Vítimas da luz ed especial ebook

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VÍTIMAS DA LUZ A Vingança Além da Fé

Ivenio Hermes

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VÍTIMAS DA LUZ A Vingança Além da Fé

Edição Especial 2013

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Copyright © 1999/2013 by Ivenio Hermes Todos os direitos desta edição reservados ao autor Capa Aramis Fraino Imagem de Capa Aramis Fraino Revisão Sáskia Sandrinelli Editoração Sáskia Sandrinelli Ivenio Hermes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Hermes, Ivenio Vítmas da luz : a vingança além da fé / Ivenio Hermes. – 3 ed. -- Natal : Ed. do Autor, 2013. Hermes, 1. Ficção policial e de mistério 2. Romance CDD-363.10981 brasileiro I. Título.

13-05021

CDD - 869.93

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção policial e de mistério : Literatura brasileira 869.93

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SUMÁRIO PRÓLOGO .............................................................................. 7 O ASSASSINO DA FLOR .................................................. 14 O FILHO DA LUZ.............................................................. 179 ELEGIA ............................................................................... 347 BIOGRAFIA ....................................................................... 350

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Dedico esta obra ao meu Grande Deus, cuja fortaleza me sustém todos os dias de minha vida, e que esteve comigo em situações boas e não me deixou nas ruins. Ao meu pai Ivenio, o maior de todos, do qual herdei o nome e muitas outras coisas. (In memoriam). A minha amiga Patricia Vanicky, que datilografou a edição original e sempre me incentivou a escrever, lendo e participando de tudo, e que, além disso, me presenteou com dois filhos maravilhosos. A Nazaré Hermes, que revisou a primeira edição. A Sáskia Sandrinelli, que se tornou a revisora dessa edição, cujo apoio e carinho têm sido fundamentais.


Vítimas da Luz, por Ivenio Hermes

PRÓLOGO Luís Polaro estava mais pensativo naquela noite do que nas outras. Era a solidão. Mas e daí? Fora opção dele mesmo aquela vida longe de amigos íntimos e outros tipos de amizade que o fizesse sentir-se unido a outros seres humanos que fossem mais fortes do que os casuais. Algumas vezes pensava no que o fizera tomar aquela atitude, mas seu subconsciente afastava subitamente essa ideia, numa vã tentativa de afugentar lembranças que mais tarde, covardemente, povoariam sua mente. Olhou pela janela de sua quitinete, a chuva já cessava quase que totalmente, só alguns respingos ainda insistiam em molhar a rua lá fora. Puxou uma poltrona para perto da janela e apanhou seu livro de cabeceira daqueles últimos dias, já o estava lendo há uma semana e meia e vez por outra se perdia sem saber o que havia lido, mas como gostava muito de James Clavel, forçava-se a reler as páginas não assimiladas do grosso volume. Continuou fazendo isso ainda uns vinte e cinco minutos e finalmente cansouse da estória. “Em pleno Sábado à noite e eu aqui lendo!” - pensou, porém ir ao cinema às 22h40 seria impossível, e sendo essa sua única outra diversão costumeira, descartou a possibilidade de sair. Lembrou-se do violão que há muito tempo não tocava. Levantou e apanhou o instrumento de uma das prateleiras da estante que separava o resto da quitinete daquele ambiente que Polaro costumava chamar de QST, que era a sigla formada pelas iniciais das palavras quarto, sala e terraço. Depois de limpo ele dedilhou as cordas tocando uma música antiga, a vida sempre lhe parecia melhor quando tocava alguma melodia em seu violão Gianinni.

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Uma sonolência começou a tomar conta de seus olhos, aos poucos se ia deixando levar por ela, mas de súbito surgiu aquela violenta dor no estômago, seguindo-se logo de uma forte náusea que por certo o faria vomitar. Soltou o instrumento ao lado da poltrona produzindo um baque oco com uma vibração desconexa das cordas. Ergueu-se com sacrifício. Teria que chegar logo ao banheiro antes que sujasse toda a quitinete, cambaleou um pouco se sentindo bêbado com aquela reação de seu metabolismo. “Oh meu Deus - pensou - isso não pode acontecer de novo, não pode!” Tudo ao seu redor girava, as paredes pareciam se deslocar em movimentos circulares da esquerda para a direita, o suor escorria frio pelo pescoço e peito, os dizeres “maior abandonado” escritos em sua camiseta agora pareciam escritos em seu próprio peito ao qual a camisa aderiu. A rotação das paredes aumentou e Polaro sentiu o chão vir em sua direção a toda velocidade. Bateu a cabeça no chão acarpetado dolorosamente. Já estava perdendo os sentidos, alguma imagem formava-se em seu cérebro. Sábado à noite era o pior expediente que havia para trabalhar na opinião de Diana Stegron. A seção de cosméticos sempre estava cheia, quando a loja fechava às 22h00 ainda existia aqueles clientes teimosos que insistiam em permanecer na tentativa de comprar mais alguma coisa. Entretanto, no máximo quinze minutos depois não havia mais ninguém a não ser os próprios empregados. Diana apanhou sua bolsa, foi até ao último andar bater o ponto indo em seguida pegar um dinheiro com Amelina, que lhe havia trocado um cheque na contabilidade. Avistou a amiga descendo a escada logo acima.

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- Aqui está seu dinheiro, gastadora! - brincou a amiga ao ver Diana. - Gastadora, eu? Imagine se me sobra algum tempo para jogar dinheiro fora. Isso - disse mostrando as duas notas de dez novinhas que Amelina acabara de lhe entregar - É para pagar contas e mais contas e comprar umas coisinhas necessárias para me manter elegante. - É, esse salário não dá pra nada, temos até que fazer outros trabalhos por fora. As duas riram meio desgostosas, caminharam juntas até a estação do metrô que estava abarrotada de pessoas. O trem parou com um leve ruído de freios. Diana e Amelina entraram sentandose nos dois lugares que estavam vagos de costa para a janela. Conversavam animadamente sobre rapazes, uns moços bonitos foram admitidos para a seção de roupas masculinas e todas as moças da loja falavam neles, Diana e Amelina não eram exceções. Despediram-se em uma das estações, pois Amelina ainda morava em outro ponto mais adiante. A chuva que caíra no comércio onde trabalhava não se fizera presente ali em Manhattan. Diana atravessou a avenida passando pela frente de uma banca de revistas que um homem de idade já começava a fechar. Um garoto magro sentado na calçada com a costa no hidrante assoviou e disse algumas palavras que Diana não conseguiu entender. O frio estava mais forte, o ar já se condensava quando ela expirava formando aquela nuvem de vapor que rapidamente se dissipava. Continuou tranquila sua caminhada de dois quarteirões até sua casa. Já fazia um ano e dois meses que Diana percorria esse trecho todos os dias, no entanto naquela noite a rua parecia mais

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escura do que normalmente. Diana sentia-se receosa, mas caminhava resoluta para o edifício aonde morava. Um chuvisco passou a precipitar-se sobre a rua, a moça levantou a gola do agasalho para se proteger do vento frio cortante e incômodo em seu pescoço. Mal iniciara a parte mais solitária do caminho quando percebeu que alguém andava depressa atrás dela. Sentiu todos os pelos do corpo eriçarem-se num arrepio que pareceu aumentar o frio que experimentava. A entrada do prédio achava-se a menos de vinte metros, escura e desguarnecida. O vulto atrás dela parecia apressar mais ainda seus passos e ela, como que por instinto, aumentou sua velocidade, mais um pouco e estaria correndo. Conhecia suas chaves muito bem, a preta abria o hall do prédio e a niquelada a de seu apartamento. Parou à entrada enfiando a mão no bolso do agasalho e retirando as chaves apressadamente. O estalido da lingueta da fechadura fez-se ouvir quando a porta abria, entrou virando-se para trancá-la. O hall estava escuro, a porta não se fechava, algo a impedia, forçou-a e viu uma mão enluvada adentrar pelo espaço existente entre ela e o batente. O pânico subiu-lhe à cabeça na forma de um calor que embaçou ligeiramente sua visão. Correu escada acima. Seu ouvido podia captar os passos de alguém subindo a escada. Parada em frente à porta de seu apartamento tentava colocar a chave na fechadura que parecia não possuir mais aquele orifício. Abriu-a! Mas novamente não pode fechá-la. Seus olhos baixaram inexplicavelmente até ao chão onde viu o sapato preto bem engraxado impedindo sua tentativa de fechar a porta. Um empurrão violento dado pelo estranho jogou-a longe. Pensou que fosse desmaiar, mas isso não aconteceu.

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Abriu os olhos. As luzes da rua entravam pela janela iluminando parcialmente a figura sinistra que observava. - Olá - disse o estranho. Sua voz era gutural. - Quem é você? - perguntou ela nervosa. Tremia. - Não importa - respondeu. Levantou-se sem tirar os olhos do homem e sentando-se no sofá aonde caíra. O estranho fechou a porta com relativa naturalidade. Sentou-se na frente dela, em outro sofá. Retirou um objeto de dentro da jaqueta negra de motoqueiro que usava. Era uma faca. A garota fez o possível para conter seu susto, porém ainda assim deixou escapar um discreto gemido. - O que quer de mim? - perguntou ela. O homem permaneceu em silêncio por algum tempo, o que para Diana pareceu uma eternidade. - Você é a primeira - disse por fim. - O quê? - Não precisa se assustar, eu não vou fazer nada demais. Ligue o abajur. - Indicou com a faca o objeto ao lado dela. Ela obedeceu. Silêncio. - Agora - prosseguiu o sujeito vestido de motoqueiro - Tire a roupa. Diana sentiu medo. Muito medo. Imaginou que seria melhor colaborar com ele para que não a machucasse. - Calma - disse ao vê-la despir-se apressadamente - temos o resto da noite! A última peça de roupa foi tirada. O corpo de vinte e nove anos de idade da moça parecia mais belo ainda com o bronzeado que a luz amarelada do abajur lhe emprestava. Ele a mandou deitar no chão sobre o tapete perto do sofá e deitou-se sobre ela.

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O medo era forte demais para que Diana Stegron pudesse esboçar qualquer reação contrária à vontade do estranho. Ele gemia sobre ela e ela sob ele, deitada de bruços, sentia dores em silêncio. Em alguns momentos ela abria os olhos, com o lado esquerdo do rosto encostado no chão, via a mão direita do estuprador segurando a faca. Ele acabou. Sentou-se sobre ela numa posição que parecia estar de joelhos e disse: - Sinto muito, mas você agora precisa dormir. Os cabelos dela foram puxados com força para trás esticando seu pescoço ao máximo. Ela sentiu algo frio roçar-lhe o pescoço e perdeu as forças. Sentiu longe o homem levantar-se e fechou os olhos. Polaro tentava se erguer, as imagens sumiram de sua cabeça e seu rosto possuía a expressão de espanto mais incrível que ele pudesse conhecer. “Aconteceu de novo.” - pensou. Viu o homem estuprando e matando aquela mulher, como viu acontecer com as outras desde há dois meses e sem poder fazer nada! Foi até ao banheiro, olhou-se no espelho sobre o lavatório, pálido como leite. Ligou a torneira e mergulhou a cabeça no jato de água fria. Aquilo o fez sentir-se melhor. Todas as sensações estranhas se foram, a tonteira, a ânsia de vômito, tudo! As imagens voltaram à sua mente, e não desapareceriam, ele sabia. Dirigiu-se até a mesa, escreveu tudo, anotando a data. Era a quarta morte que ele presenciava daquele modo, mas dessa vez fora diferente, ele podia sentir a urgência de uma decisão em seu íntimo, se ele podia ver aquelas coisas é porque ele precisava fazer

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algo para impedir aquilo, pois se tentasse ficar indiferente por certo ficaria louco!

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O ASSASSINO DA FLOR 1 Ron Wilson observava o corpo em meio de uma poça de sangue coagulado. Era segunda-feira de manhã, o corpo já exalava um odor desagradável. Ele pensava como eram banais os acontecimentos e formas que os levava até a um corpo assassinado. Nesse caso o vizinho estranhou o fato de Diana Stegron, a vítima, não lhe abrir a porta ao tocar a campainha. Ele fazia isso todas as manhãs, exceto aos domingos, para lhe trazer o pão quentinho acabado de sair da fôrma. Dessa vez o Sr. Talbot não obteve resposta. Ao experimentar a porta, estava aberta, entrou deparando-se com a moça morta. Imediatamente ligou para a polícia. Wilson estava trabalhando no caso, mas não foi o primeiro a chegar ali, seu colega Duncan chegou antes. Viu Wilson escorado no umbral da porta e foi em sua direção com aquela flor na mão. O colega estendeu o objeto a Wilson que o apanhou observando-o. - É o nosso homem? - perguntou a Duncan embora já soubesse qual seria a resposta. Duncan confirmou com um movimento de cabeça. Alguém demarcava com um giz molhado o local ao redor do corpo enquanto dois policiais uniformizados aguardavam para embalá-lo. O homem do giz terminou seu serviço e Wilson, aproximando-se, fez sinal para que os outros dois esperassem. Era um caso normal, mas Wilson gostava de levar a fundo uma investigação, principalmente essa que já estava abalando a opinião da cidade acerca da competência da força policial, não que

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fosse o primeiro caso de assassinatos em série, mas era o primeiro que caíra nas mãos dele e de seu colega, Duncan. Examinou detidamente o corpo e afastou-se saindo do apartamento seguido de perto pelo amigo. - Você está de carro, Josh? - indagou Wilson. - Não, vim na viatura policial com os outros. - Já tomou café? - Não ainda. Entraram juntos na Ferrari vermelha de Wilson. - Tem um lugar aqui perto que tem hambúrgueres com café quente e forte, tá a fim? - É claro, estou morrendo de fome! Ron abriu o porta-luvas jogando em seguida a flor dentro. Deu a partida. Permaneceram calados durante o percurso até a lanchonete. Na fachada lisa havia o desenho de um hambúrguer fumegando em uma bandeja sobre os dizeres “Break Burger”. Entraram. Linda Stacy, a garçonete, foi na direção deles para apanhar os pedidos, ao despachá-la resolveram retomar o assunto dos crimes. Josh Duncan olhou para Wilson. - O que você acha desses crimes, Ron? - Eu sinceramente não sei o que achar, ele tem um certo método com características marcantes, entretanto as vítimas não possuem relação nenhuma entre si. - Como não? - questionou seu colega - E o fato de todas elas morarem sós? - Pode ser. Isso bem que facilita as coisas para o assassino, mas não deve ser esse bem o caso. Veja bem, cada uma das mortes foi praticada num padrão costumeiro, o estuprador segue a mulher, arromba sua casa ou apartamento, abusa dela e depois mata.

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- Sim, isso não sugere que as mortas sejam seriadas? - Mas eu não estou falando disso - disse calmamente Wilson - eu sei que elas são. No entanto são psicologicamente programadas demais para um estuprador comum. Esses indivíduos responsáveis por estupros com morte são instáveis e não escolhem vítimas estudadas dessa forma. Algo nisso tudo parece um tanto muito organizadas para se tratar de um estuprador comum, pois este é levado a atacar mulheres por impulsos sexuais exagerados. - Você tem razão. - Concordou Duncan enquanto Linda servia os hambúrgueres. Não deixou de notar quando ela debruçou-se sobre a mesa deixando seu decote em um ângulo tal que o policial notou-lhe os bonitos seios. “Que seios!” - pensou ele. Ela se afastou com um rebolar natural que chamaria a atenção da maioria dos homens da lanchonete. Aquela lanchonete, apesar de ainda cedo, estava razoavelmente cheia, a costumeira nuvem branca de fumaça de cigarros que pairava sobre o balcão durante as noites, porém, ainda não existia. O proprietário deveria ser um perito na administração desse tipo de estabelecimento, durante parte do dia servia refeições, das 15h00 - 21h00 os empregados eram dispensados e alguns voltavam após este intervalo para trabalhar no período noturno onde o local se transformava num pub de 2ª categoria. Linda Stacy voltava para esse período. Pegaram a conta saindo em seguida. Josh Duncan e Ron Wilson já trabalhavam juntos há pouco mais de dois anos, possuíam um método simples de trabalho, investigavam separadamente seguindo pistas que cada um ou os dois determinavam para depois juntarem seus achados, comparando-os em busca de uma conclusão. Chegaram à delegacia às 10h00. A confusão de presos, prostitutas, delinquentes e toda sorte de perturbadores da ordem já

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estavam sendo fichados, não que isso desse algum resultado, e até que às vezes dava, mas a burocracia teria que ser mantida. Um pedaço de papel escrito com letras garrafais estava preso ao telefone da mesa de Wilson por um pedaço de fita adesiva. Os dois policiais leram ao mesmo tempo, entreolharam-se e caminharam até a uma porta toda em vidro com persianas de madeira por dentro. A plaqueta presa na maçaneta dizia para não entrar sem bater. Bateram. - Quem é? - gritou a voz grave do outro lado. - Wilson e Duncan, senhor - disse o primeiro. - Entrem! Os dois entraram enquanto o obeso homem de camisa branca e gravata folgada indicava-lhes as cadeiras. Sua calvície começava na testa e ia até o centro da cabeça, seu bigode vasto quase lhe cobria o lábio superior. - Vou direto ao assunto - explicou-se o chefe incisivo quero esse assassino preso imediatamente! - Estamos trabalhando duro, senhor! - disse Duncan. - Eu não quero que trabalhem duro, quero que peguem esse miserável. Vocês sabem quem me acordou essa manhã? Os dois balançaram a cabeça em negativa. - O secretário do prefeito! Sabem o que ele disse? - antes que os policiais fizessem outro sinal de negativa, o chefe prosseguiu - que esses crimes podem prejudicar a campanha para a reeleição do prefeito que começa na próxima semana e que isso pode prejudicar também minha ascensão profissional. Não é mesmo um sacana esse secretário? O chefe do Departamento de Homicídios pegou seu maço de John Player Special, retirou um cigarro, jogou o pacote para Wilson que o apanhou sem esforço retirando outro e passando para o colega que fez o mesmo, depositando o restante na mesa do

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chefe, ao lado da placa onde se lia: Joseph H. Lieberman - Chefe de Homicídios. O mesmo processo se deu com o isqueiro. Algumas baforadas depois, o chefe já calmo prosseguiu: - Muito bem, rapazes - disse em tom elogioso - vocês são os nossos melhores agentes nesse tipo de caso e não escondo isso de ninguém, portanto confio em vocês - deu mais uma sugada no cigarro - então, ao trabalho, quero os dois se empenhando de corpo e alma até esse maníaco vir para atrás das grades, podem ir! Os policiais saíram da sala do chefe Lieberman. Ao passarem pela caixa de lixo Wilson apagou o cigarro na borda e o jogou dentro dizendo: - Detesto a marca de cigarro do Lieberman! Riram. Wilson recebeu o laudo médico e o lera duas vezes. Realmente o último crime foi cometido como os outros três e o intervalo de tempo entre eles não era muito insinuador. O primeiro fora há dois meses com a vítima, Elizabeth Glenhardt morta em sua casa com a garganta cortada após ter sido estuprada. A segunda vítima, Louise Stilsen, morta da mesma forma, bem como a terceira, Margot Williams e por fim a quarta, Diana Stegron. Ao que parece, o estuprador era calculista demais na opinião do policial Ron Wilson. Já se acostumara com a ideia de que um estuprador é motivado a cometer seus crimes por impulsos emocionais fortes demais para uma mente que planeja cada ataque a ser perpetrado. Um caso estranho! E mais estranho ainda é que o criminoso deixou pistas, ou melhor, indícios, que embora não signifiquem praticamente nada, denotavam a frieza de seus atos. Cada crime era morbidamente assinado por uma flor de papel dobrado, aquela velha técnica japonesa de fazer brinquedos de papel. O papel utilizado para forrar a parte de dentro dos

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maços de cigarro era o usado para criar a flor. Uma pista que não dava em nada. Mas Wilson não podia descartar a ideia de que esse estuprador poderia ser esperto para só se deixar levar por seus impulsos quando as circunstâncias fossem favoráveis. Perdido em pensamentos Ron não pode deixar de assustar-se quando o telefone em sua mesa tocou. - Alô - disse pegando o aparelho antes do segundo toque. - Oi, tratante, como vai? - Lisa? - Quem mais poderia ser? -Oh, Lisa... Desculpe-me por sexta-feira, tive um problema aqui na homicídios e para completar recebemos mais uma vítima do estuprador de presente hoje pela manhã. - Oh, céus! - disse entristecida - por falar nisso, verifiquei o que você me pediu, mas ainda não consegui nada! - Tem certeza, Lisa? - É claro que tenho, não sei nem porque ainda faço isso por você... Antes que ela continuasse Ron interrompeu-a. - Que tal sairmos quarta à noite. Jantamos, tomamos uns drinques e deixamos o resto por conta do álcool que estiver em nossos cérebros? - Insinuante... - O que me diz? - Não sei, preciso ver minha agenda - brincou ela petulante - tudo bem, acho que vai dar. - Ok, te pego às 21h00, bom pra você? - Mais ou menos, vou tentar. Ela desligou e Ron constatou que era a primeira garota que conhecia que não dizia “até logo” ou “adeus” quando terminava uma conversa telefônica, simplesmente desligava. Dessa vez não iria decepcioná-la.

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Levantou-se sem saber aonde ir, por onde continuar aquela investigação, ou seja, praticamente por que iniciá-la. Algo, porém, era certo, ficar parado é que não podia talvez o ar das ruas trouxesse alguma luz à sua mente. Josh Duncan imaginava como os repórteres conseguem as histórias pouco depois delas terem acontecido. Mal saíra do departamento de polícia, entrara no Plymouth cinza, que ganhara no último caso de sucesso que ele e Wilson resolveram, e o repórter do New York Daily, Phil Brouke, o abordara segurando a porta do carro. - Olá, detetive Duncan, tem um tempinho pra mim? - disse com aquela voz chata de um adolescente num sujeito de vinte e oito anos de idade. Como não adiantava dizer um não, preferiu falar logo com o rapaz e ver-se livre dele o mais rápido possível. Duncan fizera quarenta e dois anos no último verão, orgulhava-se de sua forma física, ainda fazia musculação três vezes por semana na academia da polícia. Realmente ele e Wilson faziam uma dupla perfeita, em sua opinião, ambos em bom estado físico, quase a mesma idade e uma boa cabeça. - E adianta dizer que não? - indagou o policial. - Não! - Então tenho. - É sobre o ... - Eu sei sobre o que é - cortou secamente - portanto diga logo o que quer saber. - Já possui alguma pista concreta do estuprador ou quem ele é? - Sim, mas não posso revelar isso ainda - mentiu prejudicaria muito o andamento da investigação. - E sobre o objeto que o estuprador deixa junto às suas vítimas, ouvi falar que é uma flor de papel...

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- E é mesmo! - Isso leva a algum lugar? - Leva - disse já cansado da curta conversa. - Onde? - Onde estou indo agora, siga-me e verá - disse por fim dando partida no Plymouth e arrancando enquanto Brouke observava balançando a cabeça. 2 A voz da secretária se fez ouvir através do interfone, anunciando que o Sr. Luís Polaro estava esperando. Harry Hardrige apertou o botão dizendo para a jovem Esther Fawsworth que podia mandálo entrar. A sala era simplesmente mobiliada, um divã e uma poltrona perto de uma janela com persianas de cima a baixo. Na outra parede alguns quadros, uma imitação de um artista famoso e dois verdadeiros de artistas que ainda não haviam alcançado grande notoriedade. Na parede oposta à porta de entrada havia uma poltrona de couro tingido de vermelho, uma mesa de escritório e outra poltrona igual por detrás da mesa. Polaro não lembrava quantas vezes já estivera naquela sala desde que era um rapaz de dezoito anos, mas sentia-se bem nela. - Como vai, Lucas? - perguntou o médico imediatamente. - Oi, Harry - disse ao sentar-se na poltrona em frente à mesa, o médico ocupava a outra. - Você me parece tenso. - E estou - fez um curto silêncio, encarou Hardrige prosseguindo - Harry... a visão voltou novamente, desta vez foi bem mais intensa que as outras, já estou imaginando que se continuarem a acontecer vou poder ver o assassino com clareza. - Escute, Lucas - disse Hardrige - você pode não estar tendo essas visões...

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- Eu estou! - Como? Você nunca manifestou poderes paranormais antes e lhe conheço há pouco mais de duas décadas. Desde que você falou do caso eu tenho me preocupado, principalmente quando você descreveu a morte daquela moça, como era mesmo o nome dela? - Margot Williams. - Isso... mas baseado numa experiência vasta de pessoas que se dizem paranormais, cheguei a uma conclusão que pode se encaixar no seu caso. Polaro sinalizou com a cabeça para que o médico continuasse. - Para continuar, você tem que me entender Lucas, só quero o seu bem, é claro que você pode discordar perfeitamente de mim. - Você sabe que não precisa ter me dito isso, todas as vezes que não concordo com você, mostro isso abertamente. Harry Hardrige já possuía uns cinquenta e três anos de idade, mas o vigor físico que demonstrava era surpreendente, os cabelos sempre tingidos de castanho claro e uma pele cuidada o faziam parecer mais novo. - Ok - continuou Hardrige - a minha explicação para o que está acontecendo é simples. Você sempre foi uma pessoa só, não tendo parentes, suas ligações afetivas foram muito diminuídas. As relações que você construiu na escola foram muito tênues, só na faculdade realmente conheceu alguém em que se fixou emocionalmente. - Dá pra você pular esse ponto? - indagou Luís. - Certo. A forma como terminou seu relacionamento foi marcante demais e gravou-se em seu subconsciente fazendo-o crer que os crimes que têm acontecido parecem terem sido assistidos por você.

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- E como explica o fato de eu saber dos crimes antecipadamente? - Você pensa que sabe só depois que você lê sobre eles nos jornais é que cria a consciência de que já os assistiu. É como quando estamos com alguém e em determinado lugar em que nunca estivemos antes e a situação nos parece inesperadamente familiar. Os espíritas até dizem que isso são resquícios de recordações de vidas passadas, a teoria de reencarnações sucessivas. - Não acredito nisso em hipótese alguma - negou Polaro um pouco perturbado - creio que algo me deu esses poderes, talvez por eu possuir relações fortes demais com um caso semelhante. - Você crê nisso? - Não sei. Mas é uma explicação mais palpável que a sua. - Você diz isso por que não é um espírita. - E você, é? - Não. Mas as teorias deles são muito boas, chego a acreditar em muitas delas. - Estamos agora falando em teorias religiosas para explicar o que está acontecendo comigo - ironizou Luís - mas eu prefiro crer em Stephen King “A Hora da Zona Morta”. O que aconteceu ativou minha mente para algo que estava latente, isso não pode ter surgido por acaso, e sim porque preciso ajudar a pegar esse assassino. - E como você pretende fazer isso? - perguntou o médico com um sorriso conciliador. - Não sei, preciso pensar - disse já levantando-se para sair. Foi até a porta e já tocava na maçaneta quando Hardrige o interrompeu: - Já está pensando na possibilidade de voltar a morar em sua casa novamente?

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qual é.

- Harry, atualmente eu só penso numa coisa e você sabe

Bateu a porta atrás de si ao sair. Polaro não se considerava alguém traumatizado, mas admitia que se não fosse a ajuda psicológica do doutor Harry Hardrige jamais teria superado a situação dolorosa pela qual passara. Consultou seu Seiko de ouro e viu que já estava na hora de se preocupar em encontrar algum lugar aonde houvesse algo saudável e apetitoso para comer. Desceu as escadas do edifício luxuoso na Park Avenue onde ficava o consultório do médico, andou aleatoriamente pelas ruas até chegar ao local em que havia deixado seu carro estacionado. Gostava da cidade nessa época do ano, o frio lhe fazia bem, aquela melancolia que o frio gerava trazia-lhe um bem estar imenso. Duas quadras depois chegou até seu carro, o Monza Classic preto o esperava pacientemente. Instalou-se no automóvel abrindo o porta-luvas onde havia um maço de Carlton, os documentos do veículo, um revólver calibre 32, e era tudo. Já fazia uns dois meses que não fumava e os cigarros velhos e amassados possuíam uma aparência mais mortal ainda. Pôs o carro em funcionamento, jogou os cigarros pela janela fechando-a a seguir. Os ponteiros do Seiko já indicavam pouco mais das 15h30, ainda não parara para comer. Uma lanchonete chamou-lhe a atenção em uma esquina bem movimentada, não pelo que servia, mas pela banca de jornais e revistas que havia ao lado. Deixou o veículo no acostamento indo até à banca. A manchete do jornal vespertino dizia: NOVA VÍTIMA DO ESTUPRADOR DE MANHATTAN

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Polaro não estava de forma alguma surpreso, porém não conteve o passo receoso que deu para trás ao ler a notícia. Vestia um pulôver quadriculado de tricô estilo Oxford em tons pastéis de vermelho e bege, calça índigo jeans e um pesado sobretudo caqui. Vasculhou os bolsos à procura de uma moeda para adquirir o jornal, achou-a num dos bolsos internos do sobretudo. Lia avidamente cada palavra contida na matéria. Se ele não havia se convencido de sua ideia acerca de seus poderes, agora era o momento para isso, cada linha da reportagem era uma confirmação de sua visão. É claro que o nome da moça, o endereço e outros dados, não tinha conhecimento. Surpreendeu-se lendo ali mesmo de pé em frente à banca com a moeda na mão quando o rapaz que tomava conta largou seu exemplar do Homem-Aranha e estendeu- lhe a mão para receber o pagamento pelo jornal. Os nomes dos policiais eram mencionados na reportagem, talvez os procurasse e contasse a eles sobre as visões. Afastou a ideia. Se os policiais não acreditassem nele poderiam até colocá-lo como um dos suspeitos. Seria melhor não procurar a polícia. Entrou na lanchonete decidido a comer algo. 3 A rua era pouco iluminada e os olhos de Duncan esforçavam-se para enxergar alguma coisa naquele beco ali adiante onde entraria. O beco Kirran, como era conhecido apenas por seus moradores, figuras do submundo e uns poucos policiais, era escondido numa rua pouco movimentada e de péssima reputação ali no Brooklin. Mas era num lugar assim que Josh podia encontrar o que ele desejava, procurou desde as 19h00 encontrando a informação certa pela boca de um trombadinha que lhe devia um favor.

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- Ei, Furks - disse ele ao trombadinha após umas duas horas depois de iniciar a procura. - Fale cara, dando uma por essas bandas a fim de sacar o cara que anda apagando as gatas com as gargantas cortadas depois de se aproveitar das bundinhas delas, falei? - É isso aí, ferinha - disse Josh fazendo pouco caso - sabe de algo? - Eu, hein, meu negócio é alisar riquinho e não ficar de olho em nego tarado. O policial agarrou o rapaz negro pela frente do agasalho azul de mangas compridas que usava. Furks não demonstrou o menor sinal de medo, estava acostumado a apanhar ou bater em alguém nas ruas. Levou o cigarro à boca dizendo: - Calma aí, do distintivo! Cê sabe que sou velho xará, e mesmo que não fosse, ainda te devo uma, é só pedir que eu digo, ok? Josh olhou nos olhos de Furks. - Certo, Furks. Desembuche! À medida que o rapaz soltava a língua, o policial o soltava. - Não sei quem é o cara, mas sei onde cê vai encontrar neguinho que tá por dentro das paradas. - Quem é o cara e onde eu encontro ele? Furks continuou: - O nome do tal é Hodge, Ernest Hodge. É um maconheiro sacana que não dispensa uma branquinha também, mas que sabe das coisas. - E daí? - Daí que toda a galera do Brooklin tá sabendo que o sujeito conhece alguma coisa sobre o comedor de bundinhas. - Onde eu acho o homem? - Duncan emprestava à voz um timbre diferente para intimidar o rapaz. - No bar do Trucka, fica na...

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- Eu sei onde é - interrompeu - mas se você estiver me sacaneando não vou mais livrar a tua cara. - Pô, cara - disse Furks - Bola Negra é o apelido do tal Ernest Hodge porque o cara é o maior fera do Brooklin em sinuca, tá sabendo? Sem responder o policial Duncan deixou o garoto Furks com seu cigarro. Josh desceu a escada que levava até à porta do bar do Trucka, bateu duas vezes com força e duas fracas na porta de madeira maciça de cor cinza que logo foi aberta por um sujeito que poderia fazer papel de Urco, o chefe da guarda dos gorilas na série “O Planeta dos Macacos”. Apesar de seu um metro e oitenta e sete, Josh sentiu-se pequeno na frente do porteiro que o puxou pra dentro trancando a porta. - O que você quer aqui, Duncan? - indagou pouco amistoso o porteiro. - Você me conhece? Eu não te conheço. - Quem não conhece a dupla de tiras quarentões que safaram a polícia de Nova Iorque ao pegarem José Molina Jr. o traficante boliviano? - Ah, sim! - Soube que ganharam uma recompensa por ele. - Besteira - disse o policial - bem, se me dá licença, preciso ver alguém que marcou um encontro comigo aqui. O gorila sentiu até vontade de impedir a entrada do policial que por certo não criaria caso, dez minutos depois, no entanto, voltaria com a metade da força policial para fazer a maior lavagem. O ambiente não era dos piores antros a que Duncan estava acostumado a ir para obter informações. Um porão enfumaçado com as paredes em alvenaria aparente sem reboco nenhum, cheio de gente de todos os tipos: punks, maconheiros e até alguns Yuppies disfarçados para não

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serem depenados por alguma prostituta que também havia por ali. O balcão fazia uma curva em “L” que dava para uma parte que não era visível da entrada. Lá havia três mesas de sinuca, na parede o placar indicava que alguém com as iniciais “BN” ganhava com uma grande vantagem sobre o segundo colocado. Apanhou uma dose de Jack Daniel’s no bar e assistiu ao jogo. Algum tempo depois o punk apelidado de Bola Negra despedia-se da partida com uma tacada certeira. Recolheu o dinheiro das apostas e foi até ao balcão. O policial aproximou-se dizendo: - Quero ter uma conversa com você. - Agora não posso - respondeu o sujeito de cabelo em pé sem olhar para quem o interpelava. - Agora - insistiu Duncan - se não se importa. O punk virou-se furiosamente para o policial. - Quem você pensa que é... - não terminou a frase e Josh de olhos fixos nos movimentos do outro, perguntou se o sujeito o havia reconhecido também ou se temia a Smith & Wesson.44 Special que ele exibia abrindo o lado esquerdo do paletó. - Tudo bem, cara - corrigiu o punk - aqui ou lá fora? - Lá fora - disse Josh engolindo de um só gole o restante da bebida. Do lado de fora os dois escoraram-se na parede. Josh ficou de frente para Bola Negra segurando-lhe a jaqueta com a mão esquerda enquanto na outra a arma brilhava sob a escassa luz que vinha da rua. - Que cê quer? - questionou Bola Negra. - Ouvir tudo que você sabe sobre o estuprador. - Ei... cara, eu... - Não adianta dizer que não sabe, eu sei que você sabe de alguma coisa. O sujeito permaneceu um pouco em silêncio. Então resolveu falar.

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- Não sei quem é o cara, juro! Mas sei algo referente a ele pode ser que eu esteja errado, eu... - Fala logo! - As minas mortas, elas tem algo em comum que o estuprador gosta. Cê já ouviu falar nesses filmes pornôs de segunda categoria que se faz para exibir em motéis, pois é, duas das minas mortas já trabalharam em filmes desse tipo, uma pontinha ou outra para ajudar no orçamento, cê entende, né? - Quais garotas? - Bem, uma delas chama-se Louise Stilsen e a outra Margot Williams, é claro que não é esse o nome que aparece nas fitas de vídeo e sim um nome artístico que elas dão para fazer o cadastro. - Que cadastro? - É uma lista com o nome das atrizes e o endereço para contatos posteriores. - Que mais? - Não sei... quer dizer, não sei se o fato é interessante. - Deixe que eu diga o que é interessante e o que não é, ok? Apenas fale. - As outras duas moças, eu não tenho certeza mas parece... que as outras já fizeram filmes também! Josh Duncan tentava imaginar o que aquilo poderia significar, ia perguntar ao sujeito aonde poderia encontrar as fitas quando ouviu um estalo atrás de si, abaixando-se instintivamente e o punk imitando-o. A bala atingiu a parede arrancando lascas da alvenaria. Os dois jogaram-se ao solo rolando rapidamente para trás de umas latas de lixo abarrotadas de entulho. Mais alguns disparos se sucederam, o policial divisou alguém atrás de um pilar atirando naquela direção. Bola Negra se encontrava bem ao lado do investigador da polícia com um pequeno canivete na mão. Duncan encarou-o.

