Estética e Analogias: analisando as principais formas de violência nas narrativas de Kim Ki-duk

EstĂŠtica e Analogias: analisando as principais formas de violĂŞncia nas narrativas de Kim Ki-duk Jessica Gonzatto

SĂŁo Paulo Novembro/2019

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Resumo: A violência é explicitada e discutida em grande escala pelo diretor Sul-Coreano Kim Ki-duk em suas narrativas. Como que tal elemento articula-se diegeticamente e quais as principais formas de manifestação através dos diversos campos conceituais? Com ênfase no filme Pietá (2012) e traçando paralelos com alguns de seus outros filmes, o presente artigo procura evidenciar e analisar tais tipos de violência que acometem o cinema de Kim Ki-duk e alguns possíveis impactos diegéticas e extradiegéticas disso.

Palavras-chave: Kim Ki-duk, violência, semiótica, Pietá, cinema coreano

Abstract: Violence is shown and discussed in great scale by the South Korean director Kim Ki-duk in his narratives. How does such narrative artifact is articulated inside the diegesis, and what are the main resources for its representation throughout the different conceptual fields?

Focusing mainly on Pietá (2012) and making connections with some os Kim’s other movies, this article intends to point out and analyze such kinds of violence that fill Kim Ki-duk’s cinema and some of it’s diegetic and non-diegetic impact.

Keywords: Kim Ki-duk, violence, semiotics, Pieta, Korean cinema

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"For me, violence is beautiful." – Kim Ki-duk

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Introdução Em seu corpus de vinte e dois filmes, o diretor sul-coreano Kim Ki-duk trata ampla e inescrupulosamente a violência como protagonista – por vezes agressiva e sem freio, por vezes sutil e melancólica. Seja explícita ou temática, a noção da agressão entre dois ou mais seres – ou até mesmo dentro do próprio Ser – é representada por Kim nos mais variados níveis. Essa riqueza narrativa parece querer demonstrar que a subversão da moral, da tranquilidade, do bem estar físico ou mesmo uma incomunicabilidade intangível pode estar sempre presente em qualquer plano de nossa existência, como se essa subversão do que é estabelecido fosse o único caminho a ser seguido.

O objetivo do presente trabalho é investigar exemplos encontrados nas representações físicas e psicológicas da violência no trabalho de Kim, suscitando análises temáticas individuais (e.g.: a violência política; sexual; familiar etc.) enquanto apoiando-se majoritariamente na narrativa de Pietá (P’iet’a), filme lançado em 2012. Em menor peso, algumas situações serão ilustradas com outras obras do diretor.

Do núcleo da semiótica, resgata-se uma tentativa de significar os signos e as temáticas apresentadas; do núcleo narratológico, uma estrutura impressionante coberta por uma linguagem única e delicadamente traçada – apesar de cruel. É, então, no paradoxo dessa violência sutil e escancarada que descobriremos a relevância artística e conceitual de Kim Kiduk pertinente a este artigo.

Comentário e questionamentos sobre a violência Além da violência crua manifestada diegeticamente nos filmes de Kim Ki-duk – e tantos outros – através de arranhões e pontapés, o espectador encontra-se em um mundo de alusões e questionamentos. A liberdade surreal com que o diretor se expressa suscita momentos de clareza e conexões intertextuais carregadas de uma complexidade psicanalítica comentada do modo mais rudimentar possível: a dificuldade de comunicar-se pacificamente, ou de comunicar uma necessidade de modo socialmente "adequado”. Essa dificuldade é exposta pelo cineasta de modo cru diante da câmera, significando o que estamos vendo, mas também algo de imaterial que questiona ou reforça diversas questões presentes nos relacionamentos humanos e no âmbito social. As personagens violentam e sofrem violências dos mais variados modos. Esse tipo de manifestação altera não só o caráter e o destino narrativo da personagem como também a percepção do espectador sobre o texto fílmico e os temas nele tratado.

5 Mas como exatamente que esse conceito sociocomportamental penetra na narrativa e

articula-se nela? Quais os principais artifícios visuais e contextuais empregados por Kim? Tal grafismo é embasado na teórica comunicativa ou é mais caprichosa? Os corpos conflitantes que habitam a obra de Kim Ki-duk tornam-se, portanto, condutores de uma investigação narrativa envolvendo esses e outros questionamentos sobre a violência.

Principais tipos de violências narrativas concretas nos filmes de Kim Ki-Duk Kang-do, com a mão na virilha de Mi-sun, pergunta se foi dali que ele saiu. Ela confirma, aterrorizada. Ele, sarcástico, pergunta se pode entrar ali novamente. O filho, então, estupra a mãe.

