Rosa Maria nº8

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n.º

fevereiro ‘15 l junho ‘15 · semestral Associação Renovar a Mouraria www.renovaramouraria.pt directora l Inês Andrade distribuição gratuita

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reportagem

Texto Anabela Campos, com Marisa Moura e Miriam de Seixas Fotografia Rita Lopes · Infografia Luciano Rodrigues

Guerra ao lixo!

A campanha acabou e as multas estão aí. Saiba como a câmara municipal e a junta de freguesia estão a tratar do nosso lixo e como cada um de nós, moradores, pode manter o bairro asseado. bem, o problema são os restaurantes chineses instalados nos primeiros andares dos prédios que deixam os restos de comida no meio da rua. No sábado, põem o lixo depois da meia-noite – e ali fica até segunda-feira às sete da tarde”, aponta um dos críticos. “Há pessoas que deitam o lixo pela janela”, acusa outro residente – que preferiu não ser identificado, tal como os demais aqui citados. É uma questão de saúde pública. Salienta outro dos residentes auscultados pelo ROSA MARIA: “Os sacos ficam na rua várias horas e atraem os animais, que muitas vezes os rasgam, espalhando o lixo pelo chão.” Ou como diz um outro: “As crianças jogam à bola na rua e aquilo fica ali tudo espalhado.”

Críticas ao sistema

Papelão, plásticos de todas as formas e feitios, garrafas de vidro, cocó de cão, roupa velha, lixo e mais lixo (orgânico incluído)... Montes pelos cantos. Este foi o cenário habitual em toda a cidade de Lisboa no Verão, pelas festas dos santos populares – e já no Natal de 2013. As greves na recolha de lixo trouxeram o caos à capital e só pararam em Junho passado quando a câmara municipal contratou mais 150 funcionários. Aqui na Mouraria, tal cenário continua a ser familiar a moradores e turistas. Mesmo após a campanha de sensibilização que arrancou no passado mês de Novembro. Tal como a câmara, a junta de freguesia também reforçou os meios. Há melhoras, mas continua ser necessária uma atenção especial às estreitas, históricas e charmosas ruas da Mouraria. Miguel Coelho, presidente da Junta da Freguesia de Santa Maria Maior desde Setembro de 2013, reconhece que o lixo é um problema neste bairro – bem como em Alfama, que é outro dos cinco bairros da freguesia, além do Castelo, da Baixa e do Chiado. No Verão passado, a câmara dividiu tarefas com as juntas, na sequência da reestruturação administrativa implementada nas últimas autárquicas. A junta de Santa Maria Maior contratou uma dúzia de trabalhadores e adquiriu três carrinhas que, desde então, percorrem as ruas diariamente, com a missão de recolher o lixo que os fregueses colocam indevidamente no espaço público. Complementam o trabalho da câmara (veja o destaque na página ao lado). Cada equipa tem três funcionários, que podem até ajudar os fregueses a carregar objectos mais pesados das suas casas.

Metade do orçamento da junta é aplicado na higiene urbana. Em 2014 foram 2,5 milhões de euros. A junta emprega, nestas funções, um total de 76 pessoas, a maioria delas transferida da câmara. A sua obrigação é lavar e varrer as ruas, já que a recolha do lixo continua a ser competência municipal. As funções estão hoje bem definidas, após um conturbado período que também contribuiu para o caos cá no bairro. “Todas as reformas têm um impacto inicial que pode não ser ideal. É natural que tenha havido dificuldades, mas felizmente isso já está esquecido”, diz Miguel Coelho. Agora há duplicação na recolha, mas é uma decisão estratégica.

Um bairro difícil

A Mouraria continua, todavia, muito suja. Mesmo com mais contentores. Voltou a haver contentores para lixo orgânico, por exemplo, na Rua do Terreirinho, junto ao chafariz. Fez alguma diferença – mas pouca, ainda. A geografia acidentada do bairro é uma das causas para a infeliz situação, pois as ruas íngremes e as longas escadarias dificultam as operações. Além disso, a arquitectura dos edifícios impede a colocação de caixotes no seu interior, contribuindo para que os sacos de lixo fiquem à porta, no espaço público, demasiadas vezes fora de horas. Miguel Coelho admite que outra das causas é “alguma falta de civismo” por parte dos fregueses, daí a campanha de sensibilização. Alguns moradores são ainda mais incisivos nas acusações à vizinhança. “Os homens do lixo trabalham

“O sistema não funciona mal, as pessoas é que não respeitam. Já no tempo dos caixotes andava lixo pelo chão, porque as pessoas não abriam a tampa com medo de sujarem as mãos”, recorda este freguês. E porque deixou de haver contentores? “Em Abril de 2006, com o alargamento da recolha selectiva porta-a-porta, constatou-se que a grande maioria das habitações não tinha espaço para três contentores (lixo indiferenciado, papel/cartão e embalagens), tendo-se optado por fazer a recolha de todos os resíduos em sacos”, explica fonte do gabinete da vereação de Higiene Urbana e Estruturas de Proximidade da Câmara Municipal de Lisboa (CML). Há quem diga que o sistema “não funciona mal”, mas também há quem não concorde com isso. Nomeadamente quem mora nos últimos andares dos velhos prédios sem elevador, típicos do bairro. Descer e subir escadas só para

Saiba quanto terá de pagar se não cumprir a sua parte

Lixo fora do sítio: Pessoas singulares > de 50,50€ a 1.010€ Empresas e comerciantes > de 505€ a 5.050€ Alimentar animais > de 25,20€ a 101€ Remover ou remexer resíduos devidamente acondicionados > de 25,20€ a 101€ Falta de limpeza de áreas ocupadas por esplanadas, quiosques, rulotes ou bancas > de 50,50€ a 757,50€ Vazar águas poluídas, tintas ou óleos na via pública > de 252,50€ a 2.525€ Lavar veículos motorizados na via pública > de 25,20€ a 101€ Fonte: Regulamento de Resíduos Sólidos da Cidade de Lisboa (proposta n.º 447/2004 aprovada pela Câmara Municipal de Lisboa, na Reunião de Câmara de 23 de Junho de 2004); Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. Valores com base no salário mínimo nacional de 505€.


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deixar o lixo, sem aproveitar o giro para outras tarefas, não é fácil. É difícil, sobretudo, para a imensa população envelhecida, e a horas em que “já se está de pantufas”. Mas é difícil também para os que estão bem acordados de noite, a trabalhar. Há horários pessoais incompatíveis com o horário das recolhas – por exemplo, de “quem não tenha um horário das nove às cinco” (veja o Vox Mourisco na página 29). Depois, há incompatibilidades também no comércio: “Muitos estabelecimentos fecham antes da hora de recolha e acabam por pôr o lixo na rua antes do tempo”, comenta uma moradora.

Tem lixo para despachar? Chame estes senhores! » Na Junta de Freguesia de Santa Maria Maior,

os serviços de higiene urbana funcionam todos os dias, incluindo domingos. Se tem lixo de maior envergadura (os chamados monos), contacte--os pelo telefone 218 80 40 20 ou pelo email ambiente. urbano@santamariamaior.pt .

» Na câmara municipal também há uma linha só para recolha de monos. E é grátis. O número é o 808 20 32 32 e atende das 8h às 20h, de segunda-feira a sábado. É também neste número que pode pedir os sacos próprios para fazer a separação do lixo em sua casa.

Ano novo, vida nova

Miguel Coelho está empenhado em embelezar o rosto dos bairros históricos, por isso avançou com uma campanha de dois meses, que já era promessa eleitoral. “Para que as pessoas se apercebam de que, sendo certo que a autarquia tem responsabilidades, elas também têm de ser responsáveis se quiserem que a rua esteja limpa; têm de contribuir para isso, e a primeira coisa a fazer é não pôr o lixo fora dos horários”, explica. “Queremos manter as condições de saúde pública em níveis positivos.” O lixo atrai bichos e parasitas – e estes, por sua vez, doenças. O lema é: “A minha rua é linda quando está limpa.” Lê-se isto nos cartazes e também nos folhetos escritos em português, inglês, bengali e chinês. A campanha arrancou no dia 18 de Novembro com a distribuição destes materiais. Foi o início de uma semana de arruadas compostas pelos mais diversos representantes da comunidade – desde o padre católico da paróquia aos líderes das comunidades do Nepal (cultura hindu) e do Bangladesh (cultura islâmica), passando pelo director do jornal chinês Europe Weekly e pelos responsáveis das associações locais. E com a participação dos vereadores municipais

Lixo orgânico

Restos de comida e demais lixo indiferenciado (sacos pretos). Recolha diária, excepto domingos.

Embalagens e orgânico

Plástico e metal (sacos amarelos), duas vezes por semana. Lixo orgânico (sacos pretos).

Lixo orgânico

Restos de comida e demais lixo indiferenciado (sacos pretos). Recolha diária, excepto domingos.

Papel e orgânico

Papel e cartão (sacos azuis), uma vez por semana. Lixo orgânico (sacos pretos).

Lixo orgânico

Restos de comida e demais lixo indiferenciado (sacos pretos). Recolha diária, excepto domingos.

Embalagens e orgânico

Plástico e metal (sacos amarelos), duas vezes por semana. Lixo orgânico (sacos pretos). Os sacos de lixo ou contentores devem ser colocados na via pública entre as 19h00 e as 23h00, e recolhidos até às 10h00 do dia seguinte. Aos domingos e feriados não há recolha do lixo. Nota: Não existe recolha de vidro. O vidro deve ser colocado nos vidrões espalhados pelo bairro.

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Outros resíduos:

» Medicamentos fora de prazo e radiografias: entregue-os nas farmácias. » Lâmpadas fluorescentes e pilhas usadas: entregue-as nas lojas que as vendem novas (os super e

hipermercados são obrigados a aceitar as pilhas usadas) ou deite-as nos pilhões que há nos ecopontos.

» Óleos alimentares: contacte a AMI pelo telefone 218 362 100 ou pelo email reciclagem@ami.org.pt. Há

também os postos municipais do Campo das Cebolas (Rua Infante Dom Henrique, n.º 1; telefone: 218 136 052) e de Arroios (Mercado 31 de Janeiro, Rua Eng. Vieira da Silva; telefone: 213 540 988). Mais dicas: Pode esclarecer todas as dúvidas que tiver sobre o lixo no site da CML, numa página com perguntas e respostas sobre o tema, em www.cm-lisboa.pt/viver/higiene-urbana/perguntas-frequentes.

Duarte Cordeiro (Higiene Urbana e Estruturas de Proximidade) e Carlos Manuel Castro (Relações com o Munícipe, Segurança e Protecção Civil), acompanhados de entidades como os bombeiros sapadores e a polícia de proximidade. Todos se reuniram nesta campanha, que se fez rua a rua, loja a loja, casa a casa. E que tem réplicas semelhantes em freguesias como as de Arroios e São Domingos de Benfica, além de outras que se seguirão mais adiante.

Multas: a nova velha questão

O mês de Fevereiro marca a vida nova na Mouraria. “Vamos ter uma intervenção mais rigorosa, até na perspectiva de autuar quem não cumpre as regras. Senão, não há solução. Temos mesmo intenção de começar a aplicar a lei”, alerta Miguel Coelho. E as coimas podem ultrapassar os cinco mil euros para pessoas colectivas, ou seja, empresas e comerciantes (veja o quadro na página ao lado). Santa Maria Maior junta-se assim a uma tendência internacional, que em Portugal começou a ter eco sobretudo em 2004, quando José Eduardo Martins, então secretário de Estado do Ambiente do governo social-democrata de Durão Barroso, anunciou multas até 100 euros para quem não respeitasse a divisão nos ecopontos. Meses depois, no mandato do social-democrata Pedro Santana Lopes como autarca de Lisboa, foi aprovado o Regulamento de Resíduos Sólidos da Cidade de Lisboa, actualmente em vigor – e que fixa o valor das multas. A discussão voltou em 2011, ano em que a autarquia (presidida pelo actual autarca, o socialista António Costa) instaurou 112 processos. Os alegados prevaricadores são identificados através de dados encontrados no seu próprio lixo, o que tem levantado polémica. Em 2011, o advogado Luís de Menezes Leitão (também presidente da Associação Lisbonense de Proprietários) acusou a CML de violar a Constituição e o Código de Processo Penal no direito à vida privada. E não faltaram queixas sobre a probabilidade de se cometerem injustiças, pois quem deposita o lixo nos sacos não é necessariamente a mesma pessoa que deposita os sacos na via pública.

O silêncio sobre o tema imperou nos últimos três anos, até ao Verão passado. No calor das greves, a freguesia de Belém começou a passar as suas primeiras multas por lixo posto na rua fora dos horários (tal como, a norte, o concelho de Arouca). Pela mesma altura, o vereador Duarte Cordeiro afirmava que, em Junho, se iniciaria uma acção fiscalizadora conjunta com as juntas de freguesias, na qual se abririam sacos aleatoriamente, por amostragem, segundo noticiou O Corvo, site de informação sobre Lisboa. Passar multas é tarefa legalmente vedada à câmara. A junta fiscaliza, mas quem passa a multa é a polícia municipal. Diz Miguel Coelho: “Investimos bastante nisto e estamos a ficar em condições de poder exigir às pessoas um comportamento cívico.” O cerco à sujidade está a apertar. E toca a todos.


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notícias

A Igreja de São Cristóvão, construída no século XIII, precisa de obras. Por isso, entre várias acções de angariação de fundos, concorreu à sétima edição do Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Lisboa, em Novembro. Recebeu 844 votos, que lhe valeram o quarto lugar na categoria dos orçamentos até 150 mil euros. A mais votada de todas as 211 iniciativas a concurso foi, no grande prémio de 500 mil euros, a “U-Lisboa em Bicicleta”, para ciclovias que liguem os edifícios da Universidade de Lisboa dispersos pela cidade. O objectivo da paróquia era conseguir metade do milhão de euros necessários à recuperação da cobertura da igreja e das telas de Bento Coelho da Silveira – o pintor régio de D. Pedro II –, encomendadas aquando da reconstrução do templo, em 1672, após um incêndio que destruíra o original. A câmara ofereceu 75 mil euros para serem usados na divulgação das angariações de fundos, e não na obra em si. Na candidatura descrevia-se um “plano de divulgação associado à história da Igreja de São Cristóvão e ao seu acervo artístico”. A ideia é “dar visibilidade nacional e internacional ao monumento associando-lhe um programa de atividades artísticas e culturais direcionado para a comunidade onde se insere”. O projecto complementa os esforços que vêm a ser realizados, e que acodem apenas à manutenção do dia-a-dia: a campanha “Mil por Dez”, para donativos desde 10 euros, o “Sótão da Quinta”, onde se vendem objectos usados doados à igreja, e uma terceira iniciativa que consiste na venda de utensílios feitos em pano com reproduções do mural das Escadinhas de São Cristóvão. Agora, além de dinheiro, procuram-se pessoas com experiência em estratégias de financiamento e gestão de projectos. 3Filipa Chatillon

O jardim mais cinza do centro histórico A conclusão do Jardim da Cerca, entre a Mouraria e a Graça, estava planeada para 2009. Quase seis anos depois, o espaço que deverá acolher 178 espécies de plantas ainda só conta com uma: a erva-daninha. A obra parece amaldiçoada e nem as autárquicas de 2013 motivaram a conclusão daquela que será a maior zona verde no centro histórico da cidade. A descoberta de cinquenta esqueletos no início do ano passado provocou o adiamento das obras, primeiro para Abril, depois para Setembro. E há o testemunho da construtora encarregue da obra, a espanhola Fito Novo, sobre as facturas em atraso por parte da autarquia. As máquinas só regressaram ao terreno em Setembro. O espaço verde, esse, por agora, continua cinzento.3Carlos Moreira · Rita Lopes

Mundo aplaude o cante e o fado

Depois de o fado ter sido classificado como património imaterial pela Unesco, em 2010, agora foi a vez do cante alentejano, em Novembro passado. Nesse mesmo mês, o fado voltou à ribalta mundial na pessoa de Carlos do Carmo. Pela primeira vez, um português ganha um Grammy, o mais prestigiado troféu discográfico. Aos 74 anos, o fadista é galardoado na categoria Lifetime Achievement, um prémio pela sua carreira. A Mouraria fica mais rica com estas distinções – como bairro berço do fado e como bairro português.

Tráfico de droga na Mouraria

sob investigação

A PSP deteve 31 pessoas na Mouraria e seis delas ficaram em prisão preventiva. Foi o balanço comunicado pela Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa no passado mês de Outubro, dia 24, no final de vários meses de investigação aqui ao bairro. Algumas rusgas foram da percepção generalizada dos moradores. Foi o caso da que aconteceu em Agosto na zona do Terreirinho, incluída numa operação que envolveu também duas zonas da Margem Sul (Laranjeiro e Fernão Ferro), divulgada na imprensa. Mais recentemente, em Novembro, também foi bastante mediática uma grande operação na Damaia, com duzentos polícias a realizarem buscas em dezenas de habitações do Bairro 6 de Maio, pelas sete da manhã, com cinco detenções.

Círculo vicioso: Insegurança

afasta empreendedores do Intendente Há um ano, por esta altura, os bares Catch Up e Horiginal instalaram-se na Rua do Benformoso, perto do Intendente. Agora fecharam portas. Os proprietários acreditaram que, quantas mais casas novas abrissem, mais gente viria e novas dinâmicas se criariam naquela área de prostituição e de tráfico e consumo de droga. “No início até vinham muitos clientes, mas não voltavam”, explica Luís Simões, do Horiginal. O prejuízo começou a pesar. “Estava incomportável. Vamos mudar para outro sítio”, conta Ana Cosme, do Catch Up. A livre iniciativa empreendedora funcionou naturalmente, mas falhou o policiamento local. Perpetua-se assim o círculo vicioso que, por momentos, pareceu estar em vias de ser quebrado.

das falências aos vistos gold Dura há catorze anos a novela dos prédios Epul no Martim Moniz. Agora que estão quase prontos a habitar, surgiu um novo episódio: as ligações à Operação Labirinto, sobre alegada corrupção na atribuição de vistos gold a investidores estrangeiros. Cinco prédios, com 130 apartamentos, deviam ter sido inaugurados em 2003, pela empresa municipal Epul, e habitados por jovens. Mas o processo arrastou-se com descobertas arqueológicas, faltas de pagamentos pela Epul e falências de empreiteiros. Os jovens que tinham sido contemplados no concurso Epul Jovem acabaram por desistir. Só no passado mês de Outubro ficou vendida a maior parte dos imóveis, em leilão. Foram arrematados sobretudo por investidores chineses, numa operação com um valor base de 4,7 milhões de euros que rendeu 11 milhões. Adiante, vendidos todos os imóveis, o valor ascendeu aos 18,5 milhões de euros, arrecadados pela Epul – empresa que está em processo de extinção devido ao elevado passivo – à data da decisão, em Dezembro de 2012, eram 85 milhões de euros, a serem absorvidos pela Câmara Municipal de Lisboa (CML). Um dos pretendentes a imóveis da Epul Martim Moniz terá sido Zhu Xiadong, empresário investigado pela Polícia Judiciária, em buscas na CML no âmbito da Operação Labirinto. A sua oferta, todavia, terá sido coberta por outra superior, segundo o jornal Público. Semanas após o leilão, rebentou o escândalo dos vistos gold, que implicou a demissão do ministro da Administração Interna, Miguel Macedo. Foram detidas doze pessoas, incluindo empresários portugueses e chineses e altos responsáveis de entidades públicas como Manuel Jarmela Palos (director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), António Figueiredo (presidente do Instituto dos Registos e Notariado), Maria Antónia Anes (secretária-geral do Ministério da Justiça) e Albertina Gonçalves (secretária-geral do Ministério do Ambiente). Os vistos dourados foram uma medida criada em 2012 para atrair investimento para o país. Concedem autorizações de residência a estrangeiros externos ao espaço Schengen que invistam em Portugal por um período mínimo de cinco anos – seja através de transferências de capital a partir de um milhão de euros, seja criando, pelo menos, dez postos de trabalho ou comprando imóveis num valor mínimo de 500 mil euros. Nos dois primeiros anos, foram captados mil milhões de euros e concedida residência a cidadãos de mais de 45 nacionalidades. No total foram 1649 vistos, 75% dos quais para cidadãos chineses, especialmente de Macau. Ágata Ribeiro

A paróquia de São Cristóvão precisa de um milhão de euros. Conseguiu 75 mil no Orçamento Participativo. Mecenas procuram-se!

