Resposta: Os sonhos para mim eram só trabalhar, mais nada. Gostava de ter ido à escola e muita coisa, mas não podia. Morava numa pequena povoação, a escola era muito longe e não havia transporte. E tinha que trabalhar. Vim para Lisboa tinha uns 20 anos. Servir. Não era um sonho. A minha mãe disse-me “Vai para o pé da tua irmã.” E eu fui. Pedi a uma senhora que me lesse os anúncios e ela disse-me: “Olha Emília, está aqui um bom!” Foi bom, foi... Até fome lá passei! Ah pois! Muito ricos, mas... A minha colega, cozinheira, também estava aflita. Só comíamos o que vinha da mesa. E davam-nos pimentos fritos. Diz-me ela: “Ó Emília, vamos arranjar outra casa e vamos as duas embora?” Ela também não sabia ler e disse: “Vou pedir a uma senhora que é minha conhecida para ver se ela nos acolhe.” Lá nos arranjou outra casa, na Avenida da Liberdade. Fomos. Ai Jesus! Era uma casa enorme, muito luxo. Cadeiras douradas, móveis lindos, tudo muito lindo, mas... Comer é que não era com eles. Fui outra vez para casa da minha irmã. Mas eu não gostava

do meu cunhado, de maneira que decidi voltar para a terra. A passagem custava 10 escudos. Não tinha explicação o que a gente ganhava. Era muito pouco. 15 ou 16 escudos. 20 escudos já era muito. E só tínhamos uma folga de quinze em quinze dias. Era uma escravatura. Deitava-me às vezes às duas horas, três horas, e tinha de me levantar às cinco. Meti-me no comboio e lá fui. Ai Jesus! Eu dizia mal à minha vida. Não sabia o que havia de fazer. Não queria estar lá na terra, mas também não queria pesar à minha irmã. Um dia deu-me uma veneta e vim para Lisboa outra vez. A minha mãe tinha enviado uma carta à minha irmã para ela ir buscar-me à estação, mas ela não foi. Entretanto vinha no comboio um senhor lá da nossa terra, o senhor Bidarra, uma pessoa muito boa. Cheguei à estação, esperei, esperei... Ele não me deixou ali sozinha. Já era quase uma hora da noite e chovia que Deus mandava! “A menina Emília conhece a senhora Damiana?” Era uma senhora de lá da terra, porteira na Bica. Ele chamou um táxi e levou-me lá. Eu só pedia à Nossa Senhora que me acompanhasse [chora]. A criatura levantou-se, estavam os filhos a dormir. No outro dia perguntou a uma senhora: “Ó dona Rosa, a senhora não precisa de uma empregada?”, “Olhe, por acaso preciso.” Era para fazer rissóis e essas coisas para as confeitarias. E lá estive. Depois aconteceu qualquer coisa na vida dela e deixou de fazer os pastéis. Era no quinto andar. No andar de baixo havia uma pensão com doze quartos. Fui lá perguntar: “Ó senhora Júlia, a senhora precisa de uma empregada?” Ao tempo que ela andava com o olho em mim! Foi a minha segunda mãe. Era uma senhora! Ainda tenho ali uma fotografia dela. Ela já me tinha dado um toque, mas custava-me deixar a dona Rosa. Mas como ela, coitada, já não podia ter-me... Lá fiquei na pensão. Foi aí que conheci o meu marido. Era hóspede conhecido da família deles. Estava divorciado há quatro meses e esteve ali uns tempos. Lá nos enamorámos. Ele perguntou à senhora Júlia: “Aquela rapariga que a senhora tem aí, ela é boa rapariga, não é?” E diz ela assim: “É uma jóia! Não tem estudos mas é muito boa rapariga.” Um dia vou levar a água e as toalhas e ele fez ali uma cantiga... [risos] Eu nem disse que sim, nem que não. “Ó dona Júlia, o senhor Fernando disse-me isto assim-assim. O que é que a senhora acha?”, “Olha filha, faz o que entenderes, mas acho que fazes bem. Sempre vais para a tua casinha”, “Mas eu tenho medo que ele se aborreça e me deixe...”, “Olha que não é rapaz para isso.” E não foi... [chora]. Foi a melhor coisa que eu tive na minha vida! Primeiro vivemos num quarto em São Paulo [Cais do Sodré] e depois é que arranjámos esta casa. Antes de o conhecer ainda estive no Bairro das Colónias.

Hugo Maurício, 30 anos: Como viveu a primeira e a segunda guerras mundiais? Resposta: Já não me lembro dessas coisas. Às vezes havia assim, uma revolução e assim... Umas coisas... Havia tiro para cá, tiro para acolá. Eu morava ali no Bairro das Colónias, que era quase só terras... Um dia, de manhã, fomos à varanda e o tanque da roupa estava com balas. Meu Deus! Nessa noite a gente não conseguiu dormir. Aquilo era de um dia para o outro. Depois acalmava. Nem sei para que era. Ainda nem conhecia o meu marido.

Gertrudes Dias, 40 anos: Em 2014 estamos num estado calamitoso, nomeadamente na Saúde e na Educação. Houve alguma altura nestes cem anos em que tenha sentido que o país funcionou bem, com as coisas a preços acessíveis e as pessoas a viverem em espírito de amizade? Resposta: Eu não, filha. A gente só via era pobreza. Por isso é que faziam da gente escrava. As melhoras já só vieram muito tarde. Começou tudo a abrir os olhos. E depois, quando se deu a revolta do 25 de Abril, então foi... Há pouco tempo é que há essa coisa das caixas [pensões]. Antigamente não havia. A mim não me cortaram nada porque não tinha. A troika maldita nunca mais tira de cá os pés. Só têm feito mal. Metem o nariz em tudo. Deviam fazer as coisas de outra maneira.

Anabela Mota, 50 anos: Que alimentação mantém para chegar a esta idade? Resposta: Uma sopinha, pãozinho com qualquer coisa, feijão, batatas, arroz, massa... Enjoei tudo desde a doença que tive [pedra na vesícula]. Agora já como um bocadinho de bacalhau, mas pouco. Adorava café e bebia a toda a hora, mas agora não posso beber para não ficar com a tensão alta. A gente quando nasce já traz o destino marcado, para viver ou morrer. Não é o que se come, nem nada disso. Tudo é o destino. O que Deus manda, mais nada.

* Com os nove vizinhos que fizeram as perguntas, e com a preciosa colaboração de todos os que ajudaram a concretizar esta entrevista. Agradecemos em especial ao Sr. José Ferreira, da Charcutaria Beirão, à Paleta, da Música da Mouraria a Gostar Dela Própria, e à D. Laurinda Barbosa, do restaurante A Vaidosa do Terreirinho, que nos conduziram à D. Emília. E também à D. Maria Amélia Miranda que tanto se empenhou a ajudar-nos a encontrar os entrevistadores com as idades certas.

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Ilda Novo, 60 anos: Como foi voltar a viver em Liberdade aos 60 anos? Resposta: Eu nessa altura não pensava nada, estava cá no meu buraco. E assim tenho passado, e assim estou. Trabalhei muito, muito. Quando começo a desenterrar coisas cá na minha cabeça, passo noites que não durmo. Mas não tomo comprimidos. Não dorme hoje, dorme amanhã! Rezo o terço. Por enquanto, graças a Deus, não me habituei a nada disso. Parte dos remédios que me receitaram, já os rejeitei.

Maria José Luís, 70 anos: Ainda consegue tratar de si própria? Resposta: Não tenho fraldas, não tenho nada disso, graças ao Nosso Senhor. E tomo banho sozinha. Dantes levantava-me mais cedo, agora não é preciso, somos só as duas. Nos dias que não tenho que fazer, levanto-me pelas oito e meia, nove horas. Hoje levantei-me eram sete, arranjei-me e fui-me embora, à mercearia. Em jejum. Só em jejum é que posso fazer as coisas. Se como e me baixo vai tudo fora. Cheguei lá havia de ser oito e meia. Ninguém me deixa trazer nada. Ia a sair e o meu vizinho: “Quer que lhe leve alguma coisa?” Trouxe-me o saco do bacalhau.

Jorge Bastos, 80 anos: Até que idade pensa chegar? Resposta: Eu só queria chegar até amanhã. Ficava feliz. Desde que Deus Nosso Senhor me leve para um bom lugar... Mas isto não é o que eu quero, é o que Ele quer. Faça-se a sua vontade.

Helena Oliveira, 90 anos: Com esta idade, o que é que andamos cá fazer!? Resposta: O que é que eu ando aqui a fazer? Só ando aqui a penar... A gente, sendo velha, é só penar. Chatear os outros. Eu não queria que fosse assim. Sempre pedi a Deus que, mesmo que levasse o meu marido à minha frente, que me levasse numa hora só. Mas Deus não quis que eu fosse com ele.


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notícias

Intendente:

Futuras agentes de geriatria

Xadrez da discórdia

Estacionamento condicionado na Rua da Guia

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Assim que terminarem as festas dos Santos Populares, começará na Rua da Guia a construção de um estacionamento para 11-13 lugares, no local onde hoje está a rampa em frente ao prédio devoluto. Os moradores do Largo da Severa e das ruas do Capelão, da Guia e João do Outeiro foram convocados no passado dia 16 de Maio pelo presidente da Junta de Freguesia de Santa Maior para serem informados e auscultados. “Ajudem-me a decidir nesta questão essencial, para a qual não encontrei melhor solução”, disse Miguel Coelho às cerca de quinze pessoas presentes na Casa da Covilhã, adiantando que esta é uma alternativa “menos radical” em relação à intenção da câmara municipal, que seria de instalar um pilarete a interditar a zona. A Rua Marquês de Ponte de Lima passará a estar controlada pela EMEL, reservada a residentes, implicando o pagamento anual de um selo no valor de 12 euros. “O Largo da Severa não foi feito para ter carros, mas sim esplanadas”, explicou. E aos desagradados moradores da Rua da Mouraria que não serão considerados utentes da zona, lembrou: “O óptimo é inimigo do bom”.

Marisa Moura

O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, passou três anos no Largo do Intendente Pina Manique, para onde transferiu o quartel-general da autarquia em Abril de 2011, no arranque do PDCM – Programa de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria, quando toda esta zona era um fantasma por reanimar. Regressou aos Paços do Concelho no passado mês de Abril, cedendo as instalações à Junta de Freguesia de Arroios, presidida por Margarida Martins, rosto da associação Abraço. Vai tratar de “outras Mourarias”, segundo anunciou em Março numa reunião de câmara. Entretanto, em Maio, após as eleições europeias, em face dos resultados desfavoráveis aos socialistas, anunciou a sua candidatura à liderança do Partido Socialista, de olhos postos nas legislativas do próximo ano, nas quais poderá tornar-se primeiro-ministro.

...entra uma residência para estudantes.

Na mesma reunião de câmara, no dia 26 de Março, foi aprovado o projecto para uma residência de estudantes, no Largo do Intendente, a ser explorada pela Universidade de Lisboa, com capacidade para 239 camas.

O Mob já cá está

O espaço Mob deixou o Bairro Alto, onde a renda era incomportável, e abriu portas na Rua dos Anjos, 12F, em Abril, após três meses sem casa. Nasceu há dois anos de uma parceria com a Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis (atendem às sextas, das 19h às 20h) e com a cooperativa cultural Crew Hassan. A mobilização continua no Intendente, reforçada com o Habita – Colectivo pelo Direito à Habitação e à Cidade, que ali dinamiza assembleias todas as segundas, às 18h. Continuam as festas também. Na inauguração, a música esteve por conta dos DJ Golpe de Estado. Mais informações em moblisboa.org.

Uma das aulas de inglês com a professora Joana Pessoa no GABIP Mouraria

Máscaras do ano Diogo Lin

Os passeios da Calçada Agostinho de Carvalho têm, desde Março, três controversas áreas. Um lado desta íngreme rua manteve a calçada portuguesa, o outro ficou dividido em dois tipos: esse mesmo pavimento num quarto do passeio e o resto com uma argamassa cinzenta escura que a todos desagrada, incluindo ao presidente da Câmara de Lisboa, António Costa. A situação levou mesmo uma moradora a agendar uma reunião na junta de freguesia. “No dia em que a obra ficou pronta, marquei logo, para mostrar o meu desagrado”, conta Ana Silva, 57 anos, desde os 12 por aqui. Havia uma agravante: estava finalizada a empreitada que manteve a rua esventrada durante o Inverno, após o rebentamento do colector de esgotos, mas ficaram por unir as pedras do empedrado por onde circula o trânsito. “Ele [Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior] ligou logo a alguém ao pé de mim e isso foi rapidamente arranjado”. O presidente da câmara já tinha sido chamado ao local pelo próprio Miguel Coelho e no dia dessa visita a nossa vizinha estava à janela. “O António Costa perguntou-me o que é que eu achava e eu respondi que já tinha uma reunião marcada. Até ele concordou que aquele novo pavimento é muito bruto. Disse que talvez em bege ficasse melhor.” As obras foram da responsabilidade da câmara, mas o presidente da junta admite vir a embelezar aquele trecho. O objectivo do polémico material é evitar quedas, sobretudo entre as pessoas mais idosas, mas os moradores rejeitam tal argumento, salientando que as pedras pretas da calçada portuguesa já têm uns “biquinhos anti-derrapantes”, como diz João Brito, dono da Leitaria do Benformoso – 52 anos, há 38 residente na calçada. Concordam com ele octogenários como a dona Helena Almeida. Pior: a cobertura em causa (também usada no parque infantil da Rua da Guia) é das mais caras, feita à base de resinas epóxi, segundo explicações do arquitecto da junta, José Carvalheira. Indignou também o facto de o novo piso ter sido posto quando, no dia anterior, já ali se tinha colocado a calçada portuguesa. Fez-se e desfez-se, para pior.

Dezassete mulheres com idades entre os 20 e os 50 anos estão em formação na Mouraria desde Fevereiro para se tornarem agentes de geriatria, com equivalência ao 9.º ano. Além de enriquecerem em matérias que vão do Inglês à Matemática e à História, recebem uma bolsa de 140 euros mensais, ou valor aproximado se já recebiam apoios anteriores. E ganham empregabilidade para o futuro, tratando de quem tanto precisa: os mais idosos (ver outras iniciativas para seniores da Mouraria na página 11). A formação resulta de um protocolo entre o gabinete municipal GABIP Mouraria e o Instituto do Emprego e Formação Profissional, em parceria com a Obra Social das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, que encaminhou cerca de metade das formandas. Estarão prontas para exercer a profissão quando o curso acabar, em Novembro de 2015.

Sai António Costa...

Duck Production

Carla Rosado

Calçada Agostinho de Carvalho:

E há também uma nova (id)entidade: Neste Carnaval, o Grupo Gente Nova realizou mais um animado concurso de máscaras. Os vencedores foram a princesa Carina Letícia, 5 anos (primeiro lugar), o mexicano Gonçalo Fernandes, 7 anos (segundo), e o polícia Marco Francisco Sousa, 10 anos (terceiro).

B.I.

O crescente número de inquilinos no Intendente já justifica um BI. Nasceu assim, em Maio, o colectivo Bairro Intendente, que inclui comerciantes (A Vida Portuguesa, Bike Pop, Horiginal, etc.) e entidades culturais (Largo Residências, Casa Independente, Sport Club Intendente, Mob, etc.) sedeados no Largo do Intendente Pina Manique, na Rua dos Anjos e na Rua do Benformoso, esta última colada à Mouraria. Comunicam eventos conjuntamente em bairrointendente.wordpress.com e no Facebook.


Carla Rosado

Primeira sala de consumo assistido de drogas prestes a nascer na Mouraria

Podemos até dizer que a Mouraria está na moda. Mas não há fachada caiada que o esconda: a droga continua na rua. Perpetua o gueto no bairro; afasta moradores, turistas e investidores; traz criminalidade e prostituição; destrói famílias e estigmatiza consumidores. Em 2012, num edifício da Calçada de Santo de André cedido pela câmara, nasceu o In Mouraria, centro de apoio a toxicodependentes gerido pelo GAT (Grupo Português de Activistas sobre Tratamentos de VIH/SIDA). Ali, os consumidores encontram enfermeiros e psicoterapeutas que já os conhecem. Ali ouvem conselhos de ex-consumidores. Ali se fazem as pontes com o centro de emprego. Há merendas, casa-de-banho e roupeiro; dão-se seringas novas, cachimbos e preservativos; fala-se de sexo seguro e do contágio de doenças associado ao consumo de drogas em condições insalubres. Também se fazem rastreios de VIH e Hepatite B e C. Ricardo Fuertes, que coordena este centro e trabalhou numa sala de consumo assistido de drogas em Barcelona, sente-se de mãos atadas. Os consumidores entram, são aconselhados, recebem seringas novas... Mas chega a altura em que precisam de injectar heroína ou fumar crack – e têm de o ir fazer para a rua, sozinhos em caso de overdose, abrigados numa ruína ou

E você,

acocorados atrás de um carro no Benformoso. A ideia de consumo assistido está prevista na lei desde 1999, mas nunca foi posta em prática. Parece que é desta: a versão final do relatório da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e do SICAD (ex-Instituto da Droga e da Toxicodependência) que recomenda a criação de uma “estrutura de consumo seguro” de drogas nesta zona será entregue ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa ainda neste Verão. Foi até identificado o lugar ideal: a Rua da Palma, perto do futuro centro de saúde do Martim Moniz e da futura esquadra da PSP. A decisão técnica está tomada. Falta a política. Até ao fecho desta edição, António Costa nada tinha dito. Resta saber se a sua candidatura à liderança do PS (e, quiçá, às legislativas do próximo ano) condicionará a sua decisão. Sabemos que este é um tema sensível, campo fértil para populismos e preconceitos. Já se tentou criar um espaço assim em 2006, com a Estratégia Municipal de Intervenção para as Dependências, que previa o alargamento da actividade dos Gabinetes de Apoio aos Toxicodependentes, situados em Chelas e em Benfica. Passariam a chamar-se Instalações de Consumo Apoiado para a Recuperação. A sua abertura chegou a estar marcada para o segundo trimestre desse ano, decorria então o conturbado mandato de Carmona Rodrigues, independente apoiado pelo PSD (partido que mais contestava estes espaços nas discussões municipais). Sempre adiada. Também no Porto se discutia o tema, pela voz do padre José Maia, presidente da Fundação Filos. João Meneses (coordenador do GABIP Mouraria) e Luís Mendão (presidente do GAT) acreditam que os moradores compreendem o que agora se propõe: não um “spa do consumo”, mas uma casa de acolhimento que aproveite os técnicos de intervenção comunitária, médicos e enfermeiros para criar empatia com os consumidores e apostar na sua regeneração e formação profissional. Ou seja, uma casa como o In Mouraria, mas com um quarto a mais. Será desta? 3João Berhan

Maria do Céu Barata

Crónica

র�োউজা মারিয়া

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José Luís Elvas trabalha num banco

de imagens e é finalista da licenciatura de Sociologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

“Ié ié ié, a nossa marcha é que é!”