De caráter extremamente hediondo, essa cena do filme Pietá (2012) introduz rapidamente ao teor do conteúdo de violência sexual que Kim Ki-duk apresenta em suas narrativas, nunca tímido em mostrar o sofrimento e o prazer que tais atos provocam em seus personagens. Como Ruiz denota em seu trabalho Sexualidad violenta en el cine de Kim Ki-duk (2011)1, quase todos os filmes de Kim apresentam algum caso, índice ou a própria temática de violência sexual. Ele observa que o homem é quase sempre retratado como "um ser sem escrúpulos que usa a mulher em benefício próprio e que não hesita em maltratá-la para tornar reais seu desejos mais baixos"2, logo a submissão da mulher parece estar intrínseca ao fenômeno da força narrativa que a violência tem na obra de Kim. Títulos como Crocodilo (Ak ŏ, 1996), Moebius (Moebiuseu, 2013), Pietá, A Ilha e tantos outros apresentam elementos narrativos que aliam o sexo à violência, resultando em uma linguagem quase automática e equivalente.

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O estudo de Ruiz aborda os diferentes modos como Kim Ki-duk retrata o sexo em quinze de seus filmes, com forte ênfase na violência e no contraste com o sexo amoroso.

2 "(...) un ser sin escrúpulos que usa a la mujer en beneficio propio y que no duda en maltratarla para hacer realidad sus deseos más bajos." (trad. livre)

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Fig. 1: Kang-do e Mi-sun em Pietá

Na opinião de Ruiz, tais excessos – um termo que ele mesmo sugere em relação ao uso desenfreado da violência sexual – não apresentam necessidade ou justificativa narrativa concreta. Podemos perceber com nossas próprias bases críticas que o cineasta testa os limites do voyeurismo narrativo se utilizando do ato da violação sexual como elemento narrativo explícito, diante da tela. A crítica que ele propõe - tanto social como comportamental - é feroz quando distanciada da narrativa e tomada como uma analogia. Porém, quando explícita, envolve significações próprias e objetivas daquele contexto narrativo.

A sensação de inevitabilidade da violência que o encontro entre homem e mulher provoca, por exemplo, é palpável, exercendo um poder avassalador de identificação do status quo fílmico pelo próprio expectador, que quase já espera o tenebroso resultado negativo entre uma relação dessas apresentada por Kim. Podemos observar, então, que a violência sexual por parte do homem ou do personagem opressor torna-se um marcador narrativo que identifica o discurso fílmico preponderante da obra de Kim ki-duk3, o qual molda seus personagens a fim de que esses lidem excessivamente com essa violência em frente aos nossos olhos, desprovidos de uma privacidade ou de algum carinho reconfortante.

A violência sexual de Kim denota, narrativamente, uma desilusão comum aos seus personagens em relação à intimidade. Em Pietá, por exemplo, o diretor já nos avisa que o dinheiro pode ter o poder de violentar as relações humanas, assim como o abandono e a

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Essa observação é corroborada por Ruiz, novamente, quando ele diz que "En sus películas la mayoría de las relaciones sexuales carecen de amor y afecto […]. Sus personajes, disfuncionales y heridos, viven atrapados en mundos crueles que apenas les conceden oportunidades para salir de ellos o cambiar-los. En sus películas, el contenido sexual de las imágenes siempre causa inquietud y desagrado. Sin duda, la vision de Kim Ki-duk sobre el sexo es una visión pesimista y violenta". (Em seus filmes, a maioria dos relacionamentos sexuais carece de amor e carinho[...]. Seus personagens, disfuncionais e feridos, vivem presos em mundos cruéis que mal lhes dão oportunidades de sair deles ou mudá-los. Em seus filmes, o conteúdo sexual das imagens sempre causa inquietação e descontentamento. Sem dúvida, a visão de sexo de Kim Ki-duk é uma visão pessimista e violenta".

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vingança, pois o personagem principal (Kang-do) é caracterizado pelo seu trabalho impetuoso de coletor de dívidas e pela falta de empatia social, até a chegada de Min-sun, sua suposta mãe que teria o abandonado. O que poderia ser uma história "tradicional" na qual mãe encontra filho não acaba por concretizar tal normalidade, pois estabelece um universo desconfortável de intimidade violenta entre Kang-do e Mi-sun, onde a necessidade de expiação da "mãe" e a incapacidade social do “filho" tornam-se tão afloradas que resultam em violência – e, mais tarde, em redenção.