Micael Nunes

Carla Rosado

Uma ajudinha para o São Cristóvão!

Epul Martim Moniz:


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Crónica

Centro de Inovação da Mouraria Carla Rosado

abre em Maio

No dia 25 de Maio, abre o Centro de Inovação da Mouraria (CIM), o equipamento da Câmara Municipal de Lisboa no quarteirão dos Lagares, rico em achados islâmicos. Arranca, para já, como um espaço de trabalho para empreendedores, integrado na Rede de Incubadoras de Lisboa – aquém das expectativas das associações locais representadas pela rede Bairros. Os candidatos a ocupar uma das onze salas do CIM podem candidatar-se até Abril (data de início ainda pendente), nas áreas de multimédia, design, joalharia, azulejaria ou gastronomia, entre outras. O júri que escolhe os candidatos é composto por sete elementos, incluindo nomes como Eduarda Abbondanza, da Moda Lisboa, e Adriana Freire, da Cozinha Popular da Mouraria. O CIM nasceu de uma candidatura a fundos comunitários que refere “um potencial tesouro de património medieval e islâmico (...) que contribua para a identidade do bairro e dos seus habitantes” e o “acesso ao logradouro (...) para fruição da população.” Este é agora um ponto de discórdia. A Associação Renovar a Mouraria afastou-se do processo até que a câmara mostre abertura às ideias recolhidas nos últimos dois anos junto da população, através da Bairros – como, por exemplo, uma área museológica. A gota de água foi a informação de que o equipamento estaria fechado ao público. João Meneses, director executivo do CIM, explica ao ROSA MARIA que “o portão estará (pelo menos inicialmente) fechado, mas o acesso a várias actividades e à copa será, evidentemente, assegurado”. Garante que a câmara pretende manter o espírito inicial, mas que, primeiro, há que “perceber com exactidão as necessidades específicas dos empreendedores, evitando uma estrutura de custos fixos que possa comprometer a viabilidade económica futura do CIM”.3Marisa Moura

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Carlos Moreira tem hoje 62 anos. Nasceu em Fajão,

na Pampilhosa da Serra, veio para Lisboa em criança, mora em Massamá e é publicitário em Sintra. *

‘Belarmino’

faz cinquenta anos Aquando da morte do realizador Fernando Lopes, um jornal titulava “a segunda morte de Belarmino”. Não posso estar mais em desacordo. Nem com a primeira nem com a segunda morte. O seu Belarmino foi de tal modo inovador para o cinema português que não foi nem a morte do protagonista nem a do realizador que fizeram com que eles “morressem”, nem um nem outro. Não porque tenha sido o primeiro documentário ficcionado, mas pela sua imersão na vida de Lisboa, de um modo distante e desapaixonado, com um anti-herói que nos guiava por uma cidade que cruzávamos todos os dias mas que não dávamos por ela. No começo dos anos 60, quando aterrei no Bairro Alto para começar a trabalhar, aquele era um novo e grande mundo para mim. Se por um lado tinha a parte literária dos jornais e dos escritores que lá escreviam, mais os tipógrafos com grande tradição anarco-sindicalista e comunista, tinha a imensa maioria do povo do bairro que eram os estivadores, os operários, as peixeiras, os ardinas, as trabalhadoras sexuais, os biscateiros variados e muito pouca gente de fora a ver as vistas, que as vistas não eram de se ver. Naqueles tempos de puto com 10 anos, a sede de conhecer tudo era imensa e, dessas personagens do bairro, algumas eram demasiado marcantes para não se dar por elas. Havia um tipo que aparecia por lá muitas vezes, principalmente no quarteirão entre o Lisboa Clube Rio de Janeiro e o Portas Largas – a tasca das tascas. Não era muito alto, mas era bastante largo, encurvado e cheio de intrigantes marcas na cara. Os putos gostavam dele porque era um ídolo num bairro onde o “boxe do Rio de Janeiro” era rei. Não sei se ia lá treinar ou apenas falar com amigos de copos e murros, mas era uma presença constante. Quando o vi num cartaz dum filme, a coisa foi entre o espanto e o sorriso impante de conhecer um “famoso” com cartaz a atestar. Mais tarde, quando nos anos 70 mudei a vida para outros lados, via-o quase sempre no Largo de São Domingos de caixa de engraxar na mão ou sentado nela. Um dia engraxou-me os sapatos e tive uma sensação de desconforto, mesmo tentando eu convencer-me de que aquele era o sustento dele. Não tive coragem de lhe dizer quanto ele tinha sido um ídolo para mim. * Encontrámo-lo no Facebook a comentar um post sobre o 50.º aniversário de Belarmino, o filme de Fernando Lopes que estreou no dia 19 de Novembro de 1964 no cinema Aviz. Um documentário, ao estilo nouvelle vague, sobre Belarmino Fragoso, o célebre pugilista que começou a treinar aos 16 anos no Grupo Desportivo da Mouraria (onde depois foi treinador, na década de sessenta) e que, tal como retrata o filme, poderia ter sido dos melhores da Europa se tivesse nascido noutro país.

Texto Daniela Correia Silva

Elevadores e escadas rolantes na Mouraria

O projecto vai mesmo avançar. Depois da grande polémica nos tempos do autarca socialista João Soares, reedita-se a discussão sobre os elevadores. Na Mouraria, será instalado um funicular, na zona dos Lagares para a Graça, e umas escadas rolantes nas Escadinhas da Saúde, a ligar o Martim Moniz ao Castelo de São Jorge. O funicular tem lotação para quinze pessoas e interligação com o eléctrico 12, estando orçamentado em 1,7 milhões de euros. As escadas terão três lanços orçamentados em 789 mil euros. Na zona dos Lagares e das Olarias, além do funicular, está também previsto um parque de estacionamento (veja a infografia da página 9). A empreitada inclui mais dois elevadores para o Castelo, em Alfama e no Campo das Cebolas, e integra-se no Plano de Acessibilidade Suave e Assistida à Colina do Castelo iniciado em 2009. Não há previsões para as inaugurações, mas deverá ser lançado ainda este ano o concurso público para o arranque das obras. O projecto é deste executivo socialista de António Costa e está a cargo do vereador do urbanismo, Manuel Salgado. Este

salientou, no Verão passado, que o elevador que liga a Baixa ao Castelo, inaugurado em Agosto de 2013, com entradas nas ruas da Madalena e dos Fanqueiros, é usado por 60 mil pessoas por mês. É a nova geração de elevadores depois da onda do século XIX, no tempo da máquina a vapor, com o elevador do Lavra a inaugurar, em 1884, a moda que criou também o da Glória e o da Bica (entre outros já extintos, na Estrela, em São Sebastião e em zonas que agora voltam a ter: a Graça e o Chiado). Todos ao estilo do eléctrico da Carris e assinados pelo engenheiro Raoul Mesnier du Ponsard – também autor do elevador de Santa Justa, de arquitectura neogótica, que tanta polémica levantou sobre o seu “bom gosto”. Igual polémica levantou João Soares, em 2001, com o projecto de elevador da autoria de Adalberto Dias. O elevador que não chegou a ser construído levaria ao Castelo e começaria no Poço do Borratém, no prédio onde está a galeria da Abraço, ao fundo das escadinhas do Beco do Rosendo – onde é feito o ROSA MARIA.


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reportagem

Texto João Carlos Martins Fotografia Carla Rosado

A cultura segundo São Lázaro

Uma academia artística com vertente de inclusão social vai nascer junto ao Martim Moniz, na antiga Carpintaria de São Lázaro. O rosto do projecto é Marcos Barbosa, um dos programadores da Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura.

o concurso anunciado pela autarquia em Dezembro de 2013, e assinou o contrato no passado dia 3 de Novembro de 2014. Pedia-se “um projecto de âmbito cultural integrado, (...) que poderá incluir a instalação de um restaurante ou cafetaria” e que viesse “dinamizar cultural e artisticamente a cidade e, em particular, o eixo territorial junto à Praça Martim Moniz e bairro da Mouraria, muito próximo da Baixa Pombalina, promovendo acções culturais de proximidade”, segundo o caderno de encargos da autarquia. Por uma renda mensal mínima de mil euros, quem apresentasse o projecto mais sólido ficaria por dez anos (e no máximo trinta) naquele edifício, que estava devoluto desde os anos 90, após um incêndio ter destruído a carpintaria que ali laborou por décadas. Fica esta associação. Recebeu a mais alta pontuação numa corrida com estas entidades (por ordem de classificação): Armazém 13, Observador On Time, Take Off, Dream Relax/Onda City, Associação Hands on Arts, Associação Leonardo Da Vinci, Note – Edições e Eventos, Associação Solidariedade Imigrante e, por fim, a Funarte JBT. A Carpintaria de São Lázaro está a ressuscitar, como a bíblica personagem que lhe deu o nome, mas ainda está tudo por montar. A câmara fez as primeiras obras em 2011 e deu mais uns retoques em 2013, mas estão por tratar, por exemplo, os esgotos. Também falta acertar financiamentos, podendo haver fundos do Programa Europa Criativa. Para já, o que está já garantido, segundo declarações telefónicas de Marcos Barbosa ao ROSA MARIA, é a existência de um estúdio de gravação, além das salas para ensaios e escritórios, e a certeza de que todo o espaço funcionará como uma O edifício estava devoluto desde a década de 90, mas está a ser transformada numa academia com teatro, exposições e muito mais galeria de arte. Haverá também uma área com lotação para cem pessoas que Marcos considera “a grande força do espaço”. E que descreve como Só deverá abrir em 2017, mas já se sabe quem explorará o centro cultural “uma caixa negra com uma bancada móvel e uma teia que vão permitir idealizado pela Câmara Municipal de Lisboa para o espaço da antiga Car- utilizar o palco de três maneiras diferentes”. pintaria de São Lázaro, na porta 72 da Rua de São Lázaro. Chama-se Associação Cultural e Recreativa das Carpintarias de São Lázaro e tem como Mais arte na Mouraria porta-voz Marcos Barbosa, o director do vimaranense Teatro Oficina que O enorme edifício de art déco, com três pisos, ganhou vida – e a Moufoi o responsável pela programação da Guimarães 2012 – Capital Europeia raria vai beneficiar com isso. Um exemplo, segundo o director artístico: da Cultura na área das artes performativas. “Se temos uma comunidade do Bangladesh, se vai ser gravado um disCriada especialmente para este desafio, a associação integra também co, que colaborações é que se podem fazer, que músicos é que existem? o realizador Rodrigo Areias e o músico Manuel Fúria, bem como Alda Nós temos de criar estas colaborações e também perceber quem é que já Galsterer e Fernando Belo – directores, respectivamente, da Galeria está a trabalhar no território.” Outro exemplo: “Se a companhia X está a Belo-Galsterer e da agência de comunicação e eventos Única. Venceu trabalhar num espaço, quando se planeia o espectáculo e os ensaios dessa companhia, programam-se também os workshops, que podem ser com crianças, adolescentes ou adultos...”.

Sabia que...

Texto Francisco Melo Ilustração Nuno Saraiva

...o lintel da Rua da Guia está relacionado com o cristianismo iniciático? Ou com o cristianismo esotérico? Ou com o martinismo? Não se sabe ao certo com qual destas correntes, mas os símbolos pertencem a todas elas. Tem no centro uma cunha, que é possível que seja um acrescento para aproveitar o friso que estava quebrado, com a vieira que significa o nascimento, e em ambos os lados o bordão que ajuda o peregrino no caminho para a iluminação e as revelações divinas, que são o prémio no fim da viagem. Os símbolos à esquerda (que se repetem à direita) são a rosácea, a chave e as flores de miosótis e do lírio, que indicam respectivamente o renascimento místico, a abertura do Paraíso, o amor verdadeiro a Cristo e a entrega à vontade de Deus. Talvez pertencesse a uma casa particular anterior ao Terramoto de 1755 e o seu proprietário fosse um discípulo de uma destas escolas de pensamento místico-filosófico do século XVIII, mas o mais provável é que fizesse parte da Ermida de Nossa Senhora da Nazaré, destruída em 1755.


hábitos

Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15 Texto Teresa Melo Fotografia Pati Peccin

A arte de dar o nó

Em Moçambique, é um componente indispensável na indumentária feminina. Falamos de um pano rectangular cuja matéria-prima principal é o algodão, misturado com outras fibras, como a palha-da-costa ou casca de árvore. É estampado com cores garridas e padrões que exibem a fauna e a flora das savanas de Moçambique, mas também com elementos geométricos que revelam a forte influência árabe. Este pano tanto lhes serve para embrulharem os filhos junto a si, como para o estenderem no chão, onde se deitam a descansar nas longas caminhadas – ou a namorar (há quem diga que este é o principal uso dado à capulana). Com tanta versatilidade, não é de estranhar que se tenha tornado num hábito até hoje. Com

as capulanas, as moçambicanas produzem diferentes vestes e cobrem as suas cabeças num emblemático turbante. O pano é decorativo, mas serve também para proteger a cabeça do sol durante a lavoura. Além disso, carrega vigoroso simbolismo. As inúmeras formas de o amarrar representam o estado civil de quem o usa. É pelo turbante que os pretendentes sabem se podem ou não abordar as raparigas para um futuro relacionamento. A partir dos dez anos, as crianças aprendem esta arte com as suas mães e avós. Dobrando o lenço ao meio, num triângulo, enrola-se o tecido à cabe-

ça, rente à raiz capilar, de forma a que o cabelo fique totalmente coberto. Ao empurrar o lado esquerdo para dentro,

Rua a Rua

As Olarias – a palavra o diz – referem-se ao conjunto de fabricantes de louças de barro, de que esta encosta era fértil. Quando Lisboa foi conquistada em 1147 por D. Afonso Henriques e os mouros foram expulsos da cidade, foi-lhes permitido fixarem-se fora de muros, junto ao vale que veio dar origem à Mouraria. Perto da área que foi reservada para viverem, um pouco mais a oriente e na encosta dos montes da Graça e São Gens, abriam-se barrocais de barro que, pela sua riqueza em argila, foram locais pri­vilegiados para instalações de oficinas de artífices oleiros mouros, fabricantes de louça vermelha, género menor de cerâmica. No primeiro foral dado a Lisboa, em 1179, ainda pelo primeiro rei, era livre o fabrico de “ollas”. Aqui foi erguido

07

Casada ou solteira? Nas mulheres moçambicanas, a resposta está na forma de prender as capulanas à cabeça. o lado direito passa por cima. As extremidades do tecido mantêm-se de fora, para ajustar o pano à cabeça puxando ligeiramente as pontas. Quando o lado direito encontra o lado esquerdo, faz-se um nó. O segredo está aqui.

Antes do casamento, a menina deve ter o nó ligeiramente virado para um dos lados, com as pontas de fora (como as pétalas de uma flor) ou escondidas debaixo do nó. Se estiver casada recentemente, amarra as pontas do lenço atrás da cabeça, fazendo o nó bem perto da nuca. Contudo, se o casamento já tem muitos anos, o nó é feito à frente, por cima da testa. Na maioria das comunidades de Moçambique, é atribuído um enorme valor à capulana, um pano que é herança das relações comerciais entre os povos.

Texto Francisco Melo

Primeiro com os asiáticos e os árabes, e depois com os europeus – sobretudo com os portugueses (Vasco da Gama chegou a Moçambique em 1497 e a colonização reforçou-se no século XIX). A capulana começou a ser usada especialmente nessa altura, há dois séculos. Hoje, inspira as mais altas esferas da moda internacional. Nas passerelles, o turbante não é necessariamente fiel à simbologia, porque se privilegia a estética. Contudo, esta nova utilização contribuiu para a legitimação global da capulana como identidade e representação da população de Moçambique.

Argentina Malhoa, há 32 anos em Portugal, usa a versão de solteira

Largo das Olarias

o padrão comemorativo da tomada da cidade e se fundouo primeiro eremitério dos Agostinhos, onde estava há séculos a cadeira de São Gens. Em 1497, D. Manuel expulsou os mouros, mandou arrasar os seus muros, os seus campos e o seu cemitério (o almocávar), na encosta do monte do lado da Bombarda, e doou os terrenos ao município e ao Hospital de Todos os Santos do Rossio (ainda se vê no n.º 65 do Largo das Olarias uma placa de pedra com as letras S e O, iniciais de Sanctorum Omnium, o monograma do hospital). Começou então a urbanização do sítio em 1498. A maioria dos oleiros em Lisboa aglomeravase nesta área em fábricas e habitações de artífices, que se iam alargando para a Bombarda, a Travessa da Nazaré e a descida para o Benformoso. No século XVI, no seu começo, o sítio era especificamente dos oleiros. Nos anos 30 do século XVII, havia por aqui oitenta artífices oleiros e o Largo do Terreirinho era o sítio da venda (ou das tendas) das manufacturas de olaria. A criação de grandes fábricas no século XVIII, “modernas”, como a Real Fábrica de Louças do Rato, em 1767, fez entrar em decadência algumas olarias, mas há referências às que se man­tiveram até mais tarde, algumas no Largo das Olarias, na Cal­çada do Monte e na Rua da Bombarda.

Onde é hoje a área das Olarias pode adivinhar-se a zona industrial, com a Rua e o Largo das Olarias e a Calçada Agostinho de Carvalho, além do Forno do Tijolo – local onde haveria não apenas um, mas alguns fornos de tijolo. Um dos fornos que ainda estavam em actividade no ano de 1885 pertencia a uma das mais célebres famílias entre os oleiros: os Maias. Era herança de um dos antepassados, que viveu no século XVI, chamado Domingos. Convém citar também Agostinho de Carvalho, um importante industrial de cerâmica que dá o nome à rua onde vivia, em 1618, e o famoso Romão Duarte, no século XIX. Presentemente, das olarias não restam vestígios; resta a memória da sua actividade na Fábrica Viúva Lamego, ao Intendente (encostada à Bombarda, fazia ainda parte da área), e numa olaria do Desterro. O Largo das Olarias não é mais do que o alar­ gamento de uma rua que parte do Largo do Terreirinho, dirigindo-se para norte. Está aqui a Ermida do Senhor Jesus da Boa Sorte e da Santa Via-Sacra, edificada em 1764. Pode dizer-se que as Olarias são um expositor de arquitectura do que resta do velho bairro setecentista e oitocentista até às construções revestidas a azulejos do século XIX e princípios do XX. Conservam-se também pequenas casas com janelas de guilhotina e de aberturas com reixas.


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Rosa Maria n.º 8 fevereiro ‘15 · junho ‘15

reportagem

Texto Marisa Moura Fotografia Carla Rosado

Lisboa é “Município do Ano” graças à Mouraria…

… e a uma cidadã alentejana

O projecto Há Vida na Mouraria! valeu a Lisboa o maior prémio atribuído pela plataforma UM Cidades. Tudo começou há três anos, com a ideia da cidadã Sónia Barradas. Fomos ouvi-la.

“Assusta-me a apatia das pessoas”

Sónia Barradas nasceu em Odemira e vive na Póvoa de Santa Iria, que sempre foi o seu poiso em Lisboa, tirando uma passagem por Alcântara. Tem 28 anos. Passaram três desde que trouxe vida à Mouraria, inspirada nos seus trabalhos enquanto estudante de antropologia no ISCSP, sobre fado e habitação. Entretanto fez um mestrado na Escola Superior de Teatro e Cinema, dá aulas de expressão dramática a crianças do primeiro ciclo e é actriz. Recebeu-nos em Santos, n’A Barraca, em vésperas da estreia de Tartufo, a comédia de Molière sobre a hipocrisia dos devotos religiosos, de 1664. Sónia representa Elmira, personagem através da qual se revela o mau carácter de Tartufo. O que achas deste prémio, três anos após a tua ideia ter ganho o OP de Lisboa? Fico muito feliz ao constatar que houve algumas mudanças na Mouraria e que elas, até determinado ponto, resultaram de uma ideia minha.