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- Calma cara - disse a Duncan - isso não é para usar em você e sim no babaca que tá querendo nos transformar em peneira. Mais alguns disparos. - Onde eu posso encontrar a lista com o nome das moças do vídeo? - inquiriu Duncan. Bola Negra fitou-o pensando em como o sujeito ainda pensava naquilo quando alguém tentava matá-los. - Na Sex Star Produções... Uma rajada de balas vinda de uma possante metralhadora cortou o ar acima da cabeça deles. - Meu pai, cara! - disse Bola Negra - Esses caras não tão brincando. Antes que Josh pudesse segurá-lo, o punk corria na direção da entrada do bar, o homem que estava atrás do pilar saiu de sua proteção com uma pistola na mão disparando três vezes no fugitivo. Duncan levantou-se atirando no assassino que foi jogado para trás com o impacto dos projéteis que atingiram- lhe o peito. Um carro preto de uma marca que Duncan não pode reconhecer parou na saída do beco e um outro homem, o da metralhadora, ou melhor, uma submetralhadora entrou nele já em arrancada. O investigador correu até a saída com a arma na mão, protegendo-se como podia. O carro já havia desaparecido quando Josh lá chegou. Aproximando-se do sujeito que alvejara, estava morto, a arma igual à sua estava a uns dois metros do braço esticado do assassino, um gesto que parecia indicar a localização dela. Lembrou-se de Bola Negra. Ele encontrava-se caído no patamar que iniciava a descida da escada que levava a entrada do bar. Dois tiros perfuraram-lhe o pescoço e um deles atingiu a coluna. Estava morto!

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4 - Eu tinha planos de ficar em casa essa noite - dizia um policial uniformizado a outro quando Ron Wilson passou por eles caminhando até Josh Duncan que estava sentado no capô do Plymouth cinza conversando com alguém. Ao aproximar-se mais dos dois, Ron reconheceu o rapaz com óculos da armação fina com duas lentes grossas, não conseguia imaginar como ele chegara lá antes dele. - Olá Brouke, o que houve Josh? - Indagou Wilson acercando-se deles. O amigo o encarou firme, parecia decepcionado, mas mantinha uma determinada compostura que os policiais mais experientes já estavam acostumados, evidentemente que Josh sentia-se culpado pela morte de Ernest Hodge, o Bola Negra, afinal a primeira vez que uma testemunha sua, morria com balas que se destinavam a ele teria que causar-lhe algum impacto. Os olhos verdes de Duncan menearam referindo-se à presença indesejável do repórter. Brouke percebeu o que se passava, verificando que já não havia mais nada que lhe interessasse ali, despediu-se dos policiais, chamou o fotógrafo e afastou-se. Phil Brouke entrou em seu Buick Riviera cor de vinho, acompanhado do fotógrafo sob os olhares inquiridores de Ron e Josh. Foi Josh quem quebrou o silêncio: - O que você acha dele? - perguntou com um sinal de cabeça indicando o caminho por onde o Buick de Brouke havia seguido. - Acho um bom repórter. Fica em cima da polícia o tempo todo, principalmente em cima da gente, mas e daí, é o serviço dele.

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E a prova mais concreta de que é bom é o carro que ele comprou depois da cobertura completa que fez sobre o caso Molina. - Acho que dessa vez ele vai comprar mais outro carro. - Por quê? - Porque acabei de prometer a ele a cobertura do caso do estuprador, isto é, se conseguirmos resolvê-lo. - A troco de quê fez isso, Josh? - indagou Ron sem ver nenhum motivo aparente para um acordo desse gênero entre eles e Brouke. - Para que ele ficasse de boca fechada! - respondeu secamente. O abalo inicial notado por Wilson em seu companheiro já desaparecia. - Escute Josh. Quer me contar logo o que houve aqui ou vou ter que dar uma de interrogador para você poder me dizer alguma coisa? Duncan tirou o maço de Pall Mall de dentro do bolso, acendeu um cigarro e ofereceu a Wilson que recusou com um gesto de mão. - Vim até aqui atrás de informações sobre o estuprador iniciou - e consegui, só que no final apareceram uns sujeitos distribuindo balas, duas delas acabaram com meu contato, só que os caras queriam a mim. - O que o faz pensar desse modo? - inquiriu curiosamente Wilson. - Deixe-me contar os detalhes. - Duncan relatou sucintamente tudo que aconteceram naquela noite desde o encontro com Furks até ao tiroteio. - O cara que eu acertei prosseguiu taciturno - é Esteban Moreno! - Do caso Molina? - É obvio, quem mais poderia ser? Não pode existir outro verme tão nojento no mundo e ainda com o mesmo nome. - Então a vingança que eles prometeram era verdadeira... disse de modo pensativo.

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- Você alguma vez duvidou disso? - perguntou Josh. - Não, nunca! Mas se passou sete meses, Josh. Molina acabou-se, não acreditava que um dos subchefes remanescentes ainda iria tentar matar um de nós. - Dois dos subchefes remanescentes. - Como é? - É isso aí. O outro que fugiu parecia e tenho quase certeza de que era Estélio Cortez. - Sacanas! - Sacanas? Bem mais que isso, Ron. Agora além de nos preocuparmos em deter o estuprador ainda temos que ficar de olho aberto para não levarmos chumbo grosso do cão mais fiel de Molina. Os dois investigadores ficaram pensativos observando a fumaça que saía de um condicionador de ar a gás em uma janela logo acima de onde estavam. Ambos estavam em dificuldades, o caso dos assassinatos permanecia sem solução, eles ficavam loucos tentando achar peças para montar o difícil quebra-cabeça. - Você sabe onde fica essa produtora de vídeos eróticos? Wilson quebrou o silêncio. - Não faço a mínima ideia - respondeu o outro meneando a cabeça. - Quer continuar essa parte da investigação ou quer passar a bola pra mim? - Fique com ela, Ron, faça-me esse favor! - Ok. Emudeceram novamente. Wilson consultou seu relógio de pulso, 01h45. Tentou dizer alguma coisa para o amigo e despedirse, mas tudo que conseguiu dizer foram palavras totalmente inoportunas que só percebeu quando já as havia pronunciado. - Está pensando em Carol? Os olhos de Duncan quase se fecharam ao encarar Wilson.

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- Por quê? - Não sei. Desculpe-me. - Por nada, não se importe - disse para aliviar o amigo Estava mesmo pensando nela. Jogou fora o que restava do cigarro. Ron estava calado. - Ela não desiste, Ron. Acabou comigo pedindo o divórcio, e ainda quer acabar com o meu salário. - Você ainda a ama, não é, Josh? - Não... Escute Ron, somos muito amigos, mas não quero mais falar nesse assunto, nem com você e nem com ninguém mais no mundo. Se tudo der certo quinta-feira será a última audiência e me verei livre dela para sempre. Apesar de suas palavras, Josh Duncan não estava tão convicto delas. Quando tudo estivesse terminado ele estaria definitivamente separado da mulher com a qual partilhara sete anos de sua vida e não estaria livre dela, todo mês lembraria ao ver a quantia descontada em seu contracheque, destinada à manutenção da criança de dois anos fruto único de seu casamento. Os policiais despediram-se marcando um encontro para mais tarde às 10h00 no Bureau de Homicídios. Ao contrário do que se costuma pensar, a vida de um policial não é marcada de encrencas, e quando ele investiga um caso, principalmente quando é assassinato, não fica recebendo uma porção de informações que vai juntando, cacos aqui, cacos acolá, até que finalmente consiga montar o terrível quebra-cuca e aponte o criminoso. Na verdade um policial fica dias sem receber pista alguma, sem saber onde está o nó que ajudaria a desatar o novelo todo. Duncan e Wilson, se encontraram várias vezes ainda no dia da morte de Bola Negra, mas a nada chegaram em suas conclusões, nenhum fato novo foi acrescentado ao que já sabiam.

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Pelo menos, pensavam eles, nenhuma vítima nova fora adicionada à lista do estuprador de Manhattan, que era como a imprensa batizara o criminoso e a mídia tratara de promovê-lo. Quarta-feira à noite, Ron Wilson observava-se no espelho do banheiro do Departamento de Homicídios, um de seus melhores ternos o transformara de policial a executivo, mas isso só em sua mente, porque ele parecia tanto com um tira que nem adiantava disfarçar. O perfume Calvin Klein completou seu traje. Chegou à casa de Lisa Chambers um pouco antes da hora combinada. Após meses lançando olhares furtivos a ela e viceversa, eles finalmente sairiam juntos. Wilson levava as flores do buquê às costas, fizera isso antes com as outras mulheres, porém com essa era diferente. Por quê? Ele ainda não sabia. O apartamento ficava no sétimo andar do South Coasts, um prédio de apartamentos, quatro por andar, com oito andares. O corredor, revestido com um material que Wilson não conhecia, produzia um ruído esquisito ao choque com o solado do sapato, desses que só se ouve em filmes de suspense. Ron tocou a campainha do número 704 e esperou. Viu quando o ponto luminoso do olho mágico se escureceu para em seguida a porta abrir-se. O policial surpreendeu-se. Lisa Chambers não era mais nenhuma adolescente, porém deixaria qualquer garota no chinelo. Seus aproximadamente trinta e sete anos de idade tinham produzido nela uma beleza ímpar. Por um momento Wilson ficou apenas parado à porta observando sem nada dizer. - Não vai entrar? - perguntou ela fazendo-o retornar à terra. Ron então se lembrou das flores, avançando um passo entregou-lhe as vermelhas e cheirosas rosas.

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Lisa o mandou sentar-se e servir-se de uma bebida enquanto ela procurava um vaso para colocar as flores. Da cozinha surgiu a voz da moça quando Ron deixava cair às pedras de gelo no copo com McNaughton’s. - Para onde vamos? - ela perguntou, a voz rouca e sensual. Ele hesitou. - Não sei - disse por fim - talvez devêssemos comer alguma comida chinesa. O que acha? Ela surgiu com um vaso transparente de vidro com a metade de seu volume cheio de água. - Tenho uma contraproposta. - Então diga. - Que tal comermos comida vegetariana? Ron suspirou. Ainda não havia provado nenhuma comida daquele tipo que o agradasse, isso porque experimentou certa vez e não gostou daí decidiu não tornar a tentar. - Tudo bem - aquiesceu - Acho uma ótima ideia! - Que bom - ela terminava de pôr as flores no vaso e este sobre a pequena mesa ao lado do telefone. Wilson sentou-se tomando um gole da bebida para relaxar e Lisa procurou um lugar ao lado dele. Olharam-se. Sorriram um pouco encabulados. Ambos decidiram falar ao mesmo tempo causando um burburinho de vozes que gerou aquela situação cômica tornando as coisas bem mais fáceis. - Aonde vamos jantar? - indagou Ron por não ter ideia melhor sobre o que devia falar. - Aqui mesmo. - Como? - Aqui. Preparei um jantarzinho para nós, não pretendia sair com esse frio, achei melhor comermos algo aqui mesmo, o que acha?

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- Acho ótimo. Lisa observou a timidez de Ron com divertimento, nem parecia o sujeito seguro de si que teve coragem de fazer aquela brincadeira sobre o álcool pelo telefone ou o homem severo que acabou com a quadrilha de Molina, parecia mais um rapazinho na casa da primeira namorada. - Tenho algo para você. - O quê? - Quer outra dose? - perguntou ela ao ver que o drinque acabara. - Não, acho melhor não. - Por quê? - Eu... - Está com medo do efeito do álcool fazer você fazer algo que se arrependa? Ron encheu-se de coragem. - Não, eu não quero jogar a culpa no álcool por uma coisa que eu, perfeitamente sóbrio, estou com vontade de fazer. Lisa quase perguntou o que ele estava com vontade de fazer, mas Wilson fez antes que ela articulasse a pergunta. Beijaram-se. Abraçaram-se. O sofá pareceu ter sido feito para os dois. Alguns minutos depois Ron pronunciou-se. - Lisa? - Sim - disse ela indicando-lhe que devia prosseguir. - Estou apaixonado por você. - Tem certeza? - É claro que sim, sou um homem de quarenta anos, o que estou sentindo é suficientemente importante para que eu diga isso. - Você quer que eu diga alguma coisa? - Não. Isto é, não sei, você quer me dizer algo? - Sim. - O quê? - Estou apaixonada por você também.

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Ele sorriu e perguntou: - Desde quando? - Ele estava com o coração prestes a ser multado por excesso de velocidade. - Isso importa? - Não, não necessariamente. Besteira ter perguntado. Não foi preciso álcool. Sentaram-se de mãos dadas olhando-se. - Lembra-se de que agora a pouco disse que tinha algo para você? Ron ficou nervoso. Ela levantou-se indo até à estante metálica onde tinha uma TV no centro com um videocassete por cima e logo abaixou um aparelho de som cujos amplificadores ficavam no alto, um a esquerda e outro a direita. O resto era ocupado por livros, mas os volumes de perícias predominavam. Retirou um envelope de papel manilha de cima de um dos grossos livros e entregou-o para Wilson. Era uma boa surpresa. - Lisa, que bom que você conseguiu. Você é incrível! A perita sorriu. - Bem - disse ele afastando a curiosidade - é melhor deixar para ler isso mais tarde. - Ah, bom! Pensei que você fosse querer ler agora. O que acha de jantarmos? - Ótimo. Já estou morrendo de fome. Lisa levou-lhe pela mão até à cozinha onde ela preparou o que restava ainda por fazer enquanto Ron, descobrindo onde estava os pratos e os talheres preparou a mesa. O receio pela comida vegetariana ia diminuindo a cada nova porção que o investigador colocava na boca. Mudou sua concepção por aquele tipo de comida, achou tudo uma delícia. Conversaram sobre política, cinema e inevitavelmente sobre trabalho. Ron Wilson ficou sabendo que Lisa já havia se

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casado e que se divorciara dois anos depois. Ingressou na polícia como perita em impressões digitais, mas terminara no setor de balística onde permanece até hoje. Lisa, por sua vez, descobriu que Ron também fora casado e enviuvara, mas ele não quis mais falar sobre o assunto. Com o envelope em uma das mãos Ron tentava se despedir de Lisa à porta. Ela era mais baixa que ele alguns centímetros, era uma mulher alta, com cabelos e olhos castanhos. Lisa puxou Ron pela gravata até poder beijá-lo. - Boa noite - disse ela após o beijo. - Boa noite. Wilson caminhou até a porta do elevador sentindo os olhos de Lisa às suas costas. Apertou o botão de chamada e uma seta apontando para cima iluminou-se. - Quando nos vemos de novo? - perguntou ele ansioso por um reencontro. Wilson estava parecendo um menino. - Que tal sexta à noite? - Muito bom! Onde? O elevador chegou, a porta escancarou-se e ele escorou o corpo nela para que não se fechasse. - Aqui. Ron acenou entrando no elevador. Sorria para o espelho, estava feliz, tanto que o envelope já havia até perdido um pouco de sua importância, pelo menos por hora. Ao chegar em sua casa, tirou a roupa jogando-a sobre uma cadeira e jogando-se na cama em seguida. Dormiu pesadamente. Um Buick Riviera estava estacionado na calçada em frente ao prédio onde morava a última vítima do estuprador de Manhattan, Diana Stegron. Dentro dele Phil Brouke lia uma reportagem sobre as eleições para prefeito, não que ela lhe interessasse muito, mas

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desde que ali chegara já lera a NewsWeek quase toda sendo essa a única matéria que restava. Jogou a revista no espaço perto do câmbio destinado a mapas, fitas cassete, e outras bugigangas que um motorista gosta sempre de ter à mão. Apanhou a Coca-Cola tomando o que restava do líquido de uma só vez. Estava entediado. Há duas horas chegara ali motivado pelo velho raciocínio policial de que o criminoso sempre volta ao local do crime, ou será que foi alguma intuição? Não sabia ao certo. A verdade é que desde cedo sentira uma vontade imensa de estar lá. “Brouke - pensou ele - você é um bom repórter, siga sua intuição.” Fizera isso antes no caso Molina e se dera muito bem, ainda lembrava a cara do editor quando ele entregou a matéria toda datilografada em mais ou menos dez páginas contendo todas as informações sobre o fim dado à quadrilha de traficantes de José Molina Júnior, que herdou os negócios do pai apenas para ser destruído um ano e alguns meses mais tarde pela dupla de investigadores Josh Duncan e Ron Wilson. 5 - Como você conseguiu reconstituir todo o caso? Perguntara o atônito redator-chefe a Phil Brouke. - Segredo profissional! - dissera ele com um largo sorriso de triunfo no rosto. Não iria jamais dizer que seguira a dupla de policiais descobrindo fatos da investigação que precisavam ser mantidos em segredo para não afugentar os criminosos. Em troca de seu silêncio Duncan e Wilson contaram-lhe tin-tim por tin-tim toda a história. A reportagem foi um sucesso! O dinheiro foi tão compensador que comprara o Buick e lhe restara ainda para manter uma gorda conta no banco, isso tudo sem falar no aumento substancial nos seus honorários.

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Brouke, no entanto, queria mais, bem mais, não só dinheiro como também fama. Chegara através do caso Molina de um simples repórter policial a um de nome mais ou menos conhecido e agora, com o Estuprador de Manhattan, pretendia chegar ao Prêmio Pulitzer ou bem perto disso. Estava com fome, próximo dali havia a lanchonete que ele vira Wilson e Duncan entrarem outro dia após a descoberta do corpo da Srta. Stegron. O pensamento sobre a vítima afastou-lhe momentaneamente o apetite. Esperaria mais meia hora, decidiu, se não acontecesse nada iria embora. Dispensara pouco antes a Osborn, seu fotógrafo, outra regalia que a última reportagem especial lhe proporcionara, preferia agir só quando se tratava de sua intuição. Afinal também sabia fotografar muito bem, “Para ser sincero - pensou - só os serviços de Osborn, por causa do status.” Sua polaróide bem equipada estava esperando por qualquer surpresa dentro do portaluvas. Queria muito que houvesse serviço para ela naquele dia. A fome voltou, e com ela uma sonolência gerada também pela inatividade. Imaginou como os policiais conseguiam permanecer horas sentados num carro, vigiando uma pessoa sem dormir, coisa de filme... Adormeceu. Se um jornal desbotasse de tanto uma pessoa lê-lo, o exemplar que Luís Polaro comprara na segunda-feira estaria em branco, ou melhor, a reportagem sobre o Estuprador é que estaria. Queria muito poder fazer alguma coisa para impedir os crimes que vinham acontecendo. Cogitara a possibilidade de procurar a polícia, mas não teria como comprovar a veracidade de suas visões. Talvez se investigasse por conta própria... mas não sabia como fazê-lo. A polícia era treinada para isso e exercitava essa

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habilidade dia e noite, ele, porém, não saberia nem por onde começar, mesmo porque os dados que possuía não o levariam a lugar algum. A quitinete parecia querer sufocá-lo, precisava sair para espairecer. Pensando em sair surgiu-lhe uma ideia, por que não ir à casa da última vítima para ver o local com os próprios olhos e tentar descobrir qualquer coisa. Como entraria no apartamento? Por certo a polícia dera um jeito de impedir o acesso ao local para qualquer pessoa. A não ser que conseguisse subornar alguém, talvez o zelador ou o síndico, eles não fariam objeção à sua entrada quando colocasse algum dinheiro nas mãos deles. E foi exatamente isso que Polaro fez. Chegou ao local em menos de quarenta e cinco minutos procurando imediatamente um lugar para estacionar. Havia uma vaga na calçada em frente ao prédio à esquerda de um Buick cor de vinho cujo motorista dormia à sono solto, de boca aberta. “Como é que uma pessoa tem coragem de dormir em um carro conversível com a capota arriada em plena Nova Iorque?” pensou Polaro. O zelador do prédio era um senhor baixo, usava óculos de aros e lentes grossas de aparência tão pesada que parecia que ia cair a qualquer momento. - O que deseja rapaz? - perguntou ele amável. - Meu nome é... Robert Coke, do Daily News, gostaria de olhar o apartamento onde morava Diana Stegron. - Polaro orgulhou-se da forma como criara aquela conversa tão rapidamente. - Infelizmente Sr... - Coke, do Daily News - repetiu. - Infelizmente Sr. Coke - disse o zelador encarando o falso jornalista - a polícia proibiu a entrada de pessoas, quaisquer ao apartamento de Diana. - Como se chama, senhor?

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- Stephen Talbot. Polaro recordou-se de ter lido aquele nome na reportagem, foi quem ligara para a polícia. - Ah, foi o Sr que achou o corpo da pobre moça, não foi? - É - disse cabisbaixo - fui eu. - Era amigo dela? - Não precisamente, mas levava-lhe o pão todas as manhãs bem cedo. Era uma boa moça! Não deveria ter tido uma morte tão trágica. - Certamente que não. Foi uma pena... Escute, será que eu não poderia dar apenas uma olhadinha? - Polaro tomou a mão do homem entre as suas colocando discretamente três notas de dez dólares nela. Talbot olhou as notas, era uma grana que poderia ajudarlhe muito, resolveu aceitar. - Mas só se prometer não ficar muito tempo... - É claro que não, serei breve - cortou Polaro. - Sabe como é que são esses tiras, podem aparecer aqui a qualquer momento e se te pegarem lá, direi que roubou a chave, ok? - Tudo bem, vou ser o mais breve possível. O apartamento a princípio na parecia ser o mesmo da visão, porém, assim que o observara melhor percebeu que era o mesmo, tudo era incrivelmente igual ao que vira na visão. No chão estava delineado com um giz, a posição e o local do corpo de Diana, um desenho macabro! As imagens vieram à sua mente estranhamente distantes, como um sonho, balançando a cabeça afastou aquela lembrança indesejada. Era melhor ir embora dali, não havia nada lá que o fizesse descobrir alguma coisa, a polícia por certo já fizera uma operação pente-fino para retirar tudo que pudesse lhes servir de ajuda.

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Brouke acordou sobressaltado. Sonhara que possuía toda a matéria sobre o estuprador e que um outro repórter a roubara. No momento em que desferia alguns socos no ladrão, acordou. Sua boca estava seca. Ajeitou-se no banco empurrando os óculos que durante o sono escorregara para a ponta de seu nariz. Olhou para o prédio e alguém que conhecia de algum lugar conversava com um senhor baixo e calvo. Apanhou a polaróide, ajustou o foco na direção dos dois e bateu uma fotografia. Ficou impressionantemente nítida. Não se lembrava de onde conhecia aquele rosto, mas tinha certeza que o conhecia. Mais tarde vasculharia sua mente com a ajuda da fotografia até descobrir quem era o sujeito. Brouke observava o sujeito entregar alguma coisa ao homem de óculos, parecia ser dinheiro, mas o repórter não pôde ter certeza. Ele se aproximou do carro e Brouke apanhou a Newsweek folheando-a para disfarçar. Notou o sujeito entrar no Monza Classic e dar a partida. Assim que o carro desapareceu dobrando a esquina, Brouke foi até ao prédio. O baixinho ainda estava fora do edifício verificando a fechadura da porta do hall de entrada. Brouke aproximou- se falando: - Bom dia sr. Talbot! O homem consultou seu relógio de pulso verificando que já passava das duas da tarde, e Brouke percebeu que seu cumprimento era inapropriado. - Me conhece Sr...? - Phillipe Brouke. Conheço o senhor das reportagens sobre Diana Stegron. Talbot fitava o repórter por cima das lentes dos óculos. - O que deseja? - É que eu quero fazer uma cobertura mais minimizada sobre o caso e...

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- Poxa vida, já é o segundo repórter que aparece aqui, agora vai me dizer que quer dar uma olhada no apartamento como o outro tentou fazer, não é? - Não, não - disse ele rapidamente - eu quero só saber o nome do colega que esteve aqui. - Foi aquele sujeito que acabou de sair, se você chegasse dois minutos mais cedo o teria visto. E Brouke o vira. - E como era o nome dele? - indagou Phil. - Era... disse pensativo, como que fazendo um esforço extremo para lembrar-se, Phil entendeu o que Talbot queria dizer com isso e colocou cinco dólares na mão do homem. Talbot quase desdenhou do dinheiro que era muito pouco em relação à gorjeta do outro repórter, mas como já estava entediado com aquela conversa disse entrando no edifício. - Se chamava Robert Coke. Antes que Brouke pudesse articular outra pergunta o homem havia desaparecido. Não conhecia ninguém chamado Roberto Coke, mas iria descobrir quem era o sujeito da foto da polaróide. Sobre a mesa havia dezenas de folhas de papel espalhadas, uma verdadeira bagunça, mas como Duncan sempre costumava dizer a Ron Wilson, não tente arrumar essa bagunça, se não eu fico todo desorientado. Wilson não compareceu ao distrito desde cedo, Josh ficava imaginando se o amigo teria descoberto alguma coisa acerca da produtora de filmes eróticos, mas nada de Wilson dar notícias. No entanto, Josh não ousava distanciar-se de sua mesa temendo que o telefone tocasse a qualquer momento e ele não estivesse perto para atendê-lo, até o café quente que estava sentindo vontade de tomar foi deixado de lado.

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Stain Gibbs, um companheiro da Homicídios, reparava que outro lado da imensa sala cheia de mesas, que parecia até uma Redação de Jornais, se encontrava Josh em sua mesa tamborilando os dedos. Deduziu que o companheiro estava nervoso, e quem não estaria sendo pressionado pelo secretário do prefeito a pegar um criminoso que não deixa pistas e ainda com o último remanescente do bando de Molina a lhe espreitar? Apanhou um copo de café e foi até à mesa de Duncan. Estendeu o copo para Josh, puxou uma cadeira e sentou-se. - Que barra, hein Duncan? - disse o amigo iniciando conversa. - Obrigado Gibbs - agradeceu o café - É, as coisas não estão muito fáceis. - De um lado o secretário do prefeito te enchendo o saco, do outro o Estélio Cortez. - Como você soube? - É difícil não se saber as coisas do nosso ramo, e aqui na Homicídios há um bocado de fofocas acerca desse assunto, do estuprador e do bando do Molina. Estão dizendo que se o caso do estuprador for logo resolvido você e Wilson vão ganhar uma promoção e o chefe Lieberman vai poder descansar um pouco num cargo mais alto, mas de poucas preocupações. - Acho difícil, é apenas um caso como os outros que temos aqui no Distrito, não vale promoções. - Você tá brincando, no caso Molina vocês ganharam até medalha de mérito, sem falar nos carros. - Aquilo foi outra coisa, o caso era da Divisão de entorpecentes, quando encontraram o corpo da mulher de Molina é que entramos para descobrir que o próprio Molina a matara porque ela contou a um amante dois pontos de entrega de coca, como um elo puxa outro chegamos a levar todo mundo em cana, menos Molina, que morreu na tentativa de fugir, e seus comparsas que conseguiram escapar.

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- Mas agora só tem um deles circulando por aí. - É. O telefone tocou, antes que Duncan atendesse Gibbs fez sinal de que ia embora. - Alô! - disse o policial imaginando o que Wilson teria descoberto. Não era Wilson. - Duncan? Aqui é Brouke. Duncan esmoreceu, afinal o que Brouke poderia querer com ele para ocupar seu telefone? - O que há, Brouke? - Estive no local do apartamento de Diana Stegron hoje. - Diana Stegron? - disse o policial fingindo-se desentendido. - Não adianta tentar me enrolar Duncan, sei que você sabe de quem estou falando, respeito você como profissional, por isso estou te ligando porque descobri algo que pode ajudar na investigação. - Ok, Brouke, desculpe. O que você descobriu? - Como estava lhe dizendo, fui ao prédio de Diana Stegron hoje, fiquei parado em frente por tanto tempo que cheguei a cochilar. - Você não está acostumado com o trabalho de policial. brincou Josh. - Quando acordei - prosseguiu o repórter - vi um homem conversando com o porteiro do prédio e dando-lhe uma propina. Bati uma foto dele com minha polaróide. Após ele ter ido embora, fui até ao prédio e descobri que o sujeito era um repórter chamado Robert Coke e que pediu pra subir ao apartamento da vítima. Na redação do jornal descobri que não havia nenhum Robert Coke nos jornais e telejornais de “Nova Iorque”. - E daí? - perguntou Duncan curioso. - Daí eu averiguei quem era o falso jornalista.

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- Quem era? - Luís Biler Polaro. - O nome dele não faz sentido algum para mim. - Luís Biler Polaro, é herdeiro, e único, diga-se de passagem, do milionário Ralph Polaro, da Companhia Imobiliária Life Style que foi responsável pelo grande empreendimento de 1970 em Hamptons, já ouviu falar disso? - Tenho uma vaga lembrança. O que o herdeiro de Ralph Polaro poderia querer fingindo-se de jornalista na casa da última vítima do Estuprador? - Bem, Duncan, isso já não sou eu quem deve fornecer a resposta e sim o próprio sujeito. - Alguma coisa mais? - Não - respondeu rapidamente mas depois desconversou não pesquisei nada sobre a vida do filho de Polaro e o que descobri foi apenas um detalhe que um amigo do arquivo me forneceu depois de eu muito encher o saco dele. - Tudo bem, Brouke, a informação é muito valiosa embora eu não saiba o quanto. Não sei como lhe agradecer. - Você sabe sim - disse o repórter insinuante. - Não se preocupe, a cobertura final quando o assassino estiver preso será sua. - Obrigado Duncan - agradeceu o repórter desligando em seguida. O detetive Josh Duncan ficou tentando encaixar as pistas que havia recebido. Primeiro: as moças são estupradas e mortas por um sujeito tão esperto que não deixa nenhuma pista e ainda desafia a polícia com sua marca registrada, uma flor de papel alumínio de cigarro dobrado. Segundo: as moças mortas tem uma ligação entre si, fizeram pontas em filmes pornográficos, pelo menos duas delas com certeza e as outras duas era quase certo segundo as informações do Bola Negra e sua própria intuição.

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Terceiro: o filho de um milionário fingindo-se de repórter fica xeretando o local onde a última moça foi encontrada morta. Três fatos importantes que necessitavam de uma melhor investida sobre eles para se levantar tudo o que pudessem dar. O telefone tocou novamente, só que desta vez era realmente Wilson. - Achou alguma novidade? - apressou-se em perguntar Duncan ouvindo a conhecida voz do amigo. - O endereço da produtora dos filmes, estou com vontade de ir até lá com você, o que acha? - Muito bom, estava mesmo sem fazer nada. - E você, tem algo novo? - Brouke me ligou com uma coisa que talvez queira dizer algo. - E o que é? Duncan narrou o que o jornalista lhe havia contado, enquanto fazia isso prendeu o telefone entre o ombro e o rosto para retirar o maço de Pall Mall do bolso, acendeu um cigarro e soltou algumas baforadas observando a fumaça azul mortífera se dissipando no ar. - Precisamos verificar isso direito para ver no que dá. - foi o comentário de Wilson. - Estava pensando justamente nisso quando você me ligou. - Vamos nos encontrar para conversarmos melhor. Acho bom você não vir no seu carro, pegue uma viatura e me apanhe em casa, ok? - Estou indo pra aí. O investigador apanhou seu casaco da costa da cadeira, vestiu-o e verificou a arma no coldre sob suas axilas. É sempre prudente andar prevenido, o que era muito natural para os policiais, mas para Duncan e Wilson era a própria lei da sobrevivência. Sua arma era uma Smith&Wessin.44 Special muito bem polida sempre com o primeiro cartucho do pente vazio para

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evitar acidentes. Estava pronto para a visita à produtora Sex Star Produções e para uma posterior ronda por Manhattan. 6 O carro da polícia, um não oficial, de cor marrom modelo sedam estava estacionado na via de mão dupla em frente à Sex Star Produções. O local era uma portinhola com um letreiro em neon ao lado de uma lanchonete. A escada frontal dava exatamente nos altos da loja. Os investigadores entraram e imediatamente deram com um indivíduo muito gordo e carrancudo que assistia com visível entusiasmo ao filme pornô que estava rodando no antigo aparelho de videocassete. Nas paredes havia duas estantes, uma em frente da outra aonde se podia encontrar uma sorte imensa de produções do gênero. À primeira vista mais parecia uma simples locadora do que uma produtora. Sem tirar os olhos do filme o atendente falou: - O preço de cada fita se encontra na caixa. Se levar dez fitas posso fazer um abatimento. - Duncan começou a observar as fitas enquanto Wilson se aproximou do balcão, retirou sua carteira do bolso e abriu-a diante do rosto do homem exibindo seu distintivo dourado de investigador de primeira categoria do Bureau de Homicídios de Nova Iorque. O homem deu um pequeno salto nervoso de cadeira onde estava sentado e desligou o aparelho de TV. - O que deseja? - perguntou apreensivo. - Vocês alugam fitas de vídeo aqui? - indagou Wilson. - Não! - respondeu rapidamente o sujeito, sua gordura chegara a uma fase tal que dava a impressão de não possuir mais pescoço e queixo, enquanto falava passava freneticamente um lenço no rosto para enxugar o suor que queria inundar-lhe os

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olhos - Nós filmamos, produzimos todo o filme e o vendemos de acordo com o desejo do cliente ou com nossa visão do mercado consumidor. - Isso quer dizer que vocês fazem alguns filmes por encomenda? - É isso aí. - E como é que as pessoas pedem, o que eles pedem nas fitas? O homem fez uma careta como quem tenta entender alguma coisa com dificuldade. - A pessoa vem aqui - respondeu ele por fim - diz pra gente que tipo de... sacanagem quer ver no filme. Daí escolhemos as atrizes ou damos um álbum para o cliente e ele escolhe, mas esse procedimento é mais difícil, então fazemos o filme. Duncan aproximou-se um pouco do Balcão. Instintivamente o atendente afastou-se. - Quero ver o álbum - disse ele encostando-se. - Quer ver o álbum? - Foi o que eu disse, não foi? - Sim. É que são quase vinte deles, tem que me dizer qual é o que quer ver. Josh deu uma piscadela para Ron com o olho direito. - Traga todos - ordenou Ron. O atendente fez um pequeno cacoete no rosto quase parecendo um sorriso se não fosse feito com um só canto da boca. Virou-se, entrou na sala contígua retornando em seguida com os volumes um sobre o outro. Não havendo outro lugar mais cômodo os investigadores passaram a folhear os álbuns ali mesmo no balcão. As capas eram bem tratadas embora já apresentassem sinais de deterioração nas bordas devido ao excessivo manuseio. Em cada página uma fotografia das moças nuas com o nome embaixo. Cada livro possuía quinze fotos.

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- Geralmente não mostramos os álbuns - explicou o atendente - pois as garotas podem ser reconhecidas por caras que vem aqui apenas para ver os livros. Então só quando o cliente assina o contrato é que lhe mostramos as fotos e isso somente se ele pedir. A dupla escutava ao homem sem deixar de folhear aquelas páginas, era como estar observando um livro de suspeitos, só que um bem mais interessante. - Estou me sentindo um adolescente leitor de revistas Playboy - disse Duncan. - Isto aqui está mais para Penthouse do que para Playboy. objetou Wilson. - Realmente. Foi Josh quem encontrou a primeira foto de uma vítima. Era Margot Williams, mas não era esse o nome que aparecia no rodapé da página, era Ginger Silks. Josh mostrou-a a Ron. - Ginger Silks? - admirou-se Wilson ao ver aquele nome no lugar do verdadeiro. - Esse é o nome artístico dela, o verdadeiro nome não aparece aí disse o gordo enxugando novamente a testa. - Existe alguma forma de um cliente ter acesso ao nome real das moças? - Não. - respondeu ele ligeiro. - Absolutamente não? - Não, quer dizer, em alguns casos pode-se obter esse acesso. - Que caso? - Wilson articulava rapidamente as perguntas para encurralar o balconista. - Alguns clientes - disse o sujeito relutante - acham que algumas garotas são muito bonitas para apenas verem-na nos filmes e pedem para arranjarmos um encontro entre eles, se a moça aceita fornecemos o nome dela.