O caso da relação dos personagens principais dessa história é tão único que podemos inferir que Kim Ki-duk realiza um estupro narrativo ao introduzir Mi-sun de um jeito tão incomum4, efetuando um paralelo com as agressões sexuais que mostra explicitamente durante o filme. As necessidades sexuais de Kang-do5 são momentos tensos de tabu e violência. O estupro que o próprio filho realiza na mãe tenta, parece, ser justificado pela clara violência do abandono. Para Kang-do, um personagem opressor, violento e moralmente inapto, o castigo que ele encontra é a violação do corpo da mãe. Mi-sun, amparada pela sua própria força narrativa de desejo de vingança maior, não castiga Kang-do no momento. O estupro, para essa narrativa, torna-se mais um fenômeno de convergências inevitáveis que permeiam os personagens, culminando em um ato explícito, pesado e execrável – ainda assim podendo ser tomado como uma analogia narrativa. Esse, parece, é o perigo da violência sexual explícita: a naturalização daquele ato como algo amparado no âmbito conceitual das escolhas narrativas, que acaba por, antes de criticar, reiterar o problema da opressão sexual de ambos os sexos. A violência sexual pode não ser "arbitrária", mas basta ser existente para tornar-se um artifício nocivo de discurso narrativo.

Violência gera violência. Essa é a noção que parece preencher as escolhas de Kang-do e seu modo de enxergar o mundo. As motivações dos corpos que violentam são, em grande maioria, um mistério, assim como no mundo extradiegético. O que leva os personagens de Kim Ki-duk agirem de forma tão banal e selvagem em relação ao ato sexual parece, além da incapacidade emocional, estar conectado ao teor intelectual e ao poder monetário atribuídos aos personagens.

Um outro tema recorrente que se relaciona e esse tipo de agressão é o da prostituição: em Bad Guy (Nappŭn namja, 2001), A Ilha (Sŏm, 2000), Birdcage Inn (Paran daemun, 1998)

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A personagem de Mi-sun aparece na vida de Kang-do afirmando que é sua mãe. Ela não se comunica normalmente e sofre os atos de rejeição e violência de Kang-do como se fosse uma mártir, ou merecesse tais atos, nunca concluindo um momento de comunicação verbal totalmente eficiente.

5 Mi-sun ajuda Kang-do a masturbar-se enquanto ele dorme (ato repetido no filme Moebius, de 2013).

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e o pioneiro narrativo em relação a esse tema, Wild Animals (Yasaeng dongmul bohoguyeog, 1997), por exemplo, vemos a presença de prostitutas. Nesse último filme, Ruiz observa que "Kim traça uma relação entre o sexo e a experiência traumática da guerra. De tal analogia podemos entender que para Hong-san, as relações sexuais resultam em dor."6.

Novamente, o sexo lida com a violência, mesmo conformando-se dentro do "papel” que a personagem supostamente deve exercer: na maioria dos casos, ela não exerce a prostituição por prazer – ou sequer o provoca satisfatoriamente, como a fala de Ruiz evidencia. Em sua análise sobre o assunto, o autor aponta a prostituição como único caminho a ser seguido pelas personagens marginalizadas, as quais são exibidas como mártires em detrimento de sua dignidade e pureza corporal.

A violência é percebida aqui como uma indignação social. Contudo, o espectador pode interpretar tal determinação cruel como uma espécie de castigo imposto à personagem. Como Kim não vê outra escapatória para a pobreza (como aponta Ruiz7) de suas personagens a não ser a prostituição, seria fácil cairmos na desfavorável tentação de apontar tais personagens como rasas ou meramente estandartes da violência. Felizmente, não é o caso: uma grande desconstrução semiótica colore a narrativa e linguagem da obra do diretor, e seus personagens parecem transcender, de algum modo, a simplicidade crua das situações opressoras em que se encontram. Elas iniciam sua trajetória em um mundo que reconhecemos inicialmente, até que as regras de convivência e progressão dos fatos alterarem-se para um código narrativo único de Kim, evidenciando a grandeza nua e crua de suas personagens. Na tese Kim Ki-duk: The Silent Cases of The Isle, Bad Guy, and The Bow, Emily Damron aponta que a maioria das personagens femininas "encontram-se presas nessa estratificação social da dicotomia de homem-versus-mulher e são mantidas sob o peso de tais homens agrupando-se com desejo e luxúria"8.