O milhão de euros ganho no OP foi bem aplicado? A Mouraria está a ser reabilitada desde 2010, num investimento de milhões de euros vindos de fundos comunitários e municipais. Mas um destes milhões tinha um destino especial: melhorar a vida dos moradores – além dos edifícios e do espaço público. Chegou ao bairro através do Orçamento Participativo (OP) da Câmara Municipal de Lisboa (CML), por iniciativa da alentejana Sónia Barradas. Isto em 2011, estava ela desempregada, com 25 anos, a sentir-se “uma inútil”, de volta a casa dos pais na sua terra natal, Odemira. Licenciada em antropologia, tinha no currículo um emprego pontual no Museu Benfica e outro nos escritórios da Rosa & Teixeira. E aguardava por uma resposta da Multiópticas, que seria positiva. Ouviu na rádio um anúncio ao OP e concorreu “só para fazer alguma coisa”. Propôs a ideia de Museu Vivo, partindo dos conhecimentos que adquiriu sobre o bairro enquanto estudante, e um par de meses depois recebeu um telefonema do GABIP (Gabinete de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária) da Mouraria. Nasceu assim um movimento de apoio ao projecto, com algum marketing e uma mudança de nome para Há Vida na Mouraria!. Foi o mais votado de todos. E o bairro ganhou um milhão de euros. O movimento evoluiu depois para o célebre PDCM – Programa de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria, “para promover o desenvolvimento social e dinamizar o bairro, melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes e contribuir para uma maior abertura do bairro à cidade”, nas palavras da CML. Este programa municipal (recentemente transferido para a junta de freguesia) totalizou um investimento na ordem dos 14 milhões de euros, na primeira fase, até 2014. Assim foram financiados projectos como a Casa da Severa (voltou a haver fado no bairro onde ele nasceu) e várias entidades cada vez mais activas – desde o antigo Grupo Desportivo da Mouraria, de 1936, às associações mais recentes como a Renovar a Mouraria, a Cozinha Popular da Mouraria, a Largo Residências, no Intendente, ou a Crescer na Maior, que também actua noutros pontos de Lisboa, junto de pessoas sem abrigo e com dependências. Por tudo isto, Lisboa venceu a primeira edição dos Prémios Municípios do Ano, da Plataforma UM Cidades – Universidade do Minho. No passado mês de Novembro, distinguiu-se entre 98 candidaturas apresentadas por 65 municípios. Uma ironia curiosa: houve mais oito prémios, por regiões, e imagine que concelho alentejano ganhou? Sim, Odemira. E com que projecto? O Orçamento Participativo. O OP de Odemira, realizado desde 2011, é conhecido por ser dos mais participados e rigorosos do país. A odemirense Sónia Barradas, todavia, distinguiu-se no de Lisboa, que existe desde 2008. Falamos de uma forma de investimento adoptada por cada vez mais autarquias. Qualquer cidadão pode inscrever uma ideia no site da câmara, depois vota-se por SMS e as mais votadas ganham até um milhão de euros, para aplicar em projectos monitorizados pela própria autarquia. Desde o milhão da Sónia em 2011, a Mouraria já ganhou mais três vezes. Em 2012, com a Casa da Mobilidade e o Centro de Inovação da Mouraria (veja a página 5) e agora, em 2014, com as obras da Igreja de São Cristóvão (veja a página 4).

Não sei. Nota-se que o chão e alguns edifícios estão mais arranjados, mas não faço ideia de como estão as pessoas. Sei que o bairro está na moda, que toda a gente fala da Mouraria…

Não tens acompanhado os projectos?

Não. Quando ganhámos o OP, eu tinha começado a trabalhar, e depois comecei também um mestrado em teatro. Chegaram a dizer-me que poderíamos trabalhar juntos, mas percebi logo na cerimónia que não haveria espaço para isso. Também deixei de frequentar tanto o bairro. Tinha lá uma amiga italiana que vivia no Largo da Achada, mas ela foi para Londres. Agora é mais de passagem, quando subo para o teatro Taborda.

Em que gostarias de ter trabalhado aqui na Mouraria?

Algo ligado à antropologia. O objectivo era mudar um pouco a história de um bairro marginalizado desde sempre. Hoje não há muralhas onde ficam judeus e mouros, mas, há três-quatro anos, os moradores continuavam a ser pessoas marginalizadas.

Envolveste-te com o bairro enquanto fazias os trabalhos para a licenciatura… Sim. Quanto mais estudava, mais surpreendida ficava com o que encontrava. A lenda da Severa! Pensava: como é que isto não se sabe? A ideia do projecto era também levar lá as pessoas e elas darem um bocadinho de Portugal e receberam um bocadinho da China ou do Bangladesh, e crescerem assim.

Imaginavas que estarias a dar um contributo tão relevante?

Não. Fiquei surpreendidíssima logo no prémio do OP. Quando me ligaram da câmara para ir aos prémios, fui à pressa na hora de almoço. E quando anunciaram o quinto prémio, pensei: se não é o quinto, já não é mais nenhum. Mas ganhámos.

Há outro bairro onde gostasses de intervir?

A Madragoa. Há um plano para transformar o Lavadouro das Francesinhas num centro social. Percebo que seja importante, mas tem mesmo de ser ali onde ainda hoje há pessoas lavam a roupa? Aquilo conta parte da história desta cidade.

Achas que não se respeita a história?

É triste. Só quem quer saber, é que sabe. Quem não se interessa, também não lhe chega a informação. A apatia das pessoas é uma coisa que me assusta. As pessoas só se preocupam com o seu sofá quentinho no fim do dia.

O que é que cada um de nós pode fazer para acabar com essa apatia geral?

As pessoas dizem: “Que bandido! Mas não foi a mim que roubou...”. Foi sim senhora! Muitos desses bandidos estão a mandar no país e há pessoas que nem sequer têm dinheiro para irem ao médico. Mas depois… “Deixa-me cá ver o que é que se passa na Casa dos Segredos”. Há que perceber que acabamos por estar todos a ser roubados.


Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15 Texto Marisa Moura Infografia Micael Nunes

Estacionamento mais amigo do ambiente... e dos moradores

OL A

C. MÁRTIRES DA PÁTRIA

S RUA CAM

PO M

ÁRTIR

ES D

A PÁT

ANA SANT

RIA

Jardim Braancamp Freire

09

9 min.

Faculdade de Ciências Médicas

RUA DE SÃO TO

ADA CALÇ

PORTAS DO SOL

RAÇA

DA G

7 min.

GUIA

RUA D A

UT E

IR O

Zona de estacionamento proibido que residentes reivindicam para seu uso

Praça da Figueira

Bragaparques 720 0,60€ 1,00€ 2,35€ 2,70€ 4,50€

Bragaparques

Emel

Emel

499 0,80€ 1,30€ 2,30€ 4,30€ 6,30€

192 0,50€ 0,80€ 1,45€ 2,95€ 4,80€

152 0,60€ 1,00€ 1,80€ 3,80€ 6,20€

220 0,60€ 1,00€ 1,80€ 3,80€ 5,80€

Público Geral Residentes Comerciantes

158,00€ 85,01€ 3) -

210,00€ -

175,00€ 80,00€ 105,00€

135,00€ 50,00€ 110,00€

150,50€ -

Público Geral Residentes Comerciantes

-

178,01€ -

105,00€ 80,00€ 60,00€

99,00€ 37,00€ 74,00€

135,00€ -

Público Geral Residentes Comerciantes

72,50€ -

91,00€ -

70,00€ 40,00€ 50,00€

40,00€ 24,00€ 37,00€

72,50€ 27,00€ -

Operador Lugares 15 min 30 min 1 hora 2 horas 3 horas

Notas: 1) Estes são os preços para o período diurno, e este varia conforme os parques. Assim das 07h às 20h no Chão do Loureiro; das 08h às 20h no Martim Moniz, Praça da Figueira e C. Mártires da Pátria; das 09h às 20h nas Portas do Sol. 2) As avenças nocturnas permitem estacionamento por 24 horas nos feriados nacionais e aos fins-de-semana. Nas avenças, o período nocturno é fixado assim: das 18h às 10h no

Travessa do Jordão Escadinhas da Saúde Largo dos Trigueiros Escadinhas da Rua das Farinhas Escadinhas de São Cristóvão

C. Mártires da Patria 4)

Martim Moniz

Chão do Loureiro

Atenção aos degraus!

Esli/Empark

C. Mártires da Pátria; das 18h30 às 09h30 no M. Moniz; das 20h às 8h nas Portas do Sol; das 20h às 07h no Chão Loureiro. 3) Protocolo entre a junta de freguesia e a Bragaparques; Trata na junta mediante pagamento de caução e recebe dístico em poucos dias. 4) Os parques da Esli/Empark Aparcamientos y Servicios S.A. oferecem diversas formasde pagamento que incluem descontos. Há um sistema pré-pago de 8 euros por 24 horas e o Credipark: um cartão decarregamentos que permite ir pagando cada estacionamento com descontos de 25% (o cartão custa 5 euros).

lista de transportes

LA RG

PELÃ O

RUA

O CA

RUA D

p lista de

Preços Gerais 1) Avença Avença Avença Nocturna 2) Diurna 1) 24 horas

ON

Portas do Sol

EP SD

ques ar

UÊ RQ MA

Zona exclusiva para residentes com dístico EMEL

Zona sem estacionamento (apenas cargas e descargas)

A RU

DOS

CAV ALE IRO S

O NH IRI RE ER

D AN O estacionamento na Mouraria começou a ser reorde. TO 10 min AN S nado e há novas zonas intervencionadas. Primeiro, DE CARACOL A AD DA GRAÇA em Julho, foi proibido o estacionamento na Rua da Guia LÇ A C e no Largo da Severa, criando-se todavia uma área para GARES LA S DO A RU residentes. Depois, a empresa municipal EMEL passou a concessionar a Rua Marquês Ponte de Lima e a zona das Olarias: agora, só lá pode estacionar quem também O DO T lá residir e tiver um dístico próprio. LARG S O DA IA Castelo R S OL A L ARIA Em Maio, numa reunião com os moradores, o preside São S SO A Jorge D A dente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, TRAVESSA U R . DO JORDÃO 9 min Miguel Coelho, tinha equacionado a hipótese de haver também parquímetros para visitantes, mas em Outubro, quando a EMEL começou a actuar, explicou HO REIRIN O TER ao ROSA MARIA que tal decisão tinha sido desaprovada RUA D O 5 min. DO pela Câmara Municipal de Lisboa e que a solução, ÃO JO . RUA D R O BEN TE ESCA para quem vem de fora, são os parques de FORMO DIN DE SO DA S HAS RUA LIM A Ú DA DE estacionamento. RUA A MO 4 min. DAS URA FAR R IA (inclu i Travessa INH A Rua da Mouraria também fechou ao trânsito, podendo 4 min. CHÃO AS do Jordão) IRO DO LOURE apenas entrar veículos de cargas e descargas, e só PRA LARGO DO RUA ÇA D S OM TR S IG RUA DA PALMA UEIROS ÃO ART durante a manhã. PED IM M RO M ONIZ ÁRTI R Na Rua do Benformoso, o recanto onde costumavam ENA MARTIM ADEL DE estacionar meia dúzia de carrinhas foi transformado em zona DA M INHAS RUA DO P RUA ESCAD TÓVÃO MONIZ OÇO DO B O 6 mi RRATÉM S. CRIS de convívio: a Bem-Formosa Praça (veja na página 15). (inclu n. 8 min. da Sa i as Escad inhas úde) Os moradores, na maioria, andam satisfeitos. Os comerciantes, uns rezam (inclui as Escadinhas da Saúde) para que as medidas não afastem clientela; outros, como os do Benformoso, andam com os nervos em franja com as voltas que dão para estacionar. Para quem vem de fora, aqui fica o mapa do tempo e dinheiro que tem de gastar para chegar RATA PRAÇA DA DA P RUA FIGUEIRA às zonas agora interditas. E para os moradores, as condições para ter sempre lugar garantido. Mas fica desde já um aviso: as avenças para moradores, no parque do Chão do Loureiro, estão com listas de espera de três anos! Nas Portas do Sol, estão esgotados todos os tipos de avença. O melhor é mesmo Parque de Ponto de lazer privilegiar os transportes públicos – até são mais estacionamento legenda ecológicos.

75 degraus 122 degraus 81 degraus 47 degraus 92 degraus

Autocarros 708 M. Moniz 734 M. Moniz 760 M. Moniz

208 Praça da Figueira 714 Praça da Figueira 737 Praça da Figueira

Eléctricos 12 M. Moniz

15 Praça da Figueira

28 M. Moniz

Metro Linha Verde Rossio Martim Moniz

Linha Azul Restauradores


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Rosa Maria n.º 8 fevereiro ‘15 · junho ‘15

editorial

Carla Rosado

Emocionei-me bastante ao ler esta edição, cheia de notas muito interessantes sobre migrações. Chegaram a vir-me as lágrimas aos olhos ao ler a história por detrás da pintura do Bazar da Severa. Tocou-me particularmente, talvez por ser mulher (eu, a Rosa Maria). Enterneceu-me a união de culturas e a vizinhança, mas indignou-me a hierarquia islâmica que apaga a existência feminina. No entanto, senti um profundíssimo respeito pelas decisões mais íntimas de cada mulher. E sentir isso desconcertou-me ainda mais. O que é que uma pessoa há-de pensar sobre isto?! Nesta edição cheguei também a sentir medo. Sim, medo. Medo que, pela má conduta de alguns, outros aproveitem para generalizar e fomentar a xenofobia. Pensei nisto ao ler sobre os vistos gold e a alegada corrupção que envolve empresários da China. Oiço amiúde neste bairro comentários antipáticos sobre as pessoas chinesas, e isso choca-me. Choca-me a intolerância, mas ela entra por todas as portas, sem pedir licença. Por vezes, entra a matar. Do mais recôndito recanto da Mouraria à redacção do jornal Charlie Hebdo, em Paris, ela aterroriza-nos nos cinco continentes e há demasiados séculos. Chocou-me, por exemplo, no Verão passado, a quantidade de comentários hostis para os crentes islâmicos que li no Facebook, a propósito da oração de Ramadão no Martim Moniz, numa altura em que a guerra entre Israel e a Palestina estava ao rubro. Choca-me que essa guerra continue há dois séculos. Isto para não falar das Cruzadas há novecentos anos, da Inquisição católica e de episódios concretos como o Massacre da Páscoa, aqui mesmo no Largo de São Domingos, que hoje é ponto de encontro de imigrantes. Em plenas Descobertas, durante três dias, duas a quatro mil pessoas foram queimadas por, alegadamente, serem judias. Tudo porque, durante uma missa, quando uma luz cintilou no altar sugerindo uma aparição milagrosa, alguém ousou dizer que se tratava de um reflexo do sol. “Em memória dos milhares de judeus vítimas da intolerância e do fanatismo religioso assassinados no massacre iniciado a 19 de Abril de 1506 neste largo”, diz o monumento inaugurado em 2008. E nas paredes, em mais de trinta línguas, lê-se: “Lisboa, cidade da tolerância.” Entretanto, o mundo continua nisto... “Nunca, na história recente, tantas crianças foram submetidas a tal brutalidade indescritível”, lamentou há pouco tempo o director da Unicef, Anthony Lake. Penso cada vez mais naquela música do John Lennon que diz: “Imagine there’s no countries. It isn’t hard to do. Nothing to kill or die for. No religion too. Imagine all the people living life in peace”. Imaginem que não havia países. Não é difícil de tentar. Nada por que matar ou morrer. Nem religião havia. Imaginem todas as pessoas a viverem a vida em paz.

s

Mais um prédio arranjado cá no bairro. Agora ainda dá mais gosto beber uma ginjinha nos Amigos da Severa ou cortar o cabelo no Miki Feher, na Rua do Capelão. Ágata Ribeiro

Em estado de choque

está bem · está mal

Será assim tão difícil arranjar de vez o chafariz do Largo dos Trigueiros? Seja Verão ou Inverno, está seco. As torneiras são arranjadas, mas logo se avariam. Para quando uma solução?

ROSA MARIA · Estatuto Editorial O ROSA MARIA é um jornal sobre as pessoas e os acontecimentos da Mouraria, mas também sobre assuntos nacionais e internacionais relacionados com os seus residentes, criado para preservar e divulgar o seu imenso património humano, histórico e cultural. O ROSA MARIA é um jornal comunitário produzido por todos os que queiram participar (jornalistas, fotógrafos, ilustradores, designers gráficos, voluntários e moradores ou trabalhadores do bairro) e que se pautem pelos princípios da solidariedade, do rigor e da qualidade. O ROSA MARIA é parte integrante da comunidade em que se insere, mas totalmente comprometido com o código deontológico que enquadra o exercício da liberdade de imprensa e independente de facções religiosas, políticas e económicas. O ROSA MARIA é editado pela Associação Renovar a Mouraria desde 2010, com periodicidade semestral. O seu nome é inspirado na mítica Rosa Maria imortalizada no fado Há Festa na Mouraria – uma mulher atrevida e virtuosa, como esta publicação.

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NOTA: Esta presente edição deveria ter saído em Dezembro de 2014. Sai em Fevereiro de 2015 devido a dificuldades na angariação de publicidade para pagar a impressão. FICHA TÉCNICA · Direcção: Inês Andrade Direcção Gráfica: Hugo Henriques Edição Editorial: Marisa Moura Edição Fotográfica: Carla Rosado Tradução para mandarim: Jorge Gonçalo Alexandre Passatempos: João Madeira Texto: Anabela Campos, André Alves, Carlos Moreira, Daniela Correia Silva, Diana Correia, Filipa Chatillon, Francisco Melo, Frederico Duarte Carvalho, João Berhan, João Carlos Martins, Maria Coimbra, Maria Sousa Dias, Maria Vidigal, Marisa Moura, Miriam de Seixas, Nuno Catarino, Nuno Franco, Rita Pascácio, Teresa Melo, Viviane Carrico e Vladimir Vaz (Coluna da Cidadania) Fotos: Ágata Ribeiro, Carla Rosado, Catarina Lino, Frederico Duarte Carvalho, Helena C. Peralta, Maria Sousa Dias, Maria Vidigal, Pablo Lopez, Pati Peccin, Rita Lopes, Rita Pascácio, Vitorino Coragem Ilustração: Alexandra Belo, Ernesto Possolo, Maria Vidigal, Micael Nunes, Nuno Saraiva, Pati Peccin, Vasco Bicho, Vítor Mingacho Infografia: Luciano Rodrigues, Micael Nunes Capa: Pablo Lopez · Agradecimentos ao Aytor Molina, à Eva Neira, à Joana Deus e à Olaia Tubio pela ajuda em pesquisas · Publicidade: Susana Simplício, Filipa Bolotinha, Tamara González López; Bruno Caracol (apoio gráfico no âmbito do programa Banco de Tempo) · Propriedade: Associação Renovar a Mouraria Redacção, administração e publicidade: Beco do Rosendo, n.º 8, 1100-460 Lisboa, Tel.: +351 218 885 203, Tm.: +351 922 191 892, rosamaria@renovaramouraria.pt Impressão: Funchalense – Empresa Gráfica S.A. Distribuição: Associação Renovar a Mouraria Versão digital: www.renovaramouraria.pt Tipos de letra: Lisboa e Tramuntana > Ricardo Santos · Depósito legal: 310085/10 Periodicidade: Semestral Tiragem: 10 000 exemplares Número oito, Fevereiro 2015 N.º Registo ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social): 126509


reportagem

Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15 Texto Nuno Franco Fotografia Vitorino Coragem

O Centro Republicano

agora é chinês

Na Rua do Benformoso, o prédio cor-de-rosa, pintado em Outubro, chamou-nos a atenção. E a nova placa do Centro Republicano, mais ainda. Fomos ver, e... há um novo proprietário.