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- E o endereço? - É, também. Algumas meninas preferem manter o sigilo, daí se encontram com os caras em suas casas e apartamentos. - Isso é prostituição! - disse Duncan folheando ininterruptamente o álbum de fotografias. - Escute - o homem tentava se desculpar - não obrigamos as meninas a fazerem nada, ela fazem por livre vontade... - Não precisa nos dar explicações, não viemos aqui para isso, nosso assunto é outro bem diferente. - Digam-me o que é e verei se posso ajudá-los. - Deixe pra lá - disse Wilson - Vamos querer as fichas de algumas moças que veremos nas fotos, endereço e tudo! - Está bem, vocês mandam. Antes mesmo de passarem a vista em todos os álbuns encontraram as fotos das outras três moças assassinadas. O atendente, todo solícito por receio de que os policiais fechassem a produtora por suspeita de prostituição, trouxe as fichas entregando-as gentilmente à dupla. A ficha continha o nome real da moça além do artístico, um telefone para contato e a especialidade dela. Naturalmente quem tivesse acesso às fichas veria o telefone e depois procuraria no catálogo telefônico para descobrir o endereço. - Quem são os cliente que fazem geralmente pedidos de filmes? - Perguntou Duncan. - Proprietários de motéis, e evidentemente alguns sujeitos que também gostam compram o mesmo filme. - Quer dizer que o filme não é exclusividade de quem o encomenda? - Não. Não é. Um detalhe chamou a atenção de Wilson quando lia uma das fichas, no final de cada uma delas havia um espaço que indicava a especialidade da moça e as quatro vítimas possuíam a mesma denominada simplesmente por: anal - era a palavra.

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Nada mais foi perguntado, ao mostrar a Duncan o detalhe obtido um dos fios da meada ficou muito bem claro à dupla de investigadores. Agora só restava descobrir o que mais esclarecedor poderia haver nessa nova pista. A única coisa que eles ainda poderiam fazer ali não seria feita sem um mandato judicial. Eles decidiram sair. No carro, sentados um ao lado do outro, Wilson iniciou a conversa. - Parece que estamos no caminho certo para pegar o Estuprador, acho que ele compra as fitas dessa produtora - Wilson falava com entusiasmo - ou pelo menos tem acesso às fichas. Tenho certeza, estamos na pista certa! - Então a sua teoria de que ele seria um sujeito movido a impulsos momentâneos e não alguém calculista cai por terra. - É. - Wilson desconsolou-se - Acontece que esse novo detalhe veio trazer outra perspectiva aos fatos. O homem que procuramos é na verdade um cara inteligente e que só faz uma vítima após ter feito um levantamento sobre ela. E digo mais, após assistir às fitas em que as moças fazem sexo anal é que ele se excita, por isso em vez de atacá-las como um estuprador normal faria, ele se aproveita apenas daquela parte em particular e isso depois de ter planejado o melhor local para o ataque. - Que faremos agora? - Vamos esperar. Quando o sujeito lá dentro sair - disse apontando para a produtora. - entramos lá e verificamos um arquivo para achar os clientes e verificamos os mais suspeitos, ok? Josh Duncan foi experiente o bastante para não contestar as atitudes do colega de profissão, pois sabia que se usassem outro expediente tornariam as coisas mais difíceis, todos os advogados de defesa do mundo diriam que esses indícios retirados do local sem ordem judicial não valeriam como prova, e eles teriam razão. Era melhor conseguirem aqueles dados na surdina.

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Joe Salitrop, o atendente, fechou a produtora às 23h30. Mais um dia cansativo de trabalho terminara, e esse foi piorado pela presença dos policiais. A lanchonete do térreo estava fechada há horas. Salitrop olhou para os lados e não enxergou Ed Sonny, o guarda-noturno, o homem já devia estar ali mais ainda não chegara, aliás, era tão costumeiro o atraso de Sonny que Salitrop já nem estranhava mais, simplesmente ia embora. Salitrop ajeitou a barriga protuberante e apertou o cinto, deu outra olhada procurando pelo vigia... nada. A passos largos dirigiu-se até a esquina desaparecendo após dobrá-la. Minutos depois, de dentro do paletó Wilson retirou um pequeno pedaço de metal introduzindo-o depois na fechadura. A porta abriu-se sem o menor ruído. Após uma minuciosa revista não conseguiram encontrar nada. - Não há registro dos clientes! - exclamou Duncan. - Filhos de uma égua! - xingou Wilson num sussurro Fazem isso para proteger as identidades dos tarados que adquirem esses filmes! - Vamos embora daqui - sugeriu Duncan. Para confirmar suas palavras ouviram a porta abrir-se. Duncan inclinou o corpo e viu um sujeito idoso subir a escada. - Deve ser o vigia, Ron, vamos dar o fora daqui! Entraram sem pensar na sala onde mais cedo Salitrop fora buscar as fichas das moças, não havia janelas nesta sala. Correram para a porta que havia num dos cantos, era a abertura para o banheiro. Os dois entraram. No fundo do banheiro que fedia insuportavelmente a urina, havia um balancim de abertura horizontal. Ambos se olharam, apesar de estarem em boa forma física devido aos exercícios, seus corpos tinham algumas gordurinhas que poderiam impedir sua passagem pelo basculante.

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Wilson foi o primeiro. A abertura era muito próxima do teto impedindo que ele colocasse primeiro os pés, foi obrigado a enfiar-se de cabeça. O chão estava a cinco metros e meio da abertura por onde Wilson agora era empurrado por seu colega. A queda não afetou fisicamente a nenhum dos dois pois foi amortecida por umas latas de lixo no quintal da lanchonete. Pulando cercas e passando por quintais eles deram a volta para chegar ao carro de polícia. - Um sacrifício em vão - comentou Duncan. - Não de todo - disse o outro. - O que você viu lá dentro que eu não vi? - Nada. - Como? - Não vi nada demais. Só que como não vimos às fichas dos clientes as coisas vão ficar um pouco mais difíceis, mas já é alguma coisa saber de tudo o que sabemos. - De fato. - Concordou Josh retirando o cigarro do maço em seu bolso, ofereceu um a Wilson que recusou com um aceno de mão. - O que foi, deixou de fumar? - indagou Josh. - Mais ou menos, o meu último foi aquele que o Lieberman nos ofereceu. - Você está decidido a parar mesmo? - Estou. Cansei desse troço. Lembra-se do dia em que pegamos o Molina? - Como poderia esquecer? - Naquele dia quando finalmente alcancei Molina quase não tive fôlego para me livrar do capanga dele. Daí pensei muito, agora, se tivermos que correr atrás desse estuprador quero estar com todo fôlego para segurá-lo. Duncan guardou o pacote de volta no bolso e jogou seu cigarro discretamente pela janela.

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Como não adiantava rondar durante a noite, pois não havia lugares prediletos para esse criminoso e Manhattan era muito grande, foram para casa. 7 Sexta-feira à noite. Ron Wilson estava sentado displicentemente no sofá da sala de Lisa Chambers enquanto esta lhe massageava os ombros para relaxá-lo. Há quanto tempo não sentia isso, a delicadeza das mãos de uma mulher fazia qualquer homem cair aos seus pés. Até os pensamentos de Wilson eram toldados quando ela o tocava, estava leve! - Gostoso? - indagou ela, os olhos castanhos brilhavam de maneira suplicante, ou era apenas a impressão dos olhos apaixonados do investigador? - Hein?! - Perguntei se estava gostando? - repetiu ela apertando um pouco mais forte o ombro dele como que querendo afirmar o objeto de sua pergunta. - É claro! - disse ele sem jeito. Ela sorriu. Parecia até estranho estar com Ron em seu apartamento, fazia muito tempo que não levava ninguém até lá, afinal a última experiência fora um desastre. Depois de um amigo da perícia insistir muito em levá-la em casa, deixara-o subir, mas o homem se mostrou tão abusado e repelente que ela quase o colocou para fora aos empurrões. No entanto não queria mais lembrar-se de coisas desagradáveis, próprio do ser humano lembrar de coisas ruins em momentos bons para fazer comparações. - E o caso de 1980? - perguntou Lisa de repente para cortar de pronto a linha de pensamento a que sua mente a estava conduzindo.

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- Oh, Lisa, - disse Wilson espantando-se - estive tão ocupado que nem me lembrei de comentar isso com Josh. - Mas você o leu? - Sim, li tudo. Você se importa de eu fazer uma ligação? - É claro que sim - brincou ela. Wilson apanhou o telefone, colocou-o sobre suas pernas unidas e discou o número do aparelho de Josh Duncan. Duncan estava sentindo-se disposto a andar a noite toda pela cidade em busca de algo que elucidasse o caso do Estuprador. Gostava de sua dupla com Wilson por causa disso, enquanto um descansava o outro procurava pistas ou ambos investigavam. Essa noite, entretanto, precisava comer algo de verdade, estava cansado de comer hambúrgueres com Pepsi e não queria comer a comida de nenhuma bodega. Decidiu voltar para casa, cozinhar seu próprio jantar, assistir televisão até tarde e dormir. Já trancava a porta de seu pequeno apartamento quando o telefone tocou. Não esperava telefonema de ninguém numa sexta- feira à noite. Seu advogado lhe telefonara pela tarde para dizer que na segunda-feira levaria a carta do divórcio para ele assinar. Carol deveria estar satisfeitíssima, mas não era muito provável que ligasse para agradecer-lhe. Talvez fosse Wilson. Esse simples pensamento de Wilson poder entrar em contato o fez atender ao telefone, poderia ter surgido algo novo. Atendeu. - Ron, imaginei que fosse você. - Tenho novidades para o nosso caso - disse a voz no outro lado da linha. - Então não faça mistério.

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- Em 1980 aconteceu um caso semelhante, quase idêntico, mas jamais a polícia conseguiu pegar o criminoso, pois o caso não se repetiu mais. - Não se repetiu? - É, o assassino não voltou mais a atacar. - O que esse caso tem a ver com o do Estuprador de Manhattan, Ron? - O assassino estuprou a moça do mesmo jeito, sexo anal, a matou com a garganta cortada e adivinhe o que mais? - Deixou uma flor de papel de cigarro? - Exato. - Quem foi a vítima? - Uma estudante universitária, da Empire State chamada Allisson Budaker. Houve investigações sobre o namorado dela, mas o rapaz possuía um álibi indiscutível. Como o assassino não reapareceu o caso passou para a lista dos encerrados sem solução. - Algo sobre o rapaz? - O namorado dela? Não, o documento que tenho não diz nada, acho que era gente importante e, a pedido, foi omitido do caso. - Quer dizer que agora, sete anos depois, o Assassino da Flor de Papel volta a atacar, mas desta vez não um caso solitário e insolúvel, e sim uma série de crimes por enquanto sem solução. Você não acha isso estranho? - Muito. Principalmente para o perfil psicológico que eu havia traçado. - É, Ron - disse Duncan complacente - creio que estamos lidando realmente com um sujeito frio e muito astuto. O jeito vai ser esperar para ver o que acontece. - Esperar? - Modo de falar. Mais cedo ou mais tarde descobriremos algo que nos levará ao homem. - É só isso Josh, agora vou desligar.

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Duncan ficou parado, até perdera a fome, sentiu de novo aquela vontade de ir às ruas à procura do criminoso. No entanto o que fazer, como encontrar um lugar mais ou menos suspeito? Sentiu uma indisposição terrível em preparar alguma comida, pelo menos os hambúrgueres tinham a vantagem de serem comprados já prontos, era só pagar e comer. Assim, Josh Duncan saiu para a noite, isso seria bem menos entediante do que permanecer sozinho em seu apartamento. Como não possuía uma direção determinada para seguir, dava voltas com seu Plymouth pelas ruas de Manhattan. Tanto ele como Wilson, tinham um rádio dentro de seus carros e isso foi conseguido após o caso Molina. Duncan possuía uma admiração muito grande por Ron Wilson. Desde cedo quando foi transferido para o Bureau de Homicídios ele manifestou o desejo de trabalhar com o outro. Quando surgiu a oportunidade não hesitou, falou com o tenente que estava cuidando do assunto e pronto, estavam juntos. Ficaram nas ruas durante muito tempo até surgir o caso que lhes promoveu. Para Duncan o verdadeiro herói da história fora Wilson, ele farejou o caso e foi ele quem quase pegou Molina... - Ele vai aparecer aqui a qualquer momento, Josh - disse o investigador Ron Wilson ao seu companheiro assim que avistou o Mercedes tipo sedam preto parado e cuspindo para fora Esteban Moreno, o braço direito de José Molina Jr. Tudo era visto no cenário quente de uma noite de verão nas docas. Haviam descoberto o galpão com todo o carregamento de cocaína da quadrilha de Molina. Onze policiais armados além de Duncan e Wilson se espalhavam por todo armazém em pontos cuidadosamente estudados, a dupla de investigadores podiam ver claramente o portão. Esteban Moreno havia adquirido a cocaína e seu chefe viria até ali para submeter a droga a uma apreciação. Ele acendeu o

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cachimbo dando três baforadas rápidas. Um sujeito, o guardanoturno, aproximou-se dele. - Por que o portão está aberto, Mário? - O Sr. Cortez ligou avisando que estava vindo para cá com o chefe, sei que ele não gosta de esperar e como o portão é muito pesado leva algum tempo para abri-lo... - Tá bom, tá bom - disse Moreno querendo cortar aquela impaciente conversa mole de Mário. Sabia que a porta menor não seria utilizada, pois Molina temendo ser visto só saía de carro ao se encontrar oculto pelas paredes do depósito. Apesar de falarem alto Duncan e Wilson se esforçavam para entender toda a conversa dos traficantes. Outro sedam preto chegou. Desta vez foi Cortez que saiu do carro seguido por dois gorilas enormes e por fim o próprio chefe do time. Wilson cutucou Duncan para confirmar sua predição anterior e sacou sua Smith&Wesson.44, gesto que foi logo imitado por Duncan e todos os policiais que se encontravam perto. - Está tudo aí? - indagou Molina. - Tudo, José. De acordo com suas ordens específicas. - Então vamos ver esse ouro branco - disse o chefe caminhando para o caixote mais próximo. Molina Jr. vestia-se como um típico mafioso italiano, embora todos soubessem que ele era boliviano, terno de listras, chapéu de gângster, flor na lapela... Cortez segurou Moreno pelo braço e cochichou-lhe algo no ouvido. - Da próxima vez não abra a porta sozinho - avisou Cortez - traga alguns homens com você. - Quando eu cheguei já estava aberto! - respondeu Moreno. - Como é que é? - É... Mário disse que você lhe telefonou avisando... - Eu não liguei porcaria nenhuma! - grunhiu.

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- Polícia? - Não sei... mas não vamos ficar aqui para saber. Duncan observou sem poder entender o que acontecia. Moreno e Cortez conversaram algo em sussurros e o segundo em seguida aproximou-se de seu chefe. - Eles manjaram, Josh! - comentou Wilson. Cortez sussurrou novamente algo só que dessa vez ao chefe e de repente eles começaram a sair na direção do carro. Wilson pulou para o lado tornando visível sua posição. - Parados. Polícia! - gritou alto. Num segundo um dos gorilas virou-se para Wilson, em outro ele já estava disparando rajadas de uma submetralhadora surgida não se sabe de onde. O policial jogou-se ao chão sentindo a saraivada passar por cima de sua cabeça. Os policiais apareceram de todos os lados enquanto Molina e um dos homens dele entravam no sedam em que chegaram. Os brutamontes com a submetralhadora foi alvejado. Moreno e Cortez entraram no outro sedam saindo em disparada. A dupla Josh e Ron correu para as viaturas que estavam escondidas ao lado do depósito, cada um entrou numa e iniciou-se a perseguição. Molina gritava com seu motorista incitando-o a pisar fundo no acelerador. Logo atrás vinha a outra dupla de contrabandistas. Duncan ia à frente de Wilson sem dar a menor atenção aos limites de velocidade, acercava-se cada vez mais do carro em que estavam Cortez e Moreno. Só aí percebeu seu erro. Dirigindo sozinho era praticamente impossível poder atirar nos pneus dos fugitivos e para fazê-los parar seria necessário abordá-los de frente trancando a passagem deles, mas isso também seria difícil, pois a qualquer momento um deles abriria fogo pela janela em Josh.

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Estélio Cortez dirigia como um desvairado, uma habilidade por certo não adquirida na Bolívia. Moreno preparou sua submetralhadora e pulou para o banco traseiro. - O que vai fazer? - indagou o motorista. - Vou cuidar daqueles tiras filhos de uma porca leprosa! disse ele quebrando com o cabo da arma o para-brisa de trás. Josh errou. O homem não ia atirar pela janela. O carro de Molina dobrou numa curva fechadíssima à esquerda. Cortez passou direto seguido de perto por Duncan restando a Wilson a perseguição ao chefe do bando. Invadindo uma larga avenida na contra-mão, Cortez ia ziguezagueando na tentativa de desviar-se dos carros que vinham em sentido contrário. O investigador Duncan aproveitando o vácuo que eles deixavam conseguiu uma aproximação, subitamente, porém, o sedam adentrou uma via à esquerda. Era uma rua deserta que só dava passagem para um carro de cada vez a não ser que se subisse na calçada. O velocímetro do sedam tremia ao chegar à marca dos 140 km/h e logo atrás a viatura policial acercava-se. - Diminua a velocidade, Estélio. - Por quê? - Faça o que eu digo. Diminua a velocidade para eu poder pegar aquele filho da égua. - Como você sabe que é só um? - Se fossem mais, um deles já teria tentando furar nossos pneus à bala para nos parar. Quando eu mandar você diminui, falei? - Tá bom. Duncan chegava cada vez mais perto. De repente viu o carro parecendo que ia parar à sua frente e avistou o sorriso no rosto de Esteban Moreno. Rapidamente Josh jogou-se para baixo do painel sem largar o volante.

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O vidro da viatura estilhaçou-se ao ser perfurado violentamente pelos projéteis que a submetralhadora Uzi de Moreno cuspia. Algumas balas atingiram o capô, os faróis, e os pneus dianteiros e o detetive não conseguiu mais controlar o carro que segundos depois ao dar uma guinada à direita teve sua trajetória interrompida de forma brutal por uma parede de concreto armado de uma fábrica. Josh Duncan foi arremessado para frente batendo a cabeça. A escuridão que se seguiu foi diminuindo à medida que seu olfato começava a captar o odor de fumaça. Levantou-se tateando algo firme em que pudesse se apoiar. Suas mãos sentiram alguma coisa lisa e sua mente atordoada conseguiu entender que se tratava da maçaneta da porta, abrindo-a caiu a seguir no chão com a metade do corpo dentro da viatura e a outra fora. - Aqueles bostas escaparam - balbuciou para si mesmo antes de perder os sentidos. Tudo que o policial Duncan poderia lembrar-se mais tarde era de uma escuridão e do clamor de vozes. - Ajudem aqui - disse uma das vozes. Algumas mãos o puxaram arrastando-o para longe do carro. Três rapazes que passavam por perto quando o carro se desgovernou e colidiu com a parede, o retiraram de dentro do veículo em consumição pelas chamas provocadas pelos disparos da Uzi de Moreno. Ao se encontrarem há uma distância segura o fogo atingiu o motor explodindo o carro e espalhando estilhaços em todas as direções. O detetive não estava apenas atordoado com o choque do automóvel, mas com seu orgulho ferido. Quando a viatura que Duncan conduzia tomou a perseguição do segundo veículo dos contrabandistas, o policial Ron Wilson interpretou aquilo como um aviso para perseguir o primeiro,

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mesmo porque ele vira que o sedam que dobrara levava em seu interior José Molina que gesticulava como um louco para o motorista. Numa perseguição normal em campo aberto a viatura policial jamais pegaria o sedam, mas na cidade, com curvas fechadas, tráfego, isso seria um atenuante que por menor que fosse ainda lhe dava chances de pegar Molina. Tinha que fazer isso, se não o fizesse agora não faria nunca mais, pois o contrabandista de drogas usaria todo seu dinheiro e influência para abandonar o país no mais curto espaço de tempo. Isso não poderia acontecer. “Por que Duncan fora cometer a besteira de pegar um carro sozinho?” - pensava Wilson. De certo que os dois juntos teriam bem mais chances de pegar os criminosos, mas agora isso já não importava tanto. O sedam Mercedes preto estava se dirigindo para a periferia da cidade, uma zona que Wilson conhecia bem embora estivesse estado por lá umas poucas vezes, entretanto tinha certeza que era um lugar cheio de conjuntos residenciais. Para a surpresa do policial, o carro fez uma curva em “U” mudando totalmente de direção. Por alguns instantes o policial pensou sobre aquela ação e descobriu o porquê. O veículo à sua frente estava ficando sem combustível, uma situação que poderia trazer muitas vantagens para Wilson se não estivesse acontecendo o mesmo com seu carro. Alguns minutos depois os carros estavam próximos da zona onde havia uma porção de fábricas de pequeno porte e Wilson pôde ver quando o sedam parou e Molina desceu correndo acompanhado por seu cão de guarda. Entraram numa fábrica ali perto. O detetive encostou seu veículo atrás do outro. Abaixando-se para proteger-se de eventuais disparos, correu até ao carro de Molina e retirou as chaves da ignição jogando-as o mais longe possível. O gasômetro estava indicando que o tanque estava

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na reserva e ele sorriu vendo que tinha razão quanto à mudança de direção do veículo dos fugitivos. Tomando o cuidado necessário para não ser surpreendido entrou na fábrica. Era um imenso galpão cheio de máquinas de costura industriais e restos de tecido espalhado e mofado, só no fundo da grande sala é que o cenário mudava revelando um escritório com paredes de vidro provavelmente para observar os empregados enquanto trabalhavam. Quando a visão de Wilson se habituou à escuridão ele pôde perceber os detalhes vendo a quantidade significativa de teias de aranha por todo o interior do prédio. A fábrica estava abandonada. Avançou um pouco mais e sentiu uma forte pancada no braço direito que jogou sua arma, que estava devidamente empunhada, para uns quatro metros por baixo das máquinas. Era o guarda-costas de Molina! Antes de poder recuperar-se Wilson foi atingido com um potente soco no abdômen. Curvou-se ante a dor que sentiu levando outro murro nas costas que o levou ao chão. Estava tonto. De soslaio percebeu a aproximação do gigante tendo tempo de aplicar-lhe uma rasteira. O sujeito caiu pesadamente. Wilson levantou-se cambaleante tentando divisar sua arma perdida no escuro. Seu reflexo era tão rápido que nem percebeu quando sacara sua Smith&Wesson.44, só notou mesmo que estava com ela ao perdê-la. Subitamente sentiu-se segurado pelo ombro esquerdo e virado com força. O brutamontes de Molina já estava de pé desferindo-lhe novo soco, mas que o detetive conseguiu evitar contra-atacando com um golpe certeiro no rosto do seu atacante. O homem pareceu não sentir sua boca quebrada. Agarrou Wilson com um abraço de urso tentando quebrarlhe as costelas. O pânico tomou conta do policial ao sentir seu tórax comprimido e o ar de seus pulmões expelidos. No desespero

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da situação agarrou os cabelos de seu oponente puxando a cabeça dele e mordendo com muita força a orelha do gorila que sentiu dor e ainda soltou um grito medonho, mas não soltou Wilson. Os pés do detetive balançavam debatendo-se no ar. Compreendeu que aquele homem estava drogado. Afastou sua cabeça para trás ao máximo e deu uma cabeçada no homem acertando-lhe o nariz que só assim, em meio aos borbotões de sangue que lhe escorria, soltou Wilson deixando-o cair no chão. Wilson arfava em busca de ar, suas costas doíam a cada respiração, arrastava-se para longe de seu quase assassino tateando o chão em busca de alguma coisa que pudesse servir como arma ou de sua própria arma, mas esta era mais difícil de ser encontrada, pois na luta perdera a direção de onde ela havia caído. Encostou-se a uma parede vendo o inimigo mais ou menos recuperado apanhar uma barra de ferro de cima de uma das máquinas e vir em sua direção. Ron Wilson estava muito abatido, se fosse para ainda ter de brigar com Molina, que era do mesmo tipo físico que ele seria até fácil, mas fraco como estava, continuar brigando com aquele homem era suicídio. Quando o sujeito levantou a barra de ferro no ar para por um fim naquela luta, um estranho brilho iluminou o ambiente parecendo emitido da barra. O gigante tremia como uma marionete descontrolada para em seguida cair. Em sua ânsia de matar o policial não vira o cabo de alta tensão descascado que passava por cima de sua cabeça para alimentar as máquinas de costura em desuso. O alívio que Wilson sentiu foi tão grande que por alguns instantes até esqueceu-se de Molina. Um ruído despertou o detetive do torpor que havia tomado conta dele após a morte do cão de guarda de Molina. O próprio José Molina acabara de sair da fábrica fazendo um ruído no portão. Wilson foi até ao local vendo o chefe dos traficantes

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entrar na viatura policial, as chaves não estavam na ignição e o detetive deu mais um de seus enormes sorrisos. - Acabou Molina - bradou Ron advertindo o bandido. Os olhos de Molina correram em todas as direções em busca de um local que lhe permitisse a fuga. Saiu do carro em disparada, à base de uma velha caixa d’água passou a subir por uma escada de marinheiro em direção ao topo. Do lugar onde estava Wilson não podia ver por onde Molina poderia fugir mas ao aproximar-se da base da escada notou a passarela que ligava a cobertura da caixa d’água a um telhado vizinho, por ali seria uma fuga certa. O detetive passou a subir também a escada e quando já estava pela metade dela Molina chegava ao topo. As luzes dos carros de polícia que chegavam invadiam o local. Foi a vez de Wilson alcançar o topo. Molina já estava na beirada tentando caminhar pela estreita passarela. - Pare Molina - disse Ron Wilson - essa ponte é velha demais, pode ruir com o seu peso... é suicídio! José Molina Jr. parecia não escutar o brado de advertência do policial e até sorria diante de sua fuga bem sucedida sem que ninguém pudesse impedi-lo, parou um pouco olhando para baixo, seu sorriso se desfez numa careta de medo, seu pé resvalou numa fenda jogando seu corpo para frente, caiu de peito na passarela, seu peso e o impulso foram suficientes para quebrar o pedaço da ponte, lançando-o no vazio. Sua mão direita agarrou-se a uma borda, era seu único elo com a vida. Wilson fez um gesto de tentar entrar na ponte, mas nesse momento Molina soltou-se caindo para a morte sem soltar um gemido sequer. Era o fim da carreira criminosa de José Molina Jr.

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Quando Josh Duncan percebeu que sua mente havia voltado ao presente, encontrava-se perto do local onde a última vítima do Estuprador de Manhattan havia morado. Reconheceu o bar e lanchonete “Break Burger” parando nele para forrar o estômago. Viu a garçonete Linda Stacy apanhando algo que Josh notou ser uma bolsa e entrar no toalete Àquela hora da noite o local parecia tão enfumaçado que até um não fumante sairia dali com pelo menos o conteúdo de dez cigarros nos pulmões. Escolheu uma mesa vazia, geralmente as pessoas que frequentavam esse ambiente noturno preferiam o balcão para se instalarem deixando as mesas desocupadas. Duncan abriu seu maço de cigarros decidido a contribuir para o aumento da fumaça, no entanto lembrou-se de Wilson que estava se esforçando para largar o vício e abandonou a ideia. Outra garçonete veio até sua mesa com outro decote igual ao que Linda exibira alguns dias atrás, parecia ser o uniforme das moças daquele bar. Pediu cheeseburger, batatas fritas e uma cerveja Guinness Extra que era a que mais apreciava. A moça anotou tudo com um sorriso insinuador nos lábios. Linda Stacy saiu do toalete bem arrumada de saia jeans índigo, meia-calça, uma blusa com babados e um sobretudo por cima que lhe dava um ar de mulher misteriosa, o cabelo estava preso por um par de palitos japoneses de maneira sutil. Ela desapareceu na porta de saída. 8 Polaro preparava-se para sair. O violão, o livro, nada trazia-lhe a menor vontade de permanecer em casa. Fracassara como detetive, chegou até a admirar-se de sua façanha ao conseguir fazer o zelador deixá-lo ver o apartamento de Diana, porém isso de nada adiantara, absolutamente nada, a não ser contribuir para que se sentisse entediado aos extremos por não ter podido agir ou não ter

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como agir. Suas conversas com Harry Hardrige não o levavam a parte alguma também. Conhecia o psicólogo há muito tempo e sabia que era, a seu ver, o melhor que havia e esse conceito era estabelecido independente dos fatos de ele ser seu amigo íntimo ou de ter conhecido seu pai. Não queria lembrar-se agora do pai, perdera a mãe cedo demais e já não lembrava mais dela, ou melhor, nunca tivera nem noção da mulher que ela fora, mas seu pai estava sempre presente em sua memória. Abriu o armário embutido assustando-se ao ver o conteúdo despejar em cascata sobre ele. Fazia tempo que perdera o interesse pela arrumação do quitinete e as consequências eram o monte de entulho que se espalhava por toda parte, inclusive e principalmente no armário. Poderia até arrumá-lo, mas preferiu apenas revirar o bolo em busca de um agasalho, encontrou uma jaqueta de couro preto ideal para uma noite fria. Empurrou o restante com o pé de volta para o interior do móvel, fechando com esforço a porta. Allie jamais teria permitido que ele saísse com aquele agasalho, infelizmente a opinião dela não importava mais, depois de sete anos... melhor esquecer dela também. Engraçado, não se recordava de ter comprado aquela jaqueta, mas como comprava tanta coisa sem utilidade talvez a tivesse adquirido numa dessas vezes. Vestiu-a. Ao ver-se no espelho outra lembrança o assaltou, a de que o Estuprador usava aquele mesmo tipo de roupa, aquela lembrança causou-lhe náuseas, retirou o agasalho e jogou-o de lado. O sentimento que passara a nutrir pelo assassino daquelas moças era o mesmo que sentiu pelo assassino de Allie, um ódio crescente. Queria matá-lo, vê-lo na prisão ou indo para a cadeira elétrica ou pelo menos vê-lo preso pagando com a falta de liberdade os crimes que cometera. Mas como seria isso possível? Se recorresse à polícia ela não acreditaria nele, pois até Harry, seu amigo mais chegado desconfiava de sua sanidade. Não havia saída.

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Caminhou para o QST para tomar um pouco de ar, consultou o relógio, mais um pouco e seriam dez horas da noite. Náuseas... Polaro sentiu medo. Tonteira... Estava começando de novo... Seus olhos lacrimejavam diante da possibilidade de ver o que aconteceria em seguida. Veria outra moça ser assassinada sem poder ajudá-la. Polaro não percebeu quando caiu, apenas o chão colado ao seu corpo deu-lhe consciência disso. Outra visão. Duncan tomara sua cerveja após ter ingerido tudo que pedira e aguardava a garçonete com a conta. - Aqui está, Duncan - entregando o pedaço de papel impresso na máquina registradora. O detetive se perguntou como a moça sabia seu nome. - Leio jornais! - disse ela como que adivinhando o que ele estava pensando - Você e seu amigo são famosos! - Pelo menos é uma moça bonita que está dizendo isso, faz as palavras parecerem reais. - E são. Linda comentou que você esteve aqui com seu colega. - Linda? - É outra garçonete, a mais antiga daqui. Estava de saída quando você chegou. - Não quer sentar-se? - perguntou o policial mostrando-se amável. - Não, obrigado - ela estava encabulada - Nosso patrão não aceita esse tipo de coisa. - Entendo. - Bem... - Sim?

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- O dinheiro. - Ah, desculpe-me - Josh ficara distraído brincando com a pequena nota, retirou o dinheiro entregando-o à moça. - Fique com o troco. - Obrigado. Até logo - disse ela afastando-se. Josh Duncan a observou como havia feito com Linda, sabia agora o nome da moça que vira saindo por ocasião de sua chegada. Seu rosto não lhe parecia estranho, em sua profissão estava habituado a ver tanta gente que poderia estar confundindo o rosto daquela moça com um dos muitos que já vira. O maço de cigarros Pall Mall estava intocado. Apanhou-o e retirou o lacre despejando o conteúdo sobre a mesa. Tirou o papel de dentro, imaginou a paciência do assassino em dobrá-lo até atingir a forma de uma flor. Por certo a marca de cigarro do assassino não era aquela, o papel das flores era prateado, talvez de Carlton ou um outro qualquer. Como é que ele fazia para dar àquele simples pedaço de papel o formato de uma delicada flor? Surgiu-lhe a palavra, Origami, técnica japonesa de dobraduras de papel. De repente algo despontou-lhe à mente, como se o esforço em raciocinar recompensasse-lhe com outra lembrança, a de saber aonde havia visto o rosto de Linda antes, fora no álbum de fotos da produtora. Ficou lívido, ela poderia ser uma séria candidata à próxima vítima do Assassino da Flor, mas só a suspeita dele e de Wilson estivesse certa, se a moça tivesse a mesma especialidade das outras anteriormente mortas. Levantou-se meio assustado e foi até ao balcão à procura da moça que o atendera, ao avistá-la fez-lhe um sinal chamando-a. A garota desvencilhou-se de um sujeito alto e barbudo que tentava segurá-la pela mão e foi até ao detetive. - Sim? - disse ela recompondo o vestido. - Escute... - Sue Annie, mas me conhecem por Anny.

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- Escute Anny - Duncan sentia a excitação de uma descoberta, ou mais precisamente de uma intuição, sabia que ela de vez em quando falhava, no entanto não podia descartar nenhuma possibilidade - preciso saber onde mora Linda. - Por quê? - indagou ela enciumada. - Assunto policial, por favor diga logo. - Está bem, eu nunca fui a casa dela, mas passo pela frente todos os dias, fica no caminho de casa. - Onde é? - Você desce a rua à direita, anda, vejamos - pôs a unha no indicador da boca tentando lembrar algo - quatro quarteirões, dobra à esquerda e a casa dela fica no alto de uma loja na segunda esquina. - Tem certeza? - É claro que tenho. - Muito obrigado - disse puxando-a para si e beijando-a na testa. Existem coisas que se faz um dia por necessidade e depois se arrepende pelo resto da vida. Linda Stacy sabia disso tão bem que bufava de raiva ao pensar no que acontecera àquela tarde. Fora acordada pelo telefone que não parava de tocar. Olhou ao despertador e eram 15h20, puxou a mesinha de telefone e atendeu. - Alô! - disse ela aborrecida. - Linda Stacy? - Sim, quem fala por favor? - Um admirador seu! A voz do outro lado da linha era suave, jovem. - Como assim? - Vi seu filme, aquele em que você aparece... - O que você quer? - cortou ela já mais aborrecida ainda e dando sinais sensíveis disso. - Ver se você é boa mesmo na cama como na fita.

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- Como você conseguiu esse número? - Tudo é fácil quando se quer muito alguma coisa. Vi você no filme agora quero sentir o gosto dessa sua... Linda bateu o telefone com violência. Os malditos produtores do filme pornô do qual participara deram seu telefone para um tarado qualquer. Fizera o filme diante da dificuldade financeira em que se encontrava, mas não faria aquilo novamente, não se prostituiria nunca mais. Agora ao voltar para casa já quase 1h da madrugada, decidira acordar cedo para ir à companhia telefônica solicitar que trocassem o número de seu aparelho, ou seria melhor ir à produtora e pedir que rasgassem sua ficha? Não, não voltaria aquele lugar por nada desse mundo. Foi tirada de seus pensamentos pelo ruído de passos atrás de si. Sentiu um medo profundo, virou-se e viu um homem que caminhava em sua direção. “Meu Deus” - pensou ela lembrando-se do caso do estuprador que matara outra moça em algum lugar ali perto. Era difícil caminhar depressa com sapato alto, ainda assim Linda apressou-se. Abriu o portão que separava a calçada da escada que levava até ao andar superior quando viu a mão enluvada impedir que ela o fechasse. A moça correu para a escada tropeçando no primeiro degrau perdendo um lado do sapato. Chegando ao topo livrou-se do outro arremessando-o contra o estuprador, ela agora tinha certeza que era ele. Era um corredor com um metro de largura com quatro portas, um para cada apartamento e uma janela ao fundo dava para um beco. Tanto foi o nervosismo que Linda Stacy deixou a chave cair diante da segunda porta que era a sua. O homem aproximouse dela e disse: - Pegue a chave e abra a porta!