Essa noção pode ser esclarecida pelas palavras do próprio diretor: Eu [Kim Ki-duk] penso nas mulheres como seres que habitam um nível mais alto que os homens. Elas têm algo a oferecer que os homens sempre precisam, tanto que

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"Kim pone en relación el sexo con la experiencia traumática que supone la guerra. De tal analogía podemos entender que para Hong-san las relaciones sexuales le resultan dolorosas" (2011. "Kim relaciona sexo com a experiência traumática da guerra. A partir dessa analogia, podemos entender que, para Hong-san, as relações sexuais são dolorosas para ele." Tradução livre).

7 "Las prostitutas en el cine de Kim Ki-duk no ejercen por voluntad propia, como ocurre con algunas profesionales del sexo “legal”. Ellas siempre o casi siempre son forzadas por los hombres o se ven abocadas a prostituirse por el más común de los motivos en estos casos: la pobreza" (2011. "As prostitutas do cinema de Kim Ki-duk não exercem por vontade própria, como ocorre com algumas profissionais do sexo “legal”. Elas sempre ou quase sempre são forçadas pelos homens ou veem-se condenadas a prostituírem-se pelo mais comum dos motivos nesses casos: a pobreza." Tradução livre).

8 "[...] find themselves trapped within this social stratification of men-versus-women dichotomy and are restrained under the weight of such men teeming with desire and lust" (2013. Tradução livre para o português).

9 eles pagam por isso. A maioria das pessoas provavelmente irá discordar comigo, mas, do modo que penso, a relação entre homens e mulheres é em si um tipo de prostituição, mesmo que dinheiro algum seja trocado. Quando problemas ocorrem entre homens e mulheres, geram a energia que faz o mundo girar. É um conflito universal, mas de um modo que também reflete diferenças culturais.9

Contextualizando a obra de Kim dentro de sua visão de mundo (e de seu contexto nacional, como veremos à seguir), é visto, portanto, que existe espaço para críticas em relação ao retrato das personagens femininas submetidas à prostituição e abuso sexual. Nesse momento, podemos explorar a crítica à visão fetichista apontada por Laura Mulvey em seu estudo Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975) e no livro Fetishism and Curiosity (1996).

Nesse último, Mulvey discorre sobre o fenômeno do mistério envolvendo a sexualidade da mulher: durante o ato sexual da prostituta, essa tem a capacidade de sair de si10, e acaba sendo o alvo perfeito para tal papel de mártir. Em Birdcage Inn, por exemplo, vemos a personagem de Jin-a sofrer inúmeros atos de violência sexual (e abuso físico) durante seu trabalho como prostituta. Em uma dessas ocasiões, ela presta atenção em objetos ao seu redor (e.g: uma garrafa que cai e despeja bebida), como se escapasse momentaneamente do ato sexual, ou ainda como se não desse importância alguma ao sexo banal corriqueiro.

Em um outro momento, testemunhamos ainda outro ato de fetichização absoluta da personagem prostituta: um cliente exige que Jin-a vista um uniforme de colegial, assim despersonalizando a personagem ainda mais e a transformando em um objeto conceitual de desejo, que por si só já é problemático. Porém, é importante ressaltar o contexto social em que o diretor está inserido: através do conceito das "mulheres parasitas”, Damron elucida que Basicamente, "essas mulheres 'parasitas' precisam de proteção masculina, e seus corpos são oferecidos como recompensa por tal proteção" [...]. A identidade feminina é construída na base da tradição coreana de um patriarcado estarrecedor, o qual permeia os filmes de Kim.11

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"I think of women as being on a higher level than men. They have something to offer that men always need, that they will even pay for. Most people will probably disagree with me, but the way I think about it, the relationship between men and women is itself a kind of prostitution, even if no money does change hands. When trouble occurs between men and women it generates the energy that makes the world go round. It’s a universal conflict, but in a way it also reflects cultural differences" (HUMMEL, 2002; tradução livre; grifo nosso).

10 Analisando o filme Sauve qui peut, de Godard, Mulvey discorre sobre a noção de mistério que o homem expressa em relação à sexualidade feminina (1996, pág. 93).

11 "Basically, “these ‘parasitical’ women are in need of male protection, and their bodies are offered as rewards for such protection” [...]. These conflicts and complex identities, although different in each film, interconnect the sexual violence through aggressive presentations of the female body. Female identity is constructed on the basis of the Korean tradition of an overwhelming patriarchy, which pervades Kim’s films" (DAMRON, 2013, tradução livre).