Há 24 anos que trabalho na Mouraria e como estudante de Sociologia é uma sorte ter um marchante devoto do bairro como colega. Chega abril e o Nuno, nem com águas mil, deixa de cumprir a tradição. A azáfama inicia-se com os preparativos para as marchas populares. No escritório surgem os primeiros relatos do recrutamento, das medidas para os fatos ficarem “a matar”, as primeiras marcações, a escolha dos pares e as tentativas de convencer os mais indecisos. A marcha começa a ganhar forma. O Nuno espera escrupulosamente pela hora do início do ensaio, sobe rua desce rua, decora as letras e as marcações. O entusiamo é notório no seu semblante. Os comportamentos e as dinâmicas recorrentes, ano após ano, permitem a transmissão de fatos culturais de geração em geração, perpetuando assim, não só a tradição, mas também a rivalidade entre bairros. O Nuno ilustra brilhantemente tudo aquilo que estudamos nos manuais académicos sobre identidade. Como ele diz: “Há sempre uns bairrismos, depois há as picardias, uma claque grita mais alto, a outra grita mais alto e… envolveu-se tudo à porrada no pavilhão.” É interessante constatar que a câmara municipal promove os bairros divulgando os costumes enraizados na população como atração, mas os marchantes não dão grande importância à parte turística do evento, referindo-se às festas populares como uma festa deles e para eles. “A gente sente mais (eu sinto mais) a volta ao bairro do que descer a Avenida.” As marchas e os bairros fundem-se assim em tradições, significados, rivalidades, sentimentos de pertença e identidades coletivas. Ser marchante envolve um conjunto de disposições forjadas ao longo dos tempos - e ser marchante da Mouraria não é o mesmo que ser marchante em Alfama. “Ié ié ié, a nossa marcha é que é.” Ainda assim, sendo nossa, não é “nossa” da mesma maneira para todos. “O orgulho do bairro é do bairro, mas se não se for na marcha não é a mesma coisa. Tem de se ir para sentir o que é aquilo.” É este orgulho, este sentimento de pertença enraizado, que muitas vezes transborda e acerta em cheio na claque da marcha vizinha. “Ié ié ié, a Mouraria é que é!”

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Fotografia Raquel Cavaleiro /MPAGDP

já cantou?

Se gosta de cantar, não se espante se for abordado por uma simpatia de cabelo curto e óculos redondos chamada Ana Paula Silvestre, mais conhecida por Paleta. Velhos e novos, nacionais e estrangeiros, amadores e profissionais têm cantado pelas ruas da Mouraria juntando-se a centenas de outras vozes, do Minho ao Algarve. Mais de vinte pessoas do bairro já gravaram e muitas outras estão na mira desta caçadora de vozes que é uma das guias turísticas da Associação Renovar a Mouraria e a ponta-de-lança da Mouraria no projecto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, criado em 2011 pelo realizador Tiago Pereira. O objectivo é gravar cinco projectos musicais por semana, para criar o maior arquivo de música portuguesa. As participações nacionais estão em facebook.com/ amusicaportuguesaagostardelapropria e as da Mouraria, organizadas no canal A Música da Mouraria a Gostar dela Própria em http://mmagdp. tumblr.com. Já são tantas que nem temos espaço nesta edição para citar todos os artistas, e menos ainda para publicar todas as fotografias. É bom sinal!

Mais de vinte pessoas da Mouraria já cantaram em frente às câmaras do projecto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria. Em cima, o quarteto Fateh, Charan, Kuidip e Sewak. Abaixo, Maria de Lurdes Santos. Ao alto, a fadista Elvira Igreja


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reportagem

Texto Marisa Moura Fotografia Carla Rosado

Primeiro Encontro Ravidassia na Mouraria

BREVES ReFood finalmente na Mouraria

Diz-se “rifud”. É um projecto de voluntariado que recolhe comida na restauração e a distribui pelos mais carenciados. “Food”, em inglês, é “comida”. “Re” vem de reciclar ou reutilizar. O projecto foi criado há três anos pelo americano Hunter Halder num espaço cedido pela Igreja da Nossa Senhora de Fátima, na Praça de Espanha. No ano passado abriu novos núcleos, primeiro em Telheiras, depois na Estrela e no Lumiar. Distribui quinhentas refeições diárias e tem centenas de voluntários. Estão em curso dezenas de aberturas, com juntas de freguesia que cederão espaços. No nosso bairro, a ReFood iniciou as primeiras reuniões no ano passado, mas só agora se consolidou o projecto, sendo entretanto estendido a todos os bairros da freguesia de Santa Maria Maior. Porquê a demora? “Ia haver eleições e quisemos evitar acusações de aproveitamento político, como estava a acontecer noutros locais”, esclarece João Pedro Moreira, bancário e coordenador deste núcleo da ReFood, então tesoureiro da Junta de Freguesia do Socorro. Já sem funções políticas, coordena o núcleo de Santa Maria Maior e está prestes a ter o aval de um espaço cedido pela junta de freguesia.

Nasceu a Comissão Social de Freguesia de Santa Maria Maior

Mais de cem ravidasis encheram a Sala Fernando Maurício do Grupo Desportivo da Mouraria, no passado dia 9 de Maio, para receberem uma sumidade: Sant Niranjan Dass Ji, líder do santuário Dera Sach Khand, em Ballan, na região indiana do Punjab. Não é a primeira vez que Sant Niranjan vem à Mouraria, mas é uma estreia enquanto líder de uma religião. Dantes representava o movimento Ravidass, integrado na religião Sique; agora representa a religião Ravidassia Dharam, resultante de um corte radical com o siquismo em 2010. Dantes vinha como ravidasi, agora como ravidassia, segundo a terminologia adoptada desde que o seu santuário decretou a nova religião, na sequência de um atentado na Áustria. A presença policial não passou despercebida. Tem sido imprescindível desde que este líder ficou ferido, em 2009, em Viena, no atentando feito por radicais siques, que chegou mesmo a matar o seu parceiro Sant Rama Nand. Seguiram-se tumultos por toda a Índia e o santuário decretou a nova religião. Isto, sob uma chuva de críticas de outros santuários radivasis, que apelaram à união entre todos os siques e se mantiveram como tal. Ambos os alvos do atentado de Viena tinham estado em Portugal na semana anterior, segundo Davinder Lakha, 43 anos, residente na Mouraria e líder do Shri Guru Ravidass Sabha – o templo ravidassia situado nos Anjos, que por ser pequeno demais para estas recepções obrigou ao aluguer de sala no Desportivo. Este será o único templo ravidassia em Portugal, segundo Davinder, estimando-se que, no total, existam 1500 ravidasis neste nosso país de dez milhões de habitantes. Na Áustria são o dobro, numa população de oito milhões. Conotados com a classe baixa (dalit, os intocáveis), os ravidasis caracterizam-se por seguirem o Guru Ravidass, nascido nessa casta em 1377. Um único guru. Já o siquismo caracteriza-se pelos seus dez gurus. O primeiro é o Guru Nadak, nascido em 1469, e o último é Gobind Singh, que morreu em 1708 sem nomear sucessor, alegando que o poder corrompe os humanos. Ravidass terá sido forte fonte de inspiração do quinto guru sique. A recente cisão tem sido analisada pela imprensa internacional como uma luta dos dalit por uma efectiva igualdade social.

Sabia que...

Texto e Ilustração Nuno Saraiva

Qualquer cidadão pode, e deve, integrar uma comissão social de freguesia – um órgão previsto na lei desde 2006, mas que só recentemente ganhou vida prática. Em Santa Maria Maior, a comissão nasceu no dia 1 de Abril, e o seu êxito só depende da motivação de cada um dos seus membros. Na reunião de arranque, no salão nobre da Academia de Recreio Artístico, na Rua dos Fanqueiros, estiveram cinquenta das 65 entidades convocadas, tendo sido dos encontros mais participados de Lisboa – com as associações da Mouraria em claro destaque. No âmbito desta comissão, está a ser elaborado pela Universidade Católica um detalhado diagnóstico social do território, que servirá de base à actuação dos grupos a constituir, para abordagens que vão desde as crianças aos idosos, à pobreza, à violência doméstica ou à toxicodependência.

Mais uma primavera sem jardim

O jardim da Calçada do Monte já deveria ter sido inaugurado em Setembro de 2013. Após sucessivos adiamentos, a data passou para o passado mês de Abril, mas nada. O jardim foi anunciado pela câmara municipal como o maior parque público dentro do espaço urbano de Lisboa, com um investimento de 847 mil euros. As obras já começaram em Fevereiro de 2013. Depois pararam, porque alegadamente havia achados arqueológicos. As obras não avançam. Não há jardim nem respostas.

Centro de Inovação também continua adiado

Os adiamentos marcam também o Centro de Inovação na Mouraria (CIM), o espaço de empreendedorismo e cultura, no quarteirão dos Lagares, que deveria ter sido inaugurado em Janeiro. A insolvência da construtora Contrope-Congevia atrasou a obra orçamentada em cerca de 2 milhões de euros. Devia estar concluída no primeiro trimestre deste ano, ou em Abril. Não esteve. Mas já faltou mais. Os tapumes saíram entretanto de cena, deixando vislumbrar o edifício branco quase finalizado.

Tome nota! Novos contactos da Junta A nova sede da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior foi inaugurada em Maio no edifício do Elevador do Castelo, com acesso pela rua da Madalena ou, abaixo, pela dos Fanqueiros. O número de telefone central passou a ser o 210 416 300.

...o chafariz do largo dos Sabia que... o chafariz do Largo dos XIX, surge como bebedouro público do solicitação do regedor da paróquia de São da Achada. É aí que o ilustrador e aguarelista obras (ver página 26). Nos das Farinhas, actual Largo de origem marginal (que o descreveu como um “capricho solução de “urbanistas antigos” encosta) é hoje um dos locais E este velhinho bebedouro é o

trigueiros é muito viajado? Trigueiros é muito viajado? Nos meados do século passeio da Costa do Castelo. Em 1888, numa Cristóvão e São Lourenço, é plantado no Largo Alfredo Roque Gameiro o torna famoso em duas anos 40, muda-se para o Terreirinho dos Trigueiros. Este pequeno largo olisipógrafo Norberto de Araújo de construção de acaso” e uma na correcção dos declives da mais prazenteiros da Mouraria. seu ex-líbris.


hábitos

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Texto e Fotografia José Fernandes

A marca de Deus

A tilaka (também conhecida por tilka ou tika) é usada especialmente na testa sobre um dos principais centros energéticos (chacras) do corpo, o terceiro olho, mas também noutras onze partes, incluindo os pés. É um símbolo de protecção e santificação. Esta marca é própria da cultura hindu, que assenta na suprema trindade Brahma-Vishnu-Shiva (Brahma cria, Vishnu preserva e Shiva destrói), mas que tem inúmeras ramificações religiosas, entre as quais sobressai o movimento Hare Krishna, fiel a Krishna – uma figura central do hinduísmo que, para uns, foi uma encarnação de Vishnu na Terra, e, para outros, a representação única de um deus supremo. Também a tilaka assume diversas variantes, consoante também a condição social (a casta) de cada um. Destacam-se duas versões. Uma em forma de U ou de V, como um diapasão ou tridente, ao alto. Outra, horizontal,

composta por três linhas, geralmente com um ponto vermelho ao centro. A primeira é típica dos que mais adoram Vishnu. É a tilaka vaishnava. A segunda prevalece entre mais próximos de Shiva e chama-se tilaka shaivites. A simbologia de cada uma destas versões também varia. Para uns, as duas linhas do “diapasão” podem representar as paredes de um templo de Krishna e Radha (sua mulher). O espaço entre cada uma dessas linhas representará o local onde o casal terá vivido.Para outros, cada linha representa Brahma e Shiva, sendo o espaço intersticial a casa de Vishnu. Outros ainda defendem que em causa estão cada uma das margens do Yamuna, um dos principais

Marisa Moura

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Por que é que algumas pessoas desenham no centro da testa uma espécie de tridente ou diapasão? Faz parte da cultura hindu. Chama-se tilaka – “marca” em sânscrito.

rios do Norte da Índia. A tilaka deve ser aplicada com o dedo anelar da mão direita ou por um material metálico. O traço inicial deve ter aproximadamente a largura do espaço entre as sobrancelhas, de maneira a que se consigam desenhar duas linhas verticais. Por fim, faz-se a parte do U, mais próximo do nariz. Nessa altura, apela-se ao poder dos rios da Índia, recitando-se este mantra: Om gange cha yamune chaiva godavari, sarasvati, narmade, sindhu kaveri jale’smin sannidhim kuru. (Ó Ganges, Yamuna, Godavari, Sarasvati, Narmada, Sindhu e Kaveri, tornem-se presentes nestas águas.) A tinta pode ser feita a partir de vários materiais: argila, açafrão, alume, iodo, cânfora, cinzas ou sândalo. Vendem-se preparados sob, por exemplo, a designação gopi chandan. Se a cor for vermelha, kumkum ou sindur; ver secção Conversas de Bazar na página 27).

Rua a Rua

No Pátio do Coleginho ainda podemos encontrar o que resta da antiga Mouraria das quintas e hortas. É uma viagem num tempo em que a cidade de Lisboa era um aglomerado de aldeias separadas pelo verde dos campos que o crescimento urbano uniu. Alcandorado na Colina do Castelo, o pátio ainda guarda as memórias bucólicas que despertam os nossos sentidos. Pela Rua Marquês de Ponte de Lima chega-se a este através de uma íngreme calçada a fazer lembrar os antigos quebra-costas: a subida a pique faz-se por entre prédios de belos azulejos padrão do século XIX e as desgastadas

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Texto Pedro Santa Rita

Há quem use esta marca no dia-a-dia, outrosapenasemocasiõesespeciais.Entre as mulheres, assume a forma de um único ponto vermelho, que simboliza, em especial, a força feminina. É o chamado bindi, bem mais popularizado aqui no ocidente do que a tilaka. Este está associado a Parvati, deusa-mãe, segunda consorte de Shiva (a primeira é Sati) e progenitora de Ganhesha, o popular elefante, símbolo da sabedoria intelectual. Segundo a tradição, o bindi era usado só pelas mulheres casadas, mas deixou de lhes estar limitado e massificou-se como um acessório de moda.

Parmod Kumar, fiel ao movimento Hare Krishna e aluno das aulas de português da Associação Renovar a Mouraria

Pátio do Coleginho

paredes cor-de-rosa de janelas gradeadas do Mosteiro de Santo Antão o Velho – o primeiro colégio dos Jesuítas em Portugal, no século XVI. No topo da calçada a paisagem é dominada pelas traseiras do mosteiro com o seu claustro manuelino, hoje considerado um dos mais belos da cidade de Lisboa. Do lado oposto ao mosteiro, entre dois prédios, avistamos um moribundo portão de alvenaria: com portas em chapa, indica-nos a entrada do que resta de uma antiga quinta que em tempos galgava a encosta até ao Teatro Taborda na Costa do Castelo. A rua é subitamente dividida por um velho e rangente portão que abre para um pequeno pátio: um corredor estreito pavimentado em macadame, ladeado por casas simples de dois andares do século XIX e abruptamente fechado por um muro alto de pedra. Sobre este penduram-se as videiras e assomam as copas das laranjeiras que nascem do outro lado: um pedaço verde de uma quinta que outrora pertencia ao mosteiro e residência habitual da passarada que enche de chilreios e melodias as manhãs soalheiras do pátio. Entre as sonoridades canoras e caninas (há muitos cães por este quintais), o tempo é marcado pelos sons graves e fortes que se soltam hora após hora dos sinos da Igreja da Graça, confirmando a boa acústica do espaço. O pátio vai fazendo o seu quotidiano entre as conversas das(os) vizinhas(os), o ritual do estender da roupa e, à tardinha, a chegada atribulada dos carros – aliás, é o único momento do dia

em que se ouvem os carros no pátio, como se este fosse um cantinho protegido dos ruídos da cidade. Encaixado numa “achada” da Colina do Castelo e rodeado por prédios, as vistas e o horizonte do pátio são dominadas pelo omnipresente Convento e Igreja da Graça que do alto da Colina de Santo André, contempla a Costa do Castelo: numa curiosa sobreposição de planos, a torre sineira e a fachada da igreja parecem emergir das copas arredondadas dos pinheiros mansos que arborizam o miradouro altaneiro da Graça. Porém, entre o pátio e a colina da Graça, existe um curioso diálogo e jogo de perspectivas: vista do pátio, a colina, com a sua Igreja, parece estar fisicamente tão próxima e omnipresente que nos impede de contemplar toda a encosta e o vale que separa as duas colinas. Pelo contrário, para quem lança o olhar do Miradouro da Graça, o pátio tem tendência a diluir-se por entre o contínuo de casas, telhados, becos, ruelas e escadinhas, o mesmo acontecendo com as pessoas e os seus olhares. Um outro momento mágico ocorre à noite, quando as luzes brancas que iluminam o monumento da Graça produzem um clarão tão intenso que parece derramar a sua luz sobre o pátio que se funde com o halo amarelo e tremeluzente dos antigos candeeiros do século XIX. Ao silêncio do pátio vai chegando também a algaraviada de vozes indistintas que descem do miradouro, atravessadas pelo miado estridente e agressivo dos gatos da Mouraria. É a hora dos gatos.


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reportagem

Fotografia Carla Rosado

Chineses celebraram o ano novo no Martim Moniz

Pela primeira vez, a comunidade chinesa festejou a chegada do novo ano num evento público organizado por todas as associações chinesas de Lisboa, em parceria com a câmara municipal e a embaixada da República Popular da China. No passado dia 1 de Fevereiro, o Ano do Cavalo chegou em grande ao Martim Moniz

Em que ano estamos? Depende do aniversário do profeta de cada cultura, sendo que a maioria dos dias de Ano Novo variável em função de calendários lunares. A Terra, essa, para os cientistas, existe há 4,5 mil milhões de anos. Os primeiros hominídeos terão surgido há uns cinco milhões e a actual espécie de seres humanos, homo sapiens sapiens, há duzentos mil anos.

Ano Cristão: 2014 l Dia de Ano Novo: 1 de Janeiro

Ano Sikh: 546 l Dia de Ano Novo (Vaisakhi): 14 de Abril

Ano Chinês: 471 l Dia de Ano Novo: 1 de Fevereiro

Ano Budista: 2558 l Dia de Ano Novo (Vesak ou Buda Purnima): 12 de Maio

Ano Hindu: 1936 l Dia de Ano Novo (Gudi Padwa, também conhecido como Samvatsar Padvo, Yugadi ou Navreh): 31 de Março

Texto Teresa Melo

Fechada

a escola básica da Madalena... Santa Clara ou Baixa?