Normalmente entro pela porta da Rua do Terreirinho e deparo-me com aquele jogo da laranjinha, semi-degradado, abandonado ao esquecimento. Ainda sou do tempo em que se jogava a laranjinha na Mouraria. Animadas partidas ao fim de tarde, num tempo em que o contador de pontos não parava e o bar facturava cheio de movimento. Hoje, o edifício que alberga o Centro Republicano (e também um cabeleireiro e lojas de revenda) pertence a um chinês que o comprou ao último dos quatro proprietários dos últimos quarenta anos. Recuperou a fachada do lado da Rua do Benformoso e aceitou manter o tradicional espaço do Centro Republicano, respeitando o facto de ser uma associação tão importante e simbólica em Lisboa. Encontro hoje o casal Amílcar e Salomé Ramos, a conversar um pouco em família com vizinhos e sócios do centro.

Há mais estudo na Mouraria!

Este ano lectivo não há desculpas para más notas. A oferta de explicações multiplicou-se. No ano passado, a Associação Renovar a Mouraria oferecia explicações às segundas, na associação, e às quartas, no GABIP Mouraria, especialmente para ciências e matemática. Este ano, com a abertura de uma nova sala, há voluntários diariamente disponíveis para ajudar alunos, desde o primeiro ao 12.º ano. É grátis e exclusivo para moradores do bairro. A junta de freguesia também arrancou com um serviço de explicações, mediante um pagamento simbólico. E há, claro, o centro de estudo da Ana Rocha, no Beco dos Cavaleiros, para quem pode pagar. Entretanto, por falar, em aulas… Continua prevista a mudança da escola básica da Madalena para a nova escola no Campo de Santa Clara, no antigo Convento do Desagravo. O momento é que continua a ser uma incógnita.

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Há trinta anos que zelam diariamente pela abertura do espaço. A Amílcar, um republicano ainda activo que nunca falta à romagem ao Cemitério do Alto de São João no dia 5 de Outubro, onde se homenageiam as figuras republicanas que foram os obreiros desse tempo revolucionário, encontro-o muitas vezes na Rua da Mouraria, sentado num daqueles bancos, a conviver com todos os que ali passam, independentemente da sua etnia. Salomé, cozinheira de mão cheia, recebe-nos no bar com um sorriso, sempre atenta às novidades que lhe trago. Tem sido neste espaço que nos últimos três anos se fizeram as reuniões do Programa de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria, debaixo do olhar atento de Afonso Costa e do próprio Almirante Reis. O Centro Escolar Republicano Almirante Reis foi fundado a 1 de Abril de 1911, na Rua do Benformoso, n.º 50, 1.º, no popular bairro da Mouraria, onde nasceram mais de duas dezenas de espaços, jornais e escolas inspirados nos valores da República. Cândido dos Reis, o almirante que deu nome a este centro e à popular avenida lisboeta, vizinha do nosso bairro, nasceu a 16 de Janeiro de 1852, em Lisboa. Oficial da Marinha, foi o líder militar da revolução de 5 de Outubro (o líder civil foi o psiquiatra Miguel Bombarda). Suicidou-se no dia anterior, a 4 de Outubro, ao julgar que tinha falhado o levantamento revolucionário que levaria à Proclamação da República (Bombarda seria assassinado ainda antes, dia 3, no seu gabinete do Hospital de Rilhafoles – actual Hospital Miguel Bombarda – por um alegado doente mental). Hoje, o Centro Escolar Republicano Almirante Reis é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, cuja presidente, Maria Helena Correia, dirige apesar dos ventos não serem favoráveis à memória histórica. No início, havia cursos de instrução primária para rapazes e cursos nocturnos para adultos, com o intuito de educar os 75% de analfabetos existentes. Devido à sua acção educativa, o centro foi considerado uma instituição de utilidade pública por decreto. Teve um papel activo na história da oposição democrática ao Estado Novo por, nomeadamente, ter cedido as suas instalações para a realização de encontros e reuniões políticas. Entre estas, merece particular relevo a reunião fundadora do MUD – Movimento de Unidade Democrática, a 8 de Outubro de 1945, que esteve na base da candidatura de Norton de Matos à Presidência da Republica em 1949, tendo-lhe sido por isso atribuída a Ordem da Liberdade em 1987. Por aqui passaram João Lopes Soares (pai de Mário Soares), o próprio Mário Soares, Salgado Zenha, Jorge Sampaio e tantos outros ligados à luta contra o regime ditatorial de Salazar. Explica-nos o nosso interlocutor que, por haver aqui duas portas – a da Rua do Terreirinho e a da Rua do Benformoso –, quando a PIDE actuava, os que ali estavam reunidos conseguiam fugir. E que Ramon de La Féria, antigo grão-mestre da Maçonaria Portuguesa, foi durante muito tempo o presidente da mesa da assembleia geral do centro. E que aquele espaço serviu para as exéquias do motorista de Humberto Delgado. Desactivado um pouco antes de 1990 enquanto entidade educativa, hoje mantém apenas um pequeno bar. Nele acontecem alguns momentos festivos da comunidade islâmica do bairro, nomeadamente durante o Ramadão, bem como alguns eventos da comunidade hindu.

Uma sessão de estudo na Associação Renovar a Mouraria, com a Cátia Bacalhau, uma das dezoito pessoas que fazem voluntariado neste serviço


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reportagem

Texto Nuno Franco Fotografia Catarina Lino

Just a Change:

uma simples mudança na vida de um idoso

Amélia tem 80 anos. Na Mouraria, é a segunda pessoa a beneficiar deste tipo de pequenas remodelações pela Just a Change (uma simples mudança). Um dos quartos interiores, sem janela nem respiração, era húmido; a tinta estava enegrecida, as paredes rachadas, os tectos estragados. A roupa nos armários embolorecia; a cama, bem como o restante mobiliário,foi-se deteriorando. Numa conversa com a assistente social da Associação Mais Proximidade Melhor Vida, Leonor Barbosa, contactou-se a Just a Change. É uma organização de voluntários formada há quatro anos por um grupo de amigos que remodelam habitações degradadas de idosos lisboetas carenciados, ou espaços de instituições de solidariedade social. O seu objectivo é “proporcionar alterações significativas nas condições de habitação de quem delas carece, com o objetivo de se tornarem pontos de esperança na sua vida”. Os fundos são angariados através de espectáculos de rua e donativos de empresas, ou mesmo com apoios de empresas na área da construção civil, que cedem os materiais – como é o caso das tintas Dyrup. A associação já remodelou cerca de quinze casas particulares e sete instituições. Foram cerca de 700 voluntários, num total de mais de mil horas de trabalho. Estima-se que cerca de 400 pessoas tenham sido beneficiadas. A maioria dos voluntários são jovens universitários das mais diversas e díspares universidades de Lisboa, como o Instituto Superior Técnico ou a Faculdade de Arquitectura. Os mais experientes dão formação aos “caloiros”. Começam os trabalhos logo às oito da manhã. Depois, a seguir ao almoço, prosseguem com o segundo turno. Poucoapouco,recuperam-secasasdeidosos,dando-lhesumavidamelhoremaisdigna. E a mudança acontece.

Outra vez Os Maias,

outra vez a Mouraria

O bairro da Mouraria tem sido abordado por inúmeros autores, desde o nosso contemporâneo Manoel de Oliveira (veja Mouraria nas Artes, na página 26) ao oitocentista Eça de Queirós. No livro Os Maias, ele referiu a célebre “sarrabulhada na Mouraria” – apontamento com que estreámos a nossa rubrica Mouraria nas Artes, no ROSA MARIA número zero, em 2010. Agora Os Maias estão no cinema, numa criação de João Botelho, e a Mouraria voltou a ter tempo de antena. E reforçado. Estávamos muito bem a ver o filme quando… Olha! A Maria Joana Figueiredo! Há um momento de fado interpretado por duas figurantes, e elas são nossas vizinhas. É a Maria Joana Figueiredo, que realizou o documentário Ai Mouraria... Curtas do Bairro, e a Rita Tomaz, artista plástica (na foto, à direita). Interpretam o Fado do Vimioso. A letra, segundo o investigador João Vieira Nery, terá sido escrita por Sales Patuscão, um moço de forcado do Conde de Vimioso, ou seja, do grande amor da prostituta Maria Severa Onofriana – a mãe do fado, falecida aos 26 anos, em 1846, quando Eça de Queirós tinha apenas um aninho. Os Maias – Cenas da Vida Romântica estreou nas nossas salas no dia 11 de Setembro, com um estrondoso êxito, e com uma versão televisiva a estrear na RTP este ano. E também nos cinemas brasileiros. É a caricatura de um Portugal iletrado, amoral e com problemas de mão-de-obra onde é difícil encontrar profissionais de brio, seja “um bispo” ou “um bom estofador”. Dois séculos depois, eis Os Maias, tão actuais.

Texto Marisa Moura Fotografia Carla Rosado

Dois “expressos” do oriente São os dois únicos jornais chineses feitos em Portugal para chineses, ambos semanários. Um está na Mouraria e chama-se Europe Weekly. O outro é o PuXin e acaba de mudar-se para Arroios. Só há dois jornais para chineses em Portugal e ambos estão por aqui. Não é de estranhar. Metade dos vinte mil chineses oficialmente imigrados em Portugal reside em Lisboa, e a maior parte desses, segundo o Instituto Nacional de Estatística, está na freguesia de Arroios, vizinha do nosso bairro. É aqui na Mouraria – sobretudo na zona da Praça Martim Moniz – que milhares deles trabalham, seja em armazéns de revenda ou em restaurantes, supermercados, cabeleireiros, agências de viagens e em outras actividades mil. Foi por isso mesmo que Liang Zhan, director do semanário Europe Weekly, se mudou com a sua redacção de Rio de Mouro (onde o jornal nasceu, em 1999) para Lisboa. Primeiro para a zona de Arroios, na Rua Pascoal de Melo, em 2004. Depois, em 2009, para a Mouraria. “Para estar mais próximo da comunidade”, nas palavras deste professor que está em Portugal desde 1991. Aqui se tornou jornalista e abriu o trilho da imprensa dirigida à comunidade chinesa – a sexta maior no país (veja na página 22). Na Rua da Mouraria, o primeiro andar da porta 70 é ocupado há seis anos pelos atentos repórteres do Europe Weekly – originalmente chamado PuHa TongXun, ou seja: “Português, Portugal–China”. Bem perto, na Rua da Palma, surgiu o PuXin (Novo Chinês em Portugal), em 2005. Este é dirigido por Ma Limei, uma professora de chinês que veio para Portugal em 1999 fugindo à política demográfica do estado chinês que, desde a década de 70 e até 2013, proibia mais de uma criança por família. Chegou grávida de quatro meses e cá teve a segunda filha chamada... Vitória! A irmã mais velha, Hanki, de 17 anos, é quem trata do design do jornal. Entretanto, devido à crise, foi necessária uma recapitalização. Com novos investidores (a PXHR, Media e Publicidade), a redacção mudou-se para a Praça do Chile, na freguesia de Arroios, no passado mês de Novembro. O PuXin sai às segundas, custa um euro (por vezes é oferecido) e tem tiragem de 2000 exemplares. O Europe Weekly sai às quintas, custa mais trinta cêntimos e imprime mais mil cópias. Ambos têm uma equipa com meia dúzia de pessoas, ambos se vendem em supermercados chineses e ambos são impressos em Espanha.


reportagem

Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15 Texto Marisa Moura Fotografia Ágata Ribeiro

A Severa islâmica

O ombro teve de ser coberto e o decote ajeitado, mas no fim todos adoram. O que diria Severa (a rameira mãe do fado) sobre a pintura que nasceu em Setembro junto à casa onde nasceu e viveu?

“Qualquer publicidade tem de ser realmente original”, diz Fátima, nascida e criada na Mouraria, filha de mãe portuguesa e pai indiano imigrado em Moçambique. E casada com o paquistanês com quem já geriu dois restaurantes (um na Rua do Benformoso e outro no Poço do Borratém), que fecharam por ser “muito difícil gerir um sítio que não venda álcool” – para estar em conformidade com a filosofia halal islâmica (veja na página 23). Neste minimercado também não há bebidas alcoólicas, mas compensa porque a renda “é em conta”. Com o sétimo ano de escolaridade, Fátima trabalhou dois anos numa das melhores “escolas” de merchanding do mundo: O Hard Rock Café, conhecido precisamente pelas t-shirts e outros brindes promocionais. Desde que se converteu, deixou de trabalhar na relação directa com o público. Agora faz parte da gestão do Bazar da Severa e do negócio de arrendamento de apartamentos que sustenta a família, mas quem dá a cara é sempre o marido.

O reclame do Bazar da Severa nasceu em Setembro e enriquece a Mouraria, pela obra e pela maneira como aconteceu, em espírito de comunidade. Foi pintada por Duarte Eiró, Patrícia Cunha e Vanda Motta Vieira, do Beco do Imaginário, um ateliê inaugurado em Agosto no beco com esse mesmo nome. Aí mora também o casal luso-paquistanês que encomendou a obra, donos do novo minimercado halal do Largo da Severa. A ideia foi da Fátima, 31 anos, convertida ao islamismo há sete e casada há três com com Tahir Gujjar. “Queria que se percebesse que não era uma loja apenas portuguesa, nem apenas indiana/paquistanesa. E tinha de ser uma senhora sem cara porque nós não mostramos a cara. O lenço é islâmico mas tem alguns traços dos xailes do fado, notas musicais…” Tem também uma lamparina, como as que se usam no Paquistão. Mas esta foi inspirada numa que estava no ateliê Beco do Imaginário, oferecida por vizinhos – como quase tudo o que Vanda Motta Vieira, a educadora de infância que mudou de lá está, para ser recuperado com arte e senso ecológico. vida e abriu o ateliê que assina esta obra, o Beco do Imaginário

Bicos-de-obra

Vasco Bicho

Se uma obra incomoda muita gente, uma obra num bairro antigo como a Mouraria incomoda muito mais. E mais ainda se for em ruas estreitas como a Calçada Agostinho de Carvalho. O insólito aconteceu no número 11-A, onde uma loja devoluta foi transformada num T1 habitável. Um servente passou seis horas na esquadra da Rua da Prata, até perto das onze da noite! A polícia foi chamada por uma moradora que viu cortarem dois pilaretes para estacionar a carrinha que daria suporte diário à obra, por dois meses, até Outubro. Havia licença e a junta de freguesia estava ao corrente da situação, mas a vítima – imigrante do leste europeu – teve azar: não tinha consigo a documentação pessoal. Só à noite os documentos chegaram à polícia. Perdeu--se uma tarde de trabalho e ganharam-se alguns nervos, mas ficou uma certeza: neste bairro, zela-se pelo património com unhas e dentes.

Evite dores de cabeça!

de Situação! ReFood

A associação ReFood está para instalar-se cá no bairro desde Maio de 2013. Já esteve prestes a conseguir três ou quatro locais para se instalar, mas os esforços têm acabado gorados. Pelo meio houve as autárquicas, que também atrasaram o processo. O responsável desta unidade é João Pedro Moreira, ex-tesoureiro da extinta junta do Socorro, por isso optou-se por manter as águas separadas evitando acusações de eleitoralismo, como aconteceu noutros bairros. Agora são os locais que continuam a não aparecer. Mas a iniciativa está activa e a qualquer momento pode abrir. E começar a distribuir pelos mais carenciados, diariamente, a comida que não foi consumida nos restaurantes.

Esquadra

O posto da PSP, na Rua da Mouraria, é uma das catorze esquadras que fecham, no âmbito da reestruturação anunciada pelo Ministério da Administração Interna já em 2012. Abrem seis, maiores. Vai fundir-se com a do Rossio em novas instalações junto ao Martim Moniz, no antigo Palácio da Folgosa. No início de 2014 tornou-se mediática toda a reestruturação e previa-se que a esquadra da Mouraria mudasse em Abril, mas as obras continuam nas futuras instalações, na porta 169 da Rua da Palma. São mais um caso de “Santa Engrácia”. Começaram em 2011, para durarem seis meses. Ainda estão em curso.

Sala de Consumo Assistido

Parecia que desta seria de vez. Portugal teria a primeira sala de consumo assistido após quinze anos de hesitações. Já estava um espaço escolhido na Rua da Palma, perto da nova esquadra. Em Abril, um relatório técnico dava como certa a opção. Só faltava a luz verde política da Câmara Municipal de Lisboa. O relatório tinha o cunho da Administração Regional de Saúde (ARS) e do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD – antigo Instituto da Droga e da Toxicodependência. Cada uma das entidades teria também de emitir um despacho. Falta o da ARS. Pode nunca aparecer, se não houver vontade política. BBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBB t BBBBBBBB

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Se vai fazer obras, não mexa uma pedra sem antes se dirigir à câmara municipal (na Rua Nova do Almada, n.º 2, 3.º andar, das 8h às 20h). Daí, eles enviam o seu processo para uma das cinco Unidades de Intervenção Territorial (as chamadas UIT). A da Mouraria é a UIT do Centro Histórico, e fica em Alfama, na Travessa de São Tomé, n.º 5. Não tem de se dirigir à junta de freguesia – esta é contactada pela UIT, tal como as outras entidades envolvidas na obra, como por exemplo a Direcção Municipal de Tráfego. Se a obra for pequena, pode atalhar caminho e ir directamente à UIT. Se a obra tem que ver com hotéis, a casa de partida é o Campo Grande, n.º 13.

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notícias ARM

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Beleza para todas e todos Todos estiveram representados na apresentação do “Mouraria Integra”, no passado dia 23 de Outubro, na Mouradia. E não faltaram também, claro, vários imigrantes que deram os seus comoventes testemunhos sobre esta nova iniciativa e a sua anterior experiência na associação.

Café Suspenso:

Deixe pago para quem precisa! Lançámos na nossa cafetaria uma ideia que veio de Itália e que esperamos que se estenda por todo o bairro e país: deixar pago um café, ou outro “quentinho”, para quem não pode pagar. Na Renovar é isso, e um pouco mais.

“O café está suspenso?”, perguntou o vizinho José quando se aproximou do balcão da nossa cafetaria e viu um quadro de ardósia com a indicação “Café Suspenso”. “Quer um café, vizinho?”, perguntou a Sandra atrás do balcão da cafetaria da Mouradia. “Se quiser, pode beber um e pagar dois, o que não beber fica assinalado neste quadro para alguém que precise e não tenha como pagá-lo.” Quem diz um café, diz outras bebidas quentes, uma sandes ou uma sopa. É deixar paga alguma coisa que alguém há-de vir consumir. A Inês, a Maria e o Mário vieram propor-nos este desafio, partindo de uma ideia que começou em Itália, e logo o abraçámos. Agora o objectivo é aplicá-la em todos os estabelecimentos da Rota das Tasquinhas e Restaurantes da Mouraria. Basta haver uma ardósia para ir anotando os produtos que forem comprados e gente generosa que queira deixar pago aquilo que, para muitos, pode representar a diferença entre um dia com um prato de comida ou um dia sem nada para comer. As ardósias já temos (gentilmente oferecidas pela loja A Vida Portuguesa do Largo do Intendente) e já estão a ser distribuídas pelos estabelecimentos vizinhos; os clientes generosos também já temos (todos os dias recebemos pessoas que sabem que aquilo que consomem na cafetaria é fundamental para assegurar projectos como este e outros); os beneficiários vão chegando, aos poucos, todos os dias. Vamos falando com eles, na vizinhança, e vamos pedindo às organizações parceiras que nos encaminhem quem esteja a precisar. Depois do estômago forrado, vamos conversando e vendo como podemos encaminhar cada pessoa para os serviços que melhor a possam servir – seja a alfabetização, as aulas de português ou o apoio jurídico, aqui na Renovar a Mouraria, ou o apoio ao emprego, na Mais Emprego, entre outras instituições, no bairro ou fora dele. Muitas vezes, uma simples conversa já basta, para desenferrujar a língua que há muitos dias não tem ninguém para falar.