10 Outro exemplo é do filme A Ilha, onde a a prostituta Hee-jin passa por relações de

estupro em seu ambiente de trabalho e ainda vive uma relação que une o sexo e a violência12 durante a totalidade da narrativa. A violação do corpo, em tais aspectos, torna-se um "atrativo" inerente à intimidade.

Em Pietá, por exemplo, mãe e filho, inevitavelmente criam um laço incestuoso ao se aproximarem, através das violentas necessidades sexuais de Kang-do e do episódio de estupro por parte do mesmo. Já nesse filme, não temos a questão da prostituição utilizada como elemento narrativo, mas temos a noção da mulher mártir personificada por Mi-sun. Isso envolve desde violência sexual até verbal.

Fig. 2: O tabu do incesto em Pietá

Fig. 3: a repetição do tabu em Moebius

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"La prostitución, la violación y el sadomasoquismo están presentes en todas las relaciones sexuales que mantienen los personajes" (RUIZ, 2011. "A prostituição, a violação e o sadomasoquismo estão presentes em todas as relações sexuais que os personagens mantêm". Tradução livre).

11 Notamos que trajetória da personagem da mãe é marcada pela necessidade de passar

por situações perigosas – a convivência com Kang-do, experiências de violência física por parte de terceiros, etc –, e o caráter que define as experiências da personagem é o da autoimposição: por vontade própria, Mi-sun submete-se a tais riscos e atos bárbaros em razão de seu desejo por vingança pela morte do filho. Sua infeliz convivência com o sofrimento é, então, em primeira instância um ato de automutilação, seguida por violações provindas de terceiros.

Com Moebius (2013), por exemplo, Kim Ki-duk explora profundamente esse universo da violência autoimposta, seja ela física ou moral. A narrativa envolve uma mãe ciumenta do caso extramarital do marido que castra o filho num ataque de fúria. Pai e filho mergulham em uma trama de descobertas, obsessão e inevitável violência: uma técnica para atingir o orgasmo sem os órgãos genitais que envolve mutilar a pele com pedras é realizada por eles, e Kim escolhe exibir explicitamente tais episódios. Outras cenas envolvem a mesma prática, porém com ferimentos de facas e com a presença da amante do pai – que por sua vez é estuprada durante o filme –, inclusive exibindo pai e filho realizando o ato juntos, empregando aqui mais uma vez o tabu do incesto (um outro modo de demonstrar a violação da família e a subversão de um ambiente idealmente seguro).

A automutilação ainda esteve fortemente representada em outra narrativa treze anos anterior: no filme A Ilha, torna-se protagonista na relação entre a prostituta Hee-jin e o expolicial Hyun-shik. Em determinado momento, o homem introduz anzóis na garganta e Heejin o livra dos mesmos, apenas para inseri-los em sua própria vagina logo depois. Sobre tal momento, Ruiz denota que […] a dor associada ao sexo será também outro entre os temos recorrentes do cinema de Kim Ki-duk. Essa sequência tem uma estreita relação com a automutilação que também irá praticar Hee-jin, que desesperada em frente à fuga de seu amado, não hesita em introduzir anzóis na vagina e amarra-los ao barco que, ao afastar-se, rasga seus órgãos genitais13.

Nesses dois últimos exemplos, o aspecto físico da automutilação tem um alto teor sexual – e não é por coincidência que foram abordados nessa altura do estudo. Kim Ki-duk demonstra ter um olhar frio sobre o ato sexual ou masturbatório, engrandecendo o ato e o trazendo ao centro das atenções narrativas ao mesmo tempo que revela os mecanismos simples

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"[...] el dolor asociado al sexo será también otro de los temas recurrentes del cine de Kim Ki-duk. Esta secuencia guarda una estrecha relación con la automutilación que se practicará también Hee-jin, que desesperada ante la huida de su amado, no duda en introducirse unos anzuelos en la vagina y atarlos a la barca que, al alejarse, le desgarra sus órganos genitales" (2011, tradução livre).

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pelo qual o prazer e a dor são intercambiáveis. O ato de masturbar-se sem mãos em Moebius utiliza uma pedra ou uma faca como artefato, porém o movimento é o mesmo com o qual seres humanos estão familiarizados: repetição até o orgasmo. Com tal representação, podemos refletir sobre como a violência para com nosso corpo parece ser inerente ao crescimento, talvez sendo tão natural quanto a descoberta dos dedos e mãos na infância. Além disso, os momentos avassaladores de descoberta do personagem castrado em Moebius, por exemplo, parecem carregar traços experimentais empregados pelo diretor – noção que acaba por transbordar do âmbito narrativo e pertencer ao espaço da direção de atores.