A escola básica da Madalena, cujo encerramento já esteve previsto para o ano lectivo que agora termina, deverá fechar no próximo ano, altura em que estará finalmente pronta a nova escola no Campo de Santa Clara, que substituirá as velhas escolas básicas do Agrupamento Gil Vicente. Até aqui tudo bem. Até o transporte, que era uma preocupação de muitos pais da Mouraria, também está garantido, seja através da rede de transporte escolar municipal, os Alfacinhas, seja através da junta de freguesia. “Estamos disponíveis para, se necessário, criar um serviço de transporte. Não será por isso que as crianças deixarão de ir à escola”, garante Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, que integra cinco bairros: Mouraria, Alfama, Castelo, Baixa e Chiado. Há todavia uma dúvida: uma vez que também abrirá a nova Escola da Baixa, que poder de escolha terão os actuais utentes da escola da Madalena? “Será um escândalo se essa escola não estiver aberta a essas crianças, e eu farei ouvir bem alto a minha indignação”, avisa Miguel Coelho. As acessibilidades escolares são competência da câmara e do Ministério da Educação, mas este presidente de junta tem uma palavra a dizer. Alguns alunos da Mouraria poderão assim frequentar a nova escola do agrupamento Gil Vicente, junto à Feira da Ladra, e outros a Escola da Baixa. A primeira funcionará no antigo Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, com capacidade para 475 crianças, que vem substituir as velhas escolas básicas do agrupamento – Madalena, Sé, Infanta D. Maria (Campo de Santa Clara), Marqueses de Távora (Largo da Graça), Convento do Salvador (Alfama) e o Jardim de Infância de São Vicente. Mantém-se a EB1 Castelo, que é a única em boas condições de funcionamento. A Escola da Baixa funcionará no antigo convento e tribunal da Boa Hora, à Rua Nova do Almada, tem capacidade para 150 crianças (cinquenta em jardim de infância) e insere-se na política municipal de atracção de jovens famílias à baixa pombalina.

Ano Judaico: 5774 l Dia de Ano Novo (Rosh Hashaná): 5 de Setembro > no próximo dia 25 de Setembro começa o ano de 5775 Ano Muçulmano: 1435 l Dia de Ano Novo (Al-Hijra ou Muharram): 5 de Novembro > no próximo dia 25 de Outubro começa o ano de 1436

Colina de Santana: a polémica continua

O Hospital Miguel Bombarda fechou em 2012 e para o seu lugar foi arquitectado um projecto imobiliário que inclui um hotel e uma torre de 12 andares. O Hospital do Desterro fechou em 2007 e está em obras para um espaço de residências artísticas e produção hortícola explorado pela Mainside, a promotora da LX Factory, em Alcântara. Os hospitais de São José, Santa Marta e dos Capuchos, que servem residentes da Mouraria, serão transferidos para Marvila. Aí integrarão o novo Hospital de Todos os Santos, que incluirá também o Curry Cabral, o Dona Estefânia e a Maternidade Alfredo da Costa, e que abrirá em 2020 (esteve para ser já em 2016). Os polémicos projectos têm ido a debate na assembleia municipal e discutidos publicamente por cidadãos comuns e entidades como a Associação Portuguesa pela Arte Outsider, o ICOM-Portugal, a Ordem dos Enfermeiros, a Ordem dos Médicos, o Grupo de Amigos de Lisboa e a Sociedade de Geografia de Lisboa. Os contestatários dos projectos manifestaram-se no último desfile do 25 de Abril. 3AA/MC


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editorial

E se daqui a 100 anos alguns de nós ainda cá estivermos? As probabilidades não são assim tão absurdas. Na Mouraria há duas pessoas com 100 anos. Uma delas, a dona Almerinda, faz 101 já em Agosto. Tentámos entrevistála nesta edição, mas uma queda tem-na mantido menos conversadora e teremos de aguardar. A outra é a dona Emília. Respondeu a nove perguntas que recolhemos pelo bairro, entre pessoas dos 10 anos aos 90 anos (ver página 2). A dona Emília falou-nos, por exemplo, da “escravatura” em que viveu. O seu testemunho mostra-nos que o mundo mudou bastante num século, mas a humanidade já nem tanto. A célebre Liberdade-Igualdade-Fraternidade decretada na Revolução Francesa, há mais de duzentos anos, continua uma recém-nascida, com quase tudo por aprender. Resultado: alguns bebés que hoje conhecemos poderão estar daqui a 100 anos a dar uma entrevista como esta, sobre vivências que muito nos fazem pensar. “A História julgar-nos-á pela diferença que, todos os dias, fizermos na vida das crianças”, disse Nelson Mandela (1918-2013). Ele ficou na História como símbolo da luta pela igualdade. E nós, como podemos ficar? O que é que cada um de nós, aqui e agora, pode fazer para que os nossos bebés venham a ter recordações mais felizes do que as da nossa centenária vizinha? Nesta edição, o nosso contributo é o de sempre: ajudar a que nos conheçamos um pouco melhor, pois não há liberdade, igualdade nem fraternidade que resista à ignorância. E desta vez temos várias inovações. Temos um tema (intergerações) que marca grande parte dos artigos, temos um texto traduzido (página 22, em bengali) e temos uma nova secção: Conversas de Bazar (página 27). A propósito de produtos à venda nos bazares da Mouraria, a Rosa Maria descobre pessoas e estórias do mundo. Deixamos, por outro lado, de editar a Dobra das Palavras – já sentimos saudades dela, mas aguentamos quando pensamos nas estreias desta edição e na recente secção Hábitos, que nos acompanha desde o número anterior (neste, estudamos o hábito hindu de desenhar símbolos na testa – a tilaka, página 7). Abraços a todos. E não se esqueçam… O que podemos fazer nós hoje para que o ano de 2114 veja os nossos centenários bebés sorrir?

ROSA MARIA · Estatuto Editorial O ROSA MARIA é um jornal sobre as pessoas e os acontecimentos da Mouraria, mas também sobre assuntos nacionais e internacionais relacionados com os seus residentes, criado para preservar e divulgar o seu imenso património humano, histórico e cultural. O ROSA MARIA é um jornal comunitário produzido por todos os que queiram participar (jornalistas, fotógrafos, ilustradores, designers gráficos, voluntários e moradores ou trabalhadores do bairro) e que se pautem pelos princípios da solidariedade, do rigor e da qualidade. O ROSA MARIA é parte integrante da comunidade em que se insere, mas totalmente comprometido com o código deontológico que enquadra o exercício da liberdade de imprensa e independente de facções religiosas, políticas e económicas. O ROSA MARIA é editado pela Associação Renovar a Mouraria desde 2010, com periodicidade semestral. O seu nome é inspirado na mítica Rosa Maria imortalizada no fado Há Festa na Mouraria – uma mulher atrevida e virtuosa, como esta publicação.

Carla Rosado

olho em 2114

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O Mercado de Fusão, na Praça Martim Moniz, está mais acolhedor com os novos bancos num espaço verde. Estivesse a música um pouquinho mais baixa e o relax seria perfeito. Carla Rosado

De

está bem · está mal

O que dirão os turistas das “escadinhas WC” por detrás da paragem onde fazem fila para o eléctrico 28? Nós dizemos isto: inadmissível.

Receba o Rosa Maria pelo Correio Faça uma assinatura e ajude este jornal comunitário a crescer! Por 10€, ou donativo superior, receba 3 edições. Contacte-nos pelo e-mail rosamaria@renovaramouraria.pt ou pelo telefone 218 885 203.

> Publicado em conformidade com o Decreto Regulamentar n.º 8/99, de 9 de Junho, sobre Registo dos Órgãos de Comunicação Social. FICHA TÉCNICA · Direcção: Inês Andrade Direcção gráfica: Hugo Henriques Edição fotográfica: Carla Rosado Edição editorial: Marisa Moura Revisão: João Berhan e Joana Chocalhinho Publicidade: Susana Simplício Tradução: Moin uddin Ahamed e Pedro Leader Ilustração: Alexandra Belo, Aude Barrio, Hugo Henriques, Nuno Saraiva, Vítor Mingacho Passatempos: Aude Barrio e João Madeira Fotografia: Augusto Fernandes, Carla Rosado, Diogo Lin, Helena Colaço Salazar, Hélio Balinha, José Fernandes, Marisa Moura, Nuno Morão, Paulo Marques, Sophie Cadet, Teresa Melo, Yolanda Bettencourt Texto: Ana Luísa Rodrigues, Carmen Correia, Daniela Silva, João Berhan, José Fernandes, Luís Elvas, Luísa Rego, Marisa Moura, Nuno Catarino, Oriana Alves, Pedro Santa Rita, Raquel Albuquerque, Ricardo Miguel Vieira, Rita Pascácio, Teresa Melo Agradecimentos especiais a: André Alves, Antònia Tinture, Cláudia Henriques, Edgar Clara, Hélder Oliveira, Hugo Curado, Maria Coimbra, Mariana Melo, Nuno Franco, Paula Cosme Pinto/Expresso, Sandra Bernardo, Sílvia de Melo Olivença e Vitorino Coragem. E ainda, pela cedência de imagens: Duck Production, EGEAC/José Frade, Museu da Cidade/CML, Maria do Céu Barata, Nuno Botelho/Expresso, Raquel Cavaleiro/MPAGDP e Site Norberto Araújo (1889-1952) www.norbertoaraujo.org (copyright 2012), José Vicente de Bragança, Jorge Quina Ribeiro de Araújo e Herdeiros de Norberto de Araújo Capa: Helena Colaço Salazar · Propriedade: Associação Renovar a Mouraria Redacção, administração e publicidade: Beco do Rosendo, n.º 8, 1100-460 Lisboa, Tel.: +351 218 885 203, Tm.: +351 922 191 892, rosamaria@renovaramouraria.pt Impressão: Funchalense – Empresa Gráfica S.A. Distribuição: Associação Renovar a Mouraria Versão digital: www.renovaramouraria.pt Tipos de letra: Atlantica, Lisboa e Tramuntana > Ricardo Santos Depósito legal: 310085/10 Periodicidade: Semestral Tiragem: 10 000 exemplares Número sete, Junho 2014 N.º Registo ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social): 126509 Correcção: Na edição anterior, a fotógrafa Helena Colaço Salazar não foi incluída na ficha técnica. E o jornalista Samuel Alemão ficou na redacção, mas sem referência ao trabalho de edição que também prestou.


reportagem

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Texto Luísa Rego Fotografia Yolanda Bettencourt

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Mais respostas à idade da solidão

Juntam mimos às ajudas mais elementares como as da Santa Casa. Uma chama-se Maria dos Afetos. A outra, Mais Proximidade, Melhor Vida. São duas novas organizações a trabalhar cá no bairro, para os idosos. Fomos vê-las em acção. Dona A. vive no segundo andar em prédio centenário, num dos becos da Mouraria. Chega-se lá subindo uns estreitos lanços de escadas de madeira. E é à entrada de um apartamento minúsculo e velhíssimo que aguardamos que a senhora termine a higiene, serviço prestado pelo apoio domiciliário da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A vida diária desta mulher de 65 anos, praticamente acamada, depende muito da equipa do Mais Proximidade, Melhor Vida (MPMV), um projecto inserido no Centro Social Paroquial de São Nicolau que apoia pessoas idosas residentes na zona da Baixa de Lisboa. “O foco é o combate ao isolamento”, não a caridade – explica Leonor Morais Barbosa, assistente social e gestora de caso no MPMV. Com um grupo de voluntários, tratam da aquisição de medicamentos, de apoio psicológico e de fisioterapia, que, no caso desta senhora, inclui pintar. E nada a faz mais feliz, diz ela. No âmbito da cinesioterapia, pinta quadros (flores, paisagens, eléctricos), uma paixão que descobriu há anos, no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, quando recuperava de uma queda da cama, numa madrugada em que quase perdeu a vida. O Mais Proximidade faz o acompanhamento de 122 utentes, sobretudo mulheres com uma média de idades de 86 anos,

reportagem

na freguesia de Santa Maria Maior. Foram sinalizados enquanto frequentadores do centro de convívio da paróquia de São Nicolau. A missão é “reduzir o impacto da solidão e isolamento das pessoas idosas residentes na Baixa e proporcionar maior qualidade de vida, para que os últimos anos sejam passados sem ansiedade, tristeza ou carências de qualquer natureza”. Agora também na Mouraria, o projecto vai acompanhar mais 21 pessoas com mais de 65 anos, financiado pelo PDCM – Programa de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria, implementado desde 2011 para reabilitação do bairro através da Câmara Municipal de Lisboa. O projecto MPMV começou a ser esboçado em 2006 quando Maria de Lourdes Miguel integrou a direcção do Centro Social e Paroquial de São Nicolau. Foi investigar a razão por que só 10% da população idosa da freguesia frequentava o centro... Onde estavam as outras pessoas?! Com a ajuda dos alunos de Serviço Social da Universidade Católica, fez-se então um inquérito porta-a-porta, tendo-se concluído que a grande maioria dessa gente oculta vivia em pisos elevados – quartos, quintos ou sextos andares – em prédios degradados, sem elevador ou luz nas escadas, sem vizinhança e, portanto, em situação de isolamento e solidão. Era urgente intervir junto destas pessoas. Nasceu então o projecto

Rute Lopes, a “maria dos afectos”, numa das visitas a Fernanda Antunes, para limpezas e companhia

Os Mais Sós, assente em voluntariado, que em 2010 se transformou no Mais Proximidade, Melhor Vida, já com uma equipa de cinco profissionais a tempo inteiro.

A “maria dos afectos”

Rute Lopes, 36 anos, é a Maria dos Afetos. Auxiliar de geriatria, trabalha no apoio domiciliário da Santa Casa da Misericórdia desde 2010. Tem um horário duro, que inclui noites, fins-de-semana e feriados. Porém, permite-lhe ter parte do dia para “acudir” a três pessoas idosas, as suas primeiras clientes, a quem disponibiliza um amplo lote de serviços de apoio domiciliário, com uma tabela à hora ou ao mês, sempre com bónus de afecto. Com site e página no Facebook, mas ainda sem sede física, a pequena empresa nascida no bairro no início deste ano tem visto a sua actividade crescer graças ao passa-palavra. Ao que diz, Rute cai na graça das suas clientes, sabe que “cada pessoa idosa, independentemente das suas limitações, gosta de sentir que é o centro das atenções. Por isso, também ofereço serviço de cabeleireira. Neste trabalho, criar empatia, é muito importante”. A Maria dos Afetos, que em

breve ganhará novo fôlego quando se concretizar uma parceria com a câmara municipal através do GABIP (Gabinete de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária) da Mouraria, é uma iniciativa que surgiu para responder a carências não preenchidas pelas estruturas de apoio a pessoas idosas, mas também para aproveitar as qualidades que Rute Lopes reúne. “Já sabia cozinhar (tive um restaurante), sei coser, trabalhei de cabeleireira, tirei o curso de geriatria, sei reconhecer doenças, aprendi as técnicas, um pouco de psicologia, enfermagem... Este trabalho é muito compensador. Claro que para começar qualquer coisa é preciso algum sacrifício. Mas quando gostamos do que fazemos dá-se sempre um jeito!”

Maria dos Afetos www.mariadosafetos.com E-mail: mariadosafetos@gmail.com Telefone: 963 140 146 Mais Proximidade, Melhor Vida www.mpmv.pt E-mail: geral@mpmv.pt Telefones: 213 425 268 / 967 258 892 / 967 257 550

Texto Marisa Moura Fotografia Teresa Melo

Obras a preço de amigo Já está no terreno a ADAO – Associação Dedos à Obra. Foi criada a pensar especialmente nos idosos mais desfavorecidos da Mouraria, mas todos podem requisitar os serviços, até noutros bairros. “As obras são feitas por gente mal-intencionada que quer ganhar muito e trabalhar pouco. Enganam até pessoas que sabem que são carenciadas”, diz Luís Lin, 57 anos, criado na Mouraria, filho de uma portuguesa e de um chinês imigrante que fabricava malas em casa, na Rua das Farinhas. É o presidente da ADAO – Associação Dedos à Obra e promete honestidade, qualidade e também segurança, já que os seus clientes são sobretudo pessoas idosos vulneráveis e há que garantir a idoneidade de quem entra nas suas casas. A ADAO é uma associação sem fins lucrativos e estava para nascer desde que começou a reabilitação da Mouraria, por ideia de João Meneses, coordenador do GABIP (Gabinete de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária) da Mouraria. Luís Lin

Luís Lin (à esquerda) e Rogério Carvalho trabalham juntos em várias obras, dentro e fora do âmbito da ADAO

foi convidado a liderar o projecto por ser do bairro e ter experiência na gestão de obras (tem sido comerciante de vestuário e restauração, mas sempre foi dado ao bricolage e gere obras de maiores dimensões para amigos). A demora de três anos ficou a dever-se, primeiro, à escolha da equipa certa, e depois ao processo de extensão da parceria à Junta de Freguesia de Santa Maria Maior que complementará o financiamento

da associação, até então suportado pelo PDCM – Programa de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria, da Câmara Municipal de Lisboa. Será através da ADAO que a junta realizará os seus serviços de pequenas reparações aos fregueses mais carenciados. Nove pessoas constituem esta equipa, que vê assim estendida a sua intervenção aos demais bairros da junta: Alfama, Castelo, Baixa e Chiado. O núcleo duro inclui mais dois homens da Mouraria: Manuel Carvalho, nascido no Largo dos Trigueiros e morador na Rua dos Cavaleiros, e Rogério Carvalho, de São Cristóvão. E também a mulher de Luís Lin: Rute Lopes, a Maria dos Afetos (ver texto acima). Com essa ligação, a associação põe em prática o primeiro dos seus objectivos listados no site: “Atender às dificuldades dos habitantes da freguesia (deficientes condições de habitabilidade, carência económica, exclusão social, problemas de saúde, dificuldades de acesso à educação...)”. ADAO – Associação Dedos à Obra | www.dedosaobra.pt E-mail: geral@dedosaobra.pt Telefones: 917 067 457 / 912 657 416 / 915 515 804


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reportagem

Texto Teresa Melo Fotografia Carla Rosado

25 de Abril: Somos pequen

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As crianças da Escola Básica da Madalena viveram em grande o 40.º aniversário da Revolução dos Cravos. Visitaram uma prisão, plantaram cravos, pintaram quadros na Casa da Achada, escutaram pessoas que viveram na ditadura – desde amigos do bairro como a Dona Ermelinda, ao político João Soares e à senhora que tornou esta revolução conhecida pelos cravos: Celeste Caeiro. A Associação Renovar a Mouraria acompanhou tudo neste blog n www.vamosfalardeabril.blogspot.pt


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nos mas não esquecemos!


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notícias ARM

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Guias do Mundo na Mouraria Sabichão, O Quiz da Mouraria

A Renovar desafiou os sócios a contribuírem para o reforço das receitas da associação, dinamizando eles próprios actividades. Dançar, cantar, cozinhar ou outra coisa qualquer. De dia ou de noite, na última sexta-feira de cada mês. A Ana Luísa Rodrigues, do ROSA MARIA, fez as honras da estreia trazendo à Mouradia o cantor e guitarrista brasileiro Celinho Burlamaqui. Intimismo e alegria marcaram essa noite, no dia 17 de Abril, em vésperas de Páscoa – numa quinta-feira, excepcionalmente.