É unissexo e para todas as idades. Cá no bairro, as dificuldades financeiras deixaram de ser impedimento para andarmos todos mais bonitos, e de auto-estima em alta. Criámos o Cabeleireiro Solidário para todas as pessoas – mulheres e homens – que não podem dar-se a certos “luxos”. Porque o bem-estar, para nós, não é um luxo, a Sandra usa as escovas e tesouras como armas contra a solidão e a discriminação. É uma cara conhecida por quem frequenta a nossa cafetaria, mas poucos sabiam que a sua profissão sempre foi cabeleireira. Agora reserva as quartas de manhã para pôr em prática a sua arte. Com outra vantagem: cabeleireira (ou barbeiro) que se preze, é também boa ouvinte, quase psicóloga. O Cabeleireiro Solidário funciona às quartas, das 10h às 13h, com reservas antecipadas. Tudo sem fins lucrativos, só para quem não pode ir ao cabeleireiro – há muitos e bons cá no bairro.

Mouraria Integra ainda mais

O Gabinete de Cidadania e as aulas de alfabetização e de português para estrangeiros da Associação Renovar a Mouraria receberam novo fôlego com o projecto “Mouraria Integra”. Na área jurídica, a jurista Viviane Carrico juntou-se a Vladimir Sanches, e contam ainda com quatro voluntários, com o objectivo de abranger cerca de 680 utentes até Junho de 2015. Na área pedagógica, entrou a professora Marta Calado, que permitiu retomar as aulas. Estão previstos oito cursos de Português e quatro de alfabetização, num total de 180 beneficiários. O projecto é financiado pelo FEINPT – Fundo Europeu para Integração dos Nacionais de Países Terceiros, através do ACM – Alto Comissariado para as Migrações que este ano apoia 163 projectos semelhantes, para integração de imigrantes oriundos de países externos à União Europeia com diferentes contextos económicos, sociais, culturais, religiosos, linguísticos e étnicos. Os nossos parceiros são a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, o GAT – Grupo Português de Activistas sobre Tratamentos de VIH/SIDA, a Associação Crescer na Maior, a Obra Social das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor e a SEACOOP - Social Entrepreneurs Agency.

Da esquerda para a direita: Joana Deus (coordenadora do projecto) Miguel Coelho (presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior), Pedro Calado (Alto-comissário para as Migrações), Inês Andrade (presidente da Associação Renovar a Mouraria) e Marta Cabeto (professora de português para emigrantes e alfabetizaçã0)

Já arrancaram as visitas

com guias imigrantes O Dia Internacional das Migrações, no passado dia 18 de Dezembro, marcou o arranque oficial das visitas guiadas à Mouraria feitas por imigrantes. O projecto chama-se “Migrantour – Rotas Urbanas Interculturais” e está a ser implementado desde Maio, com uma fase inicial de recrutamento e formação que contou com imigrantes do Brasil, Bangladesh, Congo, Irão, Paquistão, Polónia e Ucrânia. Em Janeiro abrem mais vinte vagas. É a segunda fase deste projecto que começou em 2010 com o operador de turismo sustentável italiano Viaggi Solidali, a fundação de empreendedorismo social ACRA e a Oxfam Itália, filial da rede anti-pobreza Oxfam. Co-financiado pela União Europeia, está agora em nove países. Em Portugal, os parceiros são a Associação Renovar a Mouraria e o Instituto Marquês de Valle Flôr. Estas visitas guiadas vêm enriquecer as que a Associação Renovar a Mouraria já realiza desde 2008, com vários percursos, em várias línguas (incluindo gestual) e com logística própria para pessoas com mobilidade reduzida – bem como giros adaptados a pessoas cegas, a privilegiar locais onde sons, cheiros e sabores valorizam a experiência.

Dois dos guias Migrantour: Lumbala, do Congo (à esquerda), e Moin, do Bangladesh (à direita)

Viva a Bem·Formosa Praça!

Na Rua do Benformoso, onde havia entulho e algum estacionamento, há agora um espaço para ser vivido por todos nós: a Bem-Formosa Praça. Foi inaugurada no dia 7 de Fevereiro (no mesmo evento em que foi lançada esta edição do ROSA MARIA) e já está cheia de vida. A Junta de Freguesia de Santa Maria Maior fez obras, pôs bancos de jardim e plantou uma árvore, em Novembro. No mês seguinte assinou um protocolo com a Associação Renovar a Mouraria, que ficou responsável por dinamizar o espaço, e no final de Janeiro, as paredes receberam uma obra da ilustradora Maria Vidigal, também voluntária deste jornal. Todas as ideias são bem-vindas na Renovar. A Bem-Formosa Praça espera por todos nós, ao vivo e no Facebook em: www.facebook.com/groups/bemformosapraca.


Rosa Maria nº 8 fevereiro ’15 · junho ‘15 Ilustrações por Maria Vidigal Depoimento recolhido por João Berhan Fotografia Pablo Lopez

“A minha meninice não foi de sapatos. Foi de alpercatas. Ou botas cardadas, que era para durar mais tempo!” Isto para lembrar os tempos de criança de João Ferreira, que é dos poucos privilegiados que ainda conheceram a verdadeira Praça da Figueira. “Havia os aguadeiros que iam buscar água ao Poço do Borratém, havia as peixeiras, as meninas das hortaliças… Mas eu tinha 12 anos quando aquilo foi demolido, lembro-me de pouco mais.” Algum comércio resistiu e passou para o Mercado do Chão do Loureiro. “Que agora é parque de estacionamento como a Praça da Figueira.”

Podemos “googlar” a Lisboa antiga. Mas também podemos recorrer ao senhor João, que ele é capaz de se lembrar de uma coisa ou outra. “Isto era uma cocheira, onde os vendedores da Praça da Figueira guardavam os cavalos. Lembro-me bem, porque ali na Rua da Mouraria era onde eu ia comprar o peixe. E mais ao lado era o António das hortaliças. E mesmo ali de costas, o Teatro Apolo, também demolido.”

“Por cinco ou dez tostões, tirava o bilhete e via filmes o dia todo. Isto era um cinema de bairro, como muitos que por aqui havia. Era o Olympia, o Loreto, o Odéon, o Condes, o Rex… Fecharam todos.” Hoje, já não se atreve a ir ao cinema. “Para ir ver um filme, é preciso ir lá ao outro lado da cidade. E já nem saio à noite, eu que gostava do meu copinho. Se uma pessoa olha para a outra, há zaragata; se não olha, é porque não olhou, há zaragata!”

passeando com João Gomes Ferreira

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“Fazia muito este caminho até à Rua dos Cavaleiros; morava ali a minha irmã, no 105.” João Ferreira lembra o comércio que animava a rua: “Ao início, subindo a linha do eléctrico, era a loja dos tremoços. Mais à frente, o guarda-roupa Jorge, que alugava fatos. E no 58 havia uma casa de meninas, no primeiro andar.”

“Isto aqui era uma zona viva. Éramos uma família, toda a gente se conhecia. E hoje passam-se horas e horas que não se vê uma pessoa. Conhece bem aqui esta zona?” Apresso-me a dizer que sim, mas já o senhor João ia disparado: “À frente da igreja, uma capelista. Depois, porta sim, porta sim, uma mercearia, uma taberna, uma latoaria, um alfaiate com um sapateiro no vão de escadas, uma drogaria, uma padaria, um lugar de hortaliças, uma casa de pasto, uma carvoaria, um dentista no primeiro andar, um cesteiro e um depósito de

“Aqui a Rua das Farinhas, hoje, só tem movimento porque é passagem obrigatória dos turistas para o Castelo. E há aqui este beco, o Beco do Castelo, mas não tem nada a ver com o caminho! Às vezes ainda lhes grito ‘Ó pá, não é por aí!’, mas já lá vão os tipos a subir as escadas para voltarem a aparecer uns minutos depois.” A propósito, João Ferreira lembra-se de como passava os Santos Populares: “Era aqui no beco, com uns rapazes e raparigas que entretanto já morreram. Faziam-se as fogueiras, lançavam-se os balões... Ardiam logo que eram lançados ao ar. Isso depois foi proibido, que uns telhados chegaram a pegar fogo.”

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Só esta entrevista justificava fazer um especial de Natal do ROSA MARIA. Mas demos por nós e era Fevereiro, vinhamos tarde demais para dar a boa noticia: o Pai Natal existe, e vive na Mouraria. Chama-se João, cuida da barba com zelo de artesão e não sai à rua sem atestar os bolsos de rebuçados para a criançada. Num bairro de mouros, João Gomes Ferreira foi baptizado de John por causa da sua melena loura e dos seus lindos olhos azuis. “John Pae Natal” (assim diz o seu retrato do Beco das Farinhas) tem 77 anos, todos vividos na casa onde nasceu. É o mais novo e o único sobrevivente de cinco irmãos. “O meu pai, veja lá, morreu no dia do meu primeiro aniversário. Portanto todos os anos fazemos meio dia de homenagem a um pai que eu não conheci – e depois então vou eu para o mundo!” Quando o último dos seus irmãos morreu, ficou a tomar conta do negócio do pai: uma oficina de tratamento de metais na Rua de São José. “Primeiro pára-choques, depois instrumentos musicais. O negócio até dava, mas as casas de instrumentos começaram a importar da China... E aquilo custava tanto o arranjo como um instrumento novo.” Nisto, passou quinze anos. Foi ainda com 11 que começou a trabalhar, como moço de armazém na Rua dos Bacalhoeiros. Depois, fez de paquete numa companhia de seguros da Rua da Prata e foi empregado de escritórios na Avenida da Liberdade, na Almirante Reis e na Rua dos Anjos.

Nunca fez a sua vida na Mouraria (por estas bandas “era vira o disco e toca o mesmo”), mas também não fugiu para muito longe. Quando se reformou, não parou quieto. Fez os castings e arriscou umas figurações para novelas, filmes e anúncios. “Fui Marquês de Pombal, entrei numa versão antiga d’Os Maias... Depois uns espanhóis pediram-me para entrar num filme sobre o Tratado de Tordesilhas.” Até que alguém do showbiz lhe segredou: “Ó Marquês, deixa crescer a barba, que tu para Pai Natal é que era.” Ouvido e feito. João Ferreira foi durante muito tempo o velhinho gordinho mais conhecido do país. “Inaugurei o Colombo, fui o Pai Natal da Worten, do El Corte Inglés, do Casino Estoril… Até ia na consoada a casa das pessoas.” Chegou a ser eleito o quarto melhor Pai Natal da Europa, “não sei bem por que revista, disseram-me uns holandeses.” Na sua casa, saudoso, folheia dossiês com recortes de revistas, cartas de crianças, fotografias de famosos sentados ao seu colo. Mas com um problema na perna e uma bengala por companhia, já não está para grandes aventuras. Façamos-lhe nós o gosto. Vamos sempre a tempo de lhe cravar uns brinquedos, ou uns caramelos que encontre nos bolsos, ou umas histórias que lhe apeteça contar.

Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15

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sabões, um barbeiro, um ferro-velho, um maleiro e uma retrosaria. A última porta, ali ao fundo, era um electricista.”

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reportagem

Texto André Alves e Maria Coimbra Ilustração Vítor Mingacho

Conventos, hospitais e…

hotéis? Já houve manifestações, petições e discussões na assembleia municipal. O epicentro deste terramoto é a construção do novo Hospital de Todos os Santos, em Chelas. Se for concretizado, substituirá vários hospitais da Colina de Santana: São José, Santa Marta e Capuchos. Isto após já terem fechado outros dois – o Miguel Bombarda, em 2012, e o Desterro, em 2007. Está em causa a maior alteração morfológica do centro da cidade desde o terramoto de 1755. Os cinco hospitais totalizam 16 hectares desta colina que sobe a partir do Martim Moniz, entre a Avenida da Liberdade e a Avenida Almirante Reis. Para o Hospital Miguel Bombarda estava prevista a construção de um hotel e seis torres de dez a doze andares. Para o Desterro, um espaço que incluía residências artísticas e produção hortícola, concessionado à Mainside (empresa que criou o LX Factory, em Alcântara) e com inauguração prevista para o final de 2013. Está tudo parado. Aguardam-se novas directrizes por parte da proprietária: a Estamo, empresa pública de gestão imobiliária. Os projectos previstos para a colina implicavam a descaracterização (incluindo demolição) de valioso património, o que desencadeou uma acesa onda de protestos. Tudo começou em 2006 quando se anunciou a construção do hospital de Chelas, baseada num estudo coordenado por Daniel Bessa, ex-ministro da Economia, socialista. Seria um de seis novos hospitais a financiar através do controverso modelo de parceria público-privada – as chamadas PPP. Os protestos estoiraram em 2013 no período dos chamados PIP – Pedidos de Informação Pública, em que a Estamo teria de explicar as suas opções a quem lhas solicitasse. Choveram críticas, inclusive à curta duração desse período, de apenas doze dias. A câmara municipal viu-se obrigada a agendar um ciclo de cinco debates públicos na assembleia municipal. Ao terceiro, no dia 4 de Fevereiro de 2014, o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, anunciou a suspensão dos PIP – ou seja, de todo o processo.

Os tesouros da colina

Os hospitais da colina (que antes foram conventos) guardam valiosos tesouros, com quinhentos anos, e há um grupo de activistas que não admite perdê-los. Após algumas vitórias, pugnam agora para que o edifício principal do Hospital Miguel Bombarda seja classificado como imóvel de interesse público. “A nossa luta pela salvaguarda da cultura portuguesa e europeia, que já havia contribuído para a suspensão dos projetos da Colina de Santana,

Uma das sete colinas de Lisboa entrou subitamente no vocabulário da cidade: a Colina de Santana. Ali estão dois hospitais que servem os moradores da Mouraria e que poderão fechar. Com uma agravante: são carne para o canhão da especulação imobiliária. Conheça a polémica e a riqueza patrimonial em causa.

Esta ilustração é uma réplica do mural desenhado na parede do Hospital dos Capuchos, na Alameda de S. António dos Capuchos

conseguiu agora outra importante vitória”, lê-se num comunicado de Outubro. Receberam então, pela Direcção-Geral do Património Cultural (antigo Igespar), garantias de desbloqueio desse processo iniciado em Março de 2013. Estes activistas são os presidentes da Sociedade Portuguesa de Neurologia, da Sociedade Portuguesa de Arte-Terapia, da Associação Portuguesa de Arte Outsider e da Congregação da Missão de São Vicente de Paulo. Há que preservar o primeiro manicómio do país (nascido em 1848 como Hospital de Rilhafoles, no antigo Convento de Rilhafoles), incluindo o salão nobre com valiosa azulejaria barroca e preciosidades como o célebre gabinete onde foi assassinado Miguel Bombarda, médico e líder civil da Implantação da República (veja o artigo “O Centro Republicano agora é chinês”, na página 11). Isto após terem conseguido, em 2010, a classificação do Balneário D. Maria II (o melhor da Europa à sua fundação, em 1853) e do Pavilhão de Segurança (de 1896). Importante parte da história nacional da loucura está neste hospital. O Pavilhão de Segurança (enfermaria-prisão), que é um dos seis edifícios panópticos do mundo, funciona como museu, com uma valiosa colecção de arte outsider criada pelos internados. Destaque-se Jaime Reis, reconhecido internacionalmente, e Ângelo de Lima, poeta publicado na revista Orfeu por Fernando Pessoa. O hospital serviu também de cenário ao filme Recordações da Casa Amarela, no qual João César Monteiro apresentou a corrida mais célebre do cinema português, em 1989.

Quando a homossexualidade era loucura criminosa

No “Rilhafoles” esteve também o bailarino Valentim de Barros. Travesti no seu quotidiano, entrou no “manicómio criminal” (o Pavilhão de Segurança) por um único crime: homossexualidade assumida. Ali esteve quatro décadas e ali morreu em 1986, quatro anos após a descriminalização da homossexualidade em Portugal. O médico que definiu os homossexuais como doentes foi o Nobel Egas Moniz (1874-1955). Fê-lo na obra Pathologia, em 1902, que viria servir de base à criminalização da homossexualidade. Mas Egas Moniz faz parte da história da medicina, e da Colina de Santana, também por outros motivos. Foi no Hospital de Santa Marta (hospital-escola, referência em cardiologia) que este neurologista trabalhou e deu aulas. Ainda lá está a sua mesa de trabalho. Falamos do neurologista que revolucionou mundialmente a saúde mental. Primeiro com a invenção da angiografia, um raio-X que permitiu a observação do fluxo sanguíneo cerebral. Depois com a leucotomia, uma técnica que se tornou polémica (e conhecida como lobotomia) após ter sido imitada, mas numa versão selvática, pelo americano Walter Freeman.

Colina do conhecimento

Outro grande tesouro é o Hospital do Desterro, guardião da memória da dermatologia e do tratamento de doenças venéreas em Portugal. Parte desse espólio está agora no Hospital dos Capuchos, também na colina. Inclui a colecção de 254 figuras de cera,

encomendada pelos médicos Sá Penella e Caeiro Carrasco aos artistas Joaquim Barreiros Andrade e Albino Cunha. A Colina de Santana – também conhecida por “colina do conhecimento” – alberga ainda o Instituto de Medicina Legal (cuja demolição esteve prevista) e a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, no Campo Mártires da Pátria. E, além dos museus já referidos, existe a possibilidade de nascer, no Hospital de São José, o Museu da Medicina – segundo foi sugerido num dos debates municipais. Aconteça o que acontecer na colina, todos os portugueses serão afectados. E os moradores da Mouraria, na forma mais directa e imediata de todas: perdendo as urgências do hospital de São José, aqui tão perto.

Tome nota!

Hospital dos Capuchos O que ver > Museu da Dermatologia Portuguesa Quando > Às quartas à tarde. Quanto custa > Nada. É grátis. Morada > Alameda de Santo António dos Capuchos, 1169-050 Lisboa Hospital Miguel Bombarda O que ver > Museu de Arte de Doentes/ Arte Outsider e de Neurociências Quando > Às quartas (das 11h30 às 13h) e aos sábados (das 14h às 18h) Quanto custa > Nada. É grátis. Morada > Rua Dr. Almeida Amaral, nº. 1, 1169-053 Lisboa


Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15

Texto Marisa Moura Fotografia Helena C. Peralta Ilustração Hugo Henriques

Fado, suor e lágrimas Num abrasador domingo, no dia 22 de Julho, foi inaugurado o busto de Fernando Maurício, na Rua da Guia. O bairro em peso esteve lá, encalorado e emocionado. Só faltou o autor da obra, que teve as suas razões.

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Perguntas a José Carlos Almeida, autor do busto de Fernando Maurício Em que é que se inspirou para esta obra?

Trouxeram-me cinco ou seis fotografias com diferentes perspectivas. Tinha as medidas para o busto e sabia que ia assentar num pedestal.

Que fotografia é aquela? Por ele estar de gravata, houve quem achasse que era uma fotografia formal, do bilhete de identidade.

É uma fotografia normal, mas não sei onde foi tirada. Era também a preferida da junta.

Quanto tempo demorou a nascer este busto?