Fig. 4: A masturbação com pedras em Moebius

Fig. 5: O orgasmo através da faca em Moebius

Os dois exemplos de violência imposta ao próprio corpo têm, curiosamente, no mínimo um elemento comportamental em comum: o desequilíbrio mental presente em algum personagem envolvido. Em Moebius, a mãe é caracterizada pelo olhar selvagem e ações ultraviolentas, e em A Ilha, o ato desesperado de Hyun-shik “carece de lógica" (RUIZ, 2011).

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Entretanto, a técnica de automutilação com a pedra é cuidadosamente pesquisada pelo pai em Moebius, e testada pelo mesmo em momentos de aparente lucidez mental, consequentemente não apontando a insanidade como pré-requisito para tais ações monstruosas.

O ato masturbatório, do modo como retrata Kim, frequentemente carrega em si o propósito de revelar a insanidade sexual por trás desse mecanismo tão natural. Em termos dramáticos, esse ato é retorcido até tomar proporções violentas e danosas para os personagens.

Em alguns momentos, contudo, traz uma significação de concretismo das características violentas ou negativas do próprio personagem. Esses momentos, portanto, são uma concretização física e narrativa de quem cada personagem realmente é.

Quando exemplificado de tal maneira radical, o discurso mórbido de Kim por trás do ato de "violar a si mesmo" pode ainda parecer distante das experiências pessoais e sociais do mundo real. Para tal visão, Kim oferece sutilmente um antídoto para quem acredite que a violência auto imposta seja algo necessariamente extremo: em Time (Shi gan, 2006) e Address Unknown (Suchwiin bulmyeong, 2001), por exemplo, ele discute a necessidade de moldar-se a serviço do outro, negando sua aparência e essência pessoal. É nesse contexto de abandonar a si próprio que Kim mostra a trajetória de See-hee (Time) e Eun-ok (Address Unknown), duas mulheres que tomam a decisão de mudar sua aparência a fim de agradar o homem que protagoniza sua devoção. Em Time, See-hee escolhe por livre e espontânea vontade o caminho e mudar sua aparência a fim de tornar-se, de algum modo, uma outra mulher. Ruiz oferece um olhar delicado sobre o filme quando diz que See-hee é uma mulher insegura, que pensa que já não pode ser atraente para seu namorado porque tem o mesmo rosto e que acredita que mudando o aspecto de seu rosto todos os seus problemas e medos desaparecerão. Sem demoras, o diretor sulcoreano se posiciona contra as aparências como uma resolução moralizante em relação aos valores da sociedade atual.14

Já em Address Unknown, Eun-ok é uma jovem vivendo nas margens de uma sociedade instável e violenta que tem um olho desfigurado, resultado de um acidente de infância. Por pressão de James, um soldado americano que habita as redondezas, Eun-ok passa por uma cirurgia que repara seu olho. Tal momento é analisado profundamente por Rachel Park em seu estudo The Aesthetics of Violence: Reading the Body in Kim Ki-Duk’s Address Unknown and Sony Labou Tansi’s La vie et demie, especificamente quando ela diz que A troca entre Eun-ok e James ressalta como o corpo de uma pessoa é construído pelo olhar dos outros e como esse olhar também pode ser uma forma de violência [...].

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"See-hee es una mujer insegura, que piensa que ya no puede gustar a su novio porque siempre tiene la misma cara y que cree que cambiado el aspecto de su rostro todos sus problemas y miedos desaparecerán. Sin embargo, el director surcoreano se posiciona en contra de las apariencias con una resolución moralizante a cerca de los valores de la sociedad actual" (2011, tradução livre).

14 Como o comentário de James indica, o problema principal que Eun-ok parece ter com seu olho é que não se trata de um "olho normal" – seu olho é a única coisa a impedindo de atingir a normalidade na visão dos outros. Mas seu olho também é um caminho para que outros a controlem [...].15

Essa noção de controle é uma forma de agressão tanto intangível quanto palpável, pois Eun-ok retoma o controle de seu próprio corpo quando, em um confronto posterior com James, apunhala seu próprio olho restaurado, mutilando-se a fim de provar agressivamente que tem sim, afinal de contas, um poder de escolha.