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Era a mesma voz do telefonema daquela tarde, mas o homem disfarçava-a de tal modo que pareceu gutural. Linda abaixou-se, apanhou a chave, cerrou a mão com força e desferiu um soco com toda a sua força nos genitais do sujeito que se curvou diante da dor. - Sua puta fedorenta, vou acabar com você! A escuridão parcial do corredor era suficiente para impedila de ver o rosto do sujeito. Apesar de machucado seu corpo barrava a saída e tentar abrir a porta era perda de tempo. Ela não pensou duas vezes, correu para a janela e sentou-se na beirada e pulou para o beco. Não chegou a ferir-se, mas sua meia-calça rasgou-se ao contato com o lixo entulhado. Quando ensaiava os primeiros passos rumo à saída do beco, sentiu as mãos do sujeito agarrarem seu sobretudo. Ela não conseguia gritar, tirou a peça da roupa fugindo mais um pouco quando ele a derrubou. Sua boca chocou-se com o asfalto, antes que pudesse fazer alguma coisa o assassino sentou-se sobre ela imobilizando-a. - Poderia ter sido diferente, Linda, eu poderia ter sido carinhoso com você mas agora não terei a menor piedade. Colocou a mão esquerda no pescoço dela pressionando o rosto da moça contra o chão, levantou-lhe a saia, rasgou a meiacalça e a calcinha dela e começou a remexer-se tentando abrir a própria calça. Linda sentiu quando ele encostou-se nela, mas a pancada que levara o obstruía à concretizar seus intentos. - Você pensa que isso vai me impedir, não é? - perguntou ele agressivo - só que esse local é escuro e deserto, vamos ficar aqui até eu me sentir melhor. Ocultos pela escuridão ninguém os veria ali, mais alguns minutos e tudo estaria terminado para Linda Stacy.

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O detetive caminhava a passos largos para o portão que poderia ser o do prédio da garçonete. O Plymouth ficara estacionado do outro lado da rua. O portão estava aberto. Como era escuro ali, ao iniciar a subida tropeçou em algo, tentou ver o que era, mas não conseguiu, agachou-se e o pegou, um sapato feminino, não sabia se pertencia à garçonete ou não, mas ao encontrar o outro lado do par, teve certeza! Tento a primeira porta do corredor escuro... fechada. Encostou o ouvido a ela, nenhum ruído. A outra porta, nada. Quando ao chegar à última não ouviu nada, sentiu o coração bater-lhe tão forte no peito que quase ouviu os baques. Virou-se. A janela! Não havia ninguém no beco e mesmo que houvesse a escuridão oferecia muitos lugares para se esconder. Um pequeno brilho chamou-lhe a atenção, tentou ver o que era, parecia que alguém colocara ou movera alguma coisa que refletiu a luz do luar. O detetive forçou a visão na direção do brilho. Então Josh Duncan ouviu o grito! Linda percebeu que o homem estava se recuperando, viu-o colocar uma faca em frente ao seu rosto que estava voltado para a esquerda, como fez isso com a direita e a sua mão esquerda estava na parte posterior do pescoço dela, ao recolher o braço esbarrou com os palitos que pendiam do cabelo da moça derrubando um deles perto de sua mão direita. - Viu só - disse ele triunfante - falei que nada me impediria. Linda segurou o palito de osso com força, reuniu sua coragem, arqueou o braço desferindo uma estocada com o objeto que se enterrou na coxa do Estuprador e este soltou um grito. A dor o fez esquecer-se da moça o bastante para que ela escapasse debaixo dele.

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- Desgraçada! - disse ele arrancando o palito da perna. Assustada, Linda não conseguia correr, no entanto ficou em um lugar em que a luz prateada da lua a iluminou o bastante para que um par de olhos verdes na janela do fundo de seu prédio a visse. O Estuprador aproximou-se dela olhando ao redor em busca da faca. Um barulho de latas de lixo rolando tirara momentaneamente sua atenção de sua vítima. Alguém saia do meio do lixo vindo em sua direção correndo... um homem. Procurou novamente pela faca, porém a garçonete vendo-a primeiro chutou-a para longe de si. O homem fitou-a por um momento e voltando-se para o fundo do beco pôs-se em fuga. Duncan chegou até à moça que não pôde reconhecê-lo na escuridão. - Tudo bem com você? - Estou viva - disse ela - esqueça-se de mim, pegue o cara. O detetive hesitou um pouco, mas decidiu acatar o conselho corajoso da garota. - Fique aqui, está bem? Sou policial. E correu a toda atrás do fugitivo. No fundo do beco o assassino tentava levantar a tampa metálica de um bueiro. Conseguiu! Ao avistá-lo, Duncan com sua arma na mão ameaçou: - Pare ou atiro. Polícia! O assassino lançou-se no bueiro. Duncan fez o mesmo sem pensar na possibilidade do assassino estar lhe esperando com um punhal ou uma arma. Apenas agiu. Se lá fora era escuro imagine ali dentro, assim que os olhos se acostumam, no entanto, pode-se enxergar com uma ligeira perfeição. Era um túnel circular de aproximadamente quatro metros de diâmetro, com uma calçada de cinquenta centímetros de

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cada lado e entre elas um rio de dejetos fétidos numa água que competia de igual para igual com o mau cheiro. Duncan caíra no meio de um líquido ficando imerso até à cintura. Viu o sujeito tentando subir na borda. - É melhor você ficar parado, vou atirar se fizer qualquer coisa. Ele parou. Olhava para Josh, mas não via o rosto do policial, o que o confortou, pois o policial não poderia ver-lhe o rosto também. Pisando em algo escorregadio Duncan desequilibrou-se, o assassino saltou sobre ele agarrando-lhe o braço e a arma voou mergulhando na água. Libertando o braço esquerdo Duncan preparou um soco cuja trajetória foi logo interceptada pelo outro. Vendo isso tentou acertar-lhe com o joelho entre as pernas, mas novamente o assassino foi mais rápido, ainda mais com a água atrasando-lhe o movimento. Josh levou um soco no queixo desequilibrando-se e caindo na água, as mãos do estuprador buscaram-lhe o pescoço empurrando-o para o fundo. Segurou-se nos braços dele ao sentirse afogando, virou-o com força invertendo as posições. Um pé encostou-se a seu peito jogando-o para trás. Viu o homem levantar-se, alcançar a borda e subir nela, o detetive fez o mesmo. O Estuprador correu penetrando mais ainda na escuridão. Duncan o seguiu, mas já era tarde para pegá-lo. Voltou frustrado ao local por onde caíra. Aparentemente não havia por onde sair, entretanto divisou a escada constituída por barras de metal dobradas em “U” presas à parede circular. Linda esperava no mesmo lugar em que o policial a deixara. - Conseguiu escapar? - perguntou ela. Josh fez que sim com um movimento de cabeça.

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- Ali está a faca que ele deixou cair - disse ela apontando o objeto na calçada - acha que pode ter alguma impressão digital? - Duvido. Ele é muito esperto, usava luvas. - Você está horrível - fez uma careta de nojo para ele moro logo ali... acho que você sabe disso, não quer tomar um banho? - Não se incomode - ele estava decepcionado com sua atuação. - Faço questão - insistiu ela - vamos. Ele olhava perdidamente para a faca. Ela rasgou um pedaço do trapo a que fora reduzida sua roupa e apanhou a faca com ele envolvendo o objeto. - Vamos? - disse ela. Apesar de em forma de pergunta era uma afirmação. - Você parece tão calma! - Já passou tudo, prefiro ficar calma, a hora do desespero já terminou. Caminharam em seguida silenciosos para a casa dela. 9 O sono pegara a ambos de surpresa, nenhum dos dois notou aquele que adormeceu primeiro, ali deitados abraçados um ao outro, a única coisa que lhes importava era o calor dos corpos que os acalentava e transportava para um mundo de sonhos. Lisa e Ron estavam apaixonados. Naquela idade em que se encontravam, o sentimento não era recebido como uma aventura a ser vivida com intensidade, na verdade precisavam de companhia para afugentar a solidão diária de quem já lutara muito na vida carregando seus próprios fardos. Pareceu a eles a oportunidade certa de dividir segredos e costumes, retornando a viverem de verdade. - Ron?

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ele.

- Sim. - Está acordado? - Não, quem está falando é meu subconsciente - brincou

- Sobre o que aconteceu entre nós... hoje... você sabe disse sem jeito. - Sim - assentiu. - Bem... eu não costumo fazer isso sempre... com outros... - Escute - interrompeu ele - sei o que você vai me dizer que não costuma trazer outros homens ao seu apartamento para que eu não pense que você é uma mulher vulgar. Antes de você falar sobre isso ou continuar dizendo alguma coisa, quero que você saiba que não importa. - Como assim? - Quero dizer que não importa o que sucedeu antes, estamos juntos agora, não estamos? O que fizemos hoje não é pra mim algo corriqueiro, é muito importante, quero continuar com você, desejo viver com você mais do que uma simples noite. Quero que você me conheça melhor para podermos ficar juntos, entende o que eu digo? Lisa não sabia o que dizer, obviamente estava fascinada com as palavras de Wilson. Era tudo bem diferente para ela, não, diferente não era a palavra, era tudo maravilhoso, pretendia dizer algo, mas não sabia o quê. - Entendo, é claro que entendo! Abraçaram-se e adormeceram novamente. Finalmente Wilson encontrara alguém que preenchesse o vácuo deixado por Darlene, sua primeira esposa. Em seus sonhos o policial viu as duas mulheres juntas, quanto mais forçava os olhos para enxergar naquela névoa que toldava sua visão, via melhor à Lisa que Darlene que ia gradativamente desaparecendo. Apareceu repentinamente em um lugar todo branco e com pessoas vestidas de branco. Algumas delas transportavam Darlene

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em uma maca com rodinhas e ela sorria confiante para ele. Tudo sairia bem, afinal era apenas um tumor pequeno, o médico disse que não havia possibilidade de ser fatal. A cirurgia, porém, provou que o cirurgião havia se enganado. A pequena cirurgia, como a chamou o doutor foi muito demorada e Wilson ali sentado, na sala de espera daquele imenso hospital, suava tudo o que podia de tanta tensão. O médico surgiu enxugando a testa - Removemos o tumor - dizia ele - mas sua esposa teve problemas respiratórios... ela não resistiu - completou. A sirene passou a tocar enquanto Wilson era segurado por dois enfermeiros após ter socado sucessivas vezes o médico. A sirene tocava... cada vez mais alto... Acordou-se estranhando o lugar onde estava. Sua mente levou alguns segundos para lembrá-lo de que dormia ao lado de Lisa, o telefone tocava insistentemente a sua direita. - Alô - disse entre sonolento e assustado por ver-se tirado de um pesadelo. No outro lado da linha a voz de Duncan soou clara. - Ron, desculpe ligar para aí, mas precisava falar logo com você. - Como você descobriu que eu estava aqui? - perguntou Wilson sem entender como o amigo o havia achado, não que desconfiasse da discrição de Josh, era apenas pela curiosidade. - Liguei ao Bureau e pedi o número de Lisa, sabia que você se encontraria com ela mais cedo ou mais tarde, ligando pra sua casa o telefone não atendia, conheço seus costumes, acertei na mosca ligando pra casa de Lisa. Bem amigo isso não vem ao caso, o que tenho pra lhe dizer é mais importante. - Então vá logo ao assunto - disse Ron Wilson que além de perceber a urgência na voz de Duncan, também sabia que o companheiro só ligaria para casa de Lisa àquela hora da madrugada se fosse para dizer algo realmente importante e urgente.

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- Houve mais uma vítima do Estuprador de Manhattan, Ron. - disse Duncan sem mais delongas. - Oh meu Deus! - exclamou o outro desanimado. - Calma - replicou ao ver a reação do colega de trabalho ela sobreviveu! - Hein?! - A moça sobreviveu. Estou na casa dela neste momento, acabei de tomar um banho e agora quem está no banheiro é ela. - Por que você tomou banho aí? O que está acontecendo? Vamos lá Josh, conte tudo sem fazer suspense. Duncan então relatou minuciosamente os acontecimentos daquelas últimas horas evidenciando os pontos que achou que traziam uma maior iluminação ao caso, como o fato de a moça já ter sido uma atriz pornô, a altura aproximada do assassino que segundo ele seria 1,82m, extremamente forte e ágil, a faca que deixou cair no local da tentativa de estupro, e outros ainda. De vez em quando Josh indagava se seu amigo estava na linha, pois este permanecia em silêncio absoluto escutando a história do outro. Quando o relato chegou ao fim o detetive Duncan estava cansado de tanto falar. - Você acha que eu devo ir pra aí agora? - perguntou Wilson. - Creio que não. Realmente ainda não tive a oportunidade de falar com a moça sobre o que aconteceu. Pedirei a ela que me dê os detalhes segundo a óptica dela e verificarei se há possibilidade dela o reconhecer ou se tem algo de revelador para nos dizer. Ao desligarem Wilson permaneceu remoendo os fatos com interesse. Frequentava algumas vezes o “Break Burger” e até notara certamente a garçonete Linda Stacy, jamais pensou que ela fosse uma vítima potencial do assassino e muito menos que se acontecesse ela sairia viva. Contentou-se em saber que ela fora forte o bastante para resistir ao Estuprador e de ter a coragem

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suficiente de mostrar destreza diante de uma situação desesperadora. Lisa Chambers dormia pesadamente ao seu lado e ele também adormeceu sob o aconchego daquele corpo macio e quente que ela oferecia. Duncan devolveu o fone ao gancho enquanto via Linda Stacy sair do banheiro enrolada em uma toalha felpuda azul clara e o cabelo em outra toalha menor e da mesma cor amarrada em forma de turbante dirigir-se a ele. - Localizou seu amigo? - perguntou ela com aqueles olhos acinzentados fixando-se nele. O banho quente fizera com que o branco dos olhos dela ficassem levemente avermelhados, mas nem por isso pareceram menos bonitos. - Sim. - Contou-lhe tudo? - Só até onde sei. - Sua roupa está na máquina, coloquei um pouco de amaciante de roupas perfumado, estava com um mau cheiro horrível do esgoto onde caiu. Josh lamentava ter que conversar sobre o que aconteceu com ela, era muito necessário, no entanto, sabia que o assunto não podia esperar por isso perguntou a ela: - Podemos falar sobre o que aconteceu, senhorita Stacy? - Para começar chame-me de Linda, está bem? - olhou-o pesarosa - temos mesmo que falar sobre isso não é? - Infelizmente sim, mas - retificou ele - não precisa ser agora. Podemos deixar para quando você estiver restabelecida. - Já estou restabelecida. - Então quando você se sentir mais disposta. Linda virou o rosto para um quadro na parede e Josh fez o mesmo procurando ver o que os olhos dela buscavam, a pintura não dizia nada para ele, as cores vermelho e preta predominavam

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trazendo imagens que só a mente de quem pintou poderia traduzir. A moça voltou-se rapidamente para ele e riu do roupão amarelo que o investigador usava, era o que mais se adequava a ele das roupas que ela possuía e mesmo assim era tão curto pra ele que o tornava uma figura hilariante. - De que você está sorrindo? - perguntou ele sorrindo também só que de encabulação. - Da roupa que você está usando. Ele corou. As feições dela tornaram-se preocupadas subitamente. - Será que corro perigo? Isto é, será que ele - referia-se ao estuprador - vai voltar para se vingar. Nos filmes o assassino sempre volta para matar a vítima que sobreviveu com medo de que o reconheça e leve a polícia a prendê-lo. - Creio que sim, mas amanhã arrumarei alguém para ficar ao seu lado até que o Assassino da Flor seja preso. - Assassino da Flor? - É como costumo chamá-lo devido algumas evidências deixadas por ele com suas vítimas. - Que evidências? - Escute Linda, não posso revelar isso, e na verdade eu é que tenho de fazer algumas perguntas a você e não você a mim, não é mesmo? - Ok. Desculpe-me. - Posso fazê-las? - Fazer o quê? - As perguntas! - É claro! Josh Duncan pareceu tomar fôlego e fez a indagação inicial de seu pequeno interrogatório. - Você seria capaz de reconhecê-lo? - Não. Estava muito escuro, em nenhum momento tive a oportunidade de vê-lo claramente. Senti apenas suas roupas,

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grossas, vestia-se como motoqueiro, a jaqueta e a calça eram feitas do mesmo material brilhante... - Couro encerado? - Acredito que sim. Usava luvas também, isso você notou. Duncan fez menção de articular outra pergunta, contudo ela o deteve com um gesto de mão. Levantou-se indo à cozinha para desligar a máquina de lavar. Ao voltar trouxe duas doses de uísque com gelo em copos de vidro transparente oferecendo a ele sem perguntar se ele gostava ou não da bebida. O detetive agradeceu. Ela voltou ao assunto. - A melhor forma de esclarecer tudo que houve é contarlhe como tudo aconteceu. Josh balançou a cabeça afirmativamente. Da melhor forma que pôde, Linda Stacy narrou todo o conteúdo de sua versão dos acontecimentos, iniciando pelo telefonema à tarde e indo até a cena em que Duncan entrou em ação. As palavras da moça eram carregadas de calma e sensatez digna de um escritor que ao policial causou grande admiração. Em algum ponto da conversa, após Linda ter acabado o relato de sua aventura grotesca com o Assassino da Flor, Duncan viu-se obrigado a inquirir sobre a vida dela como atriz pornô. - São incríveis as coisas que a grande cidade de Nova Iorque nos obriga a fazer para a nossa sobrevivência, Josh. Quando saí de Plattsburgh tive a intenção de vir estudar e trabalhar aqui. O emprego de garçonete era visto como temporário, mas assim mesmo não dava pra grande coisa, e mesmo trabalhando duro, não é fácil. “Foi então que meu irmão mais novo e único precisou fazer uma operação, ele morava com minha tia, mas ela não tinha condições de pagar as despesas. Uma amiga minha perguntou se eu não queria fazer uma ponta num filme pornô e ganhar o dinheiro para custear o tratamento. Foi a coisa mais ridícula que fiz em toda a minha vida.”

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A garçonete do “Break Burger” calou-se. O arrependimento que sentia naquele momento era a pior dor que já havia enfrentado, seus olhos brilhavam cheios de lágrimas prestes a serem derramadas. Josh Duncan foi até ela sentando ao lado, acariciou os cabelos molhados dela sentindo o suave perfume que usava. Linda deitou sua cabeça nas pernas do policial retirando a parte da toalha que cobria uma pequena parte de seu cabelo. Wilson acordou às 8h30 percebendo que Lisa não estava ao seu lado. Á essa hora Duncan já deveria estar na sede do Bureau de Homicídios esperando-o impacientemente. Vestiu-se rápido observando se sua arma estava no lugar e a carteira com o distintivo dourado também, pois na noite anterior despira-se tão ligeiro que mal sabia onde fora parar suas coisas. Havia um recado no espelho do banheiro escrito à batom dizendo que ao vê-lo dormindo tão profundamente Lisa não tivera coragem de acordá-lo ao sair. Saiu do elevador apressado, apanhou seu carro no estacionamento e dirigiu-se à Homicídios. Um homem sentado na calçada lia a reportagem do Washington Post sobre a vítima que sobrevivera ao ataque do Estuprador de Manhattan. Seu corpo alto e robusto parecia estar há horas ali esperando. Josh Duncan cumprira sua promessa dando a Phil Brouke os detalhes da reportagem sem, no entanto, revelar o nome da moça. O estranho sujeito fechou o jornal ao ver a Ferrari vermelha de segunda mão do investigador Ron Wilson afastar-se e levantou-se caminhando na mesma direção, entrou numa cabine telefônica próxima e discou um número.

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- Ele passou a noite com ela, acho que são namorados. disse ele ao ouvir a voz que atendeu. - Quer dizer então que “nuestro amigo tiene” uma namorada. Não é mesmo uma gracinha? - A voz de Cortez era sarcástica. O informante preferiu ficar calado, deu em seguida o endereço da perita Lisa Chambers e desligou o telefone. Esperou alguns segundos verificando se não havia ninguém fora da cabine querendo usá-la. Não havia. Fez outra ligação. 10 Mark Dykstra estava feliz por ter conseguido descobrir algo tão bom em tão pouco tempo para seu chefe e ansiava em poder dizer isso a ele. - Esse assassino tem que ser apanhado o mais depressa possível - dizia o secretário da campanha para reeleição do prefeito - Esse maníaco - continuou - anda aterrorizando toda Manhattan e os investigadores mais eficientes do Bureau de Homicídios de Nova Iorque se mostram incapazes de apanhá-lo. O ar da sala do chefe Lieberman parecia estranhamente carregado, a atmosfera tão ruim era criada pela presença do patético secretário tentando impor sua vontade num campo que fugia por completo à esfera de seus conhecimentos, que aliás, iam de um mero entusiasmo na campanha do prefeito que, logicamente, traria a ela nada mais, nada menos que a garantia de seu emprego por algum tempo a mais. O chefe Lieberman, por outro lado, mostrava-se calmo e seu olhar inusitadamente ia de Duncan para Wilson e vice-versa, nunca deixando de mostrar-lhes seu sorriso conciliador e até disfarçadamente zombeteiro sempre que as palavras do magro, calvo e quase cego - usava óculos com aros de metal e lentes grossas que tornavam sua fisionomia cômica - secretário se tornavam chatas e desprezíveis.

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Apesar de Duncan parecer nervoso e impaciente a ponto de estar prestes a explodir com aquele homem, foi Wilson quem de repente pronunciou-se. - Preste atenção Sr. - disse o policial calmo e divertidamente. - O Sr. nos disse que precisava conversar conosco acerca do andamento do caso do Estuprador. Deixamos nossas tarefas, que por acaso poderiam estar nos levando à alguma solução, e viemos ouvi-lo. Já lhe dissemos tudo que temos feito e o Sr. vem querer nos passar um sermão a respeito de segurança pública? Não vamos mais perder nosso tempo aqui a não ser que o Chefe Lieberman assim o recomende. O homenzinho estupeficou-se diante da insolência do detetive sem saber o que fazer ou o que falar diante daquela atitude inusitada, olhou para o chefe da Homicídios em busca de ajuda, contudo, este limitou-se com um gesto de mãos a dar liberdade para que os dois investigadores se retirassem. Duncan saiu por último batendo a porta, que embora sem utilizar muita força, fez um ruído forte. Ao verem-se libertados da situação difícil por que passaram, sorriram da cara que o secretário fizera de tanto espanto ante as palavras de Wilson. Meia hora mais tarde Josh Duncan e Ron Wilson a bordo de uma viatura policial conversavam. - Às vezes sinto vontade de esquecer tudo só pra ver esses engomadinhos se ferrarem - disse Duncan. - Vamos esquecer isso. Temos fortes indícios do assassino, pegá-lo agora é uma questão de tempo - replicou Wilson cheio de esperança. - Como assim? - Duncan imaginava o que se passava na mente do companheiro, mas não suportava o fato de se fazer de desentendido preferindo que o amigo lhe fizesse as revelações devidas.

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- Vamos vigiar a moça dia e noite! O assassino não deve estar certo se ela é capaz de identificá-lo ou não, e para ter a certeza certamente tentará matá-la, quando ele tentar - Wilson fez um gesto com a mão como quem pega alguma coisa no ar apanhamos ele! - E se ele não fizer isso? - É claro que fará. Não sei como, mas a mente criminosa dele não sossegará se não fizer isso. O carro se encontrava estacionado próximo ao beco onde a última tentativa do Estuprador fora frustrada. No outro quarteirão em frente ao prédio de Linda Stacy outra viatura policial com dois investigadores montava guarda. O ruído de estática do rádio do carro onde Duncan e Wilson estavam foi interrompido pelo chamado que um colega lhes enviava. Wilson retirou o aparelho e apertou o botão transmissor dizendo que estava à escuta. - Duncan? - indagou a voz. - Não. Wilson falando. Câmbio. - Olá Wilson, aqui é Gibbs, descobri algo por acaso e creio que pode ajudá-lo muito em sua investigação. É sobre Luís Polaro. Wilson tampou o aparelho mesmo sabendo que Gibbs não poderia escutá-lo e disse a Duncan: - Comentou alguma coisa com ele sobre o Polaro? - Lógico que não! - Como é que o Gibbs sempre está a par de tudo? apertou o transmissor novamente: - Prossiga. - Eu sei que você deve estar se perguntando como eu soube dele não é mesmo? Vocês falavam muito alto hoje na sala do Lieberman e eu apenas ouvi. Mas como eu estava dizendo, descobri algo sobre o Polaro. Quando vocês mencionaram o nome dele lembrei que já o havia escutado antes e não foi com relação aos bens que herdou do pai.

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- Continue, Stain, estou ouvindo. - Em 1980 a moça que foi estuprada era a namorada dele e não adianta desconfiarem dele, pois possui um álibi perfeito, nem se encontrava na cidade naquela ocasião. - Como você descobriu isso, Stain? - Eu era iniciante na força policial na época, era patrulheiro, minha viatura foi uma das quatro que se encontravam na área quando recebemos o aviso pelo rádio. - Que mais? - É só. - Obrigado, Stain. Realmente isso pode ser de muita importância, não sei como lhe agradecer. - Que é isso, Ron? Amigos são para essas coisas. Qualquer dia quem sabe não é você que me presta um favor? Boa sorte! Os dois investigadores se olharam, muita coisa poderia ser imaginada a partir daquela informação e nenhum dos dois queria iniciar as suposições, quando finalmente decidiram falar alguma coisa, iniciaram ambos ao mesmo tempo, riram e Duncan perguntou: - Acha que ele é o Estuprador? - Não creio nessa hipótese. Prefiro imaginar que ele ao ler sobre o Assassino nos jornais decidiu averiguar. Você não faria o mesmo no lugar dele? - Talvez. - É claro que isso não impede de irmos até à casa dele para fazermos algumas perguntas. Diga-me, Josh, a moça, Linda Stacy, disse que o atacou com um palito de cabelo, sabe se isso o feriu mesmo? - Quando eu os encontrei o assassino gritava, Linda disseme posteriormente que foi devido à investida dela com o palito. Estava, no entanto, deitada de bruços e não pôde divisar se realmente o feriu e por isso ele gritou ou se foi apenas um arranhão que o fez irar-se e gritar.

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- Isso pode ser importante, não acha? - Com efeito. Sem mais perda de tempo em considerações, Duncan ligou a ignição dirigindo-se ao endereço que possuía anotado em sua agenda da casa de Luís Polaro. Durante a viagem traçaram breves comentários sobre o fato de um rapaz rico como Polaro morar só em uma quitinete tendo uma mansão a sua disposição. Wilson falou alguma coisa sobre a excentricidade dos ricos aludindo à vida do rapaz. Polaro permaneceu desmaiado por muito tempo, mas não percebeu isso, aliás, no estado em que se encontrava só conseguia sentir dores que eram o efeito de sua última visão. Em uma determinada hora sentiu-se carregado por mãos fortes que o fizeram sentar-se em sua poltrona. Aos poucos a escuridão em que se encontrava foi banida. Seus olhos abriram. Sua poltrona estava voltada para o terraço onde havia um homem de terno e sobretudo o analisando, encostado ao guarda-corpo, a vizinhança ou a altura em que se encontrava. - Vejo que acordou Sr. Polaro! - quem falou foi outro homem que até então Polaro não havia notado, estava à sua esquerda contemplando-o e usava o mesmo tipo de roupa que o outro só que de cores diferentes. - Quem são vocês? O que estão fazendo em minha casa? conseguiu inquirir Polaro sentindo uma leve dor no canto da boca que provavelmente adquiriu ao cair. - Polícia. Bureau de Homicídios! Meu nome é Ron Wilson e este - apontou para Duncan - é meu colega o detetive Josh Duncan. Podemos fazer-lhe algumas perguntas? - Por quê? O que está havendo? - indagou sentindo o coração palpitar com força. - Onde passou a noite? - foi Duncan quem perguntou.

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- Aqui mesmo, não saí de casa. - O que o Sr. estava fazendo outro dia passando-se por repórter no prédio onde morava Diana Stegron? Polaro não sabia o que dizer, sentia um terrível medo de dizer qualquer coisa, pois os investigadores estavam visivelmente desconfiados de alguma coisa. Não havia saído embora pudesse dizer toda a verdade acerca de suas visões, mas talvez tudo o que conseguisse seria atrair mais suspeitas sobre si. No entanto que outra saída haveria além de dizer toda a verdade? Poderiam submetê-lo ao detector de mentiras e comprovariam que ele falava a verdade. Havia lido, não obstante, que esse teste não possuía valor judicial, então poderia assim mesmo ser indiciado como suspeito pelo assassinato das pobres moças. Poderia dizer que foi ao apartamento de Diana na esperança de encontrar algo que relacionasse a morte de sua namorada com a de Diana. Talvez isso também fosse muito suspeito... - Ouviu a pergunta Sr. Polaro? - indagou novamente Duncan. - Sim. Desculpe-me. - E então - insistiu. - Bem - lembrou-se de oferecer uma bebida para eles ou dizer que sentassem e ficassem à vontade para poder ganhar tempo, mas os investigadores recusaram. - Senhores - disse por fim munido de toda coragem que pôde cavar evocando os sentimentos mais heroicos que possuía tenho algo de muito importante para revelar-lhes: tenho sido testemunha ocular de todas as mortes provocadas pelo Estuprador de Manhattan! Os detetives ficaram aturdidos com aquela afirmação e ao mesmo tempo incapazes de acreditar por completo nela. Foi Wilson que recuperou a compostura:

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- Você está dizendo que presenciou os crimes do Estuprador de Manhattan? - O policial não pôde esconder a incredulidade estampada em seu rosto. - Isso mesmo! - Você estava presente quando as mortes aconteceram? - De certa forma. - Como de certa forma? Senhor Polaro, não estamos aqui para brincadeiras - disse Wilson impacientando-se - se tem algo a nos dizer, por favor, vá direto ao assunto, essas capitulações são redundantes demais diante da seriedade do que está nos dizendo e não estamos dispostos a jogar tempo fora. Polaro atemorizou-se. Que besteira fizera em ter começado a dizer a verdade, estava na cara que aqueles homens não tinham a menor intenção de acreditar nele. - Não vai continuar falando, Sr.? - inquiriu Duncan. - Tudo bem. Sei que é um pouco fantástico o que vou falar, mas asseguro-lhes que é concebível e verdadeiro. - Na noite do assassinato de Elizabeth Glenhardt, que como vocês devem saber foi a primeira vítima, senti estranhas sensações. A princípio pensei que fosse apenas náuseas ocasionadas por alguma coisa que comi ou bebi, entretanto não era só isso... Polaro continuou falando, relatou toda a experiência que tinha vivido nas últimas semanas fornecendo detalhes que dessem a maior veracidade às suas palavras. A cada revelação detinha-se ante o olhar ora cismado ora atônito dos policiais, cada um reagia à sua maneira, Duncan entrou fechando a porta de correr que dava acesso ao terraço, pois o tempo fechara e uma pequena precipitação de neve caía enquanto Wilson limitou-se a sentar no carpete cruzando os braços sobre o tórax. Ao final de sua narrativa Polaro deteve-se esperando que aqueles homens sisudos se manifestassem.

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- Por que não nos procurou e contou tudo isso antes? indagou Duncan. - Tive receio de que suspeitassem de mim. Senti muita vontade de fazer alguma coisa por isso fui ao apartamento de Diana Stegron. - E você sentiu essas sensações antes da morte de sua namorada em 1980? Polaro assustou-se. “Então eles já investigaram toda minha vida antes de virem aqui.” - pensou. A simples menção a esse fato o fazia suar e inquietar-se. - Não. Realmente não senti nada... acho que estava em Long Island naquela época... faz tempo... - Bem Sr. Polaro - disse o detetive Duncan - há de concordar conosco de que sua estória é mesmo fantástica, como o Sr. mesmo disse, e como sendo ela baseada em fatos improváveis fica muito difícil para nós crermos nela. - Mas eu posso fazer qualquer coisa... isto é, posso ficar à disposição da polícia para quando vier a acontecer de novo possamos evitar. - Como? Segundo nos falou sua visão parece acontecer simultaneamente as mortes e que você só volta a si quando termina. Isso torna impossível para nós nos anteciparmos ao Estuprador. As palavras do detetive pareceram abalar a Luís Polaro, não havia ainda analisado a situação por esse prisma e a possibilidade de provar que suas visões eram reais tornou-se mais remota ainda, sua ideia de revelar àqueles homens o que havia revelado. Certamente que ele agora encabeçava a lista dos suspeitos, se é que havia algum outro. - Diga Sr. Polaro... - Por favor, vamos acabar com essa formalidade sem sentido, chamem-me pelo meu nome e dispensem o Sr.

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- Então... - prosseguiu Wilson - Polaro, essa noite você teve alguma visão? - Infelizmente sim - disse fitando o carpete como que tentando localizar algum ponto fixo nele - já encontraram o corpo? Sem responder Wilson levantou-se como se aquela indagação o houvesse impulsionado. Um pequeno sinal foi trocado com Duncan e ambos foram até a porta da quitinete dizendo a Polaro que esperassem um pouco. Sabiam que aquela atitude não era nada profissional, porém o assunto suscitava tal urgência que se sentiram compelidos a conversarem em particular. Ao passarem pela porta do armário embutido, a fivela do sobretudo de Wilson engatou incidentalmente no pequeno puxador dourado escancarando-a. Polaro não deixou de surpreender-se ao ver o olhar de Duncan fixo na jaqueta de couro negro. O detetive virou-se o encarando: - Polaro, você tem motocicleta? - Não. - Costuma usar esse tipo de roupa? É um pouco difícil alguém que não seja motoqueiro usar esse artigo, a não ser que você seja punk ou goste de frequentar pubs. Era mais uma afirmação do que uma indagação e Polaro viu-se surpreendido sem saber o que dizer. O modo como os detetives se olharam após ele ter feito a pergunta sobre o corpo da outra vítima, era constrangedor. Estava nauseado daquela situação, parecia que os dois homens esperavam qualquer chance para puxar o tapete sob seus pés incriminando-o. Não podia permanecer passivo, teria que nos próximos minutos lembrar-se de algo ou até mesmo fazer alguma coisa que fizesse a balança pender um pouco para o seu lado. - Achei-a bonita e comprei-a. A bem da verdade Sr. Duncan... - Duncan - corrigiu Josh.

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- ... Sr. Duncan, que não é preciso ser motoqueiro, punk ou frequentador de bares noturnos para gostar de vestir uma jaqueta dessas. - Já a usou alguma vez? - disse cheirando a jaqueta - tem cheiro de nova. - Ainda não. Comprei-a recentemente - disse Polaro levantando-se para recolocar as coisas de volta. Os investigadores se afastaram e trocaram palavras em sussurros. - Quero lhe dizer algo, Josh - disse Wilson. - O que está esperando? - Esse rapaz tem chances quilométricas de ser o homem que procuramos e se for creio que não será nada difícil pormos ele atrás das grades, não obstante, temos de convir que há uma parcela de chance dele estar falando a verdade, embora não seja nada fácil acreditar e muito difícil provarmos que a estória dele é verdadeira. Duncan coçou a barba que não pudera raspar naquele dia sentindo um leve incômodo. Wilson prosseguiu: - Para isso precisamos botar alguém na sombra dele dia e noite até podermos apurar tudo. - Acho uma boa ideia! - concordou Duncan - O que você achou do fato dele ter perguntado sobre o corpo da moça? Wilson olhou na direção de Polaro que nesse instante escorava o corpo na porta do armário para fechá-lo. Segurou no ombro do companheiro como se estivesse um pouco cansado e ao voltar a falar pressionou levemente o polegar, uma atitude peculiar de Wilson. - Das duas uma: ou ele teve uma visão errada, isso no caso dele realmente possuir essa capacidade, ou blasfemou para nos confundir se ele for o assassino. - Será que alguém pode corroborar com o álibi dele? - Duvido muito. Bem, vamos terminar logo com isso.