A festa deu-se sete dias após o 11.º aniversário Cerca de dois meses. Primeiro faz-se o da morte do “Rei do Fado”. Começou pelos esboço em barro, depois o molde perdido discursos, ao meio-dia, na Rua da Guia, e acaem gesso. E vai para a fundição, para bou à noite, com fados na Rua da Mouraria. Não encher com bronze. faltaram a enorme família Maurício (com destaque para a filha e a neta), os fãs, os vizinhos, os amigos... Ficou satisfeito com o resultado? Estiveram representantes da junta de freguesia e da Notam-se algumas costuras e há algumas câmara municipal, estiveram analfabetos e intelectuais, imperfeições no nariz e nos olhos que não era pobres e ricos... gente de mil nações. suposto. Há técnicas de fundição que evitam Não faltaram também as críticas. “O pedestal devia ser isso, com um processo de cera fundida, mas o redondo, em linha com o chafariz”, dizia um conceituado artisorçamento era curto e isso custa o dobro. ta. “De gravata?! Ele era um homem do povo... Deve ser a foto do BI”, comentava um vizinho. “A parede ali A sua ausência na atrás tem de ser reabilitada; milhares de inauguração foi pessoas virão aqui tirar fotografias com o Fernando Maurício e isto é um péssinotada... mo cartão-de-visita”, antevia outro. A reLisboa para mim é uma matar, esteve o padre Edgar, que benzeu confusão. Sou deficiente a obra. Não faltou calor nem lágrimas. motor (uso uma Só faltou mesmo o autor. canadiana) e evito sítios Falámos com ele por telefone no onde não possa chegar Já prestadas, após o seu falecimento, em 2003: passado mês de Novembro. Chama-se de carro. 2004 | Homenagem Boa Noite de Solidão, no Coliseu dos Recreios. José Carlos Almeida, tem 47 anos e é escultor desde os 17. Nasceu em CoimO que é que 2005 | Em Marvila, a Via 3 à Rua do Vale Formoso de Cima passa bra, mas vive nas Caldas da Rainha, a chamar-se Rua Fernando Maurício. o nome Fernando onde se formou pelo centro profissioMaurício lhe dizia nal Cencal. É especialista em miniatu2011 | Documentário O Rei Sem Coroa, de Diogo Varela Silva, até fazer este ras em cerâmica, mas também autor sobrinho-neto de Amália Rodrigues. busto? de monumentos de grande dimenSó conhecia de nome. são, como o bombeiro no Cartaxo 2014 | A 22 de Julho, é inaugurado na Mouraria um busto do fadista; a 16 Gosto de fado, mas não de Setembro, na Assembleia Municipal de Lisboa, é aceite por unanimidade e o pastor em Belmonte. de votos uma recomendação da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior sou propriamente um fã. Foi escolhido pela Junta de Freguepara a atribuição do nome Fernando Maurício a um largo da Mouraria. sia de Santa Maria Maior para este busto de bronze, que custou cinco Por prestar: mil euros (a maior parte destinada Museu Fernando Maurício | A inauguração está prevista para Julho à fundição). O presidente da junta, de 2015, na Rua João do Outeiro. Abre assim ao público o espólio Miguel Coelho, equacionou lançar até agora tratado pelo seu amigo António Piedade, de Torres Vedras um concurso junto de estudantes (veja o ROSA MARIA n.º 7). Ofereceu-o no Verão passado ao Museu do Fado de belas artes (veja no ROSA MAe ao bairro da Mouraria. RIA n.º 6), mas, sem tempo para tal, acabou por eleger diretamente Largo Fernando Maurício | Talvez o baptismo ocorra na mesma altura este escultor. da inauguração do museu, no próximo mês de Julho. O sítio, esse, está mais do que decidido. É o recanto onde está agora o seu busto, na Rua da Assim nasceu o busto que Guia – bastante perto da casa onde nasceu, na Rua do Capelão, na qual já tinha sido reivindicado por está uma placa descerrada ainda durante a sua vida, em 1989, pela diva moradores numa petição, e que do fado Amália Rodrigues. foi promessa eleitoral, tanto do actual presidente da junta, socialista, como do seu rival, social-democrata. Já só faltava conhecer o autor da obra.

Homenagens ao Rei do Fado


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reportagem

Texto e Fotografia Maria Sousa Dias

e O jornal The New York Times elegeu os azulejos portugueses como um dos 12 tesouros da Europa, mas muitos estão votados ao abandono, como os 41 painéis bíblicos do edifício do Centro de Dia da Mouraria

Guarda um dos mais importantes complexos azulejares do país, praticamente desconhecido até ao ano de 2014. São 41 gloriosos painéis de azulejo setecentistas que revestem o átrio e a escadaria principal ao longo dos seus quatro andares, representando alguns dos mais conhecidos episódios bíblicos, do antigo ao novo testamento – uma espécie de banda-desenhada avant-garde destinada a entreter e evangelizar quem por lá passasse. O desconhecimento turístico dos azulejos (aliado à proximidade da esquadra da polícia) tem mantido afastados vândalos e larápios, mas, por outro lado, não tem contribuído para a recuperação do património. A situação de quase-abandono do imóvel é visível na humidade das paredes e no apodrecimento dos estuques que sustentam estas, cada vez mais conhecidas jóias.

Uma jóia descoberta em 2014

Com a recente enchente turística na cidade, o interesse neste peculiar espólio tem crescido a olhos vistos. Manuel Ferrão, de 26 anos, é guia turístico na Associação Renovar a Mouraria e foi o primeiro a fazer visitas ao local. Começou no início do ano passado, antes de a imprensa começar também a ajudar na divulgação, com artigos em publicações como a Time Out e o Público. Os guias enchem o peito para anunciar este “segredo da cidade”, os turistas sentem-se o Indiana Jones dos tempos modernos e o edifício... continua desamparado. A situação torna-se agora mais sensível porque, a qualquer momento, a esquadra vai mudar-se para a Rua da Palma, para as instalações do Palácio da Folgosa, junto ao Martim Moniz (veja a página 13). A sua presença tem salvaguardado o espólio de ser vendido à peça na Feira da Ladra, mas agora teme-se o pior. Isso mesmo se afirmava num artigo do Público, no Verão passado. Impõe-se a questão: não terá o Edifício Amparo potencial para ser um ponto turístico de excelência e um novo agente dinamizador do bairro, muito provavelmente capaz de gerar receita própria para se manter?

Edifício classificado, mas pouco

Gentrificação: perigosa renovação! O conceito vem da palavra britânica gentry, que significa “pequena nobreza”. Descreve o processo de valorização imobiliária de zonas urbanas em detrimento dos antigos residentes, com menor poder económico, que costumam ser afastados. As paredes da Mouraria começam a transpirar as preocupações da população. “Gentrifi... quê?”, pergunta-se na fachada do n.º 168 da Rua do Benformoso. Aí estão dez apartamentos e três lojas, todos com garagem e alguns com terraço, por preços jeitosinhos. Um T3 sem terraço vale 172 mil euros – “a dois minutos do Rossio e sete minutos do Chiado”, como sublinhavam os folhetos da EPUL, empresa municipal proprietária. Se as paredes dfalassem, o que dirião as da EPUL do Martim Moniz? E será que já pensam em chinês? Depois do leilão de Outubro, que rendeu o dobro do previsto graças à avalanche de compradores asiáticos (veja a página 4), é bem possível que sim. Entretanto, aceitam-se apostas sobre o que irá na cabeça das devolutas paredes do Largo das Olarias adquiridas há um ano pelo fundo de investimento Sustentoásis, por 1,5 milhões de euros. Hipóteses: “Seremos demolidas ou recuperadas?”; “O que terá sido feito dos nossos antigos inquilinos octogenários, os Amoedo? Quanto passará a custar a renda da casa que eles habitavam?”; “Ó ROSA MARIA, os novos donos prometeram-te na última edição que não viraremos hotel, certo?”. Sim, queridas paredes. Fiquem tranquilas. As pessoas honradas cumprem com a palavra.

Catarina Lino

O antigo Colégio dos Meninos Órfãos, actual Edifício Amparo, é um dos imóveis mais notáveis de Lisboa. Depois de quase oitocentos anos a amparar a população carenciada da capital, é ele que agora carece de ajuda. Quem passeia aqui pelo bairro já terá reparado na porta manuelina que emoldura a entrada da esquadra da PSP no número 64 da Rua da Mouraria. No que nem toda a gente repara é na modesta porta de madeira mesmo ali ao lado, mas ela guarda uma verdadeira jóia. É o Edifício Amparo, uma construção com mais de oito séculos.

Poucos edifícios lisboetas resistiram incólumes e com tanta graça à passagem do tempo. A construção remonta a 1273, para instalar o primeiro hospital pediátrico de Portugal, no reinado de D. Afonso III. Quase três séculos depois, em 1549, nos tempos de D. João III (ao que parece com intervenção de S. Francisco Xavier), é ampliado para acolher o Colégio dos Meninos Órfãos – o primeiro orfanato jesuíta de que há registo e uma engenhosa maneira de tirar crianças à pobreza, transformando-as em missionários, educados de raiz para evangelizar o Novo Mundo. Já no século XVIII, mesmo antes do Terramoto de 1755, é restaurado e ampliado por D. José, que na altura lhe oferece a sua mais espectacular característica: os painéis de azulejo rococó que hoje tantos cuidados nos merecem. É esta a história que valeu ao Edifício Amparo – também conhecido como Recolhimento do Amparo – a classificação de Imóvel de Interesse Público em 1986. Até agora, nem o certificado nem as preocupações se traduziram em medidas concretas para a preservação ou dinamização do espaço, que pertence à Direcção-Geral do Tesouro e das Finanças. A maior parte dos andares está arrendada a entidades públicas por quantias simbólicas. Os dois primeiros estão ocupados pelo Centro de Dia da Mouraria, da Santa Casa da Misericórdia. Acima estão apartamentos arrendados a particulares e o Inatel, com terraços, varandas e um campo de futebol com balneários. Esperamos ansiosamente pelas cenas dos próximos capítulos.


reportagem

Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15 Texto e Fotografia Frederico Duarte Carvalho

O segredo

da Calçada de Santo André

Para o jovem artista de 21 anos, Sebastião Lobo, há uma certeza: aquele é um espaço onde dá gosto trabalhar. Há três anos que montou o seu ateliê de joalharia no número 15 da Calçada de Santo André, uma loja que já foi relojoaria e passou depois a ourivesaria. Os turistas que sobem e descem a pé não podem evitar espreitar para dentro do espaço. A fachada tem a típica decoração em ferro das ourivesarias do início do século passado, com elementos em art déco. É um espaço que se destaca dos demais estabelecimentos comerciais e faz pensar que aquela via de acesso ao castelo, por onde passam os eléctricos, tem um potencial turístico que necessita de ser estimulado. Sebastião divide o espaço com um outro artista, Diogo Madeira, de 19 anos. São dois jovens empreendedores do século XXI que mantêm a tradição das Descobertas, quando o ouro chegava ao Martim Moniz e subia por esta calçada até ao castelo.

Livro de jóias

Sebastião Lobo tem um ateliê de joalharia instalado numa antiga ourivesaria e procura testemunhos sobre a história do local. Quer confirmar os nomes de alguns clientes famosos. Um deles, por exemplo, chamar-se-ia Salazar. Sim, esse mesmo, aquele que foi presidente do Conselho. reportagem

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beleza e qualidade dos detalhes. Sebastião Lobo é assim o orgulhoso proprietário de uma casa com história. Mas não se fica por aqui.

Clientes famosos

Ali há segredos que podem valer ouro. E Sebastião Lobo anda à procura deles. “Gostaria de reunir o máximo de informações sobre a história deste local”, apela o jovem artista. Um dos clientes com nome mais sonante teria sido o ditador Salazar, o antigo presidente do Conselho. Falou-se também em encomendas de ofertas para a rainha de Inglaterra. E que outros nomes haverá na lista de clientes antigos? Sebastião trabalha com a porta aberta e qualquer pessoa pode espreitar e entrar. Ele, aliás, espera tornar o ateliê num espaço nobre e turístico naquela calçada. E conta com o dia em que alguém lá entre e traga factos relacionados com aquele número 15. Se conhece algum, o Sebastião espera por si.

A ourivesaria era do senhor Barata. Hoje, as peças de joalharia feitas por Sebastião Lobo são, na sua maioria, réplicas de insectos. “É um gosto especial. Já quando era mais pequeno gostava de estar a colocar bichinhos em caixas”, reconhece este artista natural que, assim que se formou na escola de artes António Arroio, encontrou nesta ourivesaria o espaço ideal para dar asas à sua imaginação. E com o local veio ainda a história. “O senhorio é filho do anterior proprietário e deixou-me ficar com várias ferramentas centenárias que estavam ao serviço na ourivesaria”, explica-nos. Mas há ainda outra preciosidade que Sebastião também herdou do ourives Barata: “Tenho o livro com desenhos de jóias do seu pai. Ele disse que me seriam mais úteis a mim do que a ele”. E o ROSA MARIA comprovou a qualidade única dos desenhos do anterior proprietário. Um gosto refinado que, ainda nos dias de hoje, impressiona pela

Texto Nuno Franco

Música, inclusão e diversão Cerca de trinta adolescentes integram anualmente a Orquestra do Gil. Encantam plateias, seja no Mosteiro dos Jerónimos, no Castelo de São Jorge ou na escola onde ensaiam há seis anos, na Graça.

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É a orquestra do Agrupamento de Escolas Gil Vicente, com sede na Rua da Verónica. Nasceu no ano lectivo de 2009/10, quando foi apresentada uma proposta de ensino artístico da música como forma de contribuir, não só para o sucesso educativo dos alunos, mas também para o seu desenvolvimento pessoal e social. Como alguns dos alunos pertencem a grupos vulneráveis da nossa comunidade, esta actividade passou a enriquecer-lhes o sentido da vida com novas metas, projectos e sonhos, além de favorecer a sua inclusão social. Através de uma filosofia de ética, pedagogia, trabalho de equipa e ocupação de tempos livres, nasce a Orquestra do Gil. No primeiro ano, os seus objectivos sociais, comunitários e artísticos foram atingidos com sucesso. Assis-

tiu-se a uma clara evolução dos integrantes do projecto desde o início da formação até à apresentação pública dos resultados. No final de 2012, no seu terceiro ano de existência, é contemplada pelas “Bolsas Musicais” da SIC Esperança – parceria da estação televisiva com o festival Rock in Rio e a EPIS – Empresários para a Inclusão Social, uma associação contra o abandono es-

colar. Pôde assim investir na aquisição de instrumentos e formadores. Passou a integrar 22 instrumentos de cordas (doze violinos, seis violas-de-arco e quatro violoncelos) e a manter contratados professores com formação especializada em cada um desses instrumentos. No presente ano lectivo, a nossa orquestra juntou-se à rede Música em Comunidade, criada pela Orquestra Geração – nascida em 2007, num diálogo entre o Conservatório Nacional e a câmara da Amadora, e que já se estendeu a inúmeras zonas do país. Em parceria com esta rede, a Orquestra do Gil foi uma das 39 candidaturas contempladas pela linha municipal BIP/ZIP – Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa, à qual concorreram 146 projectos no ano de 2014. Garantiu assim a sua continuidade. Além dos concertos de encerramento dos anos escolares, já tocou, por exemplo, no Mosteiro dos Jerónimos, em Novembro de 2012, no Castelo de São Jorge, em Junho de 2013, e na Sé de Lisboa, na passada Primavera, em Maio. Uma orquestra a acompanhar.


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Ensaio

Maria Lucinda Fonseca

Diversidade e integração no bairro da Mouraria A Mouraria tem uma forte tradição de acolhimento de imigrantes. Até meados do século passado, era notória a presença dos galegos e também de migrantes internos, provenientes de diferentes regiões do país. Na segunda metade da década de 70 do século XX, começou a constituir-se um enclave comercial de base étnica, depois da chegada de muitos imigrantes de ascendência indo-paquistanesa, que residiam nas ex-colónias africanas, sobretudo em Moçambique, e vieram para Portugal após a independência. Desde esse tempo, a concentração de imigrantes na Mouraria e imediações não parou de crescer. Actualmente, com 24,3% moradores estrangeiros, de 51 nacionalidades, e 4,1% duplos nacionais (dados do Recenseamento de 2011, considerando-se a população residente no território correspondente às antigas freguesias do Socorro e de São Cristóvão/São Lourenço), a Mouraria constitui a marca da diversidade na cidade de Lisboa. Os espaços públicos são importantes locais de encontro, sociabilidade, compras e circulação de informações para diferentes grupos de imigrantes, sendo também, cada vez mais, espaços de consumo do exótico para turistas e nativos, apresentando uma ambiência verdadeiramente multicultural e cosmopolita. Entre os habitantes nativos, diferenciam-se dois grupos muito distintos: um, maioritário, constituído por idosos, com pouca escolaridade e baixos rendimentos; outro, ainda de reduzida dimensão, mais jovem, com formação superior e elevado poder de compra. A diversidade interna é evidente para qualquer visitante que circule pelas ruas do bairro. No sopé da colina, concentram-se os estrangeiros. Um pouco mais acima, habitam os nativos mais antigos; já perto do castelo, nos prédios com melhores vistas, encontram-se os novos moradores gentrifiers, indivíduos e famílias da classe média-alta (veja na página 20). No que se refere aos imigrantes, predominam os nacionais de países asiáticos, com destaque para os bangladechianos (23,2% do total), seguidos dos indianos (13,4%)

e dos chineses (13,1%) – veja o artigo abaixo. A diversidade e a elevada rotação da população que reside, trabalha ou passa pela Mouraria, conjugada com os projectos de renovação e reabilitação urbana promovidos pela Câmara Municipal de Lisboa, produziram mudanças profundas no território, nas relações de vizinhança e nas formas de identificação dos moradores com o bairro. Num estudo efectuado por investigadores do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, no âmbito do projecto Geitonies, verificou-se que as representações do espaço e as vivências quotidianas da população são muito variáveis e de difícil tipificação. Apesar disso, foi possível identificar na Mouraria cinco modos de integração socio-espacial, sendo o primeiro o que apresenta menores níveis de satisfação e identificação com o lugar de residência, e o quinto correspondente aos habitantes com ligações mais profundas ao território onde vivem. O modo 1 representa 18,2% dos respondentes ao inquérito e caracteriza-se por um sentimento de insegurança e fraca integração no bairro. O modo 2 define-se pela insatisfação e reduzida ligação ao lugar de residência, embora sem sentimentos de medo ou insegurança, e inclui 11,7% da população inquirida. O modo 3 corresponde a um nível médio de integração. É semelhante aos dois primeiros, na medida em que os amigos mais íntimos não residem na Mouraria, mas difere deles porque tem níveis elevados de satisfação e apego ao bairro e grande familiaridade com os vizinhos. Estão incluídos neste grupo 32,1% dos moradores. O modo 4 define também um nível médio de enraizamento local, distinguindo-se do anterior pela importância do bairro como local de sociabilidade com amigos e familiares que residem na vizinhança, mas apenas na esfera privada; engloba 9,5% dos habitantes. Finalmente, o modo 5 diferencia-se dos restantes por corresponder a pessoas com redes sociais limitadas e muito concentradas no bairro, indicando um certo isolamento e alguma resistência à mudança social e ao aumento da diversidade da população; representa 28,5% dos habitantes da Mouraria.

Estes resultados sugerem que o efeito das transformações do bairro nas representações e vivências quotidianas dos seus moradores, bem como nas formas de relacionamento entre indivíduos de distintos grupos sociais e pertenças étnicas, não é uniforme. Identificaram-se sentimentos antagónicos, por parte da população portuguesa, relativamente ao crescimento e à diversidade de origens dos imigrantes – desconforto e insegurança para alguns moradores mais idosos e residentes há mais tempo no bairro, e motivo de atracção para novos habitantes “gentrifiers”. Observou-se que os imigrantes residentes no bairro há mais tempo, têm, geralmente, níveis de satisfação residencial mais elevados e laços mais fortes com a população autóctone. A composição das redes sociais dos habitantes influencia profundamente o apego à Mouraria. A relação positiva entre a existência de laços fortes com outros moradores e elevados níveis de enraizamento local reflecte-se, por um lado, no maior apego ao lugar e, por outro, em representações sociais mais positivas das pessoas que partilham o mesmo território de residência. Contudo, importa referir que ligações fortes com o local de residência e redes sociais mais confinadas ao bairro nem sempre promovem a coesão social local, podendo fomentar o desenvolvimento de relações fechadas dentro de cada grupo e circunscritas à esfera privada. Maria Lucinda Fonseca é presidente do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT), coordenadora do grupo de investigação MIGRARE – Migrações, Espaços e Sociedades, do Centro de Estudos Geográficos, e directora do programa de doutoramento em Migrações da Universidade de Lisboa. Coordenou diversos projectos de investigação, nacionais e europeus, nos domínios das migrações internacionais, inclusão social e dinâmicas de transformação das cidades, nomeadamente o Geitonies (palavra grega que significa “bairro”) – um estudo europeu para compreender como as interacções entre os diferentes grupos sociais, culturais e étnicos afectam o desenvolvimento de uma sociedade mais tolerante.