Fig. 6: Eun-ok e James em Address Unknown

A violência, então, tem o poder de sacrificar o bem estar e a plenitude física e emocional dos personagens. Contudo, pode curiosamente ser a agente causadora de prazer: em Moebius, por exemplo, ou em A Ilha, os personagens abordam um sadomasoquismo não-convencional e atingem um nível de prazer raramente associado ao sexo amoroso nos filmes de Kim (encontrase um exemplo raro em Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera, 2003).

Por fim, a violência como agressão física nos filmes de Kim é um elemento narrativo tão abundante que seria difícil explanar todas as suas formas. Tomando Pietá como um breve exemplo, entendemos que a agressão infligida por Kang-do nos devedores e em sua “mãe", por exemplo, se dá no momento em que a comunicação verbal falha e, já programado para responder com crueldade, Kang-do atalha a troca de informações através de socos, chutes e principalmente da mutilação dos personagens sofredores. O diretor, então, explora o

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"The exchange between Eun-ok and James highlights how a person’s body is constructed by the gaze of others and how this gaze can also be a form of violence […]. As James’ comment indicates, the main problem that Eunok seems to have with her eye is that it is not a “normal eye”—her eye is the only thing keeping her from achieving normalcy in the eyes of others. But her eye is also the avenue for others to control her […]" (2016, tradução livre).

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comportamento humano mais selvagem dentro dos mais variados e inusitados ambientes, além dos óbvios: no seio familiar, nas ruas, na prisão, nos prostíbulos.

A repetição dessa preferência quase automática pela violência sexual entre os personagens torna-se uma linguagem narrativa fortemente emblemática e predominante no trabalho do diretor. Isso pode ter raízes críticas, mas também acaba sendo um elemento crítico quando analisado do ponto de vista da recepção e da ética.

Entre o grafismo e a sutileza: a violência intangível Além da violência visual explícita, o diretor se utiliza de elementos mais sutis e amplos quando trata da perturbação violenta das relações humanas. Logo em Pietá, por exemplo, percebemos a aterradora violência familiar que assombra Kang-do em seu interior e Mi-sun em seu exterior. Percebemos essa organização de bio-poder através das violações físicas e verbais.

Em uma reflexão sobre essa relação interpessoal, podemos argumentar que a personagem de Mi-sun é, por vezes, a sombra de Kang-do, a personificação do altruísmo e empatia que ele não tem – e por sua presença ser algo tão inédito, Kang-do sofre sua perda e age de modo também inédito para recuperá-la, escolhendo por infligir a maior violência possível sob seu corpo: o suicídio. Indiretamente, Mi-sun violenta as emoções e memórias de Kang-do, o forçando a relembrar de um abandono que não foi cometido por ela e nunca poderá ser verdadeiramente remendado.

Em um contexto narrativo extradiegético, o próprio diretor tece um comentário sobre a temática de vingança familiar (e da violência em geral) quando diz que Julgando pela minha experiência, muitas pessoas violentas se dessensibilizaram pela violência sofrida por eles e então são geralmente insensíveis à dor dos outros. (...) Eu acredito que a punição apropriada por infligir crueldade não é mandar um perpetrador sem emoção para a prisão ou executá-lo, mas sim descongelando seu coração gelado.16

Ainda em Pietá, observamos outra manifestação da violência: a incomunicabilidade.

Já percebemos que a falta de comunicação pode levar ao sofrimento e à agressão,

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"Judging from my experience, many violent people have become desensitized by violence done to themselves and are thus generally insensitive to the pain of others […]. I believe that the appropriate punishment for inflicting cruelty is not sending an emotionless perpetrator to prison or executing him, but instead melting his frozen heart" (BRADON in FILMMAKER MAGAZINE, 2013, tradução livre para o português).

Disponível em: <https://filmmakermagazine.com/70832-kim-ki-duk-on-pieta/>.

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consequentemente esse elemento narrativo acaba sendo um diferencial exuberante na obra de Kim. Mi-sun não se comunica com Kang-do, apenas quando esse está inconsciente, por exemplo. Em Moebius, nenhuma palavra é proferida, somente sons. Em Crocodile, a comunicação "natural" entre a personagem violada e seu violador é prejudicada. Todos os exemplos tornam-se, novamente, para a afirmação de que violência gera violência, além de sofrimento e, ocasionalmente, prazer e redenção.