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Aproximaram-se de Polaro que pressionava com um lenço úmido o corte de sua boca, seu queixo estava levemente arroxeado e tentava ocultar instintivamente isso dos investigadores, o que era desnecessário, pois fora uma das primeiras coisas que eles notaram ao chegar. Inicialmente pareceu estranho aos policiais encontrar a porta da quitinete de Polaro aberta e como ninguém atendesse à campainha entraram, porém vê-lo caído no chão desmaiado foi bem mais estranho. - Polaro - disse Duncan - Resolvemos dar um pouco de crédito ao que nos disse, embora seja estritamente necessário que você venha conosco para prestar um depoimento por escrito, são regras que devem ser seguidas e devo assegurar-lhe que elas contribuem muito para um andamento positivo das investigações. Espero que não se importe com esse contratempo. - De modo algum - ele pareceu um pouco aliviado - tenho certeza de que vocês não se arrependerão disso. - Espero que não. Existe alguém que você queira avisar, seu advogado por exemplo. - Sim. Meu médico. - Médico? - O Dr. Harry Hardrige, médico e psicólogo. - Muito bem, faça isso e nos acompanhe, ok? - Ok. - Mais uma coisa. - O quê? - Deixaremos você sob vigilância e como prova de que estamos dispostos a confiar em você é que estamos lhe dando conhecimento disso. - Eu agradeço. Polaro apanhou o telefone, conversou algo rápido com seu médico expondo-lhe a situação e desligou. Wilson perguntou se o Dr. Hardrige iria ao departamento de polícia e Polaro negou

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dizendo que infelizmente ele teria que dar algumas consultas naquela manhã, mas que estaria à disposição da polícia durante toda tarde para qualquer contribuição que pudesse dar. Polaro não disse, é óbvio, que seu amigo ficara um pouco chateado dele ter ido procurar policiais para contar sobre as visões mesmo que Polaro insistisse em dizer que foram os policiais que o procuraram. O médico pediu explicações preocupado e Luís Polaro prometeu que esclareceria tudo em outra hora. Alguns minutos depois Polaro entrava pela primeira vez numa viatura policial que o conduziria ao Bureau de Homicídios de Nova Iorque e isso não seria a primeira vez, mas afastou subitamente as lembranças de quando prestara depoimento sobre seu relacionamento com a vítima de estupro Allison Budaker, elas eram por demais dolorosas. 11 Na tarde daquele dia Duncan e Wilson teriam ido ao consultório do Dr. Harry Hardrige no Park Avenue, chegaram inclusive a telefonar para lá dizendo que iriam falar com ele por volta das 15h00, contudo viram essa entrevista ser refutada devido a uma reunião convocada pelo Chefe Lieberman para tratar da violência de dois policiais ao tentarem resolver uma onda de roubos nas ruas do Brooklin. Os policiais ali reunidos acharam tudo uma tremenda balela, pois onda de roubos no Brooklin era uma coisa muito comum e mais comum ainda era um investigador ou outro perder a cabeça com um ou dois pivetes. Mas o que fazer? Nada a não ser ouvir toda aquela lengalenga de discurso. O final da reunião pareceu demorar séculos sem, contudo ter durado pouco mais de duas horas e às 18h00 Duncan e Wilson viram-se sentados um restaurante ali perto da Homicídios, tentaram o máximo que puderam evitar tocar em assuntos de trabalho, isso no entanto era quase inevitável e sem perceberem já

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falavam animadamente sobre a perspectiva de prisão do Assassino da Flor. Numa tela de vídeo bem como nas outras que havia espalhadas em todo restaurante um vídeo-clipe do Prince cantando Purple Rains era exibido, Josh fez qualquer comentário sobre a música dizendo que a apreciava, voltando em seguida ao assunto das investigações. Era hilariante o fato de procurarem não falar daquele assunto, pois dando voltas em círculos voltavam a falar. Depois de terem comido alguma coisa frugal despediramse. Naquela noite seria Wilson que ficaria de plantão, mas como as coisas estavam devidamente encaminhadas decidiram descansar, Wilson se encontraria com sua namorada e Duncan após fazer uma brincadeira marota sobre o amigo e Lisa, disse que estaria em casa no caso de haver alguma novidade. Josh Duncan estava em casa, não conseguia mais sentir-se nostálgico em relação à sua passada vida conjugal. No começo sentiu-se na maior fossa, só conseguia pensar em Carol e na criança que não podia ver. Tudo bem, o juiz tivera razão em dar a custódia a ela afinal de contas a criança ainda era muito tenra e carecia de cuidados especiais que só a mãe poderia dar a ele, como policial não teria a menor condição de dar à criança a dedicação necessária para seu crescimento e desenvolvimento. Quando seu advogado levou-lhe a carta de divórcio para assinar fora como se um duro golpe fosse dado em seu peito, parecia o seu amor por Carol pedindo para ser colocado para fora. Porém aquilo acabara! Conseguira separar a sensação de perda, ela disse que não mais o amava, tudo bem, não a amaria mais também. Aquela seria sua noite de comemoração. Tomou um banho, trocou de roupas, agora se sentia novo, vestindo calças jeans desbotadas, um suéter de lã bege com duas listras no peito, uma preta e outra azul, e um tênis Adidas. Apanhou um livro da estante, seus óculos de armação preta e lentes brancas e uma soda dietética da geladeira, era tudo o que precisava para seu descanso.

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Leu quase meio livro sorvendo pequenos goles do refrigerante. Adormeceu sentado em sua poltrona com o volume pousado displicentemente sobre as pernas. A doutora Elisa Chambers vestia sua habitual roupa de mulher bem sucedida que era constituída de um conjunto de blazer e saia feminino. Chegou ao seu apartamento exatamente às 18h33 daquela tarde-noite cansada de mais um dia de trabalho estafante na Perícia de Nova Iorque. Enfiou a chave na fechadura e tentou girá-la mas estava emperrada. A Dra. Chambers indagava-se se a fechadura estaria quebrada o que seria quase impossível, pois pela manhã ao sair ela havia funcionado perfeitamente. Lembrou-se que havia deixado uma cópia da chave na fechadura para que Ron Wilson pudesse trancá-la ao sair. Um sorriso bonito formou-se no rosto da atraente doutora em perícia ao lembrar que Ron poderia estar em sua casa esperando por ela. Entrou fechando a porta atrás de si. - Ron! - chamou ela pelo namorado - você está aí? Não havia resposta, era mesmo muito cedo para que o detetive estivesse chegado. Foi então que ela viu o homem. Ele estava sentado no sofá observando placidamente o apartamento. Ela virou-se depressa e perguntou: - Quem é você? O que está fazendo em minha casa? - A senhorita tem uma bonita casa, é mesmo muito confortável - opinou ele. Pelo tom de voz daquele homem Lisa compreendeu que a visita dele não lhe traria nenhuma surpresa agradável. Voltou-se para a porta ensaiando reabri-la para sair. Um “clic” fez-se ouvir e a Dra. adivinhando o que aquele ruído queria dizer voltou-se de chofre para o homem. Uma arma equipada com um silenciador estava apontada para ela, pela trajetória que ela conseguiu traçar em sua mente se algum projétil fosse disparado ele se alojaria no seu esterno, esse

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pensamento a fez tremer, o treinamento na Academia de Polícia e recompondo-se disse: - O que você quer de mim? Um sorriso cínico apareceu no rosto de Cortez. - De você mesmo eu não quero nada. Seu namorado é quem quer, e isso o levará até mim para acertarmos algumas dívidas que ele tem comigo. - Você é Estélio Cortez, não é mesmo? - perguntou ela ao reconhecer de súbito o homem que se encontrava à sua frente. Isto trouxe a ela um pouco mais de receio embora não o demonstrasse. - Sou eu mesmo, é duro ser famoso! - levantou-se - já chega de levarmos adiante essa conversa sem futuro, temos que sair daqui e a quero deixar de sobreaviso para o caso de tentar alguma besteira, essa arma estará engatilhada e apontada para você dentro do bolso do meu casaco. Cortez fez um sinal indicando à Lisa que saísse, ele mantinha-se um passo atrás dela. Ao passarem pelo elevador ele sinalizou para que ela seguisse adiante rumo à escada para não correr o risco de cruzar com alguém. Antes de chegarem na escada da antecâmara de incêndio uma porta abriu-se revelando um rapaz loiro de aproximadamente vinte e cinco anos de idade que resolvera sair de seu apartamento na hora mais indevida daquele dia. Lisa e Cortez olharam para o rapaz que percebeu alguma coisa de errado naquela cena. - O que está havendo Dra. Chambers? - perguntou ele para sua vizinha. - Nada, Victor - apressou-se em responder Lisa a fim de livrar o rapaz de uma encrenca. Sua tentativa não surtiu efeito. Percebendo o temor na voz da Dra. ele fez menção de aproximar-se deles.

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A mente de Lisa quase não pôde captar o que aconteceu em seguida dada a rapidez com que tudo ocorreu. Um leve ruído quebrou o silêncio, algo semelhante a um sopro forte, um pequeno buraco se formou no bolso do paletó de Cortez. O projétil disparado alojou-se no ombro do rapaz que dado à força do impacto rodopiou batendo com sua testa na parede e caindo a seguir desfalecido. Nesse instante, Cortez estava quase de costas para Lisa e sentiu um tremendo golpe de tae-kwon-do nas costelas. A pancada o atirou ao chão no duro, um piso revestido de vinil, foi uma queda desajeitada, pois a mão que segurava a arma no bolso do paletó o impediu de proteger-se. Antes mesmo que ele conseguisse recuperar-se, a Dra. descia as escadas abandonando seus sapatos altos nos degraus que ficavam para trás. Indignado Cortez praguejava ao iniciar a perseguição, entretanto, Lisa Chambers impulsionada pela adrenalina que o medo injetava-lhe no sangue, já se encontrava um andar abaixo dele. Ela se orgulharia, não fosse o medo que tomava conta dela, por ter conseguido dar um golpe tão certeiro naquele criminoso, não obstante naquele momento ela só possuía um pensamento: escapar! A velocidade de Estélio Cortez era bem superior e naquele ritmo alcançaria a moça um pouco antes de alcançar o térreo. Lisa tinha consciência de que ele a pegaria e as consequências que isso traria a ela e a Ron seriam desastrosas, por isso forçava sua mente a raciocinar em busca de uma saída, precisava encontrar uma e rápido. Seu coração quase saltou para fora quando ao olhar para cima viu a mão do criminoso deslizando pelo corrimão, mais alguns segundos e ele a alcançaria certamente. Em sua mente surgiu a imagem do coletor de lixo que havia em cada andar próximo à saída de incêndio, mas não havia tempo para espremer-se por aquela pequena abertura e continuou descendo.

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O esforço de Lisa chegou ao fim quando a mão de Cortez agarrou o blazer pela parte de trás do colarinho enquanto a outra encostava a pistola Mauser com o silenciador frio no pescoço dela. - Continue descendo Senhorita - a voz dele mantinha-se sóbria, apenas um pouco tensa e ofegante - Rápido! - ordenou retirando a arma do pescoço dela e pressionando-a nas costelas da moça. Desceram na garagem que ficava no subsolo e entraram em um Escort azul metálico, o bandido disse a ela que dirigisse e a ela não restava outra alternativa a não ser obedecer. Subiu com o veículo na rampa de saída da garagem, Cortez ordenou a ela que pegasse a Broadway na direção do canal e fosse direto para Chinatown. Ron Wilson chegou em seguida ao prédio de Lisa Chambers. Decorreram pouco mais de dez minutos desde que o carro de Cortez saíra da garagem e a chegada de Wilson. Havia duas viaturas policiais na entrada do prédio e uma ambulância. O detetive deixou seu carro no estacionamento em frente do prédio e caminhou até o policial uniformizado apresentando suas credenciais de investigador de homicídios. - O que houve aqui? - perguntou ao policial. - Um rapaz foi baleado ao testemunhar um rapto. - Como ele está? - Tudo bem, o ferimento foi superficial, os paramédicos estão tratando dele em seu próprio apartamento. Ficamos de trazer um álbum de suspeitos, pois ele acha que reconheceu o raptor de uma foto em algum jornal publicado há algum tempo. - Quer dizer que ele é perfeitamente capaz de identificar o criminoso? - Wilson perguntou curioso e satisfeito, pois assim a polícia com uma certa facilidade chegaria ao raptor.

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- Ah, claro! - disse o policial entrando na viatura - Ele até arriscou um palpite, algo relacionado com a prisão de uma quadrilha de traficantes bolivianos há uns meses atrás. Wilson sentiu um aperto no estômago. - Quem é essa moça que foi raptada? O policial encarou o detetive Ron Wilson curioso por saber o que ocasionara aquela mudança no semblante dele e querendo entender qual o interesse do homem naquela história. - O nome dela é Elisa Chambers, vizinha do rapaz que foi baleado, ainda não recebemos nenhum informe sobre onde ela trabalha ou as ligações que ela tem com alguém que quisesse raptála, sabemos apenas que mora no apartamento 704 no sétimo andar. Sob o olhar surpreendido de Wilson o policial deu ré manobrando seu veículo e partindo. Após ter ficado a par de todos os detalhes através de uma conversa com o rapaz ferido, Victor Perpier. A descrição embora imprecisa que Perpier fez do bandido extirpou qualquer dúvida acerca da identidade dele, era certamente Estélio Cortez. Não que isso pudesse trazer algum conforto para o investigador, mas saber com quem estava lidando era algo que muito ajudava no trabalho dele. O que fazer a seguir? Não havia nenhuma luz no túnel indicando a saída. A ele restava uma terrível espera de notícias que Cortez por certo daria, afinal era a ele quem o raptor queria e não Lisa, que era somente um meio para atingir o verdadeiro objetivo. Em sua alma um apelo mudo a Deus existia para que não deixasse acontecer nada com ela. Quando Duncan pulou da poltrona assustado com o zumbido da campainha seu livro esparramou-se no chão. Ao refazer-se do susto rumou para o cabide de onde tirou seu Smith&Wesson.44

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suspeitando que uma visita àquela hora de madrugada não seria amistosa. Enganou-se! Pelo olho mágico, depois de ter tomado o cuidado de não fazer nenhum ruído para que não levasse um tiro no olho ao observar quem estava à porta, Duncan viu rapidamente o rosto do amigo. Só depois de abrir-lhe a porta é que percebeu o quanto este parecia transtornado, o companheiro era a personificação da desolação. Após uma dose de McNaughton’s e um curto período de inflexão Wilson pôde relaxar até ao ponto de conseguir relatar o que sucedera àquela noite. O detetive já havia tomado algumas doses de uísque antes de chegar na casa de Duncan que somadas às doses que tomava agora o faziam sentir-se levemente bêbado. - O que vou fazer, Josh? - indagou o abalado Wilson. - Por enquanto você não fará nada. Pela manhã nós faremos alguma coisa - disse Duncan enfatizando a palavras “nós” - ainda não sei o quê, mas faremos alguma coisa. - Só que enquanto isso Lisa pode estar sofrendo barbaridades nas mãos daquele filho da mãe! Duncan o encarou em silêncio e deu de ombros. - O que você sugere que façamos agora, Ron? - perguntou desafiante a fim de trazer um pouco de clareza à mente do amigo Cortez não fará nada com ela, ele quer a você e a mim, mas principalmente a você, talvez ele até chegasse a matar Lisa para vingar-se de você, porém a mente dele não é tão inteligente assim a ponto de querer ferir você sentimentalmente, o que ele quer é matar você com as próprias mãos. Wilson largou o copo na mesinha no centro da sala, já estava tonto pelo efeito do álcool. - Portanto - continuava Duncan, estava preocupado com o amigo e apesar de não possuir muita convicção no que falava insistia no intuito de consolá-lo. Talvez mais tarde viesse a

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arrepender-se de ter alimentado falsas esperanças nele, mas depois era depois, naquele momento Wilson precisava daquilo e não seria ele quem negaria aquele bálsamo - ele a conservará viva e com saúde até encontrar você ou nós dois e quando ele fizer isso estaremos munidos de um esquema para apanhá-lo com vida, afinal de contas, dos três safados da quadrilha de Molina ele é o único que continua vivo. Duncan percebeu que Wilson adormecera, resolveu não acordá-lo, deixou-o ali mesmo, sentou-se na cadeira à frente e dormiu também. 12 A mansão da família Biler&Polaro ficava um pouco afastada do centro da cidade de Nova Iorque. Era uma casa de estilo tipicamente americana, fora construída no início do século pelo bisavô de Luís Polaro chamado Johanes Biler. Era toda em alvenaria com detalhes rústicos em madeira e um amplo jardim circundando-a. Do portão de acesso até a casa havia uns vinte e cinco metros de distância e a estrada de cascalho que fazia essa ligação era margeada em ambos os lados por uma bem tratada cerca-viva. A luz do sol penetrava em toda sua intensidade naquele jardim. O Monza de Polaro estacionou em uma das cinco vagas existentes na frente da casa ao lado de um Cherokee Jeep pertencente ao Dr. Harry Hardrige. Ao entrar na casa viu o médico vindo em sua direção com os braços estendidos à frente na atitude de quem vai dar um abraço. - Lucas, que bom vê-lo aqui! - exclamou o médico. - Olá, Harry - disse ele nervoso, mas parecendo confiante os policiais encarregados do Estuprador resolveram dar uma chance às minhas visões.

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O barulho de um outro carro aproximando-se interrompeu aquela conversa. Aquilo tirou o médico repentinamente da preocupação que a declaração de Polaro trazia-lhe. Foi até à janela, afastou a cortina e viu o carro de polícia que estacionava ao lado de seu Cherokee. - Estão vigiando você, filho - declarou ele com as sobrancelhas decaídas. - Eu sei. Foi a imposição que os investigadores fizeram, assim podem retirar as suspeitas que pairam sobre mim. As sobrancelhas do médico ficaram mais baixas. - Estou preocupado, Lucas. - Não precisa, tudo vai dar certo Harry. É apenas uma questão de dias, talvez horas, o Estuprador voltará a atacar, eu terei a visão, daí pegarão o sujeito. Harry acomodou-se no sofá acendendo um cigarro que retirou do maço de Rothmans. Luís Polaro sentou na frente dele. - E se acontecer algum imprevisto? - perguntou o médico Você está preparado para enfrentar qualquer situação? - Ora Harry, não seja tão pessimista. O que pode acontecer de errado? O assassino está matando em série e voltará a atacar. Sabe de uma coisa, tenho certeza de que ele é o mesmo que matou Allie em 1980 e isso será a minha vingança, ajudarei a polícia a colocar o assassino dela atrás das barras de ferro de uma prisão! Harry permaneceu calado. Pensava no assunto com a cautela de um experimentado psicólogo. - Lucas - pronunciou-se Hardrige rompendo seu próprio silêncio - temo por você. Não queria que você tivesse levado avante essa ideia de visões. Falei com um amigo meu que trabalha no ramo da parapsicologia e na opinião dele você deveria submeter-se à alguns testes para a confirmação ou não de seus poderes. Infelizmente você contou tudo à polícia, e conhecendo-a como conheço se sua história não vier a preencher as perspectivas deles você será transformado no principal suspeito. E isso me

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preocupa muito. Polaro coçava o queixo em atitude reflexiva. Sabia que o amigo tinha razão, mas um medo o impedia de dar crédito ao que ele dizia, pois até Polaro possuía agora uma determinada incerteza. - Harry - disse por fim - acho que vou dormir aqui hoje. - Ótimo. A casa é mesmo sua, durma aonde quiser, Lucas. - Vou dormir em meu quarto mesmo. - Em seu quarto? Acontece que você pediu que ninguém entrasse nele desde que foi embora, deve estar um pouco sujo, empoeirado... - Não importa, acho que lá é o único lugar dessa casa em que me sinto bem. - Ok. Procure não pensar muito nesse assunto para poder ter uma boa noite de sono, está bem? - Tá bom, Harry. E você procure não se preocupar - disse Polaro sem muita entonação sabendo que seu amigo ficaria preocupado ainda que tudo estivesse muito bem. - O Dr. Hardrige passara a morar na casa de Polaro por insistência dele após ter se mudado para a quitinete, mas o médico pareceu não ter gostado muito da ideia apesar de ter concordado com ela. Não conservou nenhum dos empregados lá existentes, mas vez por outra contratava alguém por temporada para cuidar do jardim, para faxina, cozinha e até mordomos. Assim ele pôde conservar toda a casa como quando lá chegou incluindo o jardim e, intocável, o quarto de Polaro. Luís Polaro entrou no seu dormitório acendendo as luzes. Tudo estava no lugar e a camada de poeira denunciava a ausência de pessoas. Retirou o lençol que cobria a cama e o que estava por baixo parecia limpo, deitou-se na cama com as mãos atrás da cabeça formando uma cabeceira e observando o teto pensativamente. Sentiu-se seguro ali naquele quarto longe de outras pessoas, como se houvesse uma atmosfera de proteção envolvente naquele ambiente.

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O quarto em que o Dr. Hardrige ocupava ficava ao lado do de Polaro. Tarde da noite, após ter cansado de ler, Hardrige foi para seu dormitório e nem bem se deitou adormeceu profundamente. Algumas horas mais tarde ouviu o som de um carro se aproximando e depois, se afastando, inicialmente pensou que os policiais haviam se ido, mas antes de adormecer novamente concluiu que apenas deviam ter trocado de guardas. Mais tarde tornou a ouvir barulhos, não de carros, mas de algo sendo arrastado ou coisa assim, o sono era tão forte que não conseguiu dar atenção a isso. Polaro acordou-se assustado, havia sonhado que o Estuprador corria atrás dele com uma faca na mão e ele sem poder fugir foi de pronto alcançado, contudo, quando a figura sinistra aproximou-se dele brandindo a arma branca, um espelho quebrou-se em pedacinhos acordando-o. Procurou os cacos de vidro do espelho estilhaçado e só então percebeu que aquilo também pertencia ao sonho. Estava com uma forte dor de cabeça e pressionava com a ponta dos dedos a têmpora em busca de um pouco de alívio. A luz pendente do teto continuava acesa ferindo-lhe os olhos. Tentou conciliar o sono para acordar-se mais tarde sem aquela dor, o que, porém não conseguiu. Levantou-se à procura de algo para fazer. Aquela casa lhe trazia ainda um pouco do medo que possuía desde criança. Foi até ao armário, abrindo-o em busca de lembranças do passado. Era estranho, geralmente ele se escondia dessas recordações, naquela noite, ao contrário, sentia-se impelido à buscá-las. No interior do armário havia duas pastas tipo Gucci, em uma delas lembranças de família, os Biler e os Polaro, na outra, as de Allie. Enquanto decidia sobre qual das duas iria abrir, seus olhos esbarraram em uma mala preta, não a reconheceu de

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imediato, porém à medida com que suas mãos deslizavam pelas laterais pôde recordar-se. A lembrança causou-lhe arrepios! - Meu Deus! - exclamou tão baixo que mal pôde ouvir sua própria voz. Teria que levá-la dali, ninguém poderia achá-la senão seria um desastre. Se saísse pela porta da frente os policiais o veriam e talvez indagassem sobre seu conteúdo, poderia responder que eram algumas roupas mas temeu que aquilo levantasse suspeitas. Retirou a mala de dentro do armário, fechou-o e caminhou para a janela. Os quartos da mansão Biler-Polaro ficavam na parte superior do prédio, aquela casa de estilo antigo possuía um pé direito muito alto, de mais ou menos quatro metros. Polaro não poderia descer pela janela segurando a mala, apesar de haver uma grade de madeira para trepadeiras há um metro do peitoral abaixo. Sem parar para raciocinar colocou a mala para fora e deixou-a cair com um ruído abafado pela fina camada de neve. Desceu em seguida. O impacto da queda arrebentou a antiga e enferrujada fivela que mantinha a mala fechada, esparramando seu conteúdo pela grama. Polaro apressou-se em recolher tudo. A fina camada de neve que cobria a grama o ajudou a localizar os objetos. Circundou a casa para não encontrar os policiais. Chegando ao seu carro que estava oculto pelo Cherokee Jeep da viatura policial, colocou a mala no banco de trás e deu a partida. Os dois rapazes que estavam na viatura policial se assustaram com o ruído do motor. Pelo retrovisor eles viram o Monza afastar-se e puseram-se a segui-lo. A velocidade que o Monza Classic desenvolvia deixou a viatura de polícia para trás. Ao chegar a seu prédio, Polaro apanhou seu fardo e tratou de chegar logo ao seu apartamento. Segundos depois os policiais estacionavam ao lado do carro de

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Luís Polaro, um deles conferiu a placa confirmando-a e montaram guarda. Pela manhã um outro carro de polícia levando os investigadores Duncan e Wilson ia na direção da mansão Polaro para uma entrevista com o doutor Hardrige que foi marcada um pouco depois de Duncan ter sido avisado por Stain Gibbis, que foi o policial encarregado da guarda de Polaro, que esse havia ido para sua mansão e que 03h00 da madrugada saiu de lá em disparada. Duncan acordou o amigo relatando-lhe as notícias, Wilson mais calmo e consciente de que nada podia ser feito por Lisa por enquanto, resolveu acompanhar Duncan à entrevista com Hardrige. Foram atendidos por um senhor de aparentemente sessenta anos, embora em boa forma, que pediu-lhes que sentassem, serviu um café enquanto aguardavam o médico. Josh Duncan sentado folheando uma revista sobre psicologia que pegou na mesa de centro era novinha e ainda estava no saco no qual viera pelo correio, um exemplar de assinante. Wilson andava por toda a sala observando os móveis, parou detidamente em frente de uma cristaleira, retirou seu caderno de anotações do bolso escrevendo nele alguma coisa. A curiosidade de Duncan foi despertada pela anotação que o amigo fizera e aproximando-se indagou: - O que há? - Esse objeto me chamou a atenção, você o reconhece? Duncan havia visto aquilo antes. Era uma estatueta dourada com quinze centímetros de altura, uma pequena esfera dourada era apoiada numa base que parecia uma coluna em miniatura, da esfera saíam hastes, que pareciam representar raios de luz, de vários comprimentos. Na base da coluna estava gravado uma inscrição em latim: FILLI LUX - Nunca vi nada parecido, é muito bonita!

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- Essa estatueta é o símbolo de uma seita cujo nome não lembro no momento. Minha esposa falou dela dizendo que eram uns fanáticos ou coisas desse gênero. - Vejo que acharam algo com que se distrair, desculpe-me a demora - disse Hardrige chegando - é que estava no banho, costumo tomar uma ducha quente ao acordar para enfrentar o dia com mais disposição. Hardrige olhou a cristaleira vendo o que os investigadores observavam. - Pertenceu a Janet Polaro, a mãe de Lucas, foi membro ativo da seita por um curto espaço de tempo, mas Ralph a fez largar tudo. Bem senhores, vamos nos sentar. Foi Duncan quem começou. - Dr. Hardrige, por acaso vê no comportamento de Luís Polaro algo que possa classificar de estranho? Hardrige deu de ombros. - Não. Realmente não. Devo informá-los, porém que além de Lucas ser meu cliente, ele é como um irmão mais novo para mim, já que não tenho filhos, poderia até dizer que é como um filho para mim. Portanto, se vieram aqui em busca do meu parecer formal sobre o comportamento dele serei obrigado a negá-lo por pura ética profissional, se quiserem meu parecer será o de amigo e asseguro-lhes que Lucas é uma pessoa decente. Duncan até ficou sem jeito diante daquela amizade, mas prosseguiu: - Está a par das visões que Polaro afirma ter sobre o Estuprador de Manhattan? - Sim. - O que me diz a esse respeito? Hardrige acendeu um cigarro. - Sei que vocês já devem ter investigado a fundo a vida de Lucas, portanto creio que sabem do caso de Allison Budaker, que era namorada dele e foi assassinada em circunstâncias similares a

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das vítimas do Estuprador. Talvez isso tenha afetado a ele fazendo-o ter sonhos que ele venha a confundir com visões. - Isso parece ser uma opinião profissional - insinuou Duncan. - Não. Absolutamente, creio que até o senhor deve ter chegado a essa possível conclusão após um raciocínio coerente. Wilson foi até à porta. - Vou dar uma volta ao redor da casa se não se importa, Dr. Hardrige. - De jeito nenhum - voltou-se para Duncan – seu colega parece estranho, como se tivesse com algum problema. - Mas ele não está - mentiu - apenas possui um faro incrível para pistas e deve estar pensando em alguma coisa por isso precisa ficar só. Duncan procurou tirar todas as informações possíveis, Hardrige mostrou-se muito cooperador mas era categórico em defender Lucas, que era como ele chamava a Luís Biler Polaro. Falou de sua mudança para a mansão e de sua amizade para com o pai de Polaro. Antes de ficar sem mais nada para perguntar ao médico, Duncan levantou-se dizendo que ia encontrar-se com o companheiro, chegando à porta virou-se de chofre para pegar o médico despreparado com uma pergunta. - Vê alguma possibilidade de Polaro ser o Estuprador? Hardrige não pareceu surpreso, olhou fixamente nos olhos do detetive para dar mais ênfase ao que ia dizer: - Nenhuma. Não que não possa haver essa tal possibilidade, mas conhecendo Lucas como eu conheço posso assegurar com plena convicção de que ele não seria capaz desses hediondos crimes. O detetive saiu da casa sem falar nada.

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Wilson estava olhando para a janela do quarto de Polaro ao Duncan o encontrar. Seu modo de observar fazia com que o amigo parecesse um pouco misterioso, no entanto, era normal, pois Wilson sempre se comportava daquele jeito que lembrava Sherlock Holmes, embora ele nunca houvesse lido qualquer uma das aventuras do famoso detetive inglês, Wilson inclusive não gostava nem um pouco de estórias policiais, gostava mesmo era de ficção-científica, Duncan o surpreendeu uma vez entrando no cinema para assistir um episódio de Jornada nas Estrelas. Lembrava-se da emoção do amigo com aquela estória sobre as baleias. - Veja só o que eu achei aqui - disse Wilson entregando uma luva de couro a Duncan. O chão estava cheio de marcas, pois embora a neve estivesse quase derretida ainda sobraram as marcas dos sapatos que Polaro havia deixado. - Creio - prosseguiu Wilson - que Polaro desceu nessa madrugada por aqui para que os policiais não o vissem sair. O estranho é que depois ele tenha ligado o carro delatando-se. - Não há nada de estranho, não. Ele deve ter feito isso para ocultar alguma coisa que possuía, essa luva é o indício de que ele levava algo mais consigo. - Josh, está pensando o mesmo que eu? - Acho que sim. - Será que ele é realmente nosso homem? Bem, Ron, só existe uma maneira de sabermos. Luís Polaro estava assustado, fora enganado o tempo todo. Todas as visões. Não passavam de uma mera ilusão criada por sua mente, mas como é que aquilo aconteceu sem ele nunca ter sentido nada. Polaro teve certeza de que estava enlouquecendo. “Como pude fazer isso?”- perguntava-se. Como Harry reagiria ao saber? E a família de Allie? E a polícia? Parecia incrível

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que logo após tudo estar parcialmente resolvido ou pelo menos com uma grande chance de resolução ele tivesse descoberto a verdade. Jamais teria condições de enfrentar aquela situação, precisava de um tempo para solucionar tudo, consertar as coisas, mais cedo ou mais tarde eles o pegariam. Apanhou a mala e esvaziou-a sobre a mesa, estava tudo ali, a calça, as botas, a jaqueta, tudo fedia a lama podre de esgoto. Assustou-se ao perceber que faltava o lado direito do par de luvas, devia ter ficado no chão quando a mala abriu-se. Derramou dois litros de álcool, que guardava no armário do banheiro para uma necessidade, em uma panela. Jogou toda a roupa dentro dela e ateou fogo, ficou observando a incineração daqueles objetos, tudo deveria ser apagado, não poderia sobrar nada que levasse a polícia a desconfiar dele. A mala e a faca, no entanto, não poderiam ser incinerados com facilidade. Dobrou a mala de forma bem compacta com a faca em seu interior, jogou o volume dentro de um saco de supermercado, de papel, amarrou tudo e indo até ao corredor abriu o coletor de lixo lançando o pequeno volume dentro dele. Ninguém agora acharia nada. Wilson e Duncan chegaram logo depois ao apartamento de Polaro, este os mandou sentar e ofereceu-lhes drinques de uísque com gelo. Havia um forte cheiro de purificador de ar e Wilson chegou até a tossir. - Polaro, algo estranho aconteceu ontem de madrugada, queremos saber o que foi - Wilson parecia muito firme ao falar. - Como assim? Não sei do que estão falando. Foi Duncan quem falou: - Por que saiu de sua casa no meio da madrugada e veio para cá?

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- Estava cansado ontem e dormi lá, acontece que acordei mais tarde e não consegui mais dormir, daí resolvi voltar para cá. - E fez isso saindo pela janela? - Como? - O quarto da direita da mansão onde há uma grade para trepadeiras é o seu, não é? - perguntou Wilson. - É. Wilson jogou a luva no colo de Polaro. - Deduzi isso. Veja o que achei sob a janela de seu quarto. Isso é seu? - Não. - Poderia experimentá-la para eu ver? Polaro deu de ombros dando pouca importância ao fato. A luva era o seu número exato. - O que me diz disso? - insistiu Wilson desconfiado. - Nada - respondeu ele - o que poderia achar? - Não sei. - Você ainda não respondeu se saiu pela janela de seu quarto e acrescente na sua resposta o porquê dessa atitude - disse Duncan encarando firmemente Polaro, algo havia mudado no rapaz desde a última vez que o policial falara com ele, antes pareceu ser muito cooperador e agora estava tão escuso, disfarçando suas respostas, o que fez as suspeitas dos investigadores aumentarem. Durante a vinda da mansão até ali, Wilson vinha falando sobre a possibilidade de Luís Polaro ser o Estuprador de Manhattan e o que o levara a fazer isso e a inventar aquelas histórias ridículas sobre visões, Duncan comentou que o sujeito poderia ter dupla personalidade e uma delas se sentia culpada pelo que a outra fazia, criando as visões para fazê-la parar. - Não saí pela janela, saí pela porta, desci a escada, abri a porta da frente, peguei meu carro e vim embora. O que há de errado nisso?

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- Nossos homens que o vigiavam, não viram o senhor sair pela porta da frente. Saiu realmente por ela? - É claro que sim - Polaro parecia nervoso - talvez eles tivessem pegado um cochilo. - É. Talvez - concordou Wilson levantando-se após ter largado o copo de uísque intocado sobre a mesinha, ao contrário de Duncan que bebeu sua dose toda. - Bem - continuou Wilson - creio que nada mais temos a conversar. Avise-nos assim que tiver outra visão, ok? - Farei isso. Foram até a porta, Wilson na frente seguido de Duncan e Polaro. Despediram-se e antes de Polaro fechar a porta Duncan voltou-se dizendo: - Temos uma pessoa que também nos ajudará a chegar ao assassino, ela fará o reconhecimento do sujeito quando o pegarmos. Polaro surpreendeu-se. - Quem é? Como é que o reconhecerá? - disfarçou o melhor que pôde seu embaraço. - Você ainda não sabe? Ele deu de ombros. - Esquecemos de contar pra você que a última vítima do Estuprador não morreu - disse Wilson e a seguir completou o outro: - Ela sofreu algumas escoriações, porém está muito bem, amanhã ela será conduzida ao Bureau de Homicídios onde faremos um retrato falado do homem baseado nas informações que nos dará. Segundo uma entrevista prévia ela disse-nos que estava escuro, mas que em alguns momentos vislumbrou o rosto dele. Isso não é animador? - Muito. Assim poderemos pegá-lo até se alguém vê-lo na rua - disse Polaro, tentava mostrar entusiasmo.

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- Exatamente. - concordou Wilson - essa moça... Linda Stacy, é muito corajosa. - Bem, vamos indo. Adeus - despediu-se Duncan. Os detetives ouviram o ruído da porta do quitinete fecharse atrás deles e sorriram. Não havia mais nada a fazer senão esperar. Josh ficaria de guarda na casa de Linda para protegê-la e Wilson ficaria disfarçado esperando na rua em frente ao edifício observando se o Estuprador aparecesse. Apesar da seriedade do que ia fazer a mente do policial Ronald Collins Wilson não deixava de pensar e preocupar-se com Elisa Chambers, sua namorada. Um profundo ódio rugia dentro dele, esperava sinceramente que nada acontecesse a ela, pois seriam desastrosas as consequências que trariam à sua vida. No íntimo cria que tudo sairia bem. 13 Na tarde do mesmo dia Josh Duncan recebeu um envelope com o timbre da Prefeitura endereçado a ele e Wilson, estava sobre sua mesa no Bureau de Homicídios. Continha o seguinte: Aos investigadores do Bureau de Homicídios da Polícia de Nova Iorque - Josh Duncan e Ron Wilson Devo-lhes informar que a partir da data de hoje sua investigação acerca do Assassino de Diana Stegron bem como de outras moças, deverá ser relatada minuciosamente mediante a apresentação de relatórios diários sobre os progressos da mesma. Fiz a petição formal ao Chefe Joseph Part Lieberman que a concedeu bondosamente.

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Quero deixá-los a par que se vier a descobrir qualquer omissão nos relatórios com a intenção de afrontar-me será recebida como tal e despojarei da autoridade que me é cabida bem como de minha influência para afastá-los do caso e colocá-los nas incumbências do FBI Espero assim pronta cooperação. Com respeito. Michael Thorniton

Secretário do Prefeito

Duncan teve vontade de rir. Aquele homenzinho tinha tomado uma decisão cheia de autoridade. Olhou para a porta do escritório de Lieberman e o Chefe estava em pé sob o vão fazendo um gesto que indicava a Josh para ir lá. - Quer um cigarro? - ofereceu o Chefe entregando-lhe a carteira de John Player Special a Josh. - Não chefe, faz alguns dias que não fumo, estou tentando largar o vício. - Isso é bom. Onde está Wilson? - Está preparando umas coisas em sua casa - Duncan referia-se ao rádio transmissor que usariam para comunicar-se logo mais à noite e seu disfarce - hoje faremos alguns progressos na investigação. - O que achou da carta do Secretário do Prefeito? - Se me permite Sr. achei-a petulante. Ao sair daqui farei um relatório verbal a ele pelo telefone, vou deixá-lo ciente dos detalhes. Lieberman dava baforadas em seu cigarro, aproximou-se da janela e com dois dedos afastou duas persianas olhando para fora do prédio. Em seguida disse: - Recebi uma carta do FBI hoje cedo.

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Duncan manteve-se quieto, certamente esses federais tirariam o caso de suas mãos achando-os incompetentes. Acreditava mesmo que isso aconteceria mais dia menos dia. - Querem - continuou Lieberman sem tirar os olhos da brecha das persianas - que você e Wilson sejam transferidos para treino assim que o caso que estão investigando seja solucionado. Senti-me muito orgulhoso por vocês dois e ao mesmo tempo triste por perdê-los, mas vocês são bons e eu já sabia que mais cedo ou mais tarde seriam requisitados. Josh Duncan estava surpreso. Ao sair da sala do Chefe Lieberman apanhou o telefone e contou tudo a Wilson que entusiasmou-se um pouco, não que aquilo não fosse bom, mas era mais ainda porque na idade deles pertencer ao FBI poderia se dizer uma glória. Isso sem falar no salário. Seria um dia de glória para ambos. Era um quarto escuro e frio. O chão era coberto com palha seca e as paredes de alvenaria. Possuía uma porta de madeira apodrecida pelo tempo e pela umidade, porém era resistente o bastante para impedir a fuga de Lisa. Fora deixada ali naquele porão fedorento após chegarem numa casa que era os fundos de uma loja de artesanato chinês, reparou em todos os detalhes que a ajudassem a se localizar, a ausência de placas com o nome das ruas dificultou tudo embora houvesse decorado o que estava exposto na vitrine assim como o número daquele estabelecimento. Se conseguisse sair dali ligaria para Ron e diria onde estava. Por uma das frestas da porta de sua prisão Elisa Chambers avistou Cortez limpando uma arma. Estava sentado em uma cadeira rústica com os pés sobre a mesa à sua frente, ao lado havia uma garrafa de vodca com um copo emborcado sobre o gargalo. Depois de ter terminado a limpeza de sua Magnum saiu apressadamente. Lisa viu aí a oportunidade de tentar escapar.

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Tateou no escuro em busca de algo que pudesse ajudá-la a abrir a porta, achou um banco pequeno mas resistente feito de uma madeira dura semelhante à da porta. Segurando pelos pés arremessou repetidas vezes contra a fechadura e essa não cedeu, entretanto, uma das tábuas havia se soltado. Esperou alguns segundos tentando ouvir se alguém se aproximava então enfiando o braço pelo buraco destrancou a porta por fora. Estava livre. Estélio Cortez atravessou a rua cheia de pessoas, na maioria chineses e mestiços, em meio a elas sentia-se ocultado pois era semelhante a eles nos traços do rosto. Aproximou-se da cabine telefônica e esperou que a moça que a ocupava terminasse sua ligação. Ela virou-se para ele e mostrou-lhe uma moeda indicando que não demoraria, vestia jeans e um blusão de lã, muito simpática. Era quase quatro horas da tarde e Cortez viu-se imaginando a escuridão que a namoradinha de Wilson estava enfrentando naquele depósito sem janelas ou qualquer tipo de iluminação artificial, deve estar histérica de medo. Ele riu. A moça saiu sem notar os olhos de Cortez fixos no seu rebolado. Um pensamento imoral passou na cabeça dele, mas não deu importância e discou um número. Estava ocupado. Tentou novamente e continuava ocupado. Não havia ninguém querendo usar o telefone por isso ficou ali mesmo deixando o tempo passar para esperar o telefone desocupar-se. Quando Wilson terminou sua conversa com Duncan desligou o aparelho e já se afastava dele indo para a cozinha quando o ouviu tocar. Atendeu. - Alô! - disse ele esperando inconscientemente ouvir a voz de Duncan que poderia ter se esquecido de dizer algo importante, mas não era o amigo. - Quer ver Lisa Chembers viva? - disse a voz ao telefone. - É claro, o que devo fazer?

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- Venha só e desarmado ao número 21b da Rua Pinn Street em Chinatown às nove da noite. Não esqueça, só e desarmado! A ligação foi cortada. Não confiando em sua memória Wilson apressou-se em anotar o endereço em seu caderno de notas. Depois voltou ao telefone e ligou para Duncan. - Terá que arranjar mais um policial para ficar em meu lugar hoje à noite, Josh - disse ele. - O que houve? Wilson permaneceu em silêncio por alguns instantes e ao ouvir o companheiro repetir a pergunta decidiu confidenciar-lhe tudo. - E você pretende ir lá sozinho, Ron - censurou Duncan isso é loucura, melhor, é suicídio! - É a vida de Lisa que está em jogo, não posso brincar de modo algum com isso! - Tudo bem, e se eu for com você? - Fora de cogitação. - negou categórico. - Ficarei no carro, dou dez minutos para você e depois disso entro lá. - Não, isso seria perigoso. - Mais perigoso é o que você está tentando fazer - disse Duncan usando de toda sua eloquência e pragmatismo para convencer a Wilson - Note bem, analise o que vou dizer, Ron. Se você for só as chances são de que você e Lisa saiam mortos, pois não haverá ninguém para ajudá-los. Se eu for, você percebendo que Cortez vai matá-lo, fica levando ele na conversa até eu chegar, não é mais viável? Ron Wilson compreendia que o amigo tinha razão, por isso foi obrigado a concordar, Duncan então se encontraria com ele e iriam juntos até ao endereço fornecido por Cortez. Se em dez minutos Wilson não saísse de lá, Duncan entraria para o que desse e viesse.

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Contataram Stain Gibbs e o encarregaram da proteção de Linda Stacy naquela noite, mas ele, muito esperto, percebeu na voz de Duncan, que foi quem ligou para ele, que havia algo errado. - O que aconteceu, Josh? - Nada, - disfarçou - por quê? - Você não me encarregaria disso se não houvesse algo de maior importância na jogada. - Deixe disso, Stain. - Deixe disso você, é claro que é meu dever fazer o que está me pedindo mas faço mais porque sou seu amigo e de Wilson, apenas diga-me o que vocês pretendem fisgar hoje à noite e prometo não dizer nada a ninguém. - Está bem, Stain, você venceu, enquanto você guarda Linda Stacy, eu e Ron seguiremos passo a passo um possível suspeito - mentiu Duncan - mas o nome não posso lhe falar, ok? - Agora está melhor, eu já imaginava isso e creio que até sei quem é o suspeito - ele estava pensando em Polaro - A gente se vê amanhã. Duncan desligou aliviado, adiou seu relatório para o Secretário Thorniton, apanhou o sobretudo e foi para o apartamento de Wilson. Lisa acreditava mesmo que estava livre, mas depois de tentar sair da outra sala constatou que saíra de uma prisão para entrar noutra. Estava com medo, mas era capaz de controlar suas emoções para deixar sua mente agir. A porta abriu-se dando passagem a Estélio Cortez que por alguns segundos ficou admirado de vê-la fora do depósito em que estava presa. - Você estava pretendendo ir a algum lugar? Bem, lamento informá-la que só sairemos daqui mais tarde, enquanto isso procure alguma coisa para fazer. Que tal conversarmos um pouco? Ele sentou-se e pôs os pés na mesa.

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- O que vai fazer? - indagou Lisa. - Por enquanto nada - ele sorriu - não se preocupe, não pretendo abusar de seu lindo corpinho, se tivesse que fazer isso eu já teria feito antes. Sabe, não costumo misturar as coisas, o que vou fazer hoje é uma questão de honra, apesar de alguém ter me dado um incentivo financeiro, mas principalmente por honra. José Molina Jr. era meu primo, filho da tia Dulce, irmã de minha mãe. Melhor que elas tenham morrido antes assim não viram a morte horrível de José. Esteban não era nosso parente, mas era muito chegado, ele quis que matássemos primeiro o outro policial, o Duncan, mas se deu mal. Eu não tenho nada contra ele, o meu caso é com o seu namorado. Lisa o encarava incisivamente, queria mostrar para aquele safado que não tinha um pingo de medo dele. Ele retirou uma arma de dentro do agasalho, não era a Magnum que estava limpando horas antes, era uma outra. - Soube que você é perita. Conhece armas? - Não, trabalho com digitais, não identifico armas - mentiu ela. - Ah, sim - disse ele compreensivo - por que não senta? apontou a cadeira com a arma. Ela sentou-se. - Esta - continuou ele mostrando a arma - é uma pistola Luger Alemã, era usada pelos “SS” na Segunda Guerra, foi um presente que recebi de José. Gosto de colecionar armas, tenho uma porção delas, berettas, 38s, submetralhadoras... mas essa Luger é de estimação, é com ela que eu vou lavar a honra de José. Não é irônico, meu primo presenteou-me a arma que aniquilará seu assassino... - Ron não matou Molina - respondeu ela irada - todos sabem que seu primo tentou fugir da polícia subindo uma caixa d’água e de lá caiu.

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- Cale essa boca! - gritou ele levantando de chofre e indo até Lisa com a Luger na mão. Ela não pôde deixar de dar um pequeno salto de cadeira ao assustar-se com o grito de Cortez. - Você não sabe de nada, sua burra, estúpida. - continuou ele esbravejando, xingava a moça e brandia a pistola no ar. Num acesso descontrolado de ira, deu uma coronhada na testa de Lisa que caiu atingida por tão violenta pancada. O assassino não se preocupou em ver como a moça estava, ao contrário, desferiu um chute com a ponta do sapato na costa dela. Satisfeito, ele voltou para a mesa tornando à sentar-se do mesmo jeito que estava anteriormente. Lisa Chambers não sentiu o pontapé, de sua testa escorria um grosso filete de sangue. O clima naquela noite parecia agradável, a temperatura subia rapidamente e a possibilidade de nevar tornou-se remota. Entretanto, um pouco antes das nove da noite uma forte chuva desabou. As ruas de Chinatown pareceram limpas, a sujeira era arrastada pela chuva que caía e se precipitava para dentro dos bueiros. O limpador de para-brisas à velocidade máxima quase não dava conta de manter o vidro da Ferrari de Wilson transparente o bastante para ele poder enxergar a rua. Só depois de terem passado duas vezes por aquele trecho é que Duncan viu o número em uma placa na portaria de um edifício onde se lia em outra placa ao lado: Condenado. Era o lugar. Wilson encostou o carro na calçada próximo à entrada do prédio. O endereço que Cortez havia dado era o de um edifício condenado de uns doze andares e Duncan percebeu que a possibilidade de Wilson entrar lá e encontrar-se com Cortez em dez minutos era pequena, murmurou uma praga baixinho para que o colega não o ouvisse. Enfiou a mão no bolso do paletó retirando

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um objeto que entregou ao companheiro após um segundo de hesitação. Sem apanhar o objeto Wilson o observou e perguntou: - O que é isso? - Ora bolas, você sabe muito bem que é uma arma ou você acha que numa situação dessas eu lhe daria uma barra de chocolate? - Não posso levá-la comigo... - É claro que pode - Duncan estava sensivelmente tenso, temia pela segurança de seu amigo que pretendia entrar desarmado na cela de um tigre faminto - é pequena, uma Beretta 22 MIX M2, dispara sete tiros e é semiautomática, você pode levá-la dentro do bolso! Wilson hesitou. - Vamos - insistiu Duncan - Pegue-a! É um edifício de uns doze andares, posso não chegar a tempo e você terá que se virar sozinho. Faça isso por Lisa, de que adianta tirá-la das mãos de Cortez e morrer em seguida? Aposto que ela sentirá remorso pelo resto da vida. Não estrague a vida dela! Ron Wilson apanhou a Beretta e colocou-a no bolso do sobretudo. Olhou as horas no relógio digital de pulso, eram 8h52. Abriu a porta do carro e saiu. A água molhou um pouco o assento do motorista, Duncan limitou-se a esperar. Era um prédio escuro, a luz vinda das ruas penetrava pelas aberturas onde outrora havia janelas, mas que agora só restava os buracos. Não havia porta nos antes habitados apartamentos e a água da chuva inundava o piso de todos os andares provocando enormes poças que vazavam pelas lajes, havia goteiras por toda parte. Nos andares inferiores também existia ratos e nos de cima apenas a sujeira compunha o estado de abandono em que se encontrava o prédio. Andar por andar, cada apartamento e cada cômodo era cuidadosamente vasculhado por Wilson, vez por outra encontrava

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sinais de que mesmo naquele estado o prédio era eventualmente utilizado por pessoas que deixavam escritos nas paredes desde seus nomes até citações poéticas, isso sem falar na enorme quantidade de pornografia. No sétimo andar encontrou uma caixa cheia de revistas em quadrinhos do Homem-Aranha, protegidas em um canto aonde a chuva e as goteiras não chegavam, havia um pôster do herói em cima da caixa, quem entrasse ali jamais o teria encontrado e Wilson só o fez porque vasculhava cada canto em busca de indícios que mostrassem a presença de Lisa ou de Cortez. Achou o primeiro sinal dela no décimo andar no meio da escada, era um blazer feminino deixado ali com o propósito específico de fazê-lo subir. Até chegar ao último andar Wilson ainda encontrou um sapato, uma saia, e o sutiã. Ao abaixar-se para apanhar essa última peça de roupa ouviu a voz de Cortez. - Ufa! Pensei que não fosse chegar mais, demorou tanto que achei que você havia desistido. Vire-se bem devagar... assim... está armado? O policial negou com um movimento de cabeça. - Que bom, assim não haverá complicações... - Onde está a moça? - perguntou Wilson com sensível interesse. - Lisa? Lisa Chambers? Está amarrada e amordaçada ali naquele quarto - apontou com a Luger para o lugar - peça pra ela lhe dar um sinal. - Lisa! - chamou Wilson e como resposta ouviu um gemido seco vindo da garganta que só alguém amordaçado é capaz de emitir - muito bem, Cortez, o que você quer? O bandido riu alto soltando gargalhadas. - Quero que você pague o preço pela morte de José! - E qual é esse preço? - inquiriu o policial embora já soubesse a resposta. - Sua vida!

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- Vai me matar e daí? Quero que você solte Lisa antes. O último andar possuía uma peculiaridade, a maioria das paredes havia caído, restando somente o esqueleto da estrutura e uns poucos cômodos num dos quais estava Lisa. Aquelas paredes caídas formavam montes, sentado sobre um deles estava Cortez. - Não sou tão ingênuo quanto você pensa Wilson, se soltar a moça e matar você depois não terei garantias para sair do prédio. - Mas vim só, não há ninguém comigo. - E se isso for mentira? - Acha que eu arriscaria a vida de Lisa contrariando suas condições? - Faz sentido o que você diz - disse sem disfarçar seu sarcasmo - soltarei a moça. Antes, porém, é melhor acabar com você. - apontou a Luger para a cabeça de Wilson, daquela distância seria muito difícil que Cortez errasse. A chuva pesada que caía inquietava mais ainda a Duncan. Estava nervoso com o imaginar da situação que o amigo estava enfrentando dentro daquele velho monstro de concreto. Os dez minutos que dera a Wilson já estavam quase no fim, mas não teve paciência de esperar o minuto e meio que faltava. Saiu do carro fechando a porta com cuidado para não fazer ruído algum, embora isso fosse totalmente desnecessário, pois o barulho da chuva incidindo na calçada, nos toldos das lojas e na carroceria dos carros estacionados nas cercanias, tornaria quase inaudível o ruído da porta fechando-se. Ao entrar no prédio o murmúrio do vento naquelas paredes era arrepiante. Ao contrário de Wilson, Duncan esquadrinhava tudo com rapidez, procurando não se deter em nada que não fosse de interesse imediato. Acabando de investigar o segundo andar o policial Duncan percebeu que havia passado dois minutos dos dez e aumentou ainda mais sua velocidade. Nem percebeu o caixote de revistas ao

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passar pelo sétimo andar, seu coração batia descompassado. À medida que subia percebia que só encontraria Wilson no último andar, Cortez usou desse expediente para deixar o amigo mais tenso ainda. Achava-se há alguns metros da escadaria que levava ao último andar quando ouviu vozes, com a Smith&Wesson.44 Special firme em sua mão direita iniciou a subida devagar e silenciosamente. A laje do piso superior estava na altura de seus olhos, mais um degrau e pôde ver Wilson em pé, de costas, com as mãos largadas para baixo. Na sua frente estava Cortez com uma pistola antiga apontada para ele. Ouviu-o dizer que ia matar seu companheiro e não pensou duas vezes antes de agir. Lisa acordou com uma forte dor de cabeça, estava com as mãos amarradas com um barbante forte e a boca amordaçada com um lenço. Notou que havia sido levada para outro lugar, não muito diferente do anterior, estava em ruínas. Aproximou as mãos atadas da boca procurando morder as cordas, contudo o pano a impedia. Era difícil retirar o lenço que fora esticado de tal forma que lhe causava até uma sensação de enjôo, se tivesse comido alguma coisa naquele dia por certo vomitaria tudo e talvez até se afogasse no próprio vômito que ficaria preso pelo lenço. O chiado da chuva vinha aos ouvidos dela acompanhado do vento que trazia respingos molhando-a. De repente a voz de alguém que parecia ser Wilson chamou seu nome. O máximo que conseguiu responder foi um gemido. Estavam conversando do outro lado da parede, era Wilson e Cortez. A descoberta trouxe-lhe uma nova preocupação: Wilson corria perigo! Um tijolo quebrado poderia cortar o barbante, arrastou-se até um monturo de entulhos de alvenaria e esfregou com força a corda que começou a puir trazendo-lhe mais coragem para

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continuar. Livre daquelas amarras desataviar-se daquela mordaça foi coisa fácil. Sem fazer barulho foi até a abertura da porta assustando-se com o que viu. Cortez segurando a Luger, sorria. A arma estava apontada para Wilson que permanecia impotente diante dela. Lisa fitou o dedo de Cortez iniciar o aperto fatal do gatilho e gritou correndo a seguir no rumo do assassino. Wilson tentava manter-se calmo, estava sem proteção alguma, só havia um pilar próximo que podia usar como escudo, mas este distava o bastante para não ser alcançado a tempo. Olhou fixamente para os dedos de Cortez na arma. Só havia uma pequena chance de sair vivo, no último momento se jogaria no chão e rolaria para longe, sacaria a Beretta que Duncan dera e atiraria. Ouviu o grito de Lisa um pouco antes de jogar-se no chão, e também o disparo de uma arma. Duncan puxou o gatilho de sua arma ao mesmo tempo que Cortez. Ao ver Lisa aproximar-se gritando, o assassino desviou seu disparo sem ter certeza se acertara ela ou Cortez, pois em seguida um líquido quente espirrou no rosto dele deixando-o um pouco atrapalhado. Passou a mão nos olhos limpando-os, e ao olhar para sua mão assustou-se, era sangue. Inicialmente pensou que estava ferido, mas logo deu-se conta de que não fora atingido, até mesmo porque no lugar onde se encontrava era pouco provável isso ter acontecido. Subiu o lance restante da escada, sua atenção ficou dividida entre Cortez que se levantava procurando a pistola que deixara escapar ao cair, Lisa que recuperava-se do tombo e Wilson, bem perto dele, caído com uma pequena parte do lado direito do crânio quebrada pelo tiro da Luger, ao redor do ferimento, no chão, havia uma pequena poça de sangue. Sua mente processou em segundos o que estava vendo, Lisa empurrara Cortez no momento em que este disparara desviando a trajetória da bala o bastante para atingir

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a Wilson quase de raspão, foi o sangue do companheiro que sujara-lhe o rosto. Nesse momento Cortez apanhava a Luger do chão, Duncan mirou na mão do assassino e atirou. O projétil certeiro arrancou a arma da mão de Cortez decepando três dedos, ele ajoelhou-se gritando. Duncan só conteve o impacto de atirar novamente porque Wilson precisava urgentemente ser levado ao médico. Lisa correu até o corpo caído do namorado, ao vê-lo de olhos abertos fitando o infinito não pôde conter as lágrimas que vieram acompanhadas de fortes soluços. Duncan ajoelhou-se ao lado dela e procurou sentir o pulso do amigo, notou o filete de sangue coagulado na testa dela. - Está vivo! - disse ele. Colocou o corpo de Wilson no colo e ainda armado ordenou a Cortez que descesse na frente. Relutante, porém ligeiro, o bandido obedeceu. Em pouco tempo estavam a caminho do hospital. Duncan dirigia e algemado à porta do seu lado ia Cortez. No banco traseiro Wilson deitado enquanto Lisa acariciava-lhe os cabelos encharcados de sangue. 14 Duncan estava desolado. Já fazia uma hora e meia que Wilson entrara para a sala de cirurgia e nada acontecia. Lisa pelo menos estava bem, havia tomado um sedativo e agora dormia alheia ao que estava acontecendo. Após terem chegado ao hospital telefonara para o Chefe Lieberman em sua casa e este veio pessoalmente acompanhado de dois policiais uniformizados que levaram Estélio Cortez, que recebera um curativo assim que chegara, para a prisão. Joseph Lieberman, porém, preferiu acompanhar Duncan na espera por

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notícias. De vez em quando olhava ansioso para a sala de cirurgia, leu indignado diversas vezes o aviso de proibido fumar. Josh Duncan, sentado no banco de espera com a cabeça apoiada nas mãos, rezava baixinho. Sentiu a mão de Lieberman apertar seu ombro esquerdo num apoio mudo, sentando-se ao lado. Mal havia sentado e um médico saiu da sala. A expressão que ele trazia no rosto desencorajou os homens, Lieberman, no entanto, foi até ao médico. Conversaram baixinho alguns minutos e o Chefe voltou a sentar-se ao lado de Duncan. - Os médicos fizeram tudo o que estava ao alcance deles, rapaz! - disse o Chefe tentando ser consolador. - Eles sempre fazem... - murmurou o policial. - Ele ficará em observação, o estado é grave, mas... Duncan encarou seu chefe firmemente, seus olhos verdes estavam cheios d’água. - Vá direto ao assunto, Lieberman, não precisa enrolar, sou policial e estou devidamente preparado para situações desse tipo. Lieberman abriu o jogo: - Wilson vai para o CTI, se escapar ficará com o cérebro lesado, irreparável... está em coma! Duncan não estava preparado. Levantou-se cambaleante com a notícia e saiu andando fingindo calma, Lieberman ainda tentou detê-lo dizendo alguma coisa, mas desistiu, ficou observando um de seus melhores policiais afastar-se. Assumiu a árdua tarefa de transmitir os fatos para Lisa Chambers. Um informante telefonara para Phil Brouke contando-lhe todas as novidades e depois de certificar-se indo ao hospital e subornando um enfermeiro que contou os detalhes. Foi rapidamente à redação de seu jornal e entregou uma matéria sobre o estado de saúde de Wilson a tempo de sair no jornal matutino. Ao amanhecer empreendeu uma busca para descobrir o paradeiro de Josh Duncan, sabia da amizade entre os dois policiais

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e queria saber como estava Duncan. Quando estava prestes a desistir achando que todos os seus contatos eram inúteis recebeu outro telefonema dizendo onde encontrar o policial que acabara de ser visto num bar. Às dez da manhã seu Buick Riviera estacionava em frente a um bar no Brooklin. Dirigiu-se ao barman, que era o seu contato, e este lhe indicou a mesa de Duncan. O detetive não parecia bêbado, estava sentado, havia um copo com uísque pela metade, uma garrafa de Jack Daniel’s, pelo menos ele tinha bom gosto e o jornal com a matéria de Brouke bem à vista. O repórter aproximou-se. - Posso sentar, Duncan? Josh deu de ombros. Brouke puxou a cadeira e sentou-se. - Você não perdeu tempo, não é Brouke? - disse Duncan voltando os olhos para o jornal. - Tenho obrigação de informar as pessoas. - É... eu sei. - Se não fosse eu, Duncan, seria outro. Pelo menos eu conhecia... conheço Wilson o bastante para ter ressaltado suas qualidades como investigador e seus serviços. Outro repórter relataria o caso como apenas mais um dos policiais que morrem na violência da noite nova-iorquina. - Você tem razão, Brouke. Quer beber? Ele aceitou e fez um sinal para trazerem um copo. Serviuse da bebida e depois de um gole continuou. - Agora você está só no caso do Estuprador. - Isso agora é o que menos me preocupa. Se eu tivesse chegado um pouco antes lá teria evitado o que aconteceu a Wilson. - O quê? Não me diga que você está se culpando? O que menos Wilson quereria se estivesse aqui te vendo seria saber que você está se culpando pelo que aconteceu com ele. Pare com isso, Duncan. Seu amigo era um detetive experiente, pelo que consta

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mais até do que você. Ele sabia o que estava fazendo, se houve alguma falha foi ele que a cometeu. - Droga, Brouke, você acha que já não pensei nisso, pensei e repensei, o que aconteceu está gravado em minha mente como numa fita de videocassete que repasso diversas vezes procurando a falha. Tentei até jogar a culpa na namorada dele, acontece que ela só estava tentando defendê-lo, salvá-lo, então joguei a culpa sobre mim, fiz também o que estava dentro de minhas possibilidades, só que isso não muda as coisas. A essa hora Ron está na CTI daquele hospital e o safado do Cortez vivo atrás das grades. - Ele perdeu três dedos! - observou Brouke. - Isso é o mínimo que poderia ter acontecido àquele filho de uma... - Na prisão ele vai pagar mais caro do que se estivesse morto. - Será? Brouke ficou em silêncio. Duncan bebeu de uma só vez o que restava no copo, ia apanhar a garrafa para tornar a servir-se entretanto Brouke pegou a garrafa antes. - Já chega, Duncan. Se você quer se matar procure um método mais rápido. Josh riu e disse: - E se eu quiser sofrer? - Peça para alguém chicoteá-lo até à morte. - Não, muito dramático. - Dramático é fazer o que você está fazendo e ridículo também. - O que você veio fazer aqui, Brouke? Colher uma matéria para o seu jornal? - Duncan estava bêbado, só suas palavras o denunciavam, pois o resto parecia firme.

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- Vim ver se você precisa de ajuda, mexi meio mundo para achar você e ajudá-lo, agora se você quer continuar assim eu tenho mais o que fazer - Phil Brouke levantou-se. - O bom samaritano ataca outra vez - disse Josh caindo em risos. O repórter resolveu sair. - Brouke! - chamou Josh. Ele voltou até à mesa do detetive, sem dizer nada encarouo. - Desculpe-me. Acho que estou bêbado. Pode me fazer um favor? - Leve-me para casa, não estou em condições de dirigir assim e é meio difícil chegar lá andando. Brouke foi até ao balcão pagar a despesa, voltou em seguida para levar Josh para casa. Josh Duncan acordou à tardinha com dor de cabeça e um terrível arrependimento por seu egoísmo, pensou em Lisa Chambers, ligou para a casa dela, mas não houve resposta, fez outra ligação para o Bureau de Homicídios e o Chefe Lieberman informou-lhe que Lisa havia ficado no hospital como acompanhante, o chefe tentara dissuadi-la, porém foi em vão, ela insistiu em ficar ao lado de Wilson. Tomou um comprimido para dor de cabeça, deitou-se novamente e cochilou. Foi acordado pelo telefonema, era Carol, o que trouxe uma surpresa muito grande para Duncan, ela disse que sentia muito pelo que acontecera à Wilson e outras baboseiras sentimentais previamente estudadas, depois desligou sem falar absolutamente nada sobre a criança e Josh preferiu não perguntar, não quis demorar-se ao telefone com ela. Menos de dois minutos depois o aparelho voltou a tocar e Josh quase o jogou contra a parede. - Alô.

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favor.

Uma voz feminina perguntou: - É o policial Josh Duncan? - Sim, sou eu. - O Secretário Thorniton vai falar. Queira aguardar, por

- Detetive Duncan? - Eu mesmo. - Sinto muito pelo que aconteceu ao seu colega, espero que isso não o abale quanto ao seu trabalho. Compreendi perfeitamente a ausência do relatório de ontem que, aliás, seria o primeiro e quero acreditar que o de hoje não se atrasará. Duncan sentiu vontade de desligar. - Está bem, sr. Thorniton. O sr. tem algum tempo agora? - Para quê? - Para ouvir o relatório. - Ah, sim. Por telefone? - Sim, alguma objeção? - Não, nenhuma. - Então aqui vai - Duncan contou ao secretário todos os últimos fatos relacionados ao Estuprador de Manhattan, ao final do relato mencionou também seu plano, que fora elaborado juntamente com Wilson, para pegar o sujeito. - E por que não o prende logo? - Porque as provas que temos em nosso poder são insuficientes, e a única testemunha ocular é incapaz de reconhecêlo. Nossa alternativa agora é, sem dúvida, recorrer ao esquema que mencionei. - Muito bom. Quero dizer-lhe que realmente o acho muito capaz, Duncan. - Na verdade quem pensou nisso foi Wilson, eu colaborei no acréscimo de detalhes. - De qualquer modo creio ser meu comentário muito apropriado. Boa sorte Detetive Duncan.

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- Obrigado - e Duncan cortou a ligação. O detetive passou a mão no rosto e sentiu os pêlos da barba espetando, precisava comparecer ao Bureau e não podia chegar lá com aquela aparência horrível. No banheiro com o creme de barbear espumoso no rosto lembrou-se de que fora o repórter Phil Brouke que o levara para casa. Fizera papel de ridículo naquele bar que não sabia nem qual era o nome e qual era a localização. Precisava agradecer a Brouke a ajuda, o rapaz pelo menos não era um oportunista, poderia ter se aproveitado do estado de Josh para vasculhar alguma coisa em seu apartamento, mas ele agira como um amigo, talvez fosse mesmo um amigo. Terminou de barbear-se, apanhou uma garrafa de água Perrier tomando todo seu conteúdo pelo gargalo. Vestiu-se para ir ao Bureau. Não podia afastar-se de seu objetivo mais urgente: pôr fim às atividades do Assassino da Flor. Por certo seria Gibbs seu próximo parceiro, o que não seria uma má ideia, pois ele era muito esperto e dedicado ao serviço, o colocaria a par do plano que seria posto em prática ainda naquela noite, pois Linda Stacy certamente corria um sério perigo de vida e era dever deles protegê-la. Sua mente procurou afastar o interesse pessoal que possuía nela, havia um companheiro seu no hospital entre a vida e a morte e ele não podia se dar ao luxo de pensar em Linda como uma possível namorada, seu dever era o de um policial, mais tarde pensaria em sua parte humana. Como Duncan desconfiou, Stain Gibbs foi nomeado para assumir o lugar de Ron Wilson. Estavam reunidos na sala de Lieberman que havia recebido uma remuneração depois da última vez em que Josh esteve lá, mas quase nada mudara. Duncan sentiu aquela vontade de fumar enorme, pois o ambiente estava carregado da fumaça dos cigarros de Lieberman e de Gibbs. Lieberman voltou-se para Duncan:

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- Tome - entregou-lhe a Beretta que havia dado para Wilson - encontraram isso no bolso de Ron, mandei examinar o registro e descobri que era sua. - Obrigado. Bem - disse Duncan sem querer aprofundar-se em uma conversa sobre o amigo doente - vou expor pra vocês a estratégia concebida por Wilson para apanharmos o Estuprador. Foram até uma mesa grande e Duncan abriu um mapa. - Aqui está a casa de Linda Stacy. Logo atrás o beco, foi aqui que a moça foi atacada, haverá um homem nosso disfarçado. Na frente do edifício haverá mais dois homens que ficarão nessa loja. E outro homem, no caso eu, ficará no apartamento dela. Daí é só esperar ele aparecer. - Você tem certeza disso? - indagou Lieberman. - Absoluta. Na verdade era pra ele ter aparecido noite passada para impedir que a moça fizesse um retrato falado que levará à sua prisão, mas não apareceu, meticuloso como ele é, creio que deve estar armando uma forma de ir até lá sem ser notado. Por isso Gibbs, quero que você escolha os melhores rapazes para essa operação. - Pode deixar comigo. Agora diga-me uma coisa, como é que o Assassino sabe sobre o retrato falado? - Wilson e eu demos um jeito para que a informação chegasse ao ouvido dele. Linda na verdade não pôde ver o rosto do Assassino, muito menos eu, mas os jornais não disseram isso. Cuidamos para que a notícia não fosse divulgada. - Muito bem - disse Lieberman - só espero que tudo saia conforme o planejado. E o clima esteja favorável. - Quanto a isso não se preocupe - interveio Gibbs - De ontem para hoje a temperatura caiu cinco graus e o serviço de meteorologia promete dez a quinze centímetros de neve até à meia-noite. - Acho que isso é tudo, então.

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Não houve mais conversa entre eles. Gibbs saiu para providenciar os homens e Duncan foi para a casa de Linda Stacy. Ela preparava algo para comer quando a campainha tocou. Pelo olho mágico viu o detetive Duncan. - Oi, Josh - disse Linda abrindo a porta. - Como está, Linda? - Bem - disse ela enquanto sentava-se - esperei você noite passada, mas o detetive Gibbs disse que você estava de serviço em outro lugar. - É, estava. - Soube do que aconteceu com seu amigo... sinto muito... - Eu também. Ela pediu licença dizendo que precisava terminar o que estava fazendo e deixando-o à vontade. Voltou mais tarde com uma pizza fumegante de mussarela e duas latas de Diet Coke. - Já jantou? - perguntou colocando tudo na mesinha de centro. - Ainda não. - Gosta de pizza? - Você tá brincando. Quem em Nova Iorque não gosta de pizza? Comeram conversando sobre suas vidas, falaram muitas coisas, Linda falou de sua infância, de seu quase casamento, do irmão. E Duncan de seu divórcio, da academia de polícia, de seus pais estrangeiros e do caso Molina. O interesse que sentiam um pelo outro era quase palpável de tão aparente. - Você tem namorado? - perguntou ele secamente. - Não, por quê? - Por nada. Curiosidade. Ainda não achou alguém interessante? - Não é bem isso, mas é quase. - Como assim?

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- Os candidatos que aparecem estão interessados apenas em sexo com um compromisso de apenas algum tempo juntos para depois se mandarem. Não sou mais mulher para essas coisas, quando arranjar alguém quero que seja algo pra valer. Sei que você pode achar careta, mas eu acredito no amor. - Não, não acho. - Pois é, isso é muito difícil de encontrar. Duncan sorriu. - Às vezes pode estar perto da gente e não vemos - disse ele. - Será mesmo? - Escute, quando tudo isso terminar você aceitaria um convite para jantar comigo? - Estava pensando em perguntar isso a você. - Então, aceitaria? - Sim - disse ela corando - bem, vou tirar essa sujeira daqui - referia-se às sobras. - Eu ajudo. Suas mãos se tocaram, uma energia percorreu o corpo dos dois, seus lábios se aproximaram. O hálito um do outro se fez sentir depois de um beijo... um abraço... 15 A chuva da noite anterior o impedira de fazer o que tinha em mente. Ela, no entanto havia sido providencial, pois o impelira a pensar com mais clareza sobre tudo. A visão o enganara o tempo todo o fazendo pensar ver o assassino matando as moças, mas aquilo, ele tinha certeza, eram lembranças dos crimes que havia praticado. Matara todas aquelas mulheres e Allison Budaker havia sido a primeira. Vasculhou sua mente em busca do motivo que o levara a fazer aquilo e só uma suspeita surgiu como resposta, ainda que remota.

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Alisson Budaker sempre a amara, escolhera roupas para ele, iam juntos ao cinema e faziam uma série de coisas. A conhecera em uma palestra na universidade e amou-a muito. Um relacionamento perfeito, quase seis meses e nenhuma briga, só amor. Muitas vezes sentiu vontade de fazer amor com ela, mas Allie o repelia dizendo que era muito cedo para aquelas coisas e ele, resoluto, esperava. Uma ansiedade crescia dentro dele imaginando os momentos que futuramente partilhariam. As coisas, porém não foram bem assim. Até hoje sempre se lembrava do que aconteceu de uma maneira e agora outra havia surgido na sua mente. Certo dia, após uma investida inútil dele, eles brigaram, foi a primeira briga em meses de relacionamento, ela o ofendera chamando-o de descontrolado e eles se separaram. Poderia voltar e pedir desculpas, ela com certeza o perdoaria. Ele viajou. Resolveu passar aquele fim de semana fora de Nova Iorque. Quando voltou ela havia sido assassinada. Estuprada e morta! Pelo menos era isso que havia em sua cabeça até outro dia. Depois de encontrar a mala em seu quarto na mansão outra lembrança ocorreu-lhe e sabia que essa nova recordação é que era a verdadeira. Após a briga eles realmente romperam. No dia seguinte Polaro viu Allie conversar com um rapaz da equipe de basquete da universidade, ficou enciumado. O sujeito pegava nos cabelos dourados da moça e ela sorria. Observou os dois caminharem juntos até o ginásio e seguiu-os. O que veio a seguir foi deprimente, na escuridão do local divisou-a abraçandose com o sujeito beijando-o e a viu tirar a roupa apressada acompanhada pelo rapaz. Saiu dali para não ver o que acontecia, a dor no peito era forte demais e a vontade de vingar-se era a força motriz que o levou para casa e o fez planejar. Pagou a um dos empregados da mansão para passar o fim de semana em Las Vegas como recompensa pelos bons serviços

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que prestara em todos os anos em que trabalhara para ele. O homem ficou eufórico, Las Vegas era um sonho quase inatingível para ele. Polaro explicou-lhe que como infelizmente já era tarde naquela sexta-feira não poderia mais sacar dinheiro para dar ao empregado, mas que como este era de confiança entregou-lhe seu talão de cheques com alguns já assinados, preencheu o valor da passagem aérea de ida e volta e os outros com valores suficientes para que o homem passasse bem nos seus dias de folga. O resto não foi difícil, preparou sua vingança e dispensou todos os empregados restantes. Comprou roupas escuras, um par de luvas era imprescindível para não deixar impressões digitais, uma faca de caça com o gume liso e algo para fazer o crime ser atribuído a um assassino que provavelmente cometeria outros crimes depois. Não lembrava bem como ou onde havia aprendido a fazer dobraduras de papel, isso não importava mesmo, fez uma pequena flor com o papel alumínio de dentro de uma carteira de cigarros que achara na rua e estava tudo pronto. Faltaria apenas a oportunidade. Alisson Budaker tinha aulas no laboratório de química no sábado à tarde, quando saía da classe já era noite, ele conhecia o caminho que ela percorria. Foi assim que ele cometeu aquele primeiro crime mas não sabia ao certo o que o levara a cometer os outros, o que era até irrelevante pois já era tarde para arrependimentos. Se pudesse voltar ao passado não faria nada daquilo, como não podia, precisava consertar sua vida. A vida das moças não podia restituir e a sua não poderia estragar. Quão pouco havia aproveitado a vida desde que nascera e os crimes que perpetrara impediria que aproveitasse o resto dela. Era assim que pensava. Não podia e não queria ser preso. Harry ficaria decepcionado com ele, seu único amigo não ficaria nada feliz em saber que ele era um assassino. Não, não, isso não poderia acontecer.

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Era inevitável, outra morte deveria ser acrescentada à lista que Allison encabeçava, não deveria deixar Linda Stacy continuar viva, ela faria um retrato falado, o que seria o fim. Queria tê-la matado na noite anterior, a chuva forte, entretanto não deixou. O motor do Monza Classic gemeu, gemeu e não pegou, e se chegasse lá de táxi o motorista poderia identificá-lo mais tarde facilmente. Pensou até em alugar um carro, era perigoso também e preferiu não fazer isso. A sorte, contudo estava do seu lado, aquilo seria um aviso de que tudo daria certo. Ao comprar o jornal pela manhã viu a notícia que comprovou sua sorte. Um dos policiais que investigava o caso do estuprador estava em coma na CTI de um hospital. Isso faria por certo a concepção do retrato falado atrasar e era disso que precisava. Não custava nada, no entanto, confirmar, ligou para o Departamento de Homicídios, conversou com uma moça pedindo a ela que verificasse se o retrato que Linda Stacy havia contribuído para a concepção estava pronto e recebeu uma negativa. Perguntou então a que horas poderia passar lá e apanhálo, caso ficasse pronto, e ela disse que não havia programação para aquilo hoje. Certamente o policial que saiu ileso, estava desnorteado, adiou a fotografia. “A sorte realmente estava do seu lado” - Pensou sorrindo consigo mesmo. Todo o material que havia queimado e jogado no lixo era necessário novamente, não se lembrava de como adquiriu aquelas roupas ou onde, isso porém era fácil. Em menos de cinco horas estava com tudo o que precisava: a planta do prédio de Linda Stacy que conseguiu dando um dinheiro extra ao funcionário do Registro de Obras, um novo par de luvas, novas roupas, enfim tudo que precisava para sua última noite como o Estuprador de Manhattan. Achou estranho pensar nesse título relacionando-o a ele mesmo, até sua mente se recusava a recebê-lo. Pensou que isso tudo ainda era restos do engano das visões.

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Parecia até uma piada, chegara a odiar tanto o assassino e agora fazia tudo para protegê-lo. Tentava manter-se calmo, o nervosismo o deixava muito tenso e tinha medo de falhar. Não se lembrava de como havia feito para acalmar-se durante os crimes anteriores e essa capacidade agora fazia falta. Quase caiu para trás quando o telefone de repente começou a tocar. Olhou com os olhos arregalados para o aparelho como quem vê uma cobra após ter sido picado por ela. Decidiu não atender, não estava com vontade, qualquer que fosse a pessoa que estava ligando não lhe trazia o menor interesse. Um pensamento, contudo o sobressaltou, e se fosse a polícia? Ele não atendendo ao telefone despertaria o interesse dos policiais que o estavam vigiando, eles mandariam alguém à sua quitinete e ele teria o trabalho de esconder tudo. Resolveu atender a chamada: - Alô - disse. - Oi. Lucas, você está bem? - Oi, Harry, é você? - Claro que sou eu, não reconhece mais minha voz? - Reconheço sim, é que estou dando uma arrumada na bagunça que está tudo isso aqui, o que me deixa um pouco aturdido. Como tem passado? - Estou bem, Lucas. Preocupei-me com você, saiu naquela noite sem dizer nada, pela manhã vieram aqueles dois policiais aqui e fizeram uma porção de perguntas. - Perguntas? - Sim. Se você era confiável, se eu achava que você pudesse ser o assassino daquelas moças, essas coisas que eles costumam perguntar. Queriam que eu desse meu parecer como psicólogo acerca de você. É claro que eu me neguei, afinal das contas sou um profissional e não revelo o que meus pacientes me confidenciam. O motivo não foi porém, basicamente esse, é impossível para mim separar nossa amizade das seções do consultório, portanto falei de

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você do ponto de vista de um amigo e eles pareceram muito satisfeitos ao sair. - Oh, Harry, obrigado pela sua confiança amigo. - Ora, por nada. Mesmo que existisse alguma coisa eu não diria nada. - Que tipo de coisa? - Sei lá, do tipo que esses policiais precisam para desconfiar de alguém. - Ah, sei - Polaro sentia-se satisfeito. - Por falar nos detetives, você viu o que aconteceu com um dos que investigam o caso do Estuprador? - Não, o que foi? - mentiu Polaro. - Foi baleado na cabeça por um inimigo antigo e está muito mal num CTI - Que pena. Bem, Harry, eu estou bem, estou até me sentindo disposto, tanto que estou até fazendo uma arrumação aqui, e falando nela, preciso desligar para concluí-la. - Está bem, Lucas, cuide-se! - Adeus, Harry. Polaro voltou-se para seus afazeres, precisava concluí-los, pois já era quase sete da noite. O tempo lá fora estava bom, mais um ponto a seu favor. Chegou o momento. Luís Polaro estava preparado para seu último trabalho, do pescoço para baixo não havia uma só parte do seu corpo à mostra, a máscara de meia também preta estava presa na cintura, a faca de caça presa em um coldre atado em sua perna. Todo o trajeto que seguiria desde o momento em que saísse de seu apartamento até ao de Linda Stacy estava gravado em sua mente. Abriu um pouco a porta, só o suficiente para ver se havia alguém no corredor. Um homem gordo e careca, que até parecia estar polida de tão brilhante, escolhia dentre as chaves que haviam no molho em

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suas mãos aquela que abriria seu apartamento. Quando a porta foi aberta, colocou as duas sacolas que estavam no chão ao seu lado para dentro e desapareceu. Polaro esperou alguns instantes e saiu. Mal havia fechado sua porta quando uma senhora idosa saiu de seu apartamento. Polaro ficou estático, estava com a aparência de um espião e ela acharia aquilo muito estranho. A velhinha, porém não se voltou para onde Polaro estava, trancou sua porta, foi até ao elevador e quando este chegou, entrou nele. Em nenhum momento o havia visto. Ele respirou bem fundo. A passos largos abriu a porta de incêndio e iniciou a descida, por aquele trajeto era praticamente impossível deparar-se com alguém, mesmo assim desceu a escada com toda velocidade e pulando de três em três degraus para ganhar tempo. Chegou ao subsolo quase sem fôlego. Evidentemente haveria uma viatura policial próximo à rampa de saída do subsolo, por isso seria bobagem sair por lá. Nos fundos da garagem havia uma pequena sala onde ficavam os controles do aquecimento central à gás. Nela havia uma vigia próxima ao nível do chão pela qual poderia sair, fizera uma verificação antes para certificar-se. Chegou ao local esgueirando-se pelas sombras. Uma vez deixara suas chaves caírem no chão daquela garagem e amaldiçoara aquela iluminação vagabunda. Hoje, essa mesma iluminação era para ele uma bênção. A janela estava destrancada, uma irresponsabilidade do mecânico agora isso, porém era aceito como ajuda da sorte. A pequena esquadria não abriu com facilidade, algo a impedia e Polaro sobressaltou-se. Algumas pancadas fortes a fizeram ceder. Apoiou-se numa falha da alvenaria da parede e precipitou-se pelo buraco empurrando-se até sair. Nevava. O traje negro que usava não era mais uma camuflagem perfeita, pois contrastava com o branco da neve que

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começava a acumular-se nas calçadas, nos capôs dos carros e nas coberturas. Polaro pôs-se a andar evitando as ruas claras e movimentadas, preferia as escuras e com poucas pessoas. Cinco quarteirões distantes de seu prédio foi a uma rua com o tráfego maior e apanhou um táxi. Forneceu ao motorista um endereço qualquer em uma rua que distava mais ou menos uns dois quarteirões da casa de Linda Stacy. Procurou sentar-se fora do alcance visual do retrovisor interno e esperou ansioso. Assustou-se quando o motorista disse que haviam chegado, pagou-lhe a corrida e quando o carro dobrou a esquina iniciou outro percurso a pé até à casa da sua próxima e última vítima. Pelo mapa que havia estudado existia um beco que como muitos naquela parte da cidade não possuía saída. A planta do prédio mostrava uma janela que dava para esse beco, era por onde pretendia entrar. Sua mente não recordava direito o que aconteceu na noite em que tentara matar Linda, alguma coisa bloqueava suas lembranças com relação a ela, tivera que reestudar todos os preparativos para aquela noite e isso despertou nele uma autoconfiança ainda maior. Chegando ao beco notou que a neve subira de nível nas calçadas. Passou por um marcador de nível esculpido em uma parede e viu que a precipitação alcançara 5 cm. O frio aumentara e a despeito de estar usando roupas quentes sentiu-o penetrá-las fazendo com que se arrepiasse. Localizou a abertura no fundo do prédio sem dificuldades. Era alta e teria que usar a corda e o gancho que havia trazido na sacola. Ao olhar em derredor percebeu que subindo no contêiner de lixo e usando mais umas latas como escada a alcançaria mais facilmente. Jogou a sacola no lixo e armou sua escada improvisada. Um ruído do outro lado do beco em uma parte escura chamoulhe a atenção. Voltou-se para lá e viu um mendigo que tentava embrulhar-se com uma porção de jornais velhos. Percebeu que o

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mendigo o havia visto, ainda não havia colocado a máscara e ele poderia reconhecê-lo, mas mesmo àquela distância? Era melhor não facilitar. Desceu do contêiner e acercou-se do homem. De repente o mendigo colocou os jornais para o lado e em sua mão apareceu uma pistola 765. - Parado aí sr. Polaro, está preso! O susto fora enorme. Como não pensou nisso antes? Era um policial disfarçado espreitando-o, fizera barulho de propósito a fim de que se aproximasse para ser pego. Que asneira cometeu! Não podia ser preso. O homem até o conhecia, então desconfiavam dele, ou seria coincidência? O policial levantou devagar sem afastar de Polaro a mira de sua arma. - Não há outras entradas sr. Polaro, ou você entrava pela frente ou por trás, como vê foi muito fácil para nós deduzirmos que viria. Agora - continuou o policial - estenda sua mão esquerda para que eu a algeme. Faça isso bem devagar, se eu me assustar posso fazer uma besteira. Estava perdido, seria preso e humilhado por um tira que se achava mais esperto do que ele, que executara os crimes mais insolúveis dos últimos meses. Não, isso seria humilhante demais para acontecer. O estalido da algema fez-se ouvir, o pulso esquerdo de Polaro estava preso a ela. O criminoso virou seu pulso segurando o braço armado do policial e antes que este reagisse um violento golpe atingia-lhe a região genital. Curvou-se de dor e foi atingido por outra pancada na nuca caindo desfalecido. Apanhou a arma que havia caído e colocou na cintura. Ficou feliz por ter se deixado convencer por Harry a receber aulas de caratê, o amigo ensinara-lhe vários golpes de defesa pessoal um dos quais entrara eficazmente em ação contra o policial surtindo efeito maior que o desejado. Procurou a chave da algema nos

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bolsos do falso mendigo, livrou-se da argola com um sorriso. Aquele homem não tinha a menor chance de ser deixado vivo, ele o reconheceu e com isso assinara seu atestado de óbito. Retirou sua faca do coldre e passou o gume afiado no pescoço do policial abrindo um talho que o matou em segundos. Um enjôo passou-lhe pelo estômago e quando deu por si estava vomitando em jatos convulsivamente. Ao acabar estava suado e o frio enregelando as gotas de suor causou-lhe arrepios que o fizeram tornar a si. Lentamente voltou ao contêiner subindo por ele até à janela e penetrou no prédio. Estava um pouco atordoado, mas ciente do que tinha a fazer. Procurou a porta do apartamento de Linda Stacy e encostou o ouvido esquerdo a ela tentando auscultar algum movimento ou ruído de pessoas. Nada! Se havia outra pessoa lá dentro além da moça ou estava dormindo ou seria pego de surpresa de qualquer maneira. Sacou a 765 do policial, nunca havia tocado numa daquelas antes, a que Harry utilizou para ensiná-lo a atirar era uma pistola automática, porém essa era mais fácil de ser manejada. Girou a maçaneta com uma das mãos, a outra estava ocupada com a arma. Estava destrancada! “A máscara!” - lembrou-se assustado que ainda não a colocara. Teria que tomar mais cuidado, era seu segundo vacilo naquela noite e um terceiro poderia ser fatal. Colocou-a. Era um pouco ruim respirar dentro dela, mas isso não seria empecilho. Voltou a girar a maçaneta e pulou para dentro do apartamento. Ao lado do policial morto o rádio-transmissor jazia desligado. Oliver Kilbourn o desligara ao avistar Polaro. Talvez quisesse a glória de ser o policial que prendera o Estuprador de Manhattan. Foi uma decisão que custou-lhe a vida.

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16 Stain Gibbs dentro de uma loja de antiguidades lia uma revista que ali encontrara. O dono do estabelecimento ficou muito desconfiado quando o detetive chegara lá com um mandato do juiz para utilizá-la como base de apoio em uma investigação. O proprietário, Sr. Giordano, só cedera totalmente quando Gibbs o pôs a par de que seria indenizado por qualquer prejuízo que viesse a ter. Teriam ficado em um carro e evitado toda essa complicação, mas homens dentro de um carro parado chamam muita atenção num bairro daqueles. - Ollie deve estar roendo um frio desgraçado, não é Gibbs? - disse o outro policial. - Foi ele que escolheu ficar lá, mas está bem agasalhado. Mark Finker esfregou as mãos enluvadas na tentativa de aquecê-las provocando um leve ruído. Estava excitado por participar de uma aventura mais empolgante, afinal desde que entrara para a polícia só havia prendido alguns gigolôs, trombadinhas e prostitutas que não trouxeram a menor emoção. - Finker! - Sim, Gibbs. - O relatório de Ollie está atrasado. - disse Gibbs aludindo ao relatório que deveria ser feito a cada quinze minutos, que o policial Oliver Kilbourn ficaria de prestar pelo rádio da viatura. - Com efeito. Exatos cinco minutos de atraso. Gibbs coçou a cabeça desalinhando um pouco o cabelo crespo e negro. Caminhou até a vitrine da loja, afastou as persianas e observou o movimento na rua por alguns instantes pensativo. - Tente se comunicar com ele - ordenou Gibbs. O policial Finker obedeceu, tentou uma, duas, três e no final da quarta informou: - Não consigo estabelecer contato, parece até que o rádio dele foi desligado.

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- Que droga! Escolhi vocês dois para que não houvesse esse tipo de problema. Tente mais uma vez. Finker balançou os ombros, outra tentativa em vão. - Será que ele congelou-se, Gibbs? - Com todo aquele agasalho? É impossível. O mais provável é que aquele sacana tenha desligado o rádio sem querer, por descuido. - Acho difícil. - Ora, por quê? - Esse modelo possui o botão embutido, fica difícil ser desligado por acidente. O que pode ter ocorrido é ele ter mexido na freqüência. - Vou até lá - decidiu Gibbs apanhando seu agasalho e verificando a sua arma. O frio lá fora estava de rachar. Gibbs via o ar se condensar a poucos centímetros de seu nariz. Procurava andar pelos lugares onde havia menos neve amontoada para ser mais rápido. Deu a volta no quarteirão em menos de seis minutos. Estava cansado. O ar frio cansa bem mais depressa qualquer pessoa mesmo que esteja preparada. Estava chateado, além da irresponsabilidade de Oliver ele ainda teria que aturar a neve escorregadia. Era a pior época do ano para ele, uma cama aquecida seria sua maior ambição naquele momento se não estivesse trabalhando, nesse caso, ficaria contente com uma caneca de chocolate quase fervendo. Próximo ao beco passou a andar pelos lugares escuros para evitar de ser visto. Entrou nele devagar procurando enxergar o policial Kilbourn. Só mais adiante é que viu o contêiner de lixo com três latas em cima formando uma pirâmide, alguém poderia usar aquilo como escada para chegar até a janela. Que estranha arrumação era aquela! Uma forte desconfiança passou pela sua mente e pôs-se a andar rápido procurando pelo policial.

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- Kilbourn! - chamou ele sem altear demais a voz, não queria ser ouvido por outras pessoas. Ninguém respondeu. As pegadas deixadas por Polaro ainda estavam visíveis. Os olhos negros de Gibbs viram as que iam na direção do contêiner e as que voltavam rumo a um determinado local no beco. Foi até lá. A temperatura já havia deixado o corpo do policial Kilbourn frio. Havia sangue congelado na neve e sobre uma poça a algema aberta. Gibbs compreendeu o que havia se passado ali. Kilbourn tentara prender o Estuprador e fora assassinado por ele. Vasculhou rapidamente os bolsos do policial morto, precisava achar o rádio e avisar Duncan, o aparelho contudo não estava em lugar algum. Procurou-o ao redor e achou-o sob uma fina camada de neve semi encoberto. Estava desligado, “será que o assassino o desligou após ter matado Kilbourn?” - pensou Gibbs. Ligou o aparelho e ele não funcionou, acionou o botão várias vezes sem surtir efeito. Ao ser desligado por Kilbourn o rádio estava quente e sendo deixado na neve derreteu uma pequena parte que penetrou nos circuitos e invalidou a bateria. Gibbs estava com receio de que chegasse tarde demais para ajudar Duncan que seria pego de surpresa pelo assassino. Precipitou-se na direção do contêiner Estava ofegante, era difícil respirar, assim mesmo o detetive subiu correndo o contêiner alcançando a janela em instantes. Quando iniciaram aquela operação ele fora pessoalmente entregar o rádio-transmissor para Duncan no apartamento da moça, portanto não teve dificuldades em achar a porta certa. Girou a maçaneta com força, já com a 765 empunhada, a porta estava trancada. - Abram, é a polícia! - gritou esmurrando a madeira. Não houve resposta, porém ouviu alguns ruídos, eram vozes. Estava acontecendo algo lá dentro e Gibbs tinha certeza que não era coisa boa. Afastou-se da porta e colocou- se à parede

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oposta do corredor. Pouco mais de um metro era insuficiente para tomar impulso e arrombar a porta, ele tentou mesmo assim. Um baque surdo quebrou o silêncio e a porta apenas rangeu. Além de forte, Gibbs devia ser uns três ou quatro anos mais jovem que Duncan, seu corpo negro já havia enfrentado situações bem mais difíceis e não seria aquela porta que o deteria. Afastou-se novamente e dessa vez desferiu um pontapé na fechadura, a porta pareceu ceder um pouco motivando-o a continuar tentando, outro chute e ela quase abriu, e no terceiro escancarou-se. Duncan ainda tentou sacar sua arma ao ver aquele vulto negro adentrar o apartamento de Linda Stacy, a 765 que o sujeito possuía apontada para ele o intimidou de ter qualquer reação perigosa. Ele e Linda passaram momentos agradáveis ali juntos. Stain Gibbs passara por lá e entregara o rádio da viatura e pouco depois dele ter saído Linda foi deitar. Sem nada a fazer a não ser esperar, o detetive Duncan folheou repetidas vezes um exemplar do Times, quando decidiu começar a ler, a porta abriu-se e o Estuprador de Manhattan apareceu de arma em punho. Polaro viu-se frente a frente com aquele policial a quem tentara convencer sobre suas visões ainda outro dia. - Onde está a moça? - indagou o assassino mudando a voz para não ser reconhecido, a própria máscara o ajudava a disfarçá-la e ficou satisfeito com o resultado. - Ache-a você mesmo! - desafiou Duncan. - Não vou perguntar a terceira vez, onde está Linda Stacy? Duncan teve uma idéia súbita, não sabia como o assassino tinha despistado Gibbs e os outros, agora era por sua conta. - Você acha que somos tolos - iniciou Duncan seu blefe desde ontem que ela não está mais aqui, não quisemos arriscar a vida dela nessa operação. - Mentira!

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- Acredite se quiser, nesse momento deve estar vindo para cá uns quatro policiais armados... - Cale a boca! Sei que isso é um blefe. Tire sua arma com a mão esquerda e com a ponta dos dedos, depois jogue-a sobre o sofá. O detetive obedeceu. - Agora afaste-se e encoste naquela parede. Duncan hesitou um pouco, se obedecesse o caminho até ao quarto onde Linda dormia ficaria desimpedido, mas não havia nada a se fazer. Com efeito Polaro foi até a porta, a distância entre ele e Duncan era mantida pois este se encontrava junto à parede oposta. Linda acordou-se com aquelas vozes na sala, não pôde compreender muito bem o que estava acontecendo, em parte porque não dava para ouvir direito e em parte por ainda estar zonza pelo sono. Decidiu averiguar. Mal entrou na sala e sentiu uma pesada mão segurar sua blusa puxando-a com força. Era o assassino das moças que voltara. Viu Duncan parado observandoa. - Quer dizer que ela não estava aqui. - foi a vez do assassino desafiar - você se deu mal, pensou que eu seria ingênuo de acreditar em você. Duncan desesperou-se, não queria ver aquela moça ferida, ainda mais morta, não permitiria aquilo. Desde que tudo começara muita gente já havia morrido, não deixaria que mais uma vida fosse ceifada. - Escute, cara - atalhou Duncan antevendo uma possível chance de Linda ser machucada - a moça não sabe de nada, ela não conseguiu ver você naquela noite no beco, estava muito escuro, você não lembra? O assassino não lembrava. - Nós a usamos - continuou - dissemos a você que ela faria um retrato falado seu para poder atraí-lo para uma armadilha...

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Um baque na porta interrompeu Josh, uma voz lá fora ordenou que abrissem a porta, era a polícia, Gibbs estava lá fora. Polaro ficou mais nervoso, o braço ao redor do pescoço de Linda apertava e afrouxava conforme os ruídos seguiam-se. Algumas pancadas a mais e a porta cedeu. Um policial negro e alto apontava a 765 diretamente para Polaro cuja arma estava direcionada para Duncan, mas ao surgir Gibbs passou a mirá-la para a têmpora direita de Linda. - Os dois permaneçam quietos! - berrou Polaro - ou terei que matar a menina na frente de vocês. Você - apontou para Gibbs com o cano da pistola voltando-a em seguida para a posição anterior - Jogue sua arma no chão. Gibbs obedeceu. - Agora - prosseguiu Polaro - apanhe o walkie-talkie e diga aos seus companheiros colocarem um carro à minha disposição e que não tentem nenhum heroísmo senão a moça morre! Gibbs pegou o aparelho e transmitiu as ordens, sentia o sangue ferver de tanta vontade de pular sobre aquele assassino e dar-lhe uma surra. Do lado de fora, Mark Finker correra para o carro, pediu reforços pelo rádio e estacionou na porta do hall afastando-se para o outro lado da rua. - Vá para junto do outro - disse o assassino ao policial Gibbs. Não queria mesmo matar a moça, mas se não o fizesse ela o delataria. A não ser que aquilo que Duncan dissera fosse verdade, que na noite em que ele tentara estuprá-la estivesse escuro mesmo e ela não o reconhecesse. Não havia como obter a confirmação, teria que matá-la por via das dúvidas. Se fosse verdade, inclusive, teria que matar o policial para que ele não delatasse. Duncan parecia adivinhar sobre o que a mente do assassino divagava e esperava a reação dele a qualquer momento, viu quando ele virou o cano da arma para sua direção e disse para Gibbs num sussurro afastar-se dele. O estampido do disparo da

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765 foi ensurdecedor, Gibbs levou instintivamente as mãos aos ouvidos tentando inutilmente protegê-los. Linda gritou. Os olhos dela encheram-se de terror quando Duncan com as costas na parede e as mãos abraçando o peito lançou-se ao chão. Na parede uma mancha vermelha de sangue sujava o bege da pintura. Aproveitando-se do terror daquele momento, Polaro segurou Linda mais forte ainda e arrastou-a para fora. Não foi difícil chegar ao carro. Olhou no banco de trás a procura de algum policial escondido. Empurrou a moça para dentro, ligou o automóvel e saiu em disparada. Linda manteve-se em silêncio por boa parte do tempo, quando finalmente disse alguma coisa sua voz soou trêmula e quase ininteligível. - Por que? Polaro estava sufocando com a máscara, mas ainda não chegara a hora de livrar-se dela. Ouviu a moça dizer algo sem que nada conseguisse entender. - O que? - Por que você mata mulheres? Por que escolheu a mim para ser uma de suas vítimas? Ele sorriu por baixo da máscara. - Não sei. - respondeu sem dar importância à pergunta. - Não sabe? - Não, não sei. Existem muitas coisas que não sei e nem por isso deixo de fazê-las. Creio que tenho uma resposta para você, mas é tão difícil de entender que prefiro não dizer, mesmo assim de nada vai adiantar você saber. - E por que não? - Porque não poderá dizer para ninguém. Linda sentiu o coração acelerar.

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seguia.

O assassino observou o retrovisor interno. Um carro o

- Malditos! Eles estão querendo nos pegar só que isso não vai acontecer - Polaro fez uma curva fechada e freou bruscamente. O negro das árvores e arbustos do Central Park erguia-se diante deles. Arrastou a moça para dentro da vegetação, em determinado momento tirou fora a máscara que o deixava sem fôlego, prendeu-a na cintura e continuou avançando, embrenhouse cada vez mais, só parava para respirar fundo e seguir adiante. A neve que caia se encarregava de apagar os vestígios de sua presença que ficavam no chão. Vinte e cinco minutos depois eles pararam. - Chegamos - disse ele. - Aonde? - Ao fim de nosso caminho juntos. - Vai me matar? - Por que você não pára de fazer perguntas? Será que não consegue calar a boca? - Tenho direito de saber o que vai acontecer comigo! - Cale a boca! - disse o assassino desferindo um tapa na moça. Investiu novamente contra ela derrubando-a de bruços. Linda Stacy vestia uma calça de lã e uma blusa do mesmo tecido, era a roupa que usava para dormir nas noites frias de inverno. Viu sendo repetida as cenas de noites antes quando fora jogada no chão do beco atrás de seu prédio e quase estuprada. Essa noite era diferente, não cria que alguém pudesse aparecer para salvá-la como Duncan o fizera, ele talvez estivesse morto e o Central Park era grande demais para chegarem a ela antes que aquele homem a matasse. A neve fria em contato com o lado esquerdo do seu rosto a incomodava, mas não mais do que sentir seus braços serem presos à costa, o levantar de sua blusa e o abaixar de sua calça. E

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parou aí, o assassino não continuou como da outra vez. Ouviu quando ele murmurou para si mesmo: - Não poso, não consigo. Alguns instantes de alívio ocorreram-lhe para em seguida ser puxada pelos cabelos para trás, seu pescoço esticou-se e compreendeu imediatamente o que aconteceria a seguir. Gibbs procurou ajudar Duncan que estava caído, esse, porém já começava a se levantar. - Não se preocupe, Gibbs. Estou bem! Fiz um pequeno teatro para que ele pensasse que eu estava morto, vamos pegá-lo! Em pouco tempo os dois policiais seguiam de uma distância razoável o carro que Polaro usava. Gibbs dirigia enquanto Duncan cuidava do ferimento superficial em seu ombro. Após confirmar os reforços o policial negro comentou: - Essa eu não entendi. Pensei que você estivesse morto mesmo, com aquela cara de defunto que fez! - Parece que eu me saí bem como ator. - É... não estranhe quando chamarem para contracenar com a Kim Bassinger. Agora me explique o porquê. - Simples. O sujeito pensa que eu sei quem ele é e tentou me matar. Se eu parecesse morto ele sairia e seria mais fácil pegá-lo no corredor do prédio onde ficaria parcialmente desprotegido. Não contei que o impacto da bala fosse tão forte, quase desmaiei. Agora precisamos pegá-lo antes que ele faça qualquer coisa com ela. - Acha que ele irá matá-la? - Tenho certeza de que irá tentar, segundo penso ele tentará estuprá-la antes, para isso procurará um lugar escuro e adequado e entrará no primeiro que encontrar. - O Central Park... - balbuciou Gibbs. - Exato! - Mas isso reduz as nossas possibilidades de encontrá-lo a tempo de salvar a moça.

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- Não. A neve se encarregará de deixar marcas por onde seguirei até ao homem. - E os reforços? - Você fica e os espera para chefiá-los, ok? Antes que o detetive respondesse, após uma curva encontraram o carro usado pelo assassino. Duncan não chegou mais a vê-los e antes que sua viatura parasse por completo já estava na trilha deixada pelo criminoso. Seu coração batia forte de ansiedade. Linda não morreria, ele não queria e não deixaria que nada acontecesse a ela, nem que tivesse que matar Polaro, o que não queria, porém não hesitaria entre qual dos dois escolheria. No início foi fácil seguir as pegadas deixadas por eles, principalmente em baixo de árvores que a chuva de neve não apagava os vestígios. Ao penetrar cada vez mais no interior da vegetação, a escuridão quase o impedia de enxergar qualquer coisa, sem esquecer o vento que derrubava a neve acumulada nas copas das árvores cobrindo por vezes trechos longos da trilha obrigandoo a parar e circundar o local até encontrá-la. Não podia deixar de pensar na ternura dos momentos agradáveis que passara junto com Linda horas atrás, não queria que fossem os últimos, não queria que ela morresse. Na angústia daquele instante de tensão admitiu que havia se apaixonado por ela. Desde o dia em que Wilson o levara para tomar café no Break Burger a havia notado e o destino os aproximara e como isso aconteceu não seria sem motivo. Além de tudo, Josh Duncan tinha um débito para com seu amigo em coma no hospital, queria vê-lo bom e se isso não fosse possível desejava pelo menos terminar com sucesso a execução do plano que ele idealizara. Cansado, porém sem fraquejar um instante, Duncan continuava avançando, seu pensamento oscilando entre Linda e Wilson trazia-lhe recordações das únicas pessoas que representavam papéis importantes em sua vida além de sua filha,

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Linda já era incluída nesse rol de três pessoas com perfeita naturalidade. Foi arrancado de suas recordações pela dor que sentia no ombro baleado agora acentuada por um galho de arbusto que casualmente espetara-lhe a ferida. Soltou um grunhido de dor. O ferimento voltara a sangrar pelo paletó e por dentro do sobretudo ensopando-o. Até daria mais importância àquilo não fosse o ruído de um estalo parecido com o som de um tapa, e logo depois um gemido forte. Só podia ser Linda. Naquela hora no Central Park em meio à neve só podia ser ela. Procurou pelas pegadas no chão e não as encontrou. Soprava um vento forte que dissipou um som de vozes. Estava tão próximo dela e não conseguia encontrá-la. Andou um pouco para frente, afastou um arbusto e viu os dois. Polaro estava sobre ela, sem máscara, em sua mão brilhava a lâmina de uma faca. - Por favor, não me mate! - disse a moça ao perceber que o próximo passo do assassino seria matá-la. Sua cabeça estava tão puxada para trás que sentiu uma pequena dor na nuca ao falar. - Tenho que fazer isso. É tarde demais! - Por favor - implorou ela. Ele deixou a faca cair ao lado dela, hesitava em matar aquela mulher a sangue frio, não sabia como tinha feito aquilo antes, pois era muito difícil, não foi como matar o policial, ele tentou prendê-lo, a moça, no entanto não lhe fizera nada e ainda implorava por sua vida. Balançou a cabeça com força tentando afastar aqueles pensamentos confusos e antes que outros surgissem apanhou novamente a faca, observou o brilho cruel da lâmina e investiu contra Linda. Duncan pulou sobre ele arrancando-o de cima de Linda. Agarrados, o detetive segurava a mão armada de Polaro, rolaram pela neve e ao pararem Duncan estava sobre o assassino, sem perder tempo acertou-o no queixo, e em seguida apertou o pulso

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até fazê-lo soltar a faca. Vendo-se desarmado Polaro forçou o corpo tentando derrubar Duncan para o lado, na segunda tentativa o policial foi ao chão. Separados, os dois homens começaram a levantar-se. O detetive apontava a Beretta para o assassino. - Dessa vez acabou mesmo, Polaro! Linda vestia-se, estavam bem, um pouco assustada por ter sido salva por Duncan a quem julgava morto. - Você está bem, Linda? - perguntou ele voltando-se para ela. Linda fez um sinal afirmativo. Aproveitando a distração do policial, Polaro acertou-lhe um golpe de perna no antebraço fazendo a Beretta voar longe. Antes que Duncan reagisse, com uma velocidade incrível Polaro atingiu-lhe o ombro ferido e em seguida o queixo. O detetive caiu estonteado pelos sucessivos golpes. No chão ainda levou dois chutes na costa que o deixaram quase sem poder respirar. O assassino abaixou-se, tirou a gravata de Duncan e com ela em volta do pescoço deste passou a enforcá-lo. Linda precisava fazer alguma coisa, o homem que a salvara duas vezes estava sendo morto bem diante de seus olhos, e além do mais, ela seria a próxima. Correu até aos homens, enfiou seus dedos no cabelo de Polaro puxando-os para trás. Polaro soltou um grito, largou uma das mãos da gravata e desferiu um golpe atingindo as costelas de Linda que caiu arfando. Duncan tentava livrar-se do laço em volta do pescoço, as duas mãos de Polaro apertavam-no cada vez mais. Seus olhos começaram a turvar, sua visão ficou embaçada e logo depois chegou a escuridão quase total. Não podia mais suportar, suas mãos largaram o laço e tombaram de lado. Um tiro fez-se ouvir às costas do assassino e ele virou-se assustado.

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Linda apontava-lhe a Beretta de uma distância segura. - O próximo tiro é em você, largue-o! - ordenou ela. Ele obedeceu levantando, tentou dar um passo na direção de Linda. - Parado aí, seu filho da mãe, estou disposta a atirar, tenho motivos de sobra para isso, não me dê mais um. Nesse momento Gibbs chegou com os reforços. Enquanto Polaro era algemado Linda Stacy corria até Duncan. - Como está? - indagou ela. Ele tentou falar alguma coisa mas não pôde, respirava com dificuldade pois a cada inalação suas costelas doíam e sua garganta parecia pegar fogo. Sob o olhar de Polaro, Linda beijou os lábios do policial ternamente e disse algumas palavras inaudíveis que eram por certo declarações de amor. Fechou os olhos com força tentando não ver a cena que quase impedira que acontecesse. - Obrigado! - murmurou Duncan no ouvido da moça. - Pelo beijo? - E por ter salvado a minha vida! - De qualquer maneira ainda fico lhe devendo uma, você salvou a minha duas vezes. - Pensarei numa forma de pagamento. - Ótimo - disse ela sorrindo. 17 Josh Duncan estava sentado num banco próximo à ponte de Manhattan, observava os barcos passarem, um vapor deslizava soltando fumaça de sua chaminé principal. Havia marcado um encontro com ela ali naquele lugar. Depois da condenação de Luís Polaro pelos estupros e assassinatos que cometera, Duncan havia recebido seu mês de férias adiantado, era trinta dias que estavam

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começando os quais aproveitaria para sair mais vezes com Linda Stacy. O relacionamento dos dois foi impedido de se aprofundar por uma série de acontecimentos, os principais foram os cinco dias que durara o julgamento de Polaro, seu amigo o Dr. Harry Hardrige arranjou o melhor advogado que pôde e o cara fez realmente um bom trabalho, conseguiu atestar insanidade mental através de um visto de oito psiquiatras famosos inclusive um da própria polícia. Ao final o júri concordou com os psiquiatras, a falta de memória em relação aos detalhes dos crimes, com exceção do último, a alusão às visões que ele possuía, confirmadas pelo Dr. Hardrige, embora o depoimento dele fosse pouco aceitável dada a amizade dele para com o réu, além de outros fatores, fizeram o júri reduzir de pena máxima para uma de vinte e cinco anos a ser cumprida no Sanatório do Estado, essa pena ainda poderia ser mais atenuada caso viesse a apresentar melhoras suficientes para poder voltar a viver em liberdade condicional. Ao sair do tribunal após o último dia de julgamento Duncan encontrou Lisa Chambers no saguão. - Como vai, Josh? - perguntou ela. - Estou bem - Duncan estava um pouco abatido, mas procurava não dar sinais disso - e você? - Estou bem, faço o possível para suportar com bom senso. Vim assistir o julgamento porque acho que devia isso pra ele. - Compreendo. - Agora creio que está na hora de ir - ela estendeu a mão e Duncan a apertou com cerimônia. - Lisa? Sim, Josh. - Acabou tudo. Você deve reconstruir sua vida com outra pessoa...

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- Eu não construí nada com ele, Josh. Não tivemos tempo nem de sonhar quanto mais de construir. - Sinto muito - assentiu ele baixando a cabeça. - Eu também - disse ela. Afastou-se deixando o detetive encostado à parede, ao seu lado uma figura conhecida bebia água debruçado sobre o bebedouro. Phil Brouke o encarou, não disse nada apenas observou o policial. - Quer tomar um drinque comigo, Brouke? - Se eu não tiver que carregá-lo para casa depois, aceito. Alguns minutos depois conversavam acompanhados de uma garrafa de McNaughton’s. Josh falava de seu desejo de que a justiça tivesse sido mais rígida com Polaro, que achou a pena um pouco branda demais para alguém que cometera crimes daquela natureza. Phil concordou dizendo que o advogado de defesa era Ted Nordik, famoso por defender grandes criminosos e obter até absolvição em alguns casos, é o poder do dinheiro que Polaro possuía, ou melhor, possui que viabilizou aquele defensor tão caro. - O Hardrige - dizia Brouke - moveu meio mundo para arranjar o melhor advogado, boatos correm de que ele até conseguiu comprar alguns jurados, no que eu não acredito, o Juiz Fellow procurou reunir os mais incorruptíveis elementos para constituírem o júri. - É... - concordou Duncan em tom meditativo - o advogado de defesa era bom. Hardrige não poupou esforços para tirar o amigo da encrenca terrível em que se meteu. - Mas não conseguiu - observou o repórter - os sinais de insanidade em Polaro são perceptíveis demais, o cara não conseguia nem defender-se das acusações do promotor. - Ele vai curtir suas férias no Sanatório Estadual, com tudo que tem direito, cela privativa e convivência com doente que em nada o perturbarão.

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- De qualquer forma são vinte e cinco anos! - Isso se o Hardrige não mover alguns pauzinhos e conseguir um atestado de cura para o safado do Polaro! - Duncan irritou-se. - Acho difícil. Lembra-se do caso do filho do ex-senador Tatter? Aquele rapaz que saía à noite e matava travestis? Duncan confirmou com a cabeça. Lembrava-se do caso embora sem os detalhes que por certo havia na cabeça de Brouke. - O rapaz está lá no hospital há sete anos, aliás nem deve ser mais um rapaz, foi pra lá com vinte e oito... está com trinta e cinco anos agora. E você sabe como o ex-senador Tatter é rico e poderoso. “Há um grupo muito bom de psiquiatras por lá, um criminoso só recebe a condicional se realmente estiver em condições bem estáveis de raciocínio. Isso sem falar na junta que analisa o processo de liberdade condicional. É como um crivo, só passa o que é bom ou imperceptível o bastante para enganar a eles”. - Você está muito bem informado, Brouke. - É o meu trabalho, afinal sou ou não sou o melhor repórter policial da cidade? E vamos parar de nos tratar pelos sobrenomes, já somos chegados o bastante para nos tratarmos com essa reverência, não é Josh? - Está bem - concordou. - Agora me diga, é verdade que você foi chamado para o treinamento do FBI? - É. - E daí? - Vou aceitar. Gosto do Bureau de Homicídios, mas o FBI tem melhores salários... - E maiores perigos...

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- É a vida de policial Brouke... isto é, Phil. O perigo está presente, às vezes temos de conviver tanto com ele que chegamos a sentir falta quando estamos seguros. - É uma piada? - Que nada, é sério, pura realidade. - Vai casa com aquela moça, Linda Stacy? - Brouke mudou subitamente de assunto para pegar Duncan de surpresa. - Se ela quiser... - Duncan sorriu - agora que tudo terminou e vou ter trinta dias de folga, vou convidá-la sempre para sairmos e nesse período vou encontrar o dia para fazer a proposta. - E quando terminar as férias vai direto ao FBI resolver sua situação. - Não. Terei que fazer isso amanhã, eles não brincam em nada por lá. - Quero cobrir os casos que você pegar, afinal tenho feito a sua imagem crescer perante a opinião pública, quem sabe não foram as minhas matérias que levaram os figurões do FBI a pensarem em seu ingresso lá. - É mesmo. Se não for um caso sigiloso será seu. - Ora, Josh. Todos os casos são sigilosos, você não precisa aparecer, só facilite as coisas para eu publicar, ok? - Tudo bem, Phil. Phil Brouke afrouxou o nó da gravata, não que estivesse fazendo calor, apenas para ficar mais à vontade. Abriu a pasta tipo Gucci que levava consigo, retirou um álbum que trazia na capa gravado: CASO MOLINA E O ASSASSINO DA FLOR Entregou-o a Duncan. O policial lendo o que havia na capa indagou: - O que é isso? - Toda a cobertura que fiz sobre os dois casos, achei que gostaria de ter esse material. Fiz três álbuns, um para você, outro para mim e o último para Wilson. Resolvi ficar com o dele... - O

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repórter ficou embaraçado, não queria tocar no assunto, porém fora inevitável. - Obrigado, Phil - fitou novamente a capa. - Foi você que deu o nome a ele, não foi? - Josh pareceu não entender e Phil explicou - O Assassino da Flor. - É, acho que foi eu - Josh folheou algumas páginas e perguntou - Você incluiu a matéria sobre o acidente de Ron? - Incluí. Se você quiser posso retirar. - Não, sem ela o material estaria incompleto. Duncan tinha evitado ler os jornais para não encontrar notícias de seu companheiro, decidiu ler aquele material todo mais tarde. O zumbido do apito do vapor soou fazendo Duncan emergir de suas lembranças, o barco estava sob a ponte, mas seu ruído ainda era audível o bastante embora estivesse distante. Ainda faltavam alguns minutos para Linda chegar, dissera a ela que ali estaria às quatro da tarde, mas chegara bem antes porque sua entrevista no FBI fora mais curta do que esperava. Lieberman estivera lá com ele. O Chefe de Homicídios levara o caderno de anotações de Wilson embrulhado num pedaço de papel manilha. - Achei que isso ficaria melhor com você, Josh - disse o Chefe entregando o pacote. - O que é? - O caderno de anotações de Ron, achei que ficaria contente de guardá-lo. - Obrigado, Chefe. Ainda conversaram sobre algumas coisas, apenas trivialidades e separaram-se. Lieberman fizera questão de transmitir a ele os agradecimentos do Prefeito reiterando que se ele fosse reeleito Duncan poderia obter algum favor, que o Prefeito o atenderia de bom grado.

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Na terça-feira, entrara de férias, após o meio-dia, obviamente, pois considerava seu ingresso no FBI como parte de seu trabalho anterior. Não sabia porque mas levara consigo ao encontro com Linda o álbum de Phil Brouke e o caderno de Ron Wilson, ainda embrulhado. Um barbante grosseiro o atava e o teria aberto naquele momento se Linda não houvesse chegado. - Olá! - disse ela com um sorriso nos lábios, não era uma mulher tão bonita, mas possuía um quê atraente que não se consegue definir. Sentou ao lado dele e passaram a conversar animados. Duncan decidiu propor casamento a ela naquela tarde mesmo, não podia perder tempo, nada o impedia, afinal das contas não tinha mais nada com Carol, a não ser a filha, que também pretendia visitar naquelas férias - Linda, tenho algo a dizer - disse ele tornando-se subitamente solene. - Eu também, Josh. - Bem, diga você primeiro. - De jeito nenhum, foi você quem iniciou essa conversa. - Está bem - pausou para ser enfático - eu te amo! - Eu também. - Quer casar comigo? - Claro que sim! - respondeu ela nervosa embora convicta. - Ainda não nos conhecemos tão bem, mas estou de férias e podemos aproveitar esse tempo para isso. Linda baixou a cabeça. - O que foi? - quis saber ele. - Nada. - Ora vamos, diga! - insistiu. - Meu passado não é dos melhores, fiz coisas das quais tenho profunda vergonha...

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- Pare com isso - disse ele com firmeza - eu sei de coisas sobre o seu passado e não me importo com elas, e se existe outras coisas sobre sua vida dou menos importância ainda, se você quiser me contar ou não, não fará a menor diferença. Não posso admitir que o seu passado ou o meu estrague nosso futuro - estreitou-a em seu braços com ternura. Ficaram nessa posição sentindo o calor do outro a aquecerem-lhes. - Só que não vou poder ficar com você nas férias. - O que? - Desculpe. É meu irmão! Quero passar essa semana com ele e volto na outra. - Duas semanas? - Sim. - Está bem. - Quando voltar não só ficamos juntos como também marcamos a data, ok? Ele a beijou. Linda Stacy viajou dois dias depois ao encontro do irmão deficiente, era paraplégico e morava com uma tia viúva, fora por causa dele que havia participado do filme pornô. O rapaz precisava de uma cadeira multifuncional para locomover-se e havia alguém querendo vender uma dez vezes mais barato que na loja, ainda assim era muito dinheiro. Agora, no entanto, isso era passado. Linda era uma nova mulher e Josh Duncan seu futuro marido. Em seu apartamento naquela noite Josh Duncan, detetive e agente em breve do FBI, iniciava o que seria a rotina das próximas duas semanas. Apanhou o livro que estava disposto a ler, mas seus olhos deram com o álbum e o caderno de anotações. Sentia curiosidade sobre eles que ainda estavam intocados, porém decidiu ler. Embora seus olhos consumissem as palavras do livro sua

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mente não recebia a mensagem delas. Pensava em Ron Wilson, seu livro de anotações, sabia que nele o amigo guardava todo o conteúdo das investigações que fazia, e pelo que sabia aquele caderno era dedicado exclusivamente ao caso do Assassino da Flor. Largou o livro aborrecido por não conseguir ler, foi até a geladeira apanhou um Diet Coke e tomou devagar. Viu um pacote de cigarros novinho, que nunca havia aberto. Jogou-o no lixo e voltou para a sala. Pegou o álbum e abriu. Phil Brouke havia feito um trabalho de primeira, ali estava o conjunto de suas reportagens, as quais Duncan já conhecia muito bem: A morte de Molina; O ataque a Josh no beco onde Bola Negra encontrou a morte juntamente com Esteban Moreno; As vítimas do Estuprador de Manhattan; A prisão do Estuprador e finalmente Ron Wilson, essa matéria Duncan não conhecia. Havia uma foto de Wilson, sério, de sobretudo e ainda fumando. A reportagem dizia o seguinte: “Chegou ao fim hoje de madrugada o drama do policial Ronald Collins Wilson, conhecido pelo caso Molina que atualmente investigava os crimes do Estuprador de Manhattan. Após levar um tiro na cabeça pelo ex-integrante da quadrilha de Molina, que também era primo deste, Estélio Cortez, o policial entrou em coma profundo. Ao que se sabe ele tentava salvar sua namorada que havia sido raptada pelo sujeito que o alvejou, na tentativa de realizar uma vingança. Após cinco dias em coma, faleceu nessa madrugada sob os olhares da equipe médica de plantão e a expectativa de sua namorada. Segundo o Dr. R. G. Severin, o cérebro do detetive parou de funcionar totalmente após uma parada cardíaca irreversível. ”. Não era uma reportagem brilhante, dizia apenas o necessário, talvez Phil Brouke não quisesse fazer-se com ela,

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deixou seu talento para as matérias sobre Polaro. Todas as notas estavam em ordem cronológica, com exceção da de Wilson. O repórter a deixara, para a última página como uma espécie de elegia ao policial morto. Duncan fora ao funeral, foi muito simples, como havia sido Ron Wilson. Lieberman, Phil, Lisa e ele foram os únicos presentes. Ninguém falou entre si durante a cerimônia e até um pouco depois. Todos pareciam sentidos com a morte do policial, e estavam de verdade. Deixando o álbum de lado, desembrulhou o pacote do caderno de anotações e passou a lê-lo, não havia método no que Wilson escrevera, havia rabiscos, desenhos que não entendia, além de outras inscrições que despertaram a curiosidade de Duncan que agora examinava o pequeno volume com detida paciência. Em determinada página havia todos os pontos da investigação, cada um recebia um número ao lado, a morte da primeira vítima Elizabeth Glenhardt era o número um, a flor era o número dois, havia um desenho da flor de papel com o algarismo dois ao lado. Um outro ponto era a estatueta na cristaleira da mansão Polaro, também havia um desenho dela e a inscrição: “Filli Lux” ao lado com um asterisco. No rodapé da página havia uma nota correspondente ao asterisco e Duncan não a viu. Cansado de ler o legado de seu amigo, largou-o e foi deitarse. Recebeu um telefonema de Linda dois dias depois. Na véspera fora ao cinema assistir a uma reprise de Jornada nas Estrelas IV, o filme o fez lembrar do amigo que apreciava muito a série. Foi por isso que após o telefonema de Linda voltara a pegar o livro de anotações. Abriu o volume na página em que havia parado e seus olhos decaíram exatamente sobre a nota no rodapé da página: “Escrever para Robert Sands e perguntar sobre a estatueta - muito importante - não esquecer”.

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O que deveria ser aquilo? O que aquela estatueta poderia ter de importante para Wilson? Quem seria Robert Sands? Josh Duncan não tinha nada melhor para fazer naquelas duas semanas distante de Linda. Apanhou o telefone e ligou para a polícia. A moça que atendeu passou a ligação para Stain Gibbs, conversaram algo sobre o que Duncan estava fazendo nas férias e no momento adequado ele perguntou: - Você sabe quem é Robert Sands? - Não. - Pode ver nos arquivos? - Vai levar tempo, é importante? - É, mais ou menos. - Vou verificar. Te ligo depois. Meia hora depois Gibbs ligou de volta. - Consegui - disse ele triunfal. - E aí? - Robert Irving Sands, é o nome completo do teólogo famoso que auxilia a polícia quando o caso envolve religiões e seitas. Depois de alguns anos o homem se dedicou ao estudo de todas as formas de culto existentes sejam eles deístas ou pagãos. Ele tem um arquivo computadorizado dos locais de culto, nome das pessoas que fundaram as seitas, enfim, as histórias de cada uma dessas denominações religiosas. - Incrível. - É. O homem é um perito Duncan não podia dizer a verdade, aquilo era um capricho seu, afinal, o caso do Estuprador havia sido resolvido e a verdade apurada, o próprio réu confessara seus crimes. Apenas queria saber aquilo que seu amigo havia achado ser importante, uma tentativa de resgatar um pouco do que Ron fizera no caso de Polaro. Pensou rapidamente em uma mentira e disse: - Um amigo tem um filho que entrou numa dessas seitas e pediu que eu descobrisse tudo sobre ela, não quer ver o filho

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metido nessas coisas e antes de tirar o filho desse meio quer saber o que eles fazem por lá. Deu o nome de Robert Sands para eu começar o levantamento. - Ah, bom! - Qual é o endereço desse Sands, ou melhor, o telefone? - Ele não tem telefone, só nos comunicamos com ele através de telegramas e cartas. - Não tem telefone? - Não. O sujeito é um excêntrico, acha que o aparelho o atrapalharia, é só isso que consta no arquivo. Anote o endereço dele: - Fale. - Palm Avenue, 312, Long Beach, Los Angeles. - Obrigado Gibbs! - De nada, boas férias. Duncan permaneceu olhando o endereço meditativamente ocorreu-lhe a idéia de escrever para Sands, entretanto Wilson poderia já ter feito isso, se o fizera nesse meio tempo deveria ter chegado à resposta. Sands poderia ter tomado conhecimento do que houve com Wilson e não respondido a carta, mas talvez o fizesse antes do acidente. Resolveu verificar a correspondência que havia para o amigo falecido. Pouco mais de vinte minutos depois Duncan encontravase na portaria do prédio e uma moça o reconheceu. - Como vai, senhora? - Bem, sinto muito ao que aconteceu com o seu companheiro, ele parecia ser uma pessoa tão boa! - comentou a zeladora. - E era. Vim até aqui buscar a correspondência dele. - Está bem - disse ela amável, devia ter pouco mais de trinta anos, era casada com o zelador do prédio em que Ron morava.

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Entregou a Duncan três envelopes, sem verificar ele saiu após agradecer à moça. Dentro de seu Plymouth cinza observou as três correspondências, duas eram de cartões de crédito e a terceira, sem remetente, exibia o carimbo do correio da Califórnia. Abriu a carta que era realmente de Robert Sands, era escrita à máquina com os “o” borrados. Leu o seguinte: Sr. Wilson. O objeto que descreveu em sua carta é o símbolo máximo de uma seita extinta em 1962 após um escândalo envolvendo seu dirigente único-Larry Sinford. A inscrição “Filii Lux” vem do latim e quer dizer filho da luz, que é o próprio nome da referida irmandade. Devo informá-lo que os rumores devem ser totalmente infundados, são lendas que se cria nesse tipo de seita pagã, pois se fossem verdadeiros essa vingança já deveria ter sido consumada, afinal de 1962 para cá são mais de vinte anos, vinte e cinco para ser exato. Infelizmente isso é tudo que eu posso no momento fornecer-lhe. Acredito que se quiser pesquisar mais ao fundo esse assunto terá que vir até aqui para fazê-lo pessoalmente. Existe alguns velhinhos que foram membros da seita Filhos da Luz e podem dizer coisas mais precisas. Lamento não poder ajudar mais, despeço-me. Cordialmente. Roberto I. Sands. Ali estava algo que mexia com Josh Duncan, o que Wilson havia perguntado ao Sands sobre esses tais rumores de vingança? Como Wilson sabia daquilo? Por certo o companheiro tivera acesso a alguma outra informação que ele desconhecia. Não devia ter lido as anotações de Wilson, agora mal continha-se de tanta curiosidade, sentia vontade de ir para Los Angeles e averiguar aquela história. Ainda restavam onze dias até a volta de Linda, poderia ir para a Califórnia e ficar por lá esses dias, não tinha mesmo nada para fazer em Nova Iorque naquele

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período. Sim, era exatamente isso o que iria fazer. Ligou para o aeroporto, informou-se sobre as saídas para aquela cidade. Existia um horário que se adequava perfeitamente aos seus interesses. Telefonou para Linda explicando que faria uma curta viagem de dez dias para resolver alguns compromissos inacabados de seu amigo e que manteria contato. Arrumou uma pequena mochila com tudo que precisaria, botou no porta-malas do Plymouth, e dirigiu para a Penitenciária Estadual. Queria esclarecer um assunto antes da viagem, não que fosse de importância vital, mas era algo que martelava em sua mente desde a morte de Wilson e não pretendia deixar aquilo pendente até seu regresso. Josh aguardava sentado num banco comprido com os cotovelos apoiados sobre a mesa, as mãos encostadas com os dedos entrelaçados, das quatro paredes que formavam o cubículo uma delas era uma imensa grade onde um guarda armado com uma pistola 765 estava escorado em atitude reservada. Duncan usara suas prerrogativas de agente do FBI para conseguir aquela entrevista, recordava a cara engraçada que o diretor fizera ao ver o distintivo provisório da agência que mostrava a ele, foi imediatamente conduzido até aquela sala. O prisioneiro foi admitido na sala por dois guardas que saíram em seguida. Vestia o uniforme da penitenciária, calça jeans índigo e camisa azul claro com um número no bolso, estava algemado. Sentou-se no banco do outro lado da mesa à frente de Duncan, que notou o curativo na mão do prisioneiro. - O que você quer Duncan? - perguntou Cortez mostrando-se agressivo. - Respostas para umas perguntas. - Não estou a fim de responder porcaria nenhuma pra você. - Quando é seu julgamento? - Na quarta-feira, por que?

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- Por que eu tenho um dossiê completo sobre suas atividades como traficante que somados ao rapto e a morte de um policial vai lhe render no mínimo uma perpétua. - Por que está me dizendo isso? - Porque se você cooperar comigo posso mexer algumas peças no tabuleiro que farão a justiça ser mais branda com você. - Não acredito. - Ok. É um risco que você corre. É tudo que eu tinha pra falar em vista da sua não cooperação - disse ele já levantando. - Espere! - Vai colaborar? - perguntou Duncan voltando-se. - O que quer saber? - Quando você e Moreno decidiram voltar para se vingar de mim e de Wilson? - No início do inverno. - Por quê? - Vingança, ora bolas! - Sei que não foi só isso - blefou o detetive. - Estávamos sem dinheiro, a justiça bloqueou todo o nosso dinheiro em banco e não podíamos sair de Nova Iorque. Alguém nos ofereceu dinheiro para acabarmos com vocês e aceitamos. Uniríamos o útil ao agradável, daríamos cabo de você e seu amigo realizando nossa vingança e ganhando uma boa grana pra isso. - Quem contratou vocês? Cortez levantou as mãos presas pela algema e coçou o olho esquerdo fazendo uma careta. - Não sei. Recebemos umas cartas com a proposta e algum dinheiro. - Onde estão estas cartas? - Queimamos todas. Era a exigência do cara. Como ele não aparecia ficamos em dúvida, mas recebemos um telefonema que você estava num bar no Beco Kirram e que lá próximo havia um carro com armas e algum dinheiro. Fomos lá e confirmamos. Um

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bilhete preso no painel dizia que também devíamos matar um tal de Bola Negra também, havia uma foto do cara junto com o bilhete. O resto você sabe. O cérebro de Duncan fervilhava com aquelas novas informações. - Mais tarde - continuou Cortez - recebi um telefonema dizendo que eu devia usar a namorada de Wilson para pegá-lo. Outro telefonema com o endereço dela depois e por fim peguei seu colega. Eu nunca pretendi pegar você, queria mesmo o Wilson, mas com aquela grana toda fica difícil dizer não. - Tem mais alguma coisa para dizer? - Acho que não. - Desconfia de quem seja o sujeito que fez o contrato? - Não. Duncan levantou e foi até a porta de grade. - Você vai me ajudar a ter uma pena mais suave? perguntou Cortez em alta voz. Sem voltar-se Duncan falou: - Não tenho poder suficiente para isso. - Mas você falou que poderia... - Menti - interrompeu o detetive - e mesmo que fosse verdade eu não faria nada. Cortez sentiu ódio daquele homem, queria poder matá-lo naquela hora. - Seu cretino. Tudo que falei era mentira, uma grande mentira! Josh fitou o criminoso com um sorriso cínico e seus olhos verdes semicerrados: - Não acredito. Saiu dali deixando Cortez praguejando alto atrás dele. Novas verdades foram descobertas, em algum lugar alguém o queria morto e que matara seu amigo através de Estélio Cortez. Haveria alguma relação entre os filhos da luz e aquilo? Era muito

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difícil, mas Duncan vira nesses últimos dias coisas difíceis se tornarem tão fáceis que poderia muito bem haver uma ligação entre aquelas duas coisas e Wilson havia desconfiado de alguma coisa. Mais que antes Duncan sentia-se impelido a apurar aquelas informações. Algumas hora depois Josh Duncan tomava uma dose de uísque e lia a revista de bordo da PAN-AM, era uma reportagem repleta de fotografias das praias da Califórnia, as de Los Angeles chamavam mais atenção. Em seu bolso o caderno de anotações do falecido investigador Ronald Wilson ia como um guia naquela nova fase da investigação.

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O FILHO DA LUZ 18 A casa de Robert Sands era muito bonita, possuía uma cobertura inclinada no melhor do estilo europeu, era de alvenaria de pedras contrariadas sem revestimento, uma camada brilhante de verniz dava um aspecto de novo às paredes, embora elas já estivessem erguidas desde o início do século. A parte da frente ficava na beira da estrada enquanto que os fundos davam na praia. As esquadrias eram todas de madeira maciça importadas do Brasil, sua cor era um pouco mais escura do que a das peças estruturais do telhado que eram aparentes. Josh Duncan esperava pacientemente que alguém viesse atender a porta, massageava de leve os nós dos dedos doloridos com as pancadas na madeira, pois a casa não possuía campainha. Ainda era cedo, mas não esperava encontrar o Dr. Sands dormindo. O motorista de táxi que o levara até lá disse que Sands era um sujeito muito bom, mas que detestava crianças, pois muitas vezes elas quebravam os vidros das janelas dos fundos na disputa de peladas que costumavam realizar na praia, e dissera isso porque seu filho fizera isso uma vez. O homem que atendeu a porta era um rapaz baixo, bochechudo, de óculos de aro de metal e lentes finas, de aproximadamente uns vinte e seis anos no máximo. - O que há? - perguntou ele abrindo a porta, só o necessário para ver a pessoa e que a corrente permitia. - Meu nome é Josh Duncan, FBI - disse mostrando o distintivo provisório. - Ok, entre! O homem foi na frente atravessando a enorme sala até chegar a um terraço nos fundos. Sentou-se numa cadeira de

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madeira e pano e indicou outra igual a Duncan. Havia suco de laranja numa jarra, alguns biscoitos, dois ovos fritos ainda na frigideira e um vasilhame cheio de manteiga. - Estava tomando café - explicou o sujeito - pode se servir do suco se quiser. - Não, obrigado. - Então, enquanto isso você vai dizendo o motivo dessa visita do FBI. Contra a CIA, essa sim eu tenho de sobra. Sabe de uma coisa - enfiou um biscoito exageradamente amanteigado e prosseguiu com a boca cheia - se você tivesse dito que era da CIA eu teria batido a porta na sua cara... - Você é o Dr. Sands? - indagou Duncan sem acreditar que aquele rapaz fosse quem ele procurava. O sujeito, ainda com a boca cheia, olhou para o rosto de Duncan e deu um sorriso divertido acompanhado de um menear irônico de cabeça. - É claro que sou, mas não me diga - mostrou as palmas das mãos - pensava que eu fosse um velho ou pelo menos mais velho do que sou, não é? Duncan fez que sim, encabulado, com a cabeça. Sands deu de ombros. - Não importa. Isso é tão comum que até me divirto com a expressão das pessoas ao constatarem a verdade. Agora me diga, o que o FBI quer de mim? Foi a vez de Duncan sorrir. - Nada! - Como nada? - Sou do FBI, mas não vim aqui a serviço, na verdade acabo de sair da força policial de Nova Iorque e estou de férias, no final das quais engrossarei as fileiras do FBI. - Está bem. O que você deseja então Sr... como é mesmo seu nome?

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- Josh Duncan. Estou fazendo uma investigação para um amigo meu. Ele morreu sem poder concluí-la e quero fazer essa elegia para ele. Josh retirou a carta de Sands para Wilson e entregou-a ao teólogo que leu-a e disse: - Não me diga que este policial morreu? - indagou apontando o dedo para o papel. - Infelizmente é verdade. - Meu Deus! - exclamou. - Você o conhecia? - Não. Conheci a esposa dele. Ela era uma moça bonita e eu um guri tagarela quando se casou com Wilson. Éramos vizinhos. Mas isso já faz tempo. Então você quer continuar a investigação sobre a seita Filhos da Luz... Não costumo fazer esse tipo de pergunta, como é, porém uma investigação pessoal, digame o que há de interessante para ser averiguado? - Eu não sei. É justamente por isso que vim até você, quero saber tudo sobre os Filhos da Luz e criar ou achar o elo que une esse caso ao que aconteceu em Nova Iorque. - E posso saber o que aconteceu por lá? Duncan contou-lhe o caso do assassino da flor, o achado da estatueta e sua entrevista final com Estélio Cortez trazendo-lhe novas suspeitas. - Acredito, Dr. Sands, que alguém não queria que meu colega e eu cuidássemos do caso do Estuprador de Manhattan porque descobriríamos algo ruim para essa pessoa. - Não seria o Dr. Hardrige querendo proteger seu amigo? Vocês acharam a estátua na casa de Polaro que é ocupada por ele, ele poderia ter mentido em relação à procedência da estatueta. - Você não deixa de ter razão Dr. Sands. Mas não acredito nisso. Hardrige ficou realmente surpreso quando soube que Polaro era o estuprador. - Como sabe disso?

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- Vi no seu rosto quando levantamos a suspeita sobre o amigo dele. - Tem certeza? Você pode ter confundido o que viu na expressão do sujeito, é uma linha muito tênue que separa espanto por ver seu amigo descoberto e espanto por seu amigo ser o estuprador. - Então temos que descobrir como aquela estátua foi parar lá, não é grande coisa, porém é um começo. Sands tomou o copo de suco de laranja até a última gota. Limpou-se com um guardanapo de papel e fitou Duncan. - O tal Hardrige disse que a mãe de Polaro fez parte dos Filhos da Luz? - Não me lembro muito bem, acho que sim. - Se ela era membro podemos descobrir e confirmar que a estátua era dela, pois só os membros podiam ter aqueles símbolos religiosos. - Exato. Sairei perguntando aos ex-membros da seita se conheceram a moça... - Não - interrompeu Sands - basta me dar o nome dela e verifico no meu computador, tenho um disquete com a listagem de todos os membros dos Filhos da Luz em 1962 e os dogmas básicos da seita. - O nome dela era... - Duncan pensou um pouco, o nome completo de Polaro era Luís Biler Polaro, se o nome do pai era Ralph Polaro, Biler devia ser oriundo da mãe - Janet Biler! - disse ele satisfeito. Robert Sands levantou-se fazendo um sinal para que Josh o seguisse e caminharam até uma sala onde havia um micro computador simples e as paredes forradas de estantes que iam do chão ao teto contendo em suas prateleiras uma quantidade enorme de disquetes. Existia também livros sobre religiões, Bíblias em diversas línguas, um volume do Alcorão e outros mais. Sands apanhou um disquete, introduziu-o no drive e ligou o micro

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computador. Digitou alguma coisa no teclado e em segundos a impressora começou a fazer um barulho esquisito. Quando terminou ele destacou o papel e foi até uma mesa, ligou uma lâmpada passando a ler com atenção. - Aqui está - disse ele dando um peteleco no papel que estalou ao impacto - Janet Oshman Biler, só pode ser ela. - Isso retira a possibilidade de Hardrige ter mentido sobre a estatueta. - Porém a ter mandado matar você e Wilson para proteger o amigo, não! - Por que ele faria isso então? Para obter sucesso teria que matar todos os investigadores da polícia. Sands olhava o papel com o óculos na ponta do nariz. Coçava a barba e agitava-se com seus próprios pensamentos. - Mesmo que não tenha sido Hardrige, quem fez isso temia vocês dois, e o próprio Hardrige não daria tamanha mancada deixando a estatueta na cristaleira sabendo que vocês estavam indo para lá. - Isso é lógico. Por isso acredito ser outra pessoa, alguém ligado aos Filhos da Luz ou não e que acreditava que Wilson e eu pudéssemos ter condições de chegar até ele. Só pra ter certeza veja se o nome do Hardrige consta na lista dos membros. Sands balançou a cabeça após uma rápida incursão ao papel. - Mais que nunca tenho que investigar essa seita! Ambos saíram da sala, Sands parecia um pouco decepcionado com o que pudera fazer pelo investigador. Voltaram para a mesa do terraço e um grupo de garotos que começava a preparar-se para jogar bola acenou-lhe recebendo o cumprimento de volta. - Bons garotos - disse Sands - um dia quebraram a janela minha, tentei chamá-los para um conversa adulta mas todos irromperam em fuga. Então, Eddie, esse que acenou para mim,

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veio falar comigo e prometer que o incidente não se repetiria. Jogam bola aí todas as manhãs. Duncan sorriu do paradoxo que havia entre as palavras de Sands e as do motorista de táxi. - Você está aonde? - indagou Sands. - Como? - Duncan não havia entendido. - Onde você está hospedado? - Num hotel chamado Sea South, não sei o nome do local, mas estou com um cartão dele no bolso. - Se quiser pode vir pra cá - Sands era amável - tenho um quarto vazio, por enquanto é para hóspedes, depois que casar será das crianças e ainda acho que vou transformar o depósito em outro quarto para o caso de ter um casal. Acredita em casamento? - Já fui casado, estou divorciado há pouco tempo e tenho uma filha que não vejo há mais tempo. - Então não acredita mais no casamento. - Pelo contrário, conheci uma garota com a qual pretendo casar-me. Se não deu certo uma vez não significa que sempre será assim. - Bom pensamento. Virá para cá? - Ficarei em Los Angeles o mínimo possível, não há necessidade de incomodá-lo. - Não será incômodo algum. Além disso você terá que trazer suas informações até mim para analisarmos juntos, é o preço que estou cobrando pela minha ajuda. Já alugou algum carro? - Ainda não. - Então use o meu Jipe, o combustível é por sua conta, ok? Duncan sentia-se até inibido de recusar tanta amabilidade tendo que aceitar permanecer hospedado na residência de Sands. O detetive aproveitou a tarde para descansar e acabou dormindo. Já era noite quando Sands o acordou fazendo tomar um susto. O sujeito estava agitado e enquanto falava movimentava as mãos, em

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gestos sem significado, mas que indicavam o seu estado de espírito. - Acorde, Duncan - disse ele impaciente. Refazendo-se do torpor do sono Duncan viu que anoitecera, olhou no relógio de parede da sala e os ponteiros indicavam oito e quinze. Esfregou os olhos indagando: - O que houve? - Enquanto você descansava de sua viagem - Sands sorria eu descobri algo que vai fazer você se adiantar na sua investigação. Sands não se importava com a