Há ainda mais vida no Beco do Rosendo!

O “sabichão-mor” Alexandre Ovídio tem posto à prova os neurónios de equipas como os Bora Lá, os Cabrõezinhos ou os Falta Aqui Alguém, que são as três mais pontuadas. O primeiro campeonato arrancou no dia 12 de Março e tem sido uma animação! Acontece às quartas-feiras, das 19h30 às 24h, quinzenalmente. Cada inscrição custa cinco euros por pessoa, com jantar incluído.

Rebaldaria, a Jam da Mouradia

Improvisar é a palavra de (des)ordem de Afonso Castanheira (contrabaixo), Diogo Vida (piano) e Nuno Morão (bateria). É o trio residente na Mouradia – Casa Comunitária da Mouraria desde Abril, às sextas-feiras, pelas 22h, quinzenalmente. Entrada livre. Alterna com o já mítico Karaoke ao Vivo, cujo acompanhamento musical cabe a João Madeira, na guitarra ou no piano.

Toda a pessoa singular ou colectiva que queira apresentar uma ideia, concretizada ou por concretizar, tem antena aberta na Mouradia. “Meia palavra” pode bastar para encontrar os parceiros certos na hora certa - e este pode ser o sítio certo para esse encontro. O projecto Mais Proximidade, Melhor Vida foi o primeiro a apresentar-se, no dia 3 de Abril. Todas as quintas-feiras, entre as 19h30 e as 21h.

Quatro diplomas de calceteiro foram os presentes mais valiosos na festa do sexto aniversário da Renovar, no passado dia 22 de Março. No Beco do Rosendo, entre fados e sardinhas, subiram ao palco as pessoas que tornaram mais bonito e seguro este recanto do Poço do Borratém. Foram elas: Mamadou Raya Diallo (60 anos), Braima Candé (26), Mamadu Baldé (22) e o nosso vizinho José Bernardino (19 anos), entretanto integrado na equipa da associação. Numa parceria com a Santa Casa da Misericórdia, que identificou os formandos, e com a empresa de construção civil QCI, que deu a formação, melhorámos ainda mais este espaço, ao abrigo do projecto Da Casa Para o Beco, apoiado pelo programa municipal BIP/ZIP – Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa. Toxicodependência e urinol a céu aberto caracterizavam este beco onde está sedeada a creche Encosta do Castelo, da Santa Casa, e passou a estar, desde Dezembro de 2012, a nossa sede: Mouradia – Casa Comunitária da Mouraria. Agora, com as novas obras, ganhou melhor pavimento, canteiros e corrimões que melhoram a acessibilidade a moradores e visitantes. E uma churrasqueira comunitária que estará ao rubro neste arraial. A reabilitação do beco passa ainda pela intervenção (em curso) da EbanoCollective, uma associação sem fins lucrativos que actua em espaços públicos em diálogo com a arte e a pesquisa etnográfica de cada local específico. Lisboa ganhou mais uma reabilitação - e os quatro calceteiros, mais um visto no passaporte da empregabilidade. Para conheceres todas as actividades culturais e sociais da Associação Renovar a Mouraria, consulta: www.renovaramouraria.pt e procura por Renovar a Mouraria no Facebook. nota: O Mercadinho do Beco, que se realiza no último sábado de cada mês, só regressa no final de Julho. Em Junho, estamos em arraial todos os dias (consulta o programa das festas na página 14).

4 percursos, 6 línguas, 7 dias da semana: Mouraria das Tradições Mouraria do Fado Do Castelo à Mouraria Mouraria dos Povos e das Culturas

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Há visitas em português, espanhol, inglês, francês, italiano, alemão.

História e estórias com gente dentro

Informações e reservas: www.renovaramouraria.pt visitasguiadas@renovaramouraria.pt Telefones: +351 927 522 883 ou +351 218 885 203

A Associação Renovar a Mouraria, em parceria com o Instituto Marquês de Valle Flôr, acaba de colocar o bairro da Mouraria na rede internacional MygranTour – Rotas Urbanas Interculturais. É uma rede de guias migrantes que permite a cidadãos oriundos de outras partes do mundo mostrarem os bairros onde escolheram viver, tal como eles os vêem – convidando todos os que por lá passam a olhar para as ruas com outros olhos e a escutar novas histórias. O projecto nasceu em Turim em 2010, numa parceria entre o operador turístico italiano Viaggi Solidali, a fundação de empreendedorismo social ACRA e a Oxfam Itália, filial da rede anti-pobreza Oxfam. É agora alargado a nove cidades europeias: Nápoles, Roma, Milão, Florença, Génova, Paris, Marselha, Valência e Lisboa. Esta nova fase resulta do co-financiamento da União Europeia para formar vinte novos guias em cada uma destas cidades, para promover o respeito mútuo e valorizar as diferenças culturais entre países europeus de acolhimento e países não-membros de todo o mundo. Os novos guias da Mouraria são do Brasil, Congo, Irão, Bangladesh, Paquistão, da Polónia e da Ucrânia, entre outros países. Um convite a conhecer as mil e uma Mourarias, a não perder!

Jornalismo Comunitário: Que Voz tem a Mouraria?

A Marta Silva,fundadora do Largo Residências, ao centro, sentada. E quem tiver curiosidade em conhecer a equipa do ROSA MARIA está com sorte! Nesta foto estão a directora (Inês Andrade, sentada à mesa), o designer gráfico (Hugo Henriques, à porta), a delegada comercial (Susana Simplício, à porta no interior) e um dos primeiros voluntários da redacção: o jornalista António Henriques, entre a Marta e a Inês.

Uma tertúlia organizada pelo ROSA MARIA, no dia 19 de Fevereiro, teve como mote: Que Voz tem a Mouraria? A resposta não podia ter ficado mais clara. “O Largo e a Marta já saíram em trinta mil sítios na comunicação social, mas as pessoas ali do Intendente ficaram a conhecer pelo Rosa Maria o meu percurso. O jornal consegue realmente chegar a muita gente que não utiliza nenhum dos outros meios.” Palavras de Marta Silva, fundadora do Largo Residências e protagonista da secção Passeando Com na edição de Junho de 2013. A sala encheu-se de vozes e na mesa de oradores estiveram Ana Luísa Rodrigues (jornalista e membro fundador do ROSA MARIA), Cláudia Henriques (promotora do projecto de rádio Vozes do Intendente e investigadora no Centro de Investigação Media e Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa) e Vitorino Coragem (repórter freelancer, excolaborador do Diário de Notícias, da Folha de São Paulo, La Opinión de Granada e do extinto jornal lisboeta A Capital).


Rosa Maria nº 7 junho ‘14 · dezembro ’14 Fotografia Hélio Balinha Ilustrações por Alexandra Belo e Vitor Mingacho Depoimento recolhido por Ana Luísa Rodrigues

“Tinha sessões infantis e actividades para as crianças, sobretudo ao fim-de-semana, e eu ia lá sempre. Passava filmes do Walt Disney, dos irmãos Marx... o Charlot, o Bucha e Estica...”

Antigo Cinema Rex

“Era uma tasca, uma cervejaria modesta que não era nada do que é hoje. Vinha aqui lanchar com o meu avô. Ele conhecia, e eu fiquei também a conhecer o senhor Ramiro, que era galego. Havia aqui na Mouraria uma grande comunidade de espanhóis, sobretudo galegos.” Manuel Mozos recorda também a Cervejaria Portugal. Ficava no n.º 202 da Rua da Palma, junto ao Martim Moniz, onde hoje está uma loja de revenda: “Tinha algumas tertúlias. Foi aqui a única vez que vi, pessoalmente, o Almada Negreiros.”

Cervejaria Ramiro

O passeio começou numa esplanada do Intendente – porque o roteiro desenhado por Manuel é tecido com lugares de antes que já não existem, lugares de antes que continuam a existir e lugares que nasceram nos anos mais recentes. O realizador continua a aproveitar o bairro: “Frequento vários lugares novos que foram aparecendo, como a esplanada das Joanas, a Casa Independente, a Casa da Achada ou a Associação Renovar a Mouraria.”

Largo do Intendente

passeando com Manuel Mozos

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No número 28, onde morou, continua a ser a casa de família. “Esta era uma zona mais pacífica do bairro”, recorda Manuel, que começa a enumerar os estabelecimentos que existiam à volta: “Aqui era uma carvoaria, havia também uma barbearia, uma torrefacção de café...” Também permanecem as memórias mais sensoriais, como a do vento encanado que circulava na rua. A rua era lugar de brincadeira. “Jogávamos à bola, à apanhada”, conta. “Mas naquela altura não se podia jogar à bola na rua e havia sempre o medo de vir a polícia e tirar a bola.” A autoridade também proibia o andar descalço – por isso as varinas andavam sempre à coca. À passagem pela Igreja do Socorro (o Coleginho), assinala: “Aqui fui baptizado”, sorrindo à declaração solene.

Rua Marquês de Ponte de Lima

“Fica na rua do Terreirrinho, n.º 11. Foi um tio meu que me falou dele e me mostrou, era eu ainda miúdo. E nunca mais me esqueci.”

O

prédio mais pequeno de Lisboa

“Quando era miúdo vinha aqui trazer as meias da minha avó e das minhas tias para arranjar e aproveitava para comprar cromos e revistas aos quadradinhos – Falcão, Tintin, Major Alvega, FBI...” Anos depois, a papelaria do n.º 25 da Rua dos Cavaleiros continuava como ponto de compra, mas de jornais. Na porta ao lado, o Guarda-Roupa Jorge, onde se alugavam fatos de Carnaval e fatos para a procissão da Senhora da Saúde.

Papelaria da dona Otília

16 Rosa Maria nº 7 junho ‘14 · dezembro ’14


“Manel, então como vai a mãe?”. A pergunta é lançada pela senhora sentada a apanhar sol no Largo da Rosa. “Ah, como está? Vamos andando, obrigado. E a sua irmã?”. O Passeando Com é interrompido para um estar mais prolongado, não só um cumprimento circunstancial. Afinal, dona Isabel conhece Manuel desde criança – desde a época em que grande parte do mundo infantil se desenrolava entre o Largo da Rosa e a Igreja do Socorro (Coleginho). Como milhares de lisboetas, Manuel Mozos nasceu na Associação dos Empregados do Comércio, em São Cristóvão. Mas, ao contrário de quase todos, continuou no bairro por muitos anos. Viveu na Rua Marquês de Ponte de Lima até aos 25 anos, na casa da família materna. Não é difícil perceber como esta vivência o inspirou enquanto realizador de cinema. Com uma obra aclamada e considerada singular, Mozos fez parte da primeira geração de realizadores portugueses formados pela Escola Superior de Teatro e Cinema, que marcou o cinema português a partir dos anos 90. Tem realizado ficção e documentário e também foi responsável pela montagem de filmes de outros realizadores. A relação íntima com Lisboa e os claros-escuros de quem nela vive são recorrentes nos seus filmes. Da Mouraria, em particular, transportou coisas para o ecrã. “Habituei-me a filmar em espaços pequenos e nunca tive dificuldades... Tal como inventava brinca-

deiras em casas e divisões pequenas”, conta Manuel. Às vezes levava nomes: o Café Brilhante, nas escadinhas de São Cristóvão, serviu para baptizar um café-cenário de Xavier, o seu mais mítico filme. Quando passa junto à Leitaria Moderna, do Largo de São Cristóvão, relembra a sorrir: “Fiz parte de uma banda de rock nos finais dos anos 70, a que chamámos Leitaria Moderna em homenagem ao estabelecimento.” A banda não vingou – mas a leitaria ali continua de portas abertas. No imaginário de Manuel continuam vivas as imagens das ruas povoadas por varinas, lavadeiras, tabernas, galegos, carvoarias, das bilhas de leite que chegavam numa carroça ou da senhora que vendia figos no Verão. Mas o seu filme do bairro é construído com passado e presente, tal como os lugares que escolheu para este roteiro afectivo. E de afectos se tratam. Nascido numa família luso-espanhola, o bairro ajudava à identidade de Manuel Mozos: “Cá chamavam-me ‘o espanhol’. Em Espanha chavam-me ‘o português’. Então dizia que era da Mouraria e pronto.”

রোউজা মারিয়া

রোউজা মারিয়া

Rosa Maria n.º 7 junho ‘14 · dezembro ’14

Para estarem mais resguardados e jogar à bola à vontade, subiam ao Pátio do Coleginho. “Aqueles portões serviam de baliza. Também por aqui jogámos muito hóquei-em-patins – sem patins!”

Rosa Maria n.º 7 junho ‘14 · dezembro ’14

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Pátio do Coleginho

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Rosa Maria n.º 7 junho ‘14 · dezembro ‘14

reportagem

Texto Teresa Melo Fotografia Carla Rosado

Uma escola,

muitas nacionalidades

Na Mouraria coexistem 51 nacionalidades, estando 16 delas representadas na escola básica da Madalena. Fomos ver como se gerem diferentes culturas e assistimos às aulas de português para crianças imigrantes. Umaya, uma menina bengali de 9 anos, e Ioana, romena de 11 anos, vizinhas e colegas, descrevem episódios divertidos quando põem em prática o novo idioma. “O meu pai, quando ia à loja do pai da Umaya, chegava e, na língua dele, apontava e dizia as coisas que queria, mas ninguém o entendia!”, conta Ioana no meio de muitas risadas. Ambas frequentam as aulas de Português Língua Não-Materna da escola básica da Rua da Madalena, onde 60% da população estudantil é constituída por 16 nacionalidades. Estas aulas promovem “maior igualdade no acesso e sucesso de todos os alunos”, explica a professora Carla Carvalho, sempre empenhada em “fazê-los compreender que a aprendizagem da língua portuguesa não deve ser entendida como uma imposição”, mas como “um meio poderoso para se expressarem”. É assim desde 2011 na EB1 n.º 75 da Madalena. O desafio está na criação de metodologias que se centrem não só na formação mas também na promoção da interculturalidade. Entre as soluções estão, por exemplo, os almoços vegetarianos especialmente pensados para as crianças hindus. লেখিকা : তেরেসা মেলু চিত্র-গ্রাহক : কার্লা রসাদু অনুবাদক : ম�োহাম্মদ মঈন উদ্দিন আহমেদ ।

একটি বিদ্যালয়,অনেক জাতীয়তার

ম�ৌরারিয়াতে ৫১ টি জাতীয়তার ল�োকজন বসবাস করেন। তাদের মধ্যে ১৬ টি জাতীয়তার অভিবাসীরা মাডালেনা প্রাথমিক বিদ্যালয়ে পড়াশুনা করেন। আমরা সেই স্কুল এ গিয়েছিলাম দেখার জন্য কিভাবে তারা এই ভিন্ন রকম সংস্কৃতির ল�োকজনকে পর্তু গিজ ভাষা শিক্ষার ক্ষেত্রে এবং তাদের নিজস্ব সংস্কৃতির চর্চা করতে সহয�োগিতা করে থাকেন।

(শিশু-কিশ�োরদের জন্য যে পর্তু গিজ ভাষা ক্লাস টি দেয়া হয় তা তাদের পিতা মাতা কেও ভাষা শিখাতে সহায়ক কারণ অভিবাসী পরিবারের সন্তানেরা তাদের পিতা-মাতার আদর্শ অনুবাদক রূপে সহয�োগিতা করতে পারে)

উদাহরণ স্বরূপ উমায়া এবং ইযনা এই দুজন শিক্ষার্থী এর সাথে কথা হয় আমাদের উমায়ার বয়স ৯ বছর সে বাঙালি আর ইউনা এর বয়স ১১ সে হল�ো র�োমানি,তারা ই স্কুল এ একসাথে পড়াশুনা করছে এবং তারা প্রতিবেশী ও বটে,তাদের সাথে কথা হলে ইযনা হাসতে হাসতে তাদের দৈনন্দিন জীবনের একটি ঘটনা বলে,ইযনা বলে তার বাবা মাঝে মাঝে উমায়ার বাবার দ�োকানে যেতেন এবং বিভিন্ন দৈনন্দিন তৈজসপত্রাদি কেনার চেষ্টা করতেন কিন্তু উনি পর্তু গিজ ভাষা জানতেন না তাই ইযনার বাবার আঙ্গোল দিয়ে দেখিয়ে বলতেন যে আমার এই জিনিসটি লাগবে কিন্তু উনি র�োমানি ভাষায় বলতেন তাই উমায়ার বাবা কিছু ই বুঝতেন নাহ কারণ উনিও পর্তু গিজ ভাষাও জানতেন নাহ র�োমানি ভাষাও জানতেন নাহ তাই অনেক সময় তাদের মধ্যে সহজ সাধারণ জিনিস গুল�ো নিয়ে বুঝাপরা করতে অনেক কষ্ট প�োহাতে হত । বর্তমানে মাডালেনা প্রাথমিক বিদ্যালয়ে সর্বম�োট ১৬ টি জাতীয়তার শতকরা প্রায় ৬০ ভাগ অভিবাসী শিক্ষার্থীরা পড়াশুনা করছেন বিভাগীয় শিক্ষিকা কার্লা কার্ভাল্হু এর সাথে কথা হলে উনি

As estratégias são distintas e funcionam em duas aulas todas as terças e quintas. Das 11h30 às 12h30, os mais novos exploram a oralidade e identificam fonemas. Desenhar, conversar e ouvir cantigas e lengalengas “estimula os primeiros passos para o domínio da língua e, assim, mais fácil será chegar à sua escrita”, refere a professora.

Tradutores não faltam

Ujjawal, que vem do Bangladesh, tenta, entusiasmado, descrever as suas férias de Páscoa. “Eu vi muitas luzes e comi chocolates!”. Ali todos ajudam. Por exemplo, a Ayeesha (bengali de sete anos que chegou recentemente a Portugal) tem tradução simultânea dos colegas conterrâneos quando não entende as perguntas da professora. No grupo da tarde, para os mais velhos, as lições são das 14h às 16h e focam a construção frásica e interpretação das palavras. A realização de exercícios de audição ligados à numeração ou à associação de imagens é uma prática frequente. A gramática é também alvo de mais atenção, já que no próximo ano lectivo os meninos imigrantes que estejam em Portugal há mais de um ano já não serão dispensados do exame nacional da quarta classe.

বলেন,এই বিদ্যালয়ে অধ্যায়নরত সকল শিক্ষার্থী এর প্রতি সমান মন�োয�োগ এবং সমান অগ্রাধিকার দেয়া তাদের কে ক্লাস্সে অনুশীলন কালে সর্বাধিক চেষ্টা করা হয় যাতে তাদের পক্ষে ক্লাস্সের সাবজেক্ট সম্পর্নু রকম বুধগম্য হয়,এর জন্য মাডালেনা প্রাথমিক বিদ্যালয় ২০১১ তে এবি নং : ৭৫ নামক একটি নতু ন পদ্ধতি সৃষ্টি করা হয়েছে যাতে করে তাদের যেন ক্লাস্সে অনুশীলন কালে তাদের সকল সাবজেক্ট এর মর্মার্ত্থ বুঝতে কষ্ট নাহ হয় এই ধরনের মেথড শুধু মাত্র ভাষা শিক্ষা উন্নতি করণ ই নই আমদের সমাজ বেবস্থা এবং বহুজাতিক সংস্কৃতি এর উন্নয়ন সাধনে ও উপকারে আসতে পারে যেমন আর�ো কিছু উদাহরণ স্বার�োপ দেয়া যেতে পারে উদাহরণ: হিন্দু ছাত্র-ছাত্রীদের কে সকালের নাস্তা হিসেবে নিরামিষ খাবার দেয়া যেতে পারে। এরকম আর�ো কিছু মেথড তারা অনুশীলন করছেন । কখন�ো অনুবাদের প্রয়োজন হলে অনুবাদকের অভাব হবে নাহ প্রতি মঙ্গল এবং বৃহস্পতি বারে সকাল ১১:৩০ থেকে দুপর ১২: ৩০ টা পর্যন্ত পর্তু গিজ তাত্ত্বিক ক্লাস হই তার পর ম�ৌখিক ক্লাস হই যেমন কবিতা, গান,চিত্রাঙ্কন, ক�ৌতু ক, ইত্যাদি। এভাবেই সকল ছাত্র ছাত্রীদের কে উত্সাহিত করা হই তাদের নিজেদের সংস্কৃতির মজার বিষয় গুল�ো কে পর্তু গিজ এ লেখার জন্য এ তে করে শিক্ষার্থী রা খুব সহজে পর্তু গিজ লিখতে শিখে। পর্তু গিজ ভাষা শিক্ষার বিভাগীয় প্রধান কার্লা কার্ভাল্হু এর সাথে অভিবাসীদের জন্য পর্তু গিজ ক্লাস সম্বন্ধীয় অনন্য তথ্য এবং বিভিন্ন কুশলাদি সম্পর্কে আলাপকালে তিনি জানান যে,প্রতি মঙ্গলবার এবং বৃহস্পতি বার সকাল” ১১:৩০ হতে ১২:৩০” পর্যন্ত শিশু-কিশ�োর দের পর্তু গিজ ভাষা শিক্ষা দেয়া হয়। তদুপরি ু ,এই ক্লাস সমূহে তারা বিভিন্ন রূপে অনুশীলন করে থাকেন যেমন,বিভিন্ন রকম শব্দ উচ্চারণের মাধ্যমে তাদের সঠিক ভাবে পর্তু গিজ বিভিন্ন শব্দ উচ্চারণ শিখান�ো হয়,তাদের কে চিত্রাঙ্কন এর মাধ্যমে বিভিন্ন জিনিস পত্রের সাথে পরিচিত করান�ো হয়,তাদের কে সংগীত চর্চার মাধমে অথবা প্রত্যেক দেশের বিভিন্ন ক�ৌতক শুনান�ো এবং তাদের কাছ থেকে শুনার মাধ্যমে তাদের কে একে অন্যের সাথে অল�োচনায় মত্ত করিয়ে পর্তু গিজ ভাষার অনেক চর্চা করান�ো হয় আর এভাবেই তারা ধীরে ধীরে পর্তু গিজ ভাষায় লিখতে ও পড়তে শিখে যায়। তিনি আর�ো বলেন,অনেক শিক্ষার্থী কে তাদের জীবনের বিভিন্ন রকম অভিজ্ঞতার কথা বলতে বলা হয়ে থাকে এমনি একজন বাংলাদেশী পর্তু গিজ ভাষা শিক্ষার্থী উজ্বল,তার কাছে তার বিশেষ একটি অভিজ্ঞতার কথা জানতে চাওয়া হলে সে বলে যে স্কুল একটি পাস-কওয়ার (ইস্টার-সানডে) অনুষ্ঠানে সে অংশগ্রহন করে সেখানে সে অনেক আল�ো দেখে যা তাকে অভিভূ ত করে আর এই অনুষ্ঠানে সে বিভিন্ন রকম চকলেট খায়। সে আর�ো জানায় যে, সেখানে সবাই একে অপরকে সহয�োগিতা করে যেমন, আয়েশা যার বয়স ৭ বছর সে ও বাংলাদেশী (সে ইদানিং পর্তু গাল

Integração contra O abandono escolar

O diálogo é uma prioridade. Por um lado, explicar em português as suas rotinas e costumes perante os colegas obriga o aluno a colocar em prática o que foi aprendendo, exercitando a capacidade linguística. Por outro lado, desperta-os para o respeito pela multiculturalidade tão enraizada na Mouraria. Os objectivos das aulas estendem-se aos pais, convidados a participar nas actividades extracurriculares, como as festas de Natal ou o final do ano lectivo. Assim estimulam-se o combate ao abandono e ao insucesso dos seus descendentes e o reforço da formação profissional, facilitando a integração e a igualdade dos imigrantes na comunidade portuguesa. “No fundo, é não desistir dos miúdos”, sublinha a professora Carla. “Mostrar que acreditamos mesmo neles e valorizar as suas conquistas. A escola é isso.”

As aulas para as crianças ajudam também os pais, pois nas famílias imigrantes os filhos são os principais tradutores

এ এসেছে তাই ভাষা জানে না) আয়েশা স্বভাবতই অনেক কিছু জানে না ও সবার কাছে জিগ্গেস করতেছিল এটা ওটা কি আর অন্য সবাই তাকে অনুবাদ করে বলছিল যে এটার নাম। এছাড়াও,শ্রেণী-কক্ষে অনেক সময় তারা যদি শিক্ষিকার বিভিন্ন প্রশ্নের মানে বুঝতে না পারে তখন শিক্ষার্থীরা একে অন্যের সহয�োগিতা নেয়। প্রাপ্ত বয়স্কদের জন্য ক্লাস শুরু হয় দুপরু ২:০০ টা হতে বিকেল ৪:০০ পর্যন্ত। এই ক্লাস এ প্রাপ্ত বয়স্ক অভিবাসীদের পর্তু গিজ ভাষায় বাক্য গঠন এবং বাক্যের সংমিশ্রন শিখান�ো হয় তাছাড়াও,বিভিন্ন শব্দের মাধ্যমে বাক্যের সঠিক উচ্চারণ শেখান�ো হয় এবং বিভিন্ন ছবির মাধ্যমে দৈনন্দিন বেবহৃত তৈজস্পত্রাদির নাম শেখান�ো হয় এবং সংখ্যার পরিচয় ও বেবহার শেখান�ো হয় সর্বপুরি ব্যক্যারণ ও একটা খুবই প্রয়োজনীয় অধ্যায় যা তাদের কে শিক্ষা দেয়া খুবই দরকার কারণ অভিবাসী শিশু-কিশ�োররা ব্যক্যারণ এর বিভিন্ন ধাপ গুল�ো বুঝে উঠতে পারছে নাহ কারণ তাদের থেকে আমাদের ব্যক্যারণ একটু ভিন্ন আর এর জন্য তারা ঠিক মত আমাদের ব্যক্যারণ গুল�ো কে উপলব্ধি করতে পারছে না এর দরুন তারা পরীক্ষায় তেমন একটা ভাল�ো করতে পারছে নাহ তাই হয় ্তবাহ আগামী বছর ৪র্থ গ্রেড(বিদ্যালয়ের পাঠশ্রেণী) উত্তীর্ণ হতে পারবে নাহ। (উল্লেখ্য: আমাদের দেশে যেমন প্রাইমারী বিদ্যালয়ের সমাপনী পরীক্ষা শেষ হয় ৫ম শ্রেনীর পর পর্তু গাল এ হয় ৪র্থ শ্রেনীর পর এবং এই পরীক্ষা টা জাতীয় ভাবে হয়) স্কুল থেকে ঝরে পড়া শিশুদের জন্য করণীয় আল�োচনা সবচেয়ে গুরত্ত্বপূর্ণ ধাপ হতে পারে ,প্রত্যেক কেই দায়িত্ব নিয়ে তাদের সাথে আল�োচনা করা উচিত। বন্ধু দের উচিত তাদের দৈনন্দিন কার্যক্রম এর বেখ্যা এবং কিভাবে পর্তু গিজ ভাষার অনুশীলন করা হয়ে থাকে স্কুল তা বর্ণনা করা তাদের কাছে যারা নিয়মিত স্কুলে যায় না অথবা সম্পর্ণ রূপে স্কুল ত্যাগ করে ফেলেছে। তাতেই করে হবে কি তারা ও ভাষা শিক্ষার ক্ষেত্রে আগ্রহী হবে আবার অন্য দিকে তাতে হবে কি তারা তাদের অন্য দেশের বন্ধু দের সাথে ও য�োগায�োগ করতে পারবে এতে করে আমাদের ম�ৌরারিয়া তে বসবাস করি সকল বহুমাত্রিক জনগুষ্ঠি নানান জাতির ও বহুসংস্কৃতির বিকাশ ঘটবে ভাষা শিক্ষার ক্ষেত্রে পিতামাতার ভূ মিকা অনস্বীকার্য, তাদের কে বিদ্যালয়ের বিভিন্ন আচার অনুষ্ঠানে আমন্ত্রণ জানান�ো যেতে পারে যেমন বড়-দিনের(খ্রীষ্ট মাস) অনুষ্ঠানে অথবা বার্ষিক পর্ক্ষার শেষে ফলাফলের দিনে ,এতে করে তারাও উদ্দীপিত হবেন এবং নিজেদের সন্তান দের শেখার জন্য উদ্দীপ্ত করবেন এবং উনারাও সামাজিক ভাবেই পর্তু গিজ সমাজে মীসার সুয�োগ পাবেন। উপসংহারে, শিক্ষিকা কার্লা কার্ভাল্হু বলেন এই প্রচেষ্টার মূল লক্ষ্য হল�োই অভিবাসী শিক্ষার্থী রা যেন কালের যাতাকলে পিষে না যায় আমরা বিশ্বাস করি যে তারা তাদের জীবনের মূল লক্ষে প�ৌছাইতে পারবেই আর এর জন্যই আমরা স্কুল এ আছি নিজের হাতে তাদের সুন্দর ভবিষ্যত গড়ার জন্য ।


র�োউজা মারিয়া

Texto Paula Cosme Pinto /Expresso Fotografia Nuno Botelho /Expresso

Uma Chave para a

Vida Uma casa e seis visitas mensais

Perceberam que o encaminhamento para centros de acolhimento não funcionava nos casos de maior exclusão social. Foi a pensar nessas pessoas que surgiu o programa de reabilitação É Uma Casa, baseado no modelo norte-americano Housing First. Além da equipa que todos os dias palmilha o bairro, foram atribuídas sete casas individuais. A casa é apenas o ponto de partida e as regras são poucas: têm de contribuir com 30% de quaisquer rendimentos que tenham ou venham a ter e aceitar seis visitas por mês da equipa. Nasceu assim um novo projecto Housing First em Lisboa, a primeira cidade europeia a adoptá-lo, pela mão da Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS). Desde 2009, esta associação já tirou da rua 80 pessoas com doença mental e pretende reabilitar outras 400 ao abrigo da Estratégia Europa 2020, da Comissão Europeia.

“Deve estar cheia de pulgas”

M. é uma das dez pessoas apoiadas pela Crescer na Maior. Em troca, tem de aceitar seis visitas por mês e contribuir com 30% de rendimentos que venha a obter.

“Pensava que ia morrer na rua, ainda não acredito.” M. roía as unhas encardidas na tentativa de se acalmar, encolhido contra o vidro da carrinha da associação Crescer na Maior. Consigo levava um cobertor atado com uma corda e uma mochila. Ao fim de dezoito anos na rua, era só o que possuía. Agora tudo mudava, ia ter uma casa só sua. Estávamos em Outubro de 2013. M. era um dos 47 sem-abrigo sinalizados pela Crescer na Maior, associação que, no fim de 2012, recebeu um desafio do Gabinete de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária da Mouraria: ajudar aquelas pessoas a saírem da rua. “A experiência de terreno desde 2003 dizia-nos que a maioria destes casos tinha consumos de substâncias e patologia mental. Era prioritária a presença de um psiquiatra na rua”, conta Américo Nave, coordenador da equipa. “Depois questionámos o paradigma: são as pessoas que não querem sair da rua ou são as estruturas existentes que não se adequam?”

Num destes sete casos, só depois da entrada na casa é que a equipa da Crescer na Maior percebeu que o utente tinha um pé partido, fruto de uma agressão na rua. “Fizeram radiografia e estava partido. Só me deram uns comprimidos”, conta H., que hoje precisa de ajuda para andar. E quando uma segunda pessoa precisou de internamento compulsivo, também a polícia reagiu mal à autorização oficial do delegado de saúde. “Isto vai ser lindo. É sem-abrigo, deve estar cheia de pulgas. Pô-la no carro onde andam os turistas que são roubados não tem jeito nenhum”, argumentou um dos agentes naquela tarde de Outubro de 2013. Mais uma vez, também no hospital o internamento durou pouco. Testemunha o director do serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), António Bento: “Às vezes fico com as pessoas nos braços porque não há quem lhes queira dar acompanhamento. Já vi muitos voltarem para a rua e morrerem.” O psiquiatra, que em 1994 fundou a primeira equipa de rua da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), acredita que “começar por tirar as pessoas da rua e pô-las numa casa, autonomamente, é um bom começo”, mas rejeita esta solução “como uma panaceia”. E questiona: “O que é feito da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo, que deu tanto alarido em 2009?” O Censos 2011 apontava 241 casos de sem-abrigo em Lisboa, mas a SCML contabilizou 852 em 2013. Mais de metade dormia na rua, havendo vagas nos albergues.

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Eram casos de exclusão social extrema. Alguns, nas ruas da Mouraria há mais de vinte anos. Uma casa é o ponto de partida neste modelo de reabilitação social para muitos ainda desconhecido: o Housing First. Contas simples

Os sete casos da Mouraria [são dez entretanto] contaram em 2013 com o financiamento total do município de Lisboa. Em 2014, o apoio camarário ao projecto continua, estando a Crescer na Maior também em conversações com o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) e a Administração Regional de Saúde (ARS) e a identificar outros possíveis investidores. “Estamos atentos aos fundos europeus e queremos sensibilizar algumas instituições privadas”, revela Américo Nave, que pretende alargar o projecto a mais oito casos urgentes ainda este ano. “Assumimos um compromisso com estas pessoas – e a última coisa que pode acontecer é terem de voltar para a rua, onde já perderam tanto tempo das suas vidas.” As contas são simples: segundo dados do SICAD, o custo médio mensal por utente num centro de acolhimento pode rondar os 927 euros. No caso do projecto É Uma Casa, cada utente representa um custo de 379 euros. Conclui Américo Nave: “O mais importante nem são os valores, é o facto de se resolver a génese do problema.”

Testemunhos: “Não me ficaram apenas com o dinheiro, ficaram-me com a dignidade.” J., 50 anos, mais de vinte a viver na rua (nigeriano enganado à chegada a Portugal sob promessa de emprego na construção civil; roubaram-lhe a documentação pessoal). “Uma bola de neve... Ia a entrevistas, mas dar como morada um albergue não cai bem.” S., 50 anos, catorze na rua (professor de golfe de Cascais que, numa situação de desemprego e divórcio, se refugiou em drogas e perdeu tudo). “Quando saía do Júlio de Matos, ninguém me propunha nada e eu voltava para a rua.” P., 30 anos, dez na rua (tentou viver sozinha aos 13 anos após ter ficado órfã de mãe e tido má relação com a madrasta, desconhecendo-se então a sua esquizofrenia). “Quando recebo o subsídio, a prioridade passou a ser comprar comida. Já não tinha amor pela vida.” M., 42 anos, dezoito na rua (toxicodependente desde a morte do pai, a mãe expulsou-o de casa no dia em que M. assumiu um roubo do irmão, toxicodependente desde a mesma altura).

Nota l Este artigo é uma versão resumida da reportagem de oito páginas publicada na Revista do jornal Expresso no dia 15 de Março de 2014, com texto de Paula Cosme Pinto e fotografia de Nuno Botelho. Incluía quatro caixas com casos de pessoas alojadas que o Expresso acompanhou durante sete meses.


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reportagem

Texto Marisa Moura Fotografia Carla Rosado

PRÉDIOS DA MOURARIA:

TRISTE FADO

“A metáfora de um país” O Largo das Olarias alberga prédios decadentes onde habitam pessoas em situação decadente. A reabilitação está prestes a começar. Mas como chegou a este ponto? Eis a história, contada por Maria Joana Figueiredo, cineasta e herdeira de imóveis que já vão na sétima geração e que foram vendidos em Janeiro. Um caso de polícia… e psicologia.

destruiu o telhado. “Se eles tivessem feito logo as obras não tinha chegado a este ponto”, comenta Luís, recordando o dia em que o tecto da cozinha abateu. “Sei que receberam o dinheiro do seguro, mas aquilo nunca ficou como deve ser. O mestre-de-obras dizia que, enquanto não tivesse ordem para avançar, o trabalho ficava provisório. As pessoas começaram a ir embora. Uns faleceram, outros tinham casa na terra e foram para lá.” A vida fica dependente da casa. Evitam-se até passeios mais demorados com medo que os habituais curtos-circuitos desencadeiem algum incêndio. Versão dos senhorios: “Aquilo ficou assim porque vivia lá um senhor com problemas mentais e houve um grande incêndio. A família pagou um balúrdio pelo arranjo, mas como todos acham que os senhorios são os maus da fita e são para extorquir, cobraram mas fizeram um péssimo trabalho”, garante Joana.

Do tetravô Figueiredo à inquilina ilegal

Alice e Luís Amoedo, à janela, são dos poucos moradores do prédio vendido pela família Figueiredo ao Grupo Libertas

Sempre que chove, há noites em claro no Largo das Olarias. E lágrimas, até. “Ele ainda vai dormindo, mas eu não consigo”, conta Isabel Amoedo, 82 anos, doente renal, choro fácil. “De vez em quando, estou a dormir e pum!, cai uma viga lá em cima. Ou enche o bidão e ensopa-nos a cama”, acrescenta Luís Amoedo, um doente cardíaco de 84 anos que, sobe, incansável, ao andar de cima para ajeitar o arsenal de oleados, bidons e mangueiras que drenam as águas para a rua. Assim evitam danos ainda maiores no penúltimo andar que este casal arrendou há 45 anos – ela costureira, ele serralheiro

Luís Amoedo numa pausa durante a cansativa subida ao telhado

– “nos tempos do senhor tenente-coronel [senhorio], com tudo arranjadinho”, por 2200 escudos mensais (11 euros, contra os cem euros actuais). Hoje, com reformas que somam 550 euros (donde ainda ajudam uma filha desempregada), cada dia é uma luta e as noites pesadelos. Entre os senhorios, semelhantes inquietações. “Levantava-me com o barulho da chuva, a ter de tomar Valdispert. Queria arranjar o que conseguisse. Cheguei a subir ao telhado do 74, feita maluca, a tentar limpar o algeroz”, conta Maria Joana Figueiredo, 36 anos. É tetraneta do homem que mandou construir, no século XIX, vários prédios no Largo das Olarias, incluindo a morada do casal Amoedo e o número 74, que inclui um charmoso jardim, e que foram vendidos em Janeiro ao fundo imobiliário Sustentoásis. Todos em elevado estado de degradação, como aliás mais de 150 edifícios deste bairro lisboeta de seis mil residentes. Na capital do país, 14% dos edifícios estão degradados e 5% desocupados, segundo um levantamento de 2012 da Câmara Municipal de Lisboa que estimou serem necessários oito (indisponíveis) milhões de euros para as respectivas obras, segundo anunciou o vereador do urbanismo Manuel Salgado em Maio desse ano. O vazio instalou-se no prédio habitado pelos Amoedo há cerca de uma década, desde que um incêndio

As habitações vazias ensombram o largo, mas uma delas chegou a ser ocupada em 2004, sem autorização das proprietárias. E quem a ocupou? A inconformada Joana, filha de uma delas. “Foi abuso de poder, como diz a minha mãe.” Montou um atelier por onde passaram trinta artistas e reanimou o jardim com uma horta ao cuidado da vizinha Adriana Freire, da Cozinha Popular da Mouraria. Passou também a mostrar os imóveis a potenciais investidores. Há três séculos, o tetravô de Joana (Macário Figueiredo, um comerciante de sapatos a quem, reza a lenda, saiu a lotaria por duas vezes) investiu em imóveis e numa educação esmerada para as três filhas, que tocavam piano e falavam francês. A família destacou-se nas letras, neste país que ainda hoje tem os mais elevados índices de analfabetismo da Europa. Mas tal não impediu as dificuldades financeiras, que culminariam na degradação dos edifícios, ao ponto de começarem a chegar intimações judiciais para obras coercivas. Isto, nos tempos do avô de Joana, ia então o património na quarta geração e corria a década de 90 do século passado. “Ele era militar e tinha a polícia a bater-lhe à porta”, recorda esta descendente, autora do documentário Ai Mouraria... Curtas do Bairro, de 2013, e aspirante à realização de um filme sobre o património da família. “Isto é a metáfora de um país.”

Desconfiança, depressão e síndrome de avestruz

A sinopse: uma família de militares e médicos em que os herdeiros são maioritariamente mulheres. Duas foram roubadas pelos maridos, logo na segunda geração. Desconfiança. Casamentos com separações de bens obrigatórias. Depois, a tragédia: um médico vê o filho varão de três anos morrer de pneumonia. Depressão e excessiva protecção dos próximos filhos. Desconfiança e negação instalam-se no ADN da família. “A minha avó morreu em 1986 e desde então a casa nunca foi mexida! É o esquema da avestruz. Bloqueio. Nisto tudo, se eu dizia alguma coisa, respondiam-me: ‘não arranjes problemas’. Casas da família vazias e nós a pagarmos rendas noutros sítios. ‘Bora lá ser colectivistas!?’ Não. As pessoas não conseguem organizar-se nem sequer dentro das suas próprias famílias.” O pesadelo toca a todos, senhorios e inquilinos. “Já recebi ameaças por telefone”, garante Joana. Isto após a família tentar um aumento ao abrigo da polémica


র�োউজা মারিয়া

A família chegou a tentar fazer obras no início da década de 2000, ainda nos tempos do “senhor tenente-coronel”. Tentaram através do Recria – o primeiro de vários programas camarários anunciados em vários anos (Recria, Recriph, Rehabita e Solarh) e que, na Mouraria, tiveram os mais baixos índices de execução, segundo um relatório de 2013 realizado pelo ISCTE/Dinamia no âmbito da avaliação ao Programa de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria, implementado pela Câmara Municipal de Lisboa desde 2010 neste bairro, onde desde os anos 80 existem gabinetes de reabilitação local, como o actual Gabinete de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária (GABIP) da Mouraria, da Câmara Municipal de Lisboa. O valor a suportar, apesar da comparticipação, continuava alto para a disponibilidade da família.

Vários investidores visitaram os prédios nas Olarias. “Chegaram a oferecer dois milhões de euros, mas a família insistiu em manter o património.” Mas eis que no passado mês de Janeiro são vendidos três prédios, incluindo o do jardim. Comprou-os, por cerca de 1,5 milhões de euros, o fundo de investimento Sustentóasis, que inclui capital francês e que se estreia num bairro histórico. “Foram os únicos que olharam para aquilo com algum amor”, constata Joana. O que ali nascerá? “Haja o que houver, haverá sempre o jardim”, garantiu ao ROSA MARIA a gestora de projecto Honorina Silvestre, do grupo Libertas, responsável pela gestão técnica do projecto, e parte do investimento. Mais: “A proposta que temos na câmara é para uma área residencial, não é para um hotel”, assegurou a porta-voz. Está tudo em aberto, em discussão na câmara municipal. Por outro lado, na junta de freguesia já estão reservados 500 mil euros para aplicar daqui a dois anos na reabilitação desta área. Por executar estão também os delicados realojamentos dos inquilinos. “Nunca mais nos disseram nada. Dinheiro, não queremos. Queremos um buraco para bastar até Deus nos levar”, afirmaram os Amoedo em Maio. Terminou, todavia, a primeira parte deste filme cujo desfecho (a venda a estrangeiros) se afigurava inevitável. “As coisas foram-se arrastando: a câmara foi fechando os olhos, os senhorios recebendo algumas rendas, os inquilinos conseguindo casas por vinte euros... Os problemas têm de ser vistos de todos os ângulos. Toda a gente tem a sua verdade”, diz uma das vendedoras. Verdades que se passaram na Mouraria, mas que se podiam ter passado em qualquer outro bairro de Portugal.

“Isto é Portugal no seu melhor” Houve pânico na Mouraria no dia do temporal que fez cair pedaços da cobertura do Estádio da Luz e adiou um dérbi, em Fevereiro. E em muitos outros dias.

“Senti pânico! Estou aqui com uma directa”, diz José Martins, morador na Rua da Guia. Ali, bombeiros, representantes da câmara, o presidente da junta e curiosos juntam-se frente ao prédio envolto em tapumes e chapas que envergonham o bairro há mais de vinte anos – a fachada frontal dá para a Rua dos Cavaleiros, por onde passa o turístico eléctrico 28. É a manhã do dia 9 de Fevereiro, domingo. A noite passou-se entre os estrondos das chapas a bater e o medo que se soltassem, como acontecera na tarde anterior com a cobertura do Estádio da Luz. Pior: em dezenas de casas da Mouraria, a noite passou-se entre baldes, escoamentos e orações que aguentassem os tectos e os curtos-circuitos.

Vistorias e editais em “águas de bacalhau”

Este é o telhado do prédio onde habita o casal Amoedo, nas Olarias. Não é caso único na Mouraria

Alice Costa Pinto, 64 anos, (na foto) também ali estava. Vizinha de José na mesma rua, já sobreviveu ao desabamento do corredor instantes após ter passado por ele. Também assistiu íntegra à queda da enorme chaminé que partiu o telhado do terceiro andar que a família habitava desde os tempos da sua bisavó. Nessa noite, dez meses antes desta manhã de Fevereiro, teve de abandonar a casa, com o marido, acompanhados pela Protecção Civil. Tiveram guarida em familiares e ocuparam depois o andar debaixo, dos mesmos senhorios, com menos uma assoalhada e o triplo da renda, então deixada pelos anteriores inquilinos

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precisamente pela degradação – um buraco no tecto da cozinha teima em crescer. As rendas nesse prédio estão entre os 30 e os 100 euros. Os proprietários, netos dos primeiros senhorios, não fazem obras. A câmara faz vistorias, tira medidas, fotografa e coloca editais na porta a obrigar a soluções imediatas. “Mas fica sempre tudo em águas de bacalhau. É uma coisa que ninguém entende! É Portugal no seu melhor. Fica-se à espera de uma desgraça”, critica José, nos seus quarentas. Em Maio, o ROSA MARIA perguntou por novidades. “Na semana passada vieram cá os senhorios para tratarem de um novo orçamento. Havia um do ano passado mas era muito caro”, conta Alice. Porque não mudam de prédio? “Uma pessoa vai perdendo a acção.” Voltando à tal manhã de Fevereiro. O que fazia tanta gente na Rua da Guia? Os bombeiros avaliavam como subiriam ao topo do tal edifício-moribundo para fixarem as chapas. Os curiosos indignavam-se. O presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, não largava o telemóvel. “A única coisa que posso fazer é chamar a atenção da câmara para o potencial de perigosidade que isto tem.” Avisos não faltam, há anos. Este imóvel, nos números 23-25 da Rua da Guia, pertence à Câmara Municipal de Lisboa, tal como outro, no Beco das Gralhas, junto à Rua das Farinhas, também assistido nessa manhã. O grupo Libertas (ver texto ao lado) chegou a analisar este imóvel em concreto, mas “problemas de índole administrativa difíceis de resolver” levaram os investidores a desistir, segundo Honorina Silvestre, porta-voz destes potenciais compradores. Carla Rosado

Programas municipais ineficazes

“Não é para um hotel”

Marisa Moura

Lei n.º 31/2012, que há dois anos veio descongelar rendas dos anos 90 e facilitar processos de despejo, afectando em especial os mais idosos. “O Estado tem de ter soluções para estas pessoas, não podem ser os senhorios a fazer de Segurança Social”, lamenta. “Por exemplo, a minha mãe e as minhas tias são todas professoras de liceu. Funcionárias públicas. Chegaram a ter de dar explicações para haver um extra”, diz esta herdeira que é a mais nova de cinco irmãos e mãe de uma menina de quatro anos – representante da sétima geração. “Há muita vergonha em relação aos inquilinos, face a uma responsabilidade que sabiam que tinham”, aponta. “Anda toda a gente cheia de medo. Medo de tudo, da solidão... de tudo.”

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Rosa Maria n.º 7 junho ‘14 · dezembro ‘14 Texto Carmen Correia e Marisa Moura Fotografia José Fernandes

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reportagem

Os irmãos Bruna e Jorge Fernandes na Vila do Castelo, onde ensaiavam as primeiras marchas infantis e onde mora a família há cinco gerações

Os Ministars e os Onda Choc estavam na berra em Portugal, e na Mouraria também. Mas por cá havia miúdos igualmente fãs de outras cantorias: as das marchas populares. “A primeira letra acho que falava das Descobertas”, recorda Bruna Fernandes, 31 anos, mãe de um menino de quatro anos e de uma menina que nascerá em Outubro. Tinha 10 anos quando, nos anos 90, integrou as primeiras marchas infantis desta era mais recente – sucessoras das primordiais em que Fernando Maurício desfilava, aos 13 anos, em 1947, antes de se tornar no “rei do fado castiço”. A Bruna ainda é jovem, mas já é do tempo em que ainda não existiam os desfiles infantis organizados pela Câmara Municipal de Lisboa que animaram a pequenada entre 1996 e 2006, em Belém. Na Mouraria dos anos 90, mais de vinte miúdos, entre os 10 e os 15 anos, marchavam sob a coordenação de Iola Costa (prima da Bruna, ensaiadora aos 18 anos) e Ermelinda Brito, hoje com 73 anos, então presidente da Junta de Freguesia de São Cristóvão e São Lourenço e chefe do departamento de qualidade da Ucal em Loures. Tudo a marchar! Umas vezes ensaiavam na Vila do Castelo, protegidos do trânsito onde moram ainda hoje as primas Bruna e Iola – filhas das irmãs Cila e Laurinda, donas do conhecido restaurante O Trigueirinho, no Largo dos Trigueiros, onde também chegaram a ensaiar. Outras vezes era no Largo da Rosa ou junto à Igreja de São Cristóvão. “Quando eles se portavam mal… a certa altura arranjei um apito”, recorda Ermelinda, divertida. Foi a mentora dessas marchas, nascidas anos antes dos desfiles municipais. E também autora das letras até ao ano passado, altura em que deixou de presidir à junta e que, coincidentemente, acabou a marcha infantil da Mouraria.

Trabalho de equipa e responsabilidade

Dessa “tropa” que marchava sob o apito de Ermelinda, três “soldados” ainda cá estão no bairro. Além da Bruna, está o seu inseparável irmão Jorge, de 29 anos, e o amigo Ivo, de 27, que ainda hoje é marchante. O rigor dos ensaios é precisamente o que os manos Fernandes mais recordam, pela positiva. “A responsabilidade, os horários, o trabalho de equipa...” São detalhes que ali importavam e que ainda hoje

prezam nas suas vidas pessoais e profissionais. Ela é enfermeira no Hospital Garcia de Orta em Almada, licenciada. Ele está imigrado na Bélgica desde Março como técnico de elevadores, saído de Portugal com o 10.º ano incompleto, a trabalhar como secretário num escritório de uma óptica. Ficaram para a vida os ensinamentos do rigor e do bairrismo responsável. “Aprendi a dar muito mais valor ao sítio onde vivo, a intervir. Por exemplo, se vemos um toxicodependente a drogar-se na rua ao pé de crianças ali a brincar, a gente é capaz de ir lá chamá-lo à atenção”, diz a Bruna. E completa o Jorge: “Pessoas que morem aqui há pouco tempo, se calhar, não fazem isso.”

Novas gerações, outras motivações

O rigor marcava também as marchas dos adultos – que os Fernandes, bairristas como são, obviamente também integraram. “Toda a gente fazia o que ensaiador dizia, e bem feito. Havia respeito. Os ensaios eram como um trabalho”, recorda o Jorge, que se estreou nos crescidos com 17 anos. E não foi logo aos 16, como a irmã, porque “era muito magrinho” e é da praxe começar por carregar os arcos, que pesam cerca de 30 quilos. Foi marchante graúdo dos 17 aos 22 anos, com um regresso há dois anos, aos 27. A mana marchou por uma década, até há seis anos, pelos 26. “Deixou de ser sério. Saíram os pais, entraram os filhos… e passou a ser apenas engraçado”, argumentam estes irmãos dados às tradições. Sempre conviveram com pessoas mais velhas. Diariamente em casa “com os avós, até eles morrerem” e nas habituais sardinhadas organizadas pelo pai, que era treinador de futebol cá no bairro e guarda-costas de profissão (chegou a ser segurança do Dom Duarte Pio). Bruna é descendente desta família de origens espanholas que habita na Vila do Castelo desde a sua bisavó paterna e sublinha: “Dantes havia os senhores das marchas, nem toda a gente entrava, mas depois até já vinham pessoas de fora do bairro”. Os irmãos desmotivaram-se. Mas nunca se desligaram totalmente e ainda visitam os ensaios no Grupo Desportivo da Mouraria. E este ano, o Jorge, de férias por cá, até comentou o bom ambiente que lá sentiu.

Como estarão hoje os miúdos que faziam as marchas infantis na Mouraria? Fomos à procura deles e encontrámos três. Uma viagem ao bairro (e ao país) dos anos 90. E dos anos 30 também, no início das marchas populares. O que é feito dessa malta?

E os outros miúdos que ensaiavam nos anos 90, o que é feito deles? “Foram saindo daqui. As mulheres juntaram-se muito cedo ou foram para a faculdade. Os rapazes foram ficando cá com os pais”, conta a Bruna. E estudaram menos. O Jorge constata: “Entre todos os meus amigos, só um é que foi para a faculdade. O resto saiu tudo da escola com o sexto ou o nono ano.” Fazem parte das negras estatísticas da escolaridade onde Portugal surge como o penúltimo país menos escolarizado do chamado mundo desenvolvido, só menos mal do que a Turquia e o México, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). E há a falta de emprego… “Muitos também não procuram”, atira a Bruna. “É típico dos bairros. Fica-se ali pelo café.” O último resistente é o Ivo. Dos primeiros mini marchantes dos anos 90 é o único que continua a marchar pela Mouraria. Encontrámo-lo num dos ensaios no Grupo Desportivo da Mouraria, numa sexta-feira de Maio. Nem o cansaço dos turnos nocturnos, que o trabalho por vezes exige, desencoraja este bairrista. Vai estando presente nos dois meses de ensaios, das 21h às 23h30. Todavia, entre tantos afazeres, má sorte a nossa… ficou sem tempo para dar uma entrevista ao ROSA MARIA.

Mais crise, menos filhos e menos marchas

O Ivo e os irmãos Fernandes são dos tempos em que havia crianças com fartura cá no bairro. Todavia, Ermelinda recorda que houve anos em que não se fizeram marchas infantis porque “uns ainda eram muito pequeninos, outros já grandes demais.” Sinais dos tempos. A incerteza desmotiva a paternidade neste país que é o mais envelhecido da Europa (há quarenta anos, pelo contrário, tinha a população mais jovem de todas) e o sexto em todo o mundo, com o Japão a liderar. O Jorge, por exemplo, viu-se obrigado a emigrar por isso mesmo: por causa da incerteza. “Sempre tive noção de que não ia ter um filho só por ter. Teria de ter condições”, testemunha. Apesar de nunca ter estado desempregado, decidiu juntar-se ao cunhado, na Bélgica, em busca da “oportunidade de uma vida mais estável, com outros horizontes: constituir família.”


র�োউজা মারিয়া

Os tempos são efectivamente diferentes. Mais ainda se compararmos com a década de 30, quando nasceram as marchas populares (ver “A origem das marchas populares”). As crianças já trabalhavam. Era o caso de Fernando Maurício, nos anos 40. “Em 1947, com apenas 13 anos de idade, trabalhava já como manufactor de calçado e cantava em associações de recreio (…). Em 29 de Junho do mesmo ano, participa já na marcha infantil da Mouraria representando o Conde Vimioso com Clotilde Monteiro no papel de Severa.” Esta é uma passagem da sua biografia patente no site do Museu do Fado.

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A origem das marchas populares

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O espírito das Descobertas

A marcha infantil que todos os anos desfila na Avenida da Liberdade é a da Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário, que estreou em 1988 (uma data consensual, apesar de várias outras serem por vezes indicadas). Mas por toda a cidade foram nascendo projectos de palmo e meio, surgindo depois um movimento mais sério entre 1996 e 2006: as Marchas Populares Infantis de Lisboa. Nesse período, milhares de crianças – incluindo as da Mouraria – desfilaram anualmente em Belém, o bairro dos monumentos às Descobertas, onde o ditador Salazar realizou a mítica Exposição do Mundo Português em 1940. Cada edição reunia cerca de trinta freguesias e cinquenta instituições, com subsídios municipais que rondavam os 1600 euros por cada junta de freguesia. O objectivo estava impresso num folheto de 2006 (que viria a ser o último): “Esta iniciativa apresenta para a Cidade o preservar de uma identidade e de uma memória cultural que se pretende fomentar nas gerações mais novas. Desta forma, é possível ter crianças, pais, escolas, associações e juntas de freguesia absorvidos de um espírito que, para além de recreativo, simboliza a alma ‘alfacinha’.” Assinado: Sérgio Lipari Pinto, vereador da Acção Social e Educação.

Mouraria sem marcha este ano

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A iniciativa acabou em 2007, mas cada junta e colectividade continuou a financiar-se como pôde. Na Mouraria, a marcha infantil também continuou e teve até um momento alto em 2011. Ensaiada pelo vizinho Vítor Hugo, marchou em directo na SIC, no programa Boa Tarde, apresentado por Ana Marques. Estava esta marcha em grande dinâmica desde o ano anterior, reunindo a energia (e o investimento) de duas juntas: a de São Cristóvão e São Lourenço, presidida por Ermelinda Brito, e a do Socorro, por Maria João Correia. Recorda a veterana: “Eu tinha dito à Maria João: ‘Se ganhares as eleições, para o ano fazemos juntas’”. E fizeram. Assim foi por três anos, até ao ano passado. Agora, com a extinção das juntas (ambas integram a mega freguesia de Santa Maria Maior desde as autárquicas de Setembro de 2013), extinguiu-se também a marcha infantil. Veremos quando reanimará. As marchas nascem e renascem. Assim tem sido até hoje, tanto nas miúdas como nas graúdas.

As celebrações do Santo António existem desde o século XII, mas as marchas populares que integram as festas do padroeiro de Lisboa, tal como as conhecemos, só nasceram com a ditadura do Estado Novo, há oitenta anos. Resultaram de uma mistura entre os ranchos folclóricos regionais e as chamadas Marches aux Flambeaux – marchas dos archotes, realizadas em França em homenagem à Revolução Francesa, num ambiente militar com bandeiras e archotes acesos, transformados por cá nos balões populares. Aportuguesaram-se sob a designação “marchas ao filambó”, com especial adesão entre actores do teatro, que as encenavam pelo Carnaval e lhes chamavam Festas de Entrudo. Eis os momentos-chave das Marchas Populares de Lisboa:

1932 3 O director do Parque Mayer, Campos Figueira, pretende

reanimar o recinto de teatros populares e pede ajuda a José Leitão de Barros, director do jornal Notícias Ilustrado, próximo do então ministro das finanças António de Oliveira Salazar, que instauraria no ano seguinte o regime do Estado Novo (1933-1974). Organiza-se um concurso de ranchos folclóricos na véspera do dia de Santo António. Na noite de 12 de Junho, desfilam em concurso os bairros de Campo de Ourique (vencedor, com trajes do Minho), Alto do Pina e Bairro Alto, com massiva divulgação na imprensa.

1934 3 Há oitenta anos, nasceram as marchas populares como hoje as conhecemos. Num evento organizado pela Câmara Municipal de Lisboa, estiveram representados doze bairros, cada um com 24 pares e doze arcos. Desfilaram do Terreiro do Paço, pela Avenida da Liberdade, até ao Parque Eduardo VII, no sentido inverso ao actual, que desce da rotunda do Marquês até aos Restauradores. E houve versões infantis. 1935 3

Repete-se o evento e populariza-se a canção Lá Vai Lisboa, interpretada por Beatriz Costa, com letra de Norberto de Araújo e música de Raul Ferrão. Segue-se um grande interregno devido à crise económica desencadeada pela guerra civil espanhola (1936-39) e pela Segunda Guerra Mundial (1939-45).

1947 3 Reedição do evento, em grande escala, pelo oitavo centenário da conquista de Lisboa aos mouros. Houve marchas, um cortejo sobre a história da cidade e um campeonato mundial de hóquei-em-patins ganho por Portugal. Fernando Maurício, aos 13 anos, desfila na marcha infantil da Mouraria. 1948-1988 3 Nestes quarenta anos as edições foram irregulares. Primeiro por desmotivação; depois, após a revolução democrática de 1974, pela opção de cortar radicalmente com o regime fascista, caracterizado por apostar na animação do povo em detrimento da educação e liberdade de expressão e pensamento. 1988 3 As Marchas Populares

A marcha infantil da Mouraria esteve em directo na SIC em 2011, ensaiada pelo vizinho Vítor Hugo (na foto acima, ao centro, com chapéu) e acompanhada pela veterana Ermelinda Freitas (à esquerda, de azul) e Maria João Correia, então presidente da junta de freguesia do Socorro (à direita)

de Lisboa tornam-se a partir daqui um evento anual, ininterrupto até hoje. Entre os anos de 1986 e 2006, a câmara promoveu também as Marchas Populares Infantis de Lisboa, num desfile regular em Belém, na semana anterior ao feriado de Santo António. FONTES: Lisboa Marcha há Oitenta Anos, pelo olisipógrafo Appio Sottomayor, na brochura Marchas Populares 2012, Câmara Municipal de Lisboa/EGEAC; Uma “Tradição Inventada” em 1932, por Isabel Lucas, Diário de Notícias, 2005


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reportagem

Texto Nuno Catarino Fotografia Augusto Fernandes

Crianças e jovens estão a fazer música com o conhecido músico de jazz Carlos Barretto no Largo Residências. Nasceu a In Loko Band.

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Telma Pereira mora no Intendente e usa a voz como instrumento. Encontrou uma oportunidade única para “conviver, trocar ideias e conhecer o processo de criação de um músico com o trabalho e o percurso como os do Carlos. Em cada ensaio aprende-se imenso. É uma aprendizagem contínua.” Refere-se a Carlos Barretto, figura proeminente do jazz nacional ao longo de mais de duas décadas. Contrabaixista com uma sólida discografia ao leme do seu trio Lokomotiv, integrou o trio de Bernardo Sassetti, além de trabalhar nas artes visuais. Está a desenvolver uma residência artística na Mouraria. Fruto de uma parceria com o Largo Residências, está a trabalhar num espaço que foi um salão de jogos. No número 193 da Rua do Benformoso funciona um atelier de ensaio e criação, e é aí que tem trabalhado em música e pintura, desde Maio de 2013, encetando também uma ligação à comunidade local. É isso mesmo que destaca a flautista Júlia Neves, 27 anos, originária do Brasil e uma das residentes. Vê a experiência como uma “oportunidade de ter mais contacto com a linguagem do jazz e conhecer melhor esta zona do Intendente, com tantas coisas e pessoas interessantes.” A ideia surgiu certa vez que Barretto foi tocar ao antigo Espaço SOU. “Em conversa com a Marta Silva [fundadora do Largo Residências], surgiu a possibilidade de se trabalhar numa residência artística. A Marta tratou de arranjar um espaço e eu sugeri em troca oferecer serviços à comunidade. Essa ideia foi tomando forma e... aconteceu!” A primeira actividade passou pela abertura de portas para audições para jovens músicos residentes na zona. A ideia inicial foi criar uma orquestra, para que,

Jams quinzenais no Intendente

trabalhando semanalmente, essas pessoas pudessem desenvolver as suas capacidades individuais, com o objectivo de integrar um grupo. Nasceu a In Loko Band. O primeiro momento de visibilidade deste trabalho aconteceu no final de Julho do ano passado, quando a banda se apresentou ao vivo no Largo do Intendente. Para a primeira actuação da mini-orquestra, foram seleccionados sete jovens músicos locais, aos quais se juntou o próprio contrabaixista, os habituais parceiros do trio Lokomotiv (Mário Delgado na guitarra e José Salgueiro na bateria) e ainda a cantora convidada Selma Uamusse.

O trabalho do contrabaixista com a comunidade não se fica por aqui. Outra das actividades que Barretto tem promovido é um atelier para crianças entre os 6 e os 12 anos. “Incutimos neles algumas noções musicais, como tocar em grupo, improvisar ou mesmo experimentar vários instrumentos diferentes.” Uma outra actividade, dirigida a um público mais velho, é a promoção de workshops de improvisação para músicos com alguma experiência musical, em que se possa “combinar o prazer de tocar em grupo com a capacidade de improvisar algo”.

Todas estas actividades são complementadas com o ciclo de concertos, em formato jam session, que tem decorrido no Café Largo (ao Intendente). Às terças-feiras à noite, com uma regularidade quinzenal, Carlos Barretto toca ao vivo na companhia do seu grupo de músicos locais. Actuando de uma forma regular, os músicos vão ganhando experiência de palco, e isso reflecte-se na sua própria evolução musical. Para o contrabaixista, esta tem sido uma experiência humana muito rica. “Tenho conhecido as pessoas que vivem aqui há muitos anos, tenho conhecido gente incrível, gente muito boa. São pessoas que estão dispostas a colaborar em todas as nossas actividades.” A residência durará enquanto o imóvel continuar disponível.

Música e pedagogia, também para crianças

Dessa combinação de músicos profissionais e iniciantes resultou um espectáculo que, nas palavras de Barretto, “acabou por ser meio jazz, meio world music”. O envolvimento da comunidade local através da música acaba por encontrar um paralelo com a Orquestra TODOS, um grupo que trabalha a integração reunindo músicos de várias nacionalidades e culturas, mas este projecto diferencia-se por se direccionar para um grupo mais jovem, em que a vertente educativa e pedagógica tem maior importância.

In Loko Band, numa das apresentações no Café Largo, ao Intendente, com Jorge Mendonça Oliveira (percussão), Carlos Barretto (contrabaixo), Philip Santos (bateria, convidado), Júlia Neves (flauta), Diogo Picão (saxofone) e Luís Bastos (clarinete, convidado). E a Telma Pereira? Não esteve neste dia.


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Texto Oriana Alves Fotografia Nuno Morão

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Lisboa coroa o “Rei do Fado” Quando passam onze anos sobre a morte de Fernando Maurício, o espólio do fadista regressa finalmente à Mouraria, “à gente que ele adorava”.

“O Fernando só não deixou tudo na Mouraria porque não encontrou ninguém de confiança”, admite António. Em contrapartida, o fadista conhecia bem o gosto do amigo pelo coleccionismo e pela história de Lisboa, e sempre que visitava a quinta trazia-lhe uma peça antiga da cidade. Conheceram-se há mais de quarenta anos, nos fados, onde António Piedade “comovia os nervos” e “curava o stress” do emprego na Central de Cervejas. “Por essa altura já era uma loucura quando ele entrava em qualquer lado.” Jantavam duas ou três vezes por semana, no Verdemar ou no Solar dos Presuntos, na Rua das Portas de Santo Antão: “um prato de berbigão, ou uma cabeça de peixe, de que ele gostava muito”. Depois seguiam para o Bairro Alto, para o Mesquita, onde foi muito tempo artista privativo. “Antes do 25 de Abril não se andava no Bairro Alto pelos passeios, havia sempre um certo perigo, era um ninho de prostitutas, e onde havia mulheres na rua havia sempre zaragata.” Se a garganta não estava a cem por cento, afinava a voz nas estações do metro. “Porque o Fernando era purista, rigoroso. Os guitarras, quando o acompanhavam, tremiam de gozo, de emoção. Nunca cantou nada de ninguém e nunca pediu um poema, os poetas é que lhos ofereciam. O Mário Raínho fez-lhe o Testamento Fadista porque já muita gente tinha cantado coisas dele.”

O amigo António Piedade guardou tudo com amor na sua quinta em Torres Vedras, por onde “já passaram grandes vozes” e “a Cristina Branco começou a cantar”

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O amigo de confiança

“Ele não via muito bem, e nas jogatanas no Largo da Guia, quando começava a perder, mandava as cartas para o chão. Era uma risota. Era um brincalhão.” Chorar, chorava pelas mulheres – ele por elas e elas por ele. É dele a quadra: “Se o fado é tristeza ou dor/ Se é ciúme ou pecado/ Que serás tu meu amor/ Toda vestida de fado?”. Quando andava mal de amores, era em Alfama que se curava, na Parreirinha, “com os fados da Argentina”. Por aquelas ruas lhe gritaram muitas vezes “Tu és nosso!”. E era. Mas sobretudo era “um filho da Mouraria, um coração fabuloso, um fadista que deixou escola. Quando morre gente desta fica um vazio”. O vazio que todos os anos reúne vizinhos, família, amigos e uma longa lista de “mauricianos” que assinalam o seu desaparecimento a 15 de Julho de 2003, aos 69 anos, com uma maratona de fado no cruzamento da Rua da Mouraria com a Rua do Capelão. Este ano a festa é no sábado, dia 12. Se tudo correr bem, com estátua, rua e museu. “Onde ele estiver, está feliz de voltar àquelas ruelas, à gente que ele adorava.”

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Uma extensa colecção de fado em vinil. Troféus e medalhas, incluindo a de Comendador da Grande Ordem de Mérito de 2001. Dezenas de fotografias e notícias de jornais. Poemas que lhe dedicaram. A certidão militar que regista “lê e escreve mal”, e contra a qual se revoltou fazendo a quarta classe e cultivando-se, “ao ponto de manter uma conversação fosse com quem fosse”. No museu improvisado por António Piedade na aldeia de Carvoeira, concelho de Torres Vedras, os objectos de Fernando Maurício, dispostos com amor, contam histórias partilhadas pelo amigo do fadista que o povo, há mais de vinte anos, coroou com o cognome de “Rei do Fado”. Em Março passado, quando António Piedade recebeu em casa o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, não foi a primeira vez que um autarca tentou convencê-lo a oferecer a Lisboa o espólio do fadista. A diferença é que desta vez o pedido veio acompanhado da promessa de que o destino seria a Mouraria. Fora das opções, por ser “demasiado pequena”, está a casa onde Maurício nasceu e viveu, na Rua do Capelão, há anos transformada em loja de música e filmes indianos, entretanto encerrada. Sem revelar a localização exacta, Miguel Coelho adianta que há dois espaços em vista, ambos muito próximos do Largo da Guia, que em breve terá um busto do fadista, “agora em fase de produção”, e que deverá passar a chamar-se Largo Fernando Maurício, caso a assembleia municipal aprove a proposta da junta. O Museu Fernando Maurício “funcionará como um pólo do Museu do Fado na Mouraria, beneficiando de enquadramento técnico daquela instituição”, e abrirá até ao final do ano, “idealmente em Julho”, quando se assinalam onze anos da sua morte.

Da Mouraria, de Lisboa e do Fado


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reportagem

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Texto Raquel Albuquerque Fotografia Paulo Marques

atleta

na modalidade valeram-lhe o convite para entrar na selecção: viria a ser ela a primeira mulher na equipa. São muitos os treinos e estágios, dentro e fora do país, que hoje fazem parte do seu currículo. Ao longo dos últimos anos, multiplicaram-se as medalhas e troféus, todos expostos num armário da sala da casa onde vive com a mãe. Hoje já são difíceis de contar, mas entre eles estão quatro medalhas de ouro, duas de prata e uma de bronze, resultado da participação em dois jogos paraolímpicos, um campeonato do mundo, duas taças do mundo e dois campeonatos europeus. A melhor recordação que guarda é da participação nos jogos paraolímpicos na Grécia, em 2004. “A equipa de Portugal ficou em primeiro lugar. Foi lindo ouvir o nosso hino e receber a medalha.” Depois veio o Mundial de Boccia no Rio de Janeiro, em 2006, e os paraolímpicos em Pequim, em 2008.

que faz de cada dia uma prova Nascida na Mouraria há 36 anos, Cristina Gonçalves foi a primeira mulher na Selecção Nacional de Boccia, a principal modalidade para atletas com paralisia cerebral. E medalhada olímpica.

Desistir não é com ela

Cristina Gonçalves: “Ao princípio ia nervosa, até tremia. Depois foi passando, fui aprendendo.”

As Escadinhas da Saúde são uma prova de vida para Cristina Gonçalves, atleta paraolímpica nascida na Mouraria há 36 anos. Com a ajuda da mãe e apoiada em duas canadianas, sobe e desce as escadas todos os dias, mais do que uma vez, para apanhar a carrinha do Centro de Educação Especial Rainha Dona Leonor, que a espera todas as manhãs perto da Capela da Nossa Senhora da Saúde, e lá a deixa ao final da tarde. O mais difícil, segundo conta, são os dias de chuva quando tudo fica escorregadio e a mãe tem de ir limpandoo corrimão à medida que se apoia. Por difícil que seja subir e descer as escadas todos os dias, essa é apenas parte da prova de persistência e esforço de Cristina, que foi convidada em 2003,

Mouraria nas artes

com 25 anos, para fazer parte da Selecção Nacional de Boccia, a principal modalidade para atletas com paralisia cerebral. “Nunca esperei subir tão alto.” Cristina ainda se lembra quando os pais achavam que os convites para os treinos no estrangeiro não eram verdade. “O meu pai não me deixou ir ao primeiro porque não acreditou.”

Quatro ouros entre incontáveis troféus

Aos 12 anos começou a fazer atletismo no mesmo centro de educação especial onde está hoje e onde entrou ainda aos três anos. Mais tarde, aos 16, experimentou boccia. “Ao princípio ia nervosa, até tremia. Depois foi passando, fui aprendendo”, conta. Os bons resultados

Cristina sempre viveu na Mouraria e se há coisa de que gosta, além do desporto, é de passear por Lisboa. Dos seus primeiros anos de vida, quando adoeceu, é a mãe que melhor se lembra. Ainda não tinha um ano quando lhe foi diagnosticada, já tarde, uma meningite que viria a ser a causa da paralisia cerebral. Aos três anos entrou no centro de educação especial, onde começou a ser acompanhada. Aos cinco anos era a mãe que a levava ao colo para onde quer que fossem, até que as várias operações a que foi sujeita permitiram lentamente que começasse a andar. O resto coube-lhe a si conquistar: os bons resultados como atleta, o convite para a Selecção e as viagens que fez pelo mundo fora. A mãe, aos 79 anos, marcada pelo cansaço, admite já ter dito à filha para desistir de ser atleta. “Também já tentei que a carrinha a viesse buscar à rua que fica no cimo das escadas da Saúde. Era mais fácil, mas é ela que não lhes quer pedir.” Cristina sorri, reflectindo a forma doce e tranquila com que reage ao que a rodeia. “Não quero. Vou continuar a ir por baixo.” Deixar de ser atleta? “Enquanto puder, não deixo.”

Texto Daniela Correia Silva

Históricas aguarelas A Mouraria teve a honra de ser retratada por aquele que é o expoente máximo da aguarela nacional: Alfredo Roque Gameiro, nascido há 150 anos. A Rua do Capelão, a Rua da Mouraria, o Colégio dos Meninos Órfãos, o Arco do Marquês do Alegrete, a Rua do Benformoso, o Largo da Achada, a Rua das Farinhas... Estes e outros locais da Mouraria foram retratados por Roque Gameiro. Aquele que é considerado o expoente máximo da aguarela em Portugal nasceu em 1864 em Minde, Santarém, tendo vivido em Lisboa, onde desenvolveu grande parte do seu trabalho e foi professor na Escola Industrial do Príncipe Real, falecendo em 1935. Frequentou a Academia de Belas Artes de Lisboa e a Escola de Artes de Leipzig, na Alemanha, com especialidade em litografia.

Apesar de se ter iniciado como desenhador-litógrafo, foram as aguarelas que o tornaram célebre e com as quais obteve vários prémios nacionais e internacionais. E foi com essa técnica que retratou o nosso bairro e outras zonas de Lisboa e arredores.

Compreender a cidade

O seu objectivo era ajudar a compreender a transformação da cidade no final do século XIX e início do século XX, pois via com “desgosto profundo” o desaparecimento de espaços e características mais pitorescas que tinha chegado a conhecer. Esse fascínio que sentiu ao chegar à capital, vindo do mundo rural, e a tristeza que o assolava ao ver desaparecer pormenores que o inspiraram na primeira visita, ficaram patentes nas palavras que escreveu no prólogo do livro Auto da Lisboa Velha, de autoria de Afonso Lopes Vieira, poeta natural de Leiria e seu grande amigo, residente durante cerca de quinze anos no Largo da Rosa, onde hoje existe um busto seu.

A maior parte das obras do pintor estão hoje expostas na sua terra natal no Museu da Aguarela Roque Gameiro. Muitas delas estiveram este ano na exposição O Mar, a Serra, a Cidade na Galeria dos Paços do Concelho, em Lisboa, de 19 de Março a 25 de Abril. Esta exposição contou com sessenta aguarelas e teve o objectivo de comemorar os 150 anos do seu nascimento. As obras podem ser vistas em exposições permanentes no museu de Minde e noutros locais, como o Museu do Chiado, onde estão representadas zonas do país como a Praia da Maçãs e a Nazaré. No Museu da Cidade, esteve, até aos anos 80, a pintura do Arco do Marquês do Alegrete, actual Rua do Arco do Marquês do Alegrete, ao Martim Moniz – arco esse que existiu até 1961 e que se situava naquela que foi a fronteira medieval de Lisboa, onde havia as Portas de São Vicente, na muralha que protegia a cidade dos ataques castelhanos. O paradeiro dessa aguarela (ver imagem ao lado, numa versão a preto e branco) é agora desconhecido. Desapareceu numa altura em que se montava uma exposição na Amadora.

A atracção de Roque Gameiro pelo passado levou-o a documentar graficamente vários locais e detalhes da cidade, na esperança de que assim fossem, de alguma forma, preservados. Graças ao seu trabalho, podemos hoje observar como a passagem do tempo marcou os lugares, muito diferentes do que eram há cem anos, quando Roque Gameiro os ilustrou. Museu da Cidade /CML

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Texto Rosa Maria Fotografia Carla Rosado

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A Rosa Maria andou a “serendipendiar” pelos bazares da Mouraria. Curiosa com os estranhos produtos que por cá se vendem, com rótulos em línguas que não entende, encantou-se sobretudo com as pessoas. Aqui fica a sua partilha. Para a próxima edição há mais.

Peguei num saco de tapioca pearl e perguntei à Manuela, moçambicana há quarenta anos em Portugal, como é que se podia cozinhar “as bolinhas brancas”. Enquanto ia fazendo o inventário da loja, explicou-me: “Dá para tudo. Sopa, canja e até aquela coisa com arroz e leite.” “Arroz doce?” “Sim, isso mesmo, mas com tapioca.” Depois, perdi-me: noodles dourados de batata doce, latas de manteiga de amendoim que

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Desci as escadas do Beco do Rosendo, onde mora a Mouradia – Casa Comunitária da Mouraria, e logo à direita, no Poço do Borratém, parei à porta do supermercado Chen: nunca tinha visto uma “batata” assim. Os clientes que entravam e saíam falavam português, cantonês, mandarim e inglês! Sabiam ao que iam, enquanto eu olhava perdida para tanta coisa nova. Entrei e vi produtos de toda a Ásia: China, Índia, Vietname e Tailândia. Não só os produtos são diferentes, mas as próprias embalagens fazem uma cozinha mais bonita. Tem de se sentir alegre quem cozinha com tanta cor!

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pulseiras com guizos, para o pé. Mal entrei, Ismail levantou-se para me cumprimentar. O português perfeito de Ismail levou-me a perguntar há quantos anos é que vivia em Portugal. Ismail sorriu:“Sou português. Os avós paternos eram de Porbandar e os maternos de Jamnagar, todos do Grande Gujarat! Depois da Segunda Guerra Mundial emigraram para Moçambique, colónia portuguesa. O meu pai era portanto português e a minha mãe, quando casou, ficou com a nacionalidade.” Ismail é tão português quanto eu! Neste “sentir-se em casa” imediato, ficámos mais de uma hora à conversa. Ismail contou-me histórias que atravessam países e mares. Chegou a Portugal em 79, como retornado. Tinha 20 anos. “Viemos atrás da bandeira.” Teve uma casa de jogos, mas as leis mudavam tão depressa que foi trabalhar nas obras, onde recebia o dinheiro que dava por um quarto. “Compreendo o 25 de Abril, mas quebrou-nos o futuro. Lá, estudava; quando cheguei tive de pedir a nacionalidade, como qualquer indiano que chega hoje a Portugal.” Falámos dos anos de transição, do que ficou em Moçambique, do hino nacional, de como é trabalhar no bairro

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lembram as embalagens antigas de Cerelac, carne de caranguejo, ginger beer e papads com cominhos, tudo pronto a usar! Com outra embalagem-mistério na mão, ouvi a voz da Manuela a responder a um cliente, muito rápida, mas noutra língua. Perguntei-lhe que língua era. “Cantonês. Falo português, cantonês e mandarim.” E explica-me, sem se distrair: “Isso que tem aí na mão é hulin seco. Tem todas as vitaminas e é remédio para tudo. Fortalece o corpo. Leve, leve!” Saí da Coetraliz com uma embalagem de hulin (como não?) e segui caminho. Mais à frente entrei pela Rua do Benformoso. Gosto tanto desta rua... É bonita, daquelas que precisam de mais amor. Se continuasse, chegaria à mesquita, mas entrei a meio caminho no mini-mercado e talho Halal para comprar uma peça de fruta e ter uns minutos de sombra. Aproveitei para conhecer melhor o talho, já que ali estava. Ao fundo à esquerda, enquanto comia a fruta comprada, encontrei uma embalagem verde e branca, linda,

linda. Li: Registered Sat-Isagbol Psyllium Husk! Best Quality. As instruções explicavam que podia tomar com água, leite, sumo ou lassi. Perguntei-me se seria mais um “cura-tudo” para beber. Estava nisto quando percebi que Salauddin Chowdhury, do Bangladesh e há nove meses em Lisboa, me sorria. Perguntei se aquele pó branco também servia de remédio. “Não, não, isso é para limpar!” “Mas está na secção da comida...” “Ah, mas é para limpar o corpo, como quando se come demais. É um laxante. Um laxante muito forte.” Rimos os dois pelo absurdo, comprei o sat-isabol (para decorar a prateleira) e falámos da sua chegada a Lisboa, de como está a ser viver nesta cidade, do trabalho, das pessoas. Salauddin respondeu a tudo e fomos conversando até serem horas.

Saí com o adeus simpático de Salauddin e decidi, a caminho do Grupo Desportivo, subir pela Rua dos Cavaleiros. Mas não resisti e entrei na Bijucacá para ver aquelas

e até de Scolari! Depois, da loja. Ismail vende o hijab, o lenço muçulmano. Explicou-me quando é que se usa a henna mehak, que vem de Karachi, e como aplicar o kajal nos olhos.

E mostrou-me ainda dois frascos de pó sindur, também conhecido por kumkum. Nova lição: o sindur vermelho, para fazer aquela bolinha entre as sobrancelhas, é sinal de casamento! (ver secção Hábitos na página 7) Comprei um payal para o pé, a pulseira que estava na montra: uma fita vermelha com guizos para pôr à volta do tornozelo e dançar. Hoje vou à festa na Mouraria, com um pouco de Índia no pé.


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retrato de família

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Texto Raquel Albuquerque Fotografia José Fernandes

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Mento: Cabo Verde em São Cristóvão em Cabo Verde, onde deixou os pais e os irmãos. Quando chegou, pensou: “Se gostar, fico cá.” E foi ficando. O restaurante surgiu depois, quando, aos 29 anos, soube de um português retornado de Angola que ia sair do país e tinha um restaurante para passar. Maria já tinha dois filhos – um deles entretanto emigrado. Aos poucos, a família foi aumentando e assistindo às mudanças do bairro, às pessoas que chegaram e partiram, às lojas e restaurantes que abriram e fecharam. À parte de tudo, Maria manteve-se. “Já me viciei. Estou bem aqui. Gosto disto.” Já tem quatro netos. Numa fotografia pendurada na parede do restaurante estão duas delas. Estar rodeada pela família encurta a distância da terra natal. “Cabo Verde é aqui. Eu nunca saí de lá. Aqui oiço as minhas mornas, tenho a minha alma, a minha música, sem sentir aquela saudade ‘lastimada’. É uma saudade leve.” Quanto aos dias futuros, só tem um desejo: mostrar aos cinco filhos os “sítios todos” do país onde nasceu. “Se um dia pudéssemos ir todos, isso, sim, gostava.”

Maria do Livramento, a Mento, cozinha todos os dias. Dos seus 64 anos, 35 foram passados no número 30 da Rua de São Cristóvão, no pequeno restaurante africano que lhe permitiu criar cinco filhos, sem parar. “Num dia nascia a criança, no outro estava a trabalhar.” É a matriarca de uma das famílias mais emblemáticas do bairro, conhecida como “os Mento”. Cachupa, muamba e arroz de atum fazem parte do menu do São Cristóvão (o restaurante). Pipo, o filho mais novo, com 26 anos, ajuda ao fim do dia – ele que, “por pouco, não nasceu lá dentro”. O principal ajudante é o sobrinho Eduardo, de 57 anos, filho da sua irmã mais velha. Maria vive hoje fora da Mouraria com os dois filhos mais novos e o companheiro de longa data, Hélder, que é pai de uma das suas filhas, avô de duas netas e habitué no São Cristóvão. A amizade que os une tem 42 anos, lembra Maria. Conheceu-o pouco depois de chegar a Lisboa, há 44 anos, vinda da cidade da Praia,

Entrevistas Marisa Moura Fotografias à direita Paulo Marques Fotografias à esquerda Sophie Cadet

No princípio é tudo muito bonito. No dia da mulher distribuíram flores, coisa que eu nunca tinha visto. O ATL saiu daqui para São Cristóvão, mas saiu de um cubículo para umas instalações fabulosas. Entretanto há funções da câmara que passaram para as juntas… Vamos ver. > Ana Isabel Esteves /37 anos Auxiliar de acção educativa na escola Gil Vicente. Mora na Rua dos Lagares (antiga freguesia do Socorro)

Estava toda a gente habituada a ir à junta aqui, agora é preciso ir aos serviços centrais. E, por exemplo, havia uma senhora que punha os editais aqui pela rua. Mas ainda agora em relação ao IRS, aqui nas Olarias, não estava nada no placard. > Maria de Lurdes Ferreira /40 anos Técnica de panificação. Mora na Rua das Olarias (antiga freguesia do Socorro)

Utilizei recentemente os serviços da acção social, junto à Sé, e fui muito bem atendido. Atenciosos e comunicativos. Mas vejo varrerem, por exemplo, na Rua do Terreirinho e nunca ali na calçada. E o lixo, se houvesse caixotes, no Verão não havia tantas moscas. > Jorge Silva /53 anos Sapateiro desempregado Mora na Calçada Agostinho de Carvalho (antiga freguesia do Socorro)

Mil vezes melhor. As ruas estão mais limpas desde que cá está este senhor [Miguel Coelho, presidente da junta]. Estavam uma vergonha e com buracos por todo o lado. Ele anda sempre a mandar arranjar tudo. Passa pela gente e sorri. E eu não votei nele. > Luísa Reis /66 anos Florista Mora na Rua do Terreirinho (antiga freguesia do Socorro)

Continua a faltar polícia. Isto aqui é uma pouca-vergonha com a droga. Seja de manhã ou hora de almoço, estão aqui a picar. Também fazem aqui as necessidades, líquidas e sólidas, e passam-se semanas e semanas que isto não é lavado.

Que balanço faz da nova Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, eleita em Setembro?

vox mourisco

> Zulmira Paulino /79 anos Reformada Mora no Beco do Castelo (antiga freguesia de São Cristóvão e São Lourenço)

Já se nota o bairro mais limpo. O novo presidente é uma pessoa muito consciente dos problemas e sempre disponível. Ainda deve haver alguma dificuldade em relação à terceira idade. Estão sempre a precisar de melhoramentos, pequenas obras em casa, mas eles ainda não estão em pleno para poderem funcionar a 100%. > António Pinto /64 anos Reformado, ex-chefe de tráfego na Renex Mora na Rua da Madalena (antiga freguesia de São Cristóvão e São Lourenço)

O lixo está melhor, embora, por exemplo, aos domingos andem por aqui turistas e haja lixo, colchões e madeiras na rua. O vidrão da igreja está sempre cheio, com garrafas no chão, e o do Largo da Rosa está num sítio que não tem lógica nenhuma e tira a beleza ao largo. > Helena Marques /57 anos Lojista desempregada Mora na Rua das Farinhas (antiga freguesia de São Cristóvão e São Lourenço)

Meia dúzia de meses ainda não dá para ver o valor das pessoas. Mas havia passeios a 2 euros e meio e parece que passou a 7 euros e meio. É uma coisa irrisória, nem dois maços de tabaco, mas para certas pessoas já faz diferença. > Alfredo Vicente /78 anos Operário químico reformado Mora na Rua das Farinhas (antiga freguesia de São Cristóvão e São Lourenço)


Passatempos infantis Aude Barrio


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Texto Rita Pascácio Fotografia Sophie Cadet

Moqueca, feijoada, muamba... e livros

Feijoada à Brasileira

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1 kg Feijão preto seco 1 Chispe de porco 1 Orelha de porco 1 kg Entremeada com osso (manta de porco) 1 Chouriço de carne 1 Chouriço preto 1 Cebola 4 Dentes de alho 1 Folha de louro Sal q.b. Banha q.b. Couve cortada em caldo verde Farinha de mandioca (pau) Linguiça Laranja

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O feijão e a carne:

Após demolhar o feijão durante 24 horas em água fria, cozê-lo durante uma hora. Retirar o feijão e reservar a água da cozedura. Fazer um refogado com a banha, a cebola e o alho. Acrescentar a água do feijão e as carnes. Depois de cozidas, parti-las e juntar o feijão. Deixar tudo em lume brando durante uma hora. Cortar a laranja em meias-luas e colocá-la por cima do feijão e da carne.

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Musse de Manga

de polpa , · 1deLata manga de natas · 2friasPacotes para bater Lata de leite · 1condensado Bater as natas, juntar o leite condensado e envolver a polpa de manga.

A couve:

Numa frigideira, deitar um fio de óleo e um dente de alho picado. Quando o alho estiver frito, juntar a couve cortada e saltear.

A mandioca com linguiça:

Servir em três recipientes diferentes. Pode acompanhar também com arroz branco.

Alcaide Rua de São Cristóvão, n.º 32 914 548 014

Por João Madeira

Descubra

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nomes de peixe

soluções

Algures na Mouraria, mais precisamente na Rua de São Cristóvão, damos de caras com a moqueca de camarão mais famosa do bairro e arredores. A receita, essa a Sandra não revela, ou não fosse o segredo a alma do negócio. Faz em Junho sete anos que a Sandra e o Valter reabriram o Alcaide, trazendo consigo sabores que falam português – de Angola a Cabo Verde, passando pelo Brasil e desembarcando nesta terra de mouros. A feijoada à brasileira e a muamba de galinha completam o top 3, liderado pela incontornável moqueca de camarão. A musse de manga, a tarte de côco e a tarte de pastel de nata prometem adoçar os paladares mais exigentes. Os sons quentes africanos (tocados ao vivo todos os sábados) dão o toque final nesta experiência de sentidos. Foi aqui que ocorreu a gestação da Associação Renovar a Mouraria, que agora, com a sua Rota das Tasquinhas e Restaurantes, encaminha curiosos a provar os sabores do Alcaide. Conta a Sandra que ainda se lê em guias turísticos menos recentes que a Mouraria é uma zona perigosa e a evitar. Apesar disso, os clientes aparecem, ansiosos por testemunhar a renovação do bairro. No Alcaide é também possível ler livros, pois a vizinha Casa da Achada – Centro Mário Dionísio instalou aqui o primeiro pólo da sua biblioteca, onde uma vez por mês faz lançamentos de livros, por vezes também com atuação do Coro da Achada.

Tirar a pele à linguiça e picá-la numa picadora. Colocar numa frigideira em lume brando, juntar a mandioca e envolver tudo.


Rosa Maria n.º 6 dezembro ‘13 · junho ‘14

banda desenhada

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Texto e Ilustração Nuno Saraiva

da capa à contracapa

Texto Ricardo Miguel Vieira Fotografia Helena Colaço Salazar

Chen Wue Hua

Na Mouraria como na Chen Wue Hua é desinibida diante de uma câmara fotográfica. Com 37 anos, rosto arredondado, cabelo curto e olhos recortados, sorri abertamente, faz poses e até graceja em chinês para o marido e a filha de 5 anos, que a acompanham na sessão, numa tarde de segunda-feira em Abril, no Mercado de Fusão do Martim Moniz. Foi com a mesma descontracção que dias antes esteve na Associação Renovar a Mouraria para cantar Amo-te China (um clássico de 1979, originalmente composto para o filme Compatriotas Além-Mar) e, depois, uma música tradicional indígena de Taiwan para o projecto A Música Portuguesa a Gostar dela Própria (ver pág. 5). “Gostei muito da experiência porque tive contacto com pessoas que estavam interessadas na minha música”, conta. Natural de Wenzhou, província de Zhejiang, no Leste da China, Wen Hua seguiu

os ritmos das pautas musicais por influência da família. Na escola estudou a arte e formou-se no conservatório, tornando-se professora de música, especializada em piano.

A pianista que agora é ama Em finais de 2008, deixou o ensino e rumou a Portugal, onde já se encontrava desde 2000 o marido, que trabalhava num restaurante chinês na linha de Sintra. A adaptação à nova realidade cultural e profissional não a atemorizou e garante que se sentiu logo em casa. “Gosto imenso de Portugal e deste clima. Mal cheguei, adaptei-me muito bem.” Passam agora, em Junho, cinco meses que vive na Mouraria, vinda da Tapada das Mercês. Mudou-se para estar mais perto da comunidade chinesa que conheceu na Igreja Evangélica

China chinesa de Arroios, ensinando canto e piano às crianças, paixão que a levou a criar uma actividade de tempos livres na sua própria casa. O seu lugar favorito na Mouraria é o Mercado de Fusão, onde brinca regularmente com a filha - uma espécie de chinatown lisboeta, onde se concentra a maioria dos sul-asiáticos da cidade, devido ao pólo comercial chinês ali existente. Wue Hua desconhece a música portuguesa e os seus protagonistas, mas alimenta o sonho estudar no conservatório em Portugal. Só lhe falta dominar o português, mas para isso ainda tem tempo, pois não tenciona voltar à China. Para Wue Hua, estar na Mouraria é estar em casa.

Chen Wue Hua ensinou piano a crianças na Igreja Evangélica chinesa de Arroios, e veio morar para perto delas


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