Quantas

nacionalidades há na Mouraria?

Ficamos baralhados ao ler a imprensa... Afinal, quantas nacionalidades há na Mouraria? São 29? São 52? São 150? O número exacto é este: 51. Foi apurado com base nos últimos censos nacionais, de 2011, por Maria Lucinda Fonseca, presidente do IGOT – Instituto de Geografia e Ordenamento do Território. Neste bairro estão representadas mais de um quarto das nações do planeta. Isto tendo em conta que existem 195 países – incluindo a Palestina e Taiwan. No total de moradores da Mouraria, os estrangeiros valem 24,3%, um valor muito acima da média nacional, que é de apenas 3,7%. E também acima de Lisboa, que é a segunda cidade mais multicultural de Portugal. Na capital, os residentes estrangeiros são 8,7% da população. Já na cidade mais diversificada de todas, Sintra, eles são 8,9%. E que nacionalidades são estas? Em Portugal, as principais nacionalidades são, por ordem decrescente: brasileira, cabo-verdiana, ucraniana, romena, angolana e chinesa. Já cá no bairro, os nativos do Bangladesh são os mais representados, seguidos dos indianos, dos chineses e dos brasileiros (veja o gráfico aqui ao lado). Sobre a disparidade do número de nacionalidades citadas na imprensa, ainda um esclarecimento: a maioria desses dados é obtida por amostragem, um método que tem afastado a estatística da realidade, por mais rigorosos que sejam os investigadores.3MM

Bangladesh > 23,3 Índia > 13,4 China > 13,1 Brasil > 8,7 Nepal > 8,0 Roménia > 5,9 Paquistão > 3,5 Cabo Verde > 3,2 Angola > 3,1 Espanha > 2,3

Guiné-Bissau > 2,1 Senegal > 1,6 Itália > 1,2 Ucrânia > 1,2 Moçambique > 1,1 S. Tomé e Príncipe > 1,1 Outros países > 7,3

Percentagem de cada nacionalidade entre a população estrangeira residente na Mouraria (antigas freguesias do Socorro e São Cristóvão/São Lourenço); Fonte: INE, Censos 2011; Elaborado pela investigadora Maria Lucinda Fonseca.


reportagem

Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15 Texto Rosa Maria Ilustração Pati Pecci

Halal, mas o que é isso afinal? Quem circula pelo nosso bairro vê a palavra “halal” escrita na maioria dos supermercados. Será o nome do proprietário, estilo “talho do Silva” em versão árabe? Não. É muito mais profundo do que isso.

Todas as religiões contemplam o mau comportamento humano na sua doutrina. Tal como o cristianismo tem a sua lista de pecados e o budismo estabelece as anantarika-karma, o islão cataloga as acções haram, ou seja: tudo aquilo que foi proibido pelo profeta Maomé, inspirado por Deus – Alá. E halal, o que significa? Significa o oposto de haram, ou seja: tudo o que é aceitável, que não foi proibido por um nas – um versículo do Corão, que é a bíblia muçulmana. Significa o mesmo que kosher para os judeus. É aquilo que é bom, ou menos mau. A filosofia halal é rigorosa na alimentação, daí esta palavra ser tão comum nas lojas muçulmanas que vendem

carne, como as da Mouraria. Não se pode tirar a vida de um animal sem uma razão lícita e o consentimento de Alá. Por conseguinte, a lei islâmica (a Sharia) estabelece que o processo deve causar o menor sofrimento possível e fixa várias proibições: afiar facas em frente do animal a abater, arrastá-lo pelo chão, marcá-lo no focinho, queimá-lo ou mantê-lo desnutrido. Na matança, o corte fatal é feito com o animal virado para Meca e obriga a que seja degolado num único golpe. Isto enquanto o matador diz “Bismillah” – “em nome de Alá”. Além destes preceitos técnicos, existe também a lista de alimentos halal e haram. Entre os considerados

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impuros está o conhecido porco (e o álcool, claro), mas há mais. Diz o Corão (2:171/172): “Ó vós que credes! Desfrutai de tudo o que vos damos e dai graças a Alá, se O adorais./Proibiu-vos a carne de animal que haja morrido, o sangue, a carne de porco e o que se imolou em nome de outro que não seja Alá. Quem forçado, sem intenção de rebeldia ou transgressão, coma, não cometerá pecado. Alá é indulgente, misericordioso.” Os alimentos consumidos pelos muçulmanos devem ter uma certificação emitida por uma autoridade legal ou moral. Em Portugal, esta autoridade é o Instituto Halal de Portugal, sediado na zona de Palmela – mais concretamente na Quinta do Anjo, onde está também, desde 1998, uma importante escola islâmica aberta a todas as religiões: o Colégio Islâmico. Na lista nacional de empresas certificadas por este instituto estão conhecidas marcas portuguesas como as conservas Ramirez e o azeite Gallo. Voltando aos matadouros halal. Eles têm estado sob tensão em alguns países ocidentais, no norte da Europa. No início de 2014, a Dinamarca seguiu as polémicas medidas da Suécia e da Noruega e proibiu os matadouros halal (bem como os judaicos, kosher) com o argumento de que os animais devem ser atordoados antes de serem abatidos, precisamente para lhes amenizar o sofrimento. A filosofia halal/haram vai, contudo, muito além da alimentação. É inerente a toda uma forma de estar na vida, incluindo comportamentos, linguagem e formas de vestir. paa as mulheres, é obrigatório que se cubram usando, no mínimo, o véu (hijab). É haram fazer tatuagens, cirurgias plásticas ou depilação das sobrancelhas, bem como usar perucas ou extensões de cabelo, entre outras vaidades ou necessidades. São consideradas tentações de Satanás. Outras práticas condenadas são, como noutras culturas e religiões, o adultério (zina) e as relações homossexuais – sejam entre homens (liwat) ou entre mulheres (musahaqa). Também é haram a posse e a reprodução de estátuas, já que promovem o shirk (politeísmo). Quem idolatra outro que não seja Alá será castigado no Dia do Juízo Final. Quer saber mais? Consulte o Instituto Halal de Portugal Av. Vila Amélia, Lote 171/172, 2950-805 Quinta do Anjo Tel.: +351 937 860 786 E-mail: info@halal.org.pt Site: www.halal.pt

文章:Rosa Maria 图片:Pati Pecci 翻译: Jorge Gonçalo Alexandre

清真的含义 当我们走在街道上时,可以看到大部分超市的门上张贴 着: Halal (清真)。 这是一个阿拉伯人的名字吗?不 是。清真是一个有深意的词。 所有宗教都认为人类有不好的行为。基督教有造孽和忏悔,佛教有孽报和良 缘, 伊斯兰教有 haram,或者穆罕默德禁止了一些从阿拉得到启示的行为。所 以清真是什么意思呢?清真是 haram 的对立面 , 也就是:所有事都是被接纳 的,允许出现在伊斯兰教的圣书古兰经当中。清真和犹太教的《洁食》理念差 不多。清真是信仰伊斯兰教的人的一种好行为。 清真传达一种食品经过严格处理的理念,所以这一词在我们区的穆斯林肉店常 见。如果没有理由和阿拉的允许,穆斯林人不能杀动物。于是,伊斯兰教教法 断定当正在杀动物的时候,它们不能遭受痛苦和还有一些禁止行为, 比如: 不能在动物的前面动刀,不能拖它或者切其口舌,不能烧毁 它也不能让它受 寒挨饿。当屠杀的时候,动物应该吃饱并且屠夫只能一次就刺死它。宰杀动物 的时候屠夫也应该说: “Bismillah” (真主啊)。 除了这些规定之外,伊斯兰教也有一个清真和 haram食品的目录。最忌讳的是 猪肉和酒,可是还是有别的肉类食物。古兰经: “穆民, 欣赏所有的庇佑阿拉 给您们如果您们着朝拜他。他只不准屠杀,血和猪肉,所有的东西

别的神明牺牲了。可是谁没有念头和弊端,但是别的人促迫了,阿拉没稽 因为 他是仁慈。” 穆斯林的食品有伊斯兰依法允准。在葡萄牙,监管这个的机构是Instituto Halal de Portugal (葡萄牙清真院),位于Palmela, Quinta do Anjo. 在那里,从1998 年,也有一个伊斯兰学校叫: Colégio Islâmico. 有一些葡萄牙公司比如 Ramirez 和 Gallo 橄榄油 Instituto Halal de Portugal(葡萄牙清真院)也都已经审定了. 我们再谈谈清真的肉商。最近有一些北欧国家持不同意见。今年初丹麦从瑞典 和挪威的法规和禁止清真肉商(和犹太教的《洁食》),原因是他们认为在宰 杀动物之前需要对其进行洗礼以示尊重。 如果您要找再一点儿请查 Instituto Halal de Portugal 地址:Av. Vila Amélia, Lote 171/172, 2950-805 Quinta do Anjo 电话号.: +351 937 860 786 电子邮件: info@halal.org.pt 网站: www.halal.pt


Transmouraria

Fotografia Carla Rosado

Como estar達o estas pessoas daqui a dez anos?


Eis as primeiras imagens do Transmouraria, um projecto que pretende documentar a transformação deste bairro, pelas lentes da Carla Rosado. Em breve, algumas estarão expostas na Rua do Benformoso. “Comecei a tomar consciência de que aquilo que estava ali à minha frente, amanhã podia já não estar. Senti então necessidade de fotografar, para, de alguma maneira, preservar a memória deste sítio e destas pessoas”, conta Carla Rosado. Assim nasceu o projecto Transmouraria. A ideia surgiu em 2013, quando começou a fotografar para o ROSA MARIA. Em 2014, com o arranque do ano, arrancou também este trabalho que agora se apresenta. “Vou querer ver os miúdos crescer, fotografar a mudança a acontecer”, explica esta moradora da Penha de França, nascida no Barreiro há 32 anos, e que entretanto se tornou editora fotográfica deste jornal e membro da equipa da Associação Renovar a Mouraria. O projecto Transmouraria estará em exposição na nova praça do Benformoso (veja na página 15) e já pode ser visto, na íntegra em www.transmouraria.com. São as imagens de um bairro histórico e multicultural em reabilitação desde 2010 e cujo futuro já está a ser documentado, clique a clique, pela Carla – através das suas lentes especialmente calibradas para encontrarem nas pessoas “aquilo que mais nos aproxima e nos torna iguais”.


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Rosa Maria n.º 8 fevereiro ‘15 · junho ‘15

Mouraria nas artes

Texto Nuno Catarino

Caixa

damental numa teia de relações, de amizade e invejas. Além de Cintra, numa prestação memorável, o filme inclui ainda um excelente leque de actores: Isabel Ruth (vendedeira de tremoços, cantora em part-time), Ruy de Carvalho (taberneiro), Beatriz Batarda, Glicínia Martin, Diogo Dória, Miguel Guilherme e uma deslumbrante Sofia Alves (no papel de prostituta, com um inesquecível vestido vermelho e justo). Há que destacar ainda a rara participação especial de João Bénard da Costa, aqui também a fazer papel de cego-cantor.

de surpresas Um dos mais emblemáticos filmes do mestre Manoel de Oliveira vive na Mouraria: as Escadinhas de São Cristóvão são as grandes protagonistas do filme A Caixa. Provavelmente não haverá nenhum outro filme na história do cinema com mais Mouraria dentro do que A Caixa de Manoel de Oliveira. O filme passa-se em exclusivo nas Escadinhas de São Cristóvão, da primeira à última cena. Estreou no Monumental em Novembro de 1994 e, passados vinte anos, o filme mantém uma aura especial, sendo um dos mais aplaudidos e populares filmes da carreira de Oliveira. Além de reproduzir a vida de bairro popular, é uma obra em que o humor está presente de forma contínua, combinando a graça do linguajar típico com momentos de inusitado surrealismo. O filme abre com um polícia a subir as escadinhas, notoriamente embriagado, pela madrugada. Pouco depois, já com luz diurna, uma vizinha de uma certa idade abre a sua porta de casa, sai à rua e, subindo um pouco o vestido, aproveita para urinar de pé. Este

obituário

O filme que saiu de uma peça

arranque inesperado é emblemático do ambiente do filme, juntando o popular e o improvável. Logo depois, pelos dez minutos, entra em cena a personagem principal, o cego interpretado por Luís Miguel Cintra, acompanhado pela sua caixa de esmolas. A caixa do cego é o elemento central, à volta da qual a vizinhança se reúne, o motivo de todas as conversas e discussões, eixo fun-

Mais do que as peripécias à volta da caixa, são os diálogos deliciosos que fazem o filme. Com argumento adaptado da peça homónima de Hélder Prista Monteiro, este é um retrato de uma Lisboa desaparecida e de relações de vizinhança que (quase) já não existem. Com expressões de outro tempo, a graça é intemporal, juntando-se ligações inesperadas, como a “Ave Maria” de Schubert que se cruza com instantes de humor “chaplinesco”. Para lá de toda a pertinência cinematográfica, o filme satisfaz também a curiosidade de relembrar aos lisboetas (e não só) como eram as Escadinhas de São Cristóvão há precisamente vinte anos. No confronto com as marcas deixadas pelo tempo, nem tudo se perdeu. Já não há a taberna na esquina com a Travessa da Madalena, mas as paredes têm agora mais cor, com um mural que junta ilustrações de Mário Belém, Pedro Soares Neves, Vanessa Teodoro, da União Artistas do Trancão, de Hugo Makarov Martins e Nuno Saraiva.

Texto Pedro Rodrigues* Ilustração Ernesto Possolo

Vítor Ribeiro (1960-2014)

Maçariku,

traficante de sonhos O Maçariku gostava de máquinas. Máquinas de luz, de imagem, de som. Câmaras, projectores, gravadores e até instrumentos musicais que não sabia tocar. Dava aos amigos, mostrava, usava, trocava nas feiras. A feira da ladra de Lisboa em primeiro lugar, claro. A feira já não será a mesma sem o Maçariku, esse passador de coisas e de ideias. E as coisas para ele não eram só objectos para coleccionar – tinham ideias lá dentro. Trocar, passar, presentear. Traficante de sonhos e de objectos, contrabandista de ferramentas de transformação para dar sentido a um mundo onde não se pode passar sem um bocadinho de tristeza. Mas não é tristeza para ficar parado. Pode ser uma caixinha de música para ajudar nos combates.

Uma maneira de estar

O Maçariku ensinou de tudo a toda gente. Mas ensina-se uma maneira de estar? Uma maneira de estar intensamente na vida, sem separar acção e pensamento, sem desligar as técnicas das ideias, sem opor a militância e o sonho, sem apartar as pessoas e as máquinas, as crianças e os adultos, os vinhos e as letras, sem saber afastar a cultura da política e amizade da luta. Saber fazer e dar sentido a esse fazer. Contra o empobrecimento da vida, ele provocava. Militante, mas antimilitarista (o “Tropa Não!”). Pela diferença, anti-racista. Contra os chefes, anti-fascista. Pela igualdade, mas nunca a das paisagens lisas, porque ele era adversário da “normalidade”. Podia dizer “o que tem de ser tem muita força”, mas cinismo não, cinismo nunca. Rugosas cida-

des de antagonismo e solidariedade, de combates e passagens, de barricadas e revoluções, de amigos e de toda a gente ainda por conhecer, de cafés e ruas, e ruas e ruas e ruas. Lisboa, como a palma da sua mão.

Com o corpo todo

Rigorosamente desobediente, o Maçariku falava uma língua só dele, cheia de interjeições, olhares, esbracejares, esgares, gritos, uivos, sussurros. Ele gritava com o corpo todo para nos acordar. Mas sussurrava as palavras mais importantes. Não sabia esconder o seu olhar atento por detrás do cabelo (que olhos bonitos!), nem a barba escondia o seu sorriso aberto, desafio constante ao mundo tristonho.

Levanta a pedrinha

Antagonista revolucionário das opções fechadas, das dominações fora e dentro da cabeça, dos caminhos fáceis do marketing. Fazemos então muito mais, muito mais transformador. E convidamos aqueles também, provocamos aqueloutros também, vamos conhecer gente que faça. Que saiba fazer porque vive. Que saiba pensar porque faz. “Levanta a pedrinha, oooooo!...” Porque, para além da amizade, era a transformação do mundo nas lutas da história o critério da sua indisciplinada disciplina. Nas lutas grandes e pequenas. E as pequenas são enormes, decisivas, entusiasmantes e belas.

Maçarico

Um pássaro das regiões costeiras? Um jovem que ainda não sabe tudo? Uma ferramenta com chama? Sabe-se lá. A gente só sabe que a sua última máquina parou – o coração. A vida vai: “Bute, bute!” *Maestro do Coro da Achada. Este texto foi publicado no site do Bloco de Esquerda, no dia 11 de Agosto, com a seguinte entrada: “Morreu no dia 1 de Agosto Vítor Ribeiro (Maçariku), fundador da Associação Abril em Maio e da Casa da Achada – Centro Mário Dionísio.”


Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15 Texto Diana Correia Ilustração Alexandra Belo e Vítor Mingacho

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Do

“pepino” anti-colesterol

ao “agrião” que tem nome de gente

O périplo pelos produtos mais exóticos cá do bairro desta vez coincidiu com o dia de Ano Novo hindu. Celebrámo-lo com bolinhos pinni – nós e o brasileiro Carlos, do Centro Comercial Mouraria. Afinal naquele espaço também há tempo para sorrir. Andava pelas ruas largas e estreitas da Mouraria quando me deparei com o minimercado Nitto Sodai, na Rua do Terreirinho. Entrei e o meu olhar fixou-se logo num estranho vegetal. Nunca vi um pepino assim. Sem grandes rodeios, perguntei ao rapaz que estava atrás do balcão o que era aquilo. Faysal de seu nome, respondeu prontamente que era karela, um vegetal amargo originário da Índia, mui-

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to útil para quem tem diabetes ou sofre de colesterol mau. Disse-lhe que queria levar um para experimentar; simpaticamente ofereceu-me o vegetal, avisando para não pôr sal quando o cozinhasse e mostrando-me uma versão ultracongelada. Em Portugal há cinco anos, sozinho, contou-me que na sua terra, no Bangladesh, o nosso navegador Vasco da Gama é conhecido e até há uma bandeira portuguesa. Dando mais uma volta pelo minimercado com um olhar curioso sobre cada embalagem, não poderia sair mais contente e com vontade de voltar para explorar todos aqueles produtos fascinantes. Satisfeita como uma criança que recebeu um doce, caminhei em direcção ao Centro Comercial Mouraria. Sempre tive curiosidade de entrar naquele espaço, apesar de haver uma barreira psicológica que me impedia de o fazer, porque o achava hostil. Não podia estar mais enganada. Ao entrar, quando me veio ao nariz uma variedade fantástica

de cheiros, senti-me uma turista na minha própria cidade. Não poderia estar mais radiante por encontrar tantas culturas, cores, idiomas; um sobe-e-desce muito apressado, um espaço cheio de vida! Desci as escadas e, ao fundo do corredor que dá acesso ao metro, encontrei a loja Popat Store – Produtos alimentares, legumes e especiarias indianas. Um local cheio de pessoas e alimentos. Era um convite a entrar. Explorando cada cantinho muito cautelosamente, reparei em algumas caixas com doces de vários tamanhos. Nham, nham! Horas do lanche! Que iguarias seriam estas? Perguntei a Carlos, o funcionário brasileiro a viver em Portugal há uma década, e ele, atarefado com as vendas, respondeu-me delicadamente que eram doces típicos da Índia, um mais amarelo, moong burfee, com sabor a leite e açafrão,

outros de caju e ainda outros de amêndoa. Embora se comam todo o ano, vendem-se mais em dias festivos como este (é dia de Ano Novo hindu – este ano a calhar no dia 24 de Outubro e a coincidir com as celebrações do maior feriado da comunidade: o Diwali, Festival das Luzes). Fui espreitando aqui, espreitando acolá, e Carlos, ao ver a minha tamanha curiosidade, estendeu-me a caixa. “Tome, escolha um!” Tirei um pinni, doce mas não exageradamen-

te. Não consegui decifrar que explosão de sabores era aquela... Foi a minha deixa para levar uma caixinha e experimentar o resto em casa. Olhando para o relógio, o tempo tinha passado depressa demais; acontece quando passamos bons momentos. Mas à saída do centro comercial, reparei numa pequena e irresistível loja, Nita Cash & Carry, e tive de entrar. Ao som de música indiana, encontrei um rótulo com um homem, provavelmente chefe de cozinha. Parecia-me agrião mas não tinha a certeza. Peguei na embalagem, esperei a minha vez na fila e perguntei o que era. “Feno-grego, conhece?”, respondeu-me o lojista. Percebendo que eu não sabia do que se tratava, foi buscar outro pacote. Parecia-me grão. Pacientemente esclareceu-me que havia duas variedades de feno-grego: fresca e seca. Fresca só há duas vezes por ano, no Inverno e no Verão. A planta, também conhecida por kassori methi, serve para sopas, saladas, caril... Pode ser cozinhada

de várias formas. Apesar do seu sabor amargo, é como que obrigatório consumir todas as semanas. Tem origem indiana mas também é muito cultivada no Paquistão. Ao reparar na destreza com que o lojista falava a língua de Camões, perguntei-lhe como se chamava. Respondeu Methi, o mesmo nome da planta, coisa que achei deveras curiosa. Há 26 anos em Portugal, Methi explicou-me que passou primeiro por Inglaterra, mas, por não ter conseguido tratar da documentação, veio para cá e aqui casou e teve dois filhos. Com as gargalhadas deliciosas que surgiram no decorrer das conversas, e com a simpatia com que fui prontamente recebida em todos os espaços onde entrei, deixei de ter receio do Centro Comercial Mouraria, e sem dúvida ficou a vontade de lá voltar para explorar melhor cada cantinho.