Por fim, podemos apontar a violência política e a histórica, como exemplificado pelos filmes Address Unknown e The Coast Guard (Hae anseon, 2002), onde Kim traça paralelos com a bestialidade indiscutivelmente inerente à colonização e ao capitalismo aterrador. Esse tipo de violência já é acusatório em sua frequente aparecimento na expressão fílmica. Como explicado pelo próprio Kim, quando se trata de Address Unknown, Ao lidar com a vida em torno da base militar dos EUA, eu queria refletir sobre a história da Guerra da Coréia até a época do imperialismo japonês. Talvez a cena mais cruel desse filme seja quando o pai conserta a arma encontrada no jardim da frente da casa da família e atira na galinha que ele está criando. A violência repetida por gerações - acredito que essa é a forma de violência mais coreana.17

A aparição da violência política nas narrativas de Kim se dão de forma mista entre expressões físicas e relações subjetivas. Esse tipo de agressão aparece no contexto histórico bem estabelecido e nas ações violentas, mas também nas micro-relações entre os personagens.

Além disso, seu caráter crítico é o que menos deixa dúvidas – o que já não podemos afirmar sobre o uso da violência sexual na narrativa, por exemplo.

Conclusão Assim como as formas de violentar ao outro ou a si mesmo são abundantes, as formas que a violência toma nos filmes de Kim Ki-duk são inúmeras, ajudando a caracterizar a busca incessante do diretor pelo entendimento da essência humana. Através do choque, do desprezo ou da compaixão, Kim tem o poder de provocar reflexões para além de seu universo narrativo.

A violência é, então, um corpo subversivo que machuca, mas que também expressa, ensina, impulsiona, estagna e rompe. Torna-se quase uma linguagem inteiramente nova a cada

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"By dealing with the lives surrounding the U.S. military base, I wanted to ruminate on the history of the Korean War down to the time of Japanese imperialism. Perhaps the cruelest scene of this film is when the father repairs the gun found in the front yard of the family’s house and shoots the chicken he has been raising. The violence repeated through generations—I believe this is the most uniquely Korean form of violence" (tradução livre para o português).

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filme, revisitada a partir dos signos tão rudimentares conhecidos pelo ser humano – agressão física, o jorrar do sangue, o grunhido de dor, o abandono.

A conduta desse elemento narrativo tão comum à vida e à mimese chega até o observador, por vezes, sem uma direção clara de motivação. Seja pela decupagem explícita, tempos longos onde a violência é o ponto central, narrativas de exploração ou mesmo visões de mundo e comportamento nocivos18 do próprio diretor, a violência acaba sendo uma musa muito utilizada por Kim. Muitas vezes, de modo claramente misógino. Outras, de modo libertador, que oferece outra possibilidade de interação da personagem com o mundo.

A postura de Kim Ki-duk como cineasta em relação a expressão da violência é, então, tão mutável quanto a mesma, alcançando desde níveis físicos explícitos até perturbações tênues e sutis que invadem as almas de seus personagens, e, sem dúvida, as nossas próprias.

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Kim Ki-duk e o ator Cho Jae-hyeon enfrentaram acusações de estupro, assédio e comportamento sexualmente predatório de três atrizes em 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/cineasta-sul-coreano-kim-ki-duk-acusado-de-assedio-por-tres-atrizes22465635>.

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Referências

BRANDON, Harris. Kim Ki-duk on Pietá. In Filmmaker Magazine (2013).

Disponível em < https://filmmakermagazine.com/70832-kim-ki-duk-onpieta/#.WoznqpM-d-V> (acessado em 10/17).

DAMRON, Emily. Kim Ki-duk: The Silent Cases of The Isle, Bad Guy, and The Bow. Tese, University of Colorado Boulder (2013).

HUMMEL, Volker. Interview with Kim Ki-duk. In Senses of Cinema (2002, vol. 19) Disponível em < http://sensesofcinema.com/2002/feature-articles/kim_ki-duk/> (acessado em 11/19).

MULVEY, Laura. Fetishism and Curiosity. Indiana University Press (1996).

MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. In The Feminism and Visual Culture Reader. Org: Amelia Jones. Routledge (2003).

PARK, Rachel. The Aesthetics of Violence: Reading the Body in Kim Ki-Duk’s Address Unknown and Sony Labou Tansi’s La vie et demie. In UC Berkeley Comparative Literature Undergraduate Journal (2016).

Disponível em < https://ucbcluj.org/the-aesthetics-of-violence-reading-the-body-inkim-ki-duks-address-unknown-and-sony-labou-tansis-la-vie-et-demie-2/>. (acessado em 02/18) RUIZ, Daniel Muñoz. Sexualidad violenta en el cine de Kim Ki-duk. In Revista Icono, 14, Ano 9, pp. 316-344 (2011).