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retrato de família

Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15 Texto Teresa Melo Fotografia Carla Rosado

regular, Liu está no 6.º ano na escola Nuno Gonçalves, na Penha de França. O português quase perfeito é reflexo do empenho na disciplina lectiva, e de um grande gosto. Não é por acaso que esta adolescente é o apoio dos pais, que dominam pouco a língua portuguesa. É a “tradutora” da família. Já a matemática “é muito complicada”, e o inglês... “ainda não percebo muito bem”. O que a faz sonhar alto é a música chinesa. “Gosto muito de cantar, quando for grande quero ser cantora.” O tempo livre é partilhado com os amigos ou em casa a brincar com o membro mais novo da família. O Afonso tem dois anos e nasceu em Lisboa. Curiosamente, a escolha do nome adveio da simplicidade em soletrá-lo. “António era muito difícil de dizer, por isso a mãe escolheu Afonso.” Traquina, é impossível ficar indiferente à sua simpatia, especialmente nos seus sonoros “ni hao”, que é como quem diz “olá”. Raramente vão à terra natal. O pai viaja com mais regularidade, mas Zhang e Liu só lá regressaram uma vez desde que emigraram. As saudades da China existem, naturalmente. Mas não lhes altera em nada a vontade de ficarem em Portugal.

Natural de Pequim, a família Liu vive na Mouraria com o à-vontade de quem conhece o bairro há muito tempo. O pai, Tong Shui Liu, foi o primeiro a chegar, já lá vão dez anos. Cozinheiro e trabalhador no Centro Comercial Mouraria, veio motivado pelos amigos que já cá estavam. “Diziam que a qualidade de vida era bem melhor!”. Quatro anos depois, em 2008, foi a vez da esposa e mãe dos seus filhos, Zhang. A adaptação não foi um problema, embora ainda peça a uma amiga que lhe dê “umas explicações” de vez em quando. Sorridente e desembaraçada, serve os almoços e os jantares no negócio familiar, um discreto restaurante de comida tradicional norte-asiática a funcionar no prédio onde moram, no n.º 9 da Rua da Guia (esse mesmo onde fica o lintel de que falamos na página 6). Está aberto desde 2011, ano em que Liu, a filha de 12 anos, se juntou aos pais. Em Portugal há três anos, está admiravelmente adaptada ao bairro, às suas pessoas e aos seus sabores. Aliás, os pastéis de nata são a sua perdição. “Gosta mais de Lisboa do que de Pequim, porque faz mais calor.” Integrada no ensino

Acho fantástico. Só é pena que não haja ninguém a controlar. É uma vergonha, principalmente nesta zona de muitas lojas. Há muito cartão na rua a toda a hora, o que dá péssima imagem à Mouraria. Mas acho ridículo irem fiscalizar os sacos do lixo. Isso já é caça à multa! Se tivessem mais fiscais a circular e a educar as pessoas, era melhor. > Sandra Vaz, 37 anos / Comerciante de hotelaria Mora na Rua do Benformoso e trabalha na Rua da Mouraria

Concordo com a multa, para educar as pessoas, mas há gente que não vai pagar. Nem mesmo com a multa se emendam! > Fernando Baguinho, 80 anos / Sapateiro e poeta Mora na Rua dos Lagares

Acho que primeiro é preciso educar as pessoas. Devia haver tolerância nas primeiras duas ou três vezes em que não se cumpre as regras, mas depois disso concordo com as multas. Nós, os estrangeiros a viver em Portugal, temos de respeitar as regras do país onde vivemos. > Kazi Akhtaruzzaman, 52 anos/ Comerciante Trabalha na Rua do Benformoso

Já vi turistas a afastarem sacos do lixo para poderem tirar uma fotografia. Eu tenho bombardeado o Facebook da junta porque as carrinhas que passam só apanham o lixo que está na rua, nem chegam a entrar nos largos. Eu concordo com as multas. O mal é que as leis existem mas não há quem as faça cumprir. Se as pessoas vão pagar? Tantas vezes vai o cântaro à fonte, que alguma vez se parte! > Manuel Gonçalves Fernandes, 57 anos / Reformado Mora no Largo das Gralhas

* Leia mais sobre este tema nas páginas 2 e 3.

Entrevistas e Fotografias Maria Vidigal

Concorda com a aplicação de multas a quem não cumpra as regras do lixo?

vox mourisco

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Às vezes vemos os trabalhadores da junta a recolher o lixo, mas mal viram as costas já está tudo cheio de sacos. Só quando se começarem a ver as primeiras multas é que vai haver respeito. Também acho bem que os fiscais abram o lixo, mas corre-se o risco de multarem a pessoa errada. > Teresa Nobre, 51 anos / Empregada de limpeza Mora na Rua do Regedor

Para quem não tenha um horário das 9h às 5h, é difícil cumprir. As pessoas têm de aprender a viver em comunidade, mas não devia ser através da intimidação. E não acho bem que fiscalizem os sacos do lixo. É uma invasão da privacidade, é agir à má fila. De qualquer forma, quem cria as medidas não as faz cumprir! Era suposto multar-se quem urina na rua. > Mónica Castelo, 41 anos / Comerciante de hotelaria Trabalha na Rua dos Cavaleiros

Acho bem, porque há muita gente que não respeita o sítio onde vive. Quantas vezes não vi pessoas a porem o lixo na rua logo depois de a carrinha passar, ou até mesmo a atirarem o lixo pela janela fora? Nestas zonas passa muito turista, é mau para a cidade não haver asseio. > Rafael Neves, 30 anos/Empregado de mesa Mora no Largo do Terreirinho

Concordo com a aplicação de multas, mas acho que os valores podem ser excessivos, com tanta gente a passar dificuldades. E acho também que primeiro devia haver uma sensibilização por parte da câmara, porque há quem não conheça as regras. Aqui vivem muitas culturas diferentes, com diferentes noções do que está certo e do que está errado. > Graziela Lopes, 53 anos/Empregada de balcão Trabalha no Martim Moniz há 34 anos


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Rosa Maria n.º 8 fevereiro ‘15 · junho ‘15

Mouraria Zen

Dois Mitos

Sobre Imigração “Basta ter um filho em Portugal, para essa criança ter nacionalidade portuguesa.”

Falso! Uma criança, filha de estrangeiros,

que nasça em Portugal só tem nacionalidade portuguesa se um dos pais reunir duas condições: ter nascido cá e aqui ter residência, independentemente do título [artigo 1.º, n.º 1, d) da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril, que introduziu alterações à Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro – Lei da Nacionalidade]. Entretanto, desde 2006, há outras possibilidades de uma criança adquirir a nacionalidade. Pode tornar-se cidadão português quem preencher um destes dois requisitos: 1) Ter um dos pais a residir, legalmente, no país há cinco anos; 2) Concluir neste país o 1.º ciclo do ensino básico, de quatro anos – geralmente iniciado pelos seis anos e terminado pelos nove anos [artigo 6.º, n.º 2 da mesma lei].

“Os imigrantes vêm desgastar o nosso sistema de Segurança Social.” Falso! Muito pelo contrário. Por todo o mun-

do ocidental, os imigrantes têm sido uma garantia do rejuvenescimento das populações – e consequentemente do reforço dos sistemas de Segurança Social que providenciam os apoios sociais a toda a população. Em Portugal isso é ainda mais evidente, porque é o país europeu com a taxa de natalidade mais baixa. Seria ainda mais grave sem os imigrantes, pois eles são

Promotor:

Parceiro:

Co-financiamento:

responsáveis por 10% dos nascimentos – sendo os chineses os que mais contribuem. Segundo os últimos censos nacionais de 2011, houve 106,2 crianças por cada mil mulheres estrangeiras. É o triplo dos nascimentos entre as portuguesas. Por essa altura, os imigrantes eram 7% dos inscritos na Segurança Social. Custaram ao Estado 264,2 milhões de euros, mas pagaram 580,2 milhões, o que significa um ganho de 316 milhões de euros com estes utentes, segundo o Observatório da Imigração. A nível mundial, a ONU estima que 3,2% da população viva emigrada. Os Estados Unidos são o destino da maior parte dela (20% dos emigrados). A população norte-americana tem 13% de imigrantes, contra apenas 3,7% na portuguesa (veja página 22). Uma prova de que os imigrantes são positivos para os países de acolhimento é que os EUA são a maior potência mundial. Na União Europeia, o país com maior percentagem de imigrantes é o Luxemburgo, que é também o que apresenta o mais alto Produto Interno Bruto por habitante da União Europeia. Portugal só surge a meio da tabela, bem abaixo de países com economias sólidas como a alemã, a francesa, a sueca ou a holandesa. Os portugueses, por seu lado, são os europeus que mais emigram – sendo a nossa a terceira mais pobre economia da zona euro. No Luxemburgo, representam metade dos imigrantes e pesam 18% no total da população. Entidade gestora:

Não faltam práticas zen cá no bairro. Mais ainda desde Outubro, quando abriu o S-Espaço na Rua das Farinhas. Tem cantares e danças tradicionais e orientais, massagens e… yoga. Se ainda não experimentou estes exercícios, inspire-se aqui. Eis a lista de possibilidades:

Yoga

30 da Mouraria

Terças ou quintas, 10h-11h30 Preços: 25€/mês (1x/semana) · 10€/sessão avulsa (às terças) · 30€/ quatro sessões (às quintas) Rua da Mouraria, n.º 30, 4.º, 1100-134 Lisboa | Tel.: +351 914 462 080 http://30damouraria.weebly.com

Art Estúdio

Quartas e quintas, 19h-20h Preço: 5€/sessão, em regime de donativo Travessa dos Colégios, n.º 8, 1150-050 Lisboa | Tel.: +351 919 918 351 www.facebook.com/art.estudio.5

Associação Renovar a Mouraria

Segundas e quartas, 20h-21h15 Preços: 25€/mês (1x/semana) · 40€/mês (2x/semana) · 8€ (sessão avulsa) · 30€/pacote quatro aulas avulsas; exclusivo para moradores, trabalhadores do bairro e sócios Mouradia – Casa Comunitária da Mouraria, Beco do Rosendo, n.º 4-10, 1100-460 Lisboa | Tels.: +351 218 885 203; +351 922 191 892 www.renovaramouraria.pt

S-Espaço

Terças e/ou quintas, 19h-20h15 Preços: 30€/mês (1x/semana) · 45 30€/mês (2x/semana) Rua das Farinhas, n.º 26, 1100-237 Lisboa | Tel.: + 351 924 368 752 www.facebook.com/sespaco.sespaco

Tai Chi

Olhem que giras!

Ágata Ribeiro

A Calçada de Santo André está cada vez mais encantadora e uma das razões é o ateliê Doce Encanto, da Cláudia Vieira. Com as suas mãos de fada, tanto sobe umas bainhas como produz verdadeira arte. Olhem para estas bonecas! Irresistíveis. São uma encomenda da associação Anelarte560. Afinal, em que outro sítio deste país haveriam de nascer estas fofuras se não aqui no bairro das mil nações?

Casa de Lafões

Sextas, 16h45-18h Preços: caso a caso; exclusivo para sócios Rua da Madalena, n.º 199, 1100-319 Lisboa | Tel.: +351 218 872 065 https://pt-pt.facebook.com/CasaDeLafoes

Biodanza

Inatel Mouraria

Terças, 19h00-21h Preços: 45€/mês; 30€ p/ sócios Inatel, estudantes e reformados Edifício Amparo, Rua da Mouraria, n.º 64, 4.º andar 1149-076 Lisboa | Tel.: +351 914 548 103; 914 504 165 www.inatel.pt

Pilates

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Terças e quintas, 18h30-19h30 Preços: 30€/mês (2x semana) · 10€/aula Rua da Mouraria, n.º 30, 4.º, 1100-134 Lisboa | Tel.: +351 914 462 080 http://30damouraria.weebly.com


Rosa Maria n.º 8 fevereiro ’15 · junho ‘15 Texto e Fotografia Rita Pascácio

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É uma tasca portuguesa, com certeza! Feijoca com Cabeça de Porco

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Pudim de Forno

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2 kg feijoca 1 e ½ cabeça de porco 4 folhas de hortelã 3 cebolas 4 dentes de alho 500 g tomate maduro 2 folhas de louro 1 colher de chá de cominhos 3 cenouras 1 chouriço coentros sal q.b. vinho branco q.b. azeite q.b.

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Após demolhar a feijoca durante cerca de dez horas, cozê-la e reservá-la com a água da cozedura. Bater os ovos com o açúcar. Juntar o leite e a raspa do Separadamente, cozer a cabeça de porco, juntando limão e bater com a varinha um pouco de hortelã. Quando estiver cozida, retirá-la mágica. Untar uma forma do tacho e cortá-la em pedaços. Reservar. Numa panela, com caramelo, colocar o fazer o refogado com o azeite e a cebola, e juntar os preparado e levar ao forno dentes de alho. Puxar com vinho branco e, de seguida, em banho-maria, durante juntar o tomate partido, o louro, os cominhos, a cenoura cerca de quarenta minutos. Deixar arrefecer e às rodelas e o chouriço. Manter o lume brando durante desenformar. cerca de vinte minutos. Quando os ingredientes estiverem quase cozidos, juntar a carne, os coentros e a hortelã e deixar cozer, sempre Tasquinha da Isilda em lume brando, durante mais vinte minutos. Rua do Terreirinho, n.º 76-B Depois, juntar a feijoca com a água da sua +351 218 877 863 cozedura, juntar sal a gosto e deixar apurar. Aberto todos os dias, das 9h30 às 23h

(à terça-feira não serve almoços)

Por João Madeira

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nomes próprios

soluções

Pratos e petiscos portugueses, jogos de futebol e um ambiente familiar. Eis o que se pode esperar da Tasquinha da Isilda (assim apelidada pelos clientes e vizinhos), a única que oferece este trio nas redondezas, segundo a dona Isilda Duarte. Os pratos da casa são a feijoca com cabeça de porco, o cozido à portuguesa, a dobrada e a panela do forno, típica da Covilhã. Para petiscar, ao fim-de-semana, o cardápio inclui pataniscas, carapauzinhos fritos, ovos mexidos com chouriço, torresmos e moelas, entre outros petiscos. Para rematar, mantendo o registo tradicional, há o pudim de forno, o arroz-doce, as farófias e afins. Tudo caseirinho e feito pelas mãos da dona Isilda, algarvia, há quarenta anos na Mouraria, e que ainda dá uma mãozinha na cozinha da Casa da Covilhã, vizinha da Rua do Benformoso. O senhor João Duarte, seu marido ribatejano que conheceu neste bairro, é parceiro também na tasquinha, desde a abertura, há quinze anos. Além de familiar, o ambiente do local torna-se muitas vezes multicultural, com as visitas de vizinhos chineses e bengalis, que são também seus clientes, tal como de turistas curiosos e ansiosos por experienciar, da forma mais autêntica possível, o ambiente de um bairro lisboeta como a Mouraria.

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10 ovos 300 g açúcar 1 l leite 1 limão (raspa) caramelo q.b.


Rosa Maria n.º 8 fevereiro ‘15 · junho ‘15

banda desenhada

pppp

Texto e Ilustração Nuno Saraiva

da capa à contracapa

Texto Patrícia Santos Fotografia Pablo Lopez

Vítor Pereira

O mais velho filho da Mouraria

Nasceu na casa onde viveu toda a vida, na Rua do Capelão, frente à casa da Severa. Aos 95 anos, sente-se um verdadeiro “filho da Mouraria” e tem o título da pessoa mais velha nascida cá no bairro. Há quem o conheça como “senhor Vítor, o encadernador”, que foi o seu ofício. Mas é mais conhecido como um dos fundadores do Grupo Desportivo da Mouraria (GDM). “Trabalhou muitos anos em prol da colectividade e das pessoas do bairro”, conta Alfredo Correia, ex-presidente do GDM. Da infância, Vítor Pereira recorda sobretudo a pobreza, a falta de condições das habitações, os candeeiros de petróleo e as ruas em terra batida. Em criança, jogava com bolas de trapos, juntamente com a rapaziada. Certo dia, ganharam uma bola de borracha, começaram a jogar e decidiram: “Vamos fa-

zer um grupo.” Surgiram assim os “Leões da Mouraria” – primórdios do GDM. Aí, foi atleta (até aos trintas) e depois dirigente. “Secretário, vogal, presidente... Ocupei todos os cargos, menos tesoureiro.”

O respeito em pessoa

Conheceu a esposa nas marchas populares e teve duas filhas. Ana Maria, a mais nova, recorda que em casa havia apenas “uma pia na cozinha e um alguidar”. Deslocavam-se ao GDM para tomar banho, aos fins-de-semana. “O meu pai sempre foi muito agarrado à família, muito bem-disposto. É uma pessoa muito carismática.” Agora, “nesta idade, eu é que trato dele”. Em Outubro, foi hospitalizado com uma pneumonia e foi para casa de Ana Maria – também na Mouraria –, por recomendação médica. Até aí a rotina era sempre a mesma: passava a tarde no café

O senhor Vítor, com a mulher Alice Pereira e a filha Ana Maria, na casa desta, em recuperação após um internamento, em Outubro, devido a problemas pulmonares.

da Cristina, na Rua da Guia, a ler o jornal até às sete. Cartas já não jogava, que, como diz: “A memória também já falha. Às vezes estou a fazer uma jogada e daqui a um bocado já me esquece”. É querido por todos. “Rapazitos novos dão-lhe o braço e vêm trazê-lo a casa”, segundo a vizinha Arminda Almeida. Viaja-

do, conheceu Cabo Verde, Moçambique, Espanha e França. Diz ter frequentado quase todos os bairros de Lisboa, mas nunca pensou em deixar a Mouraria. “Viver, só aqui. Sou mesmo filho da Mouraria e sempre tive orgulho em ser da Mouraria. Vivi sempre na casa onde nasci e tenho impressão que é onde vou morrer.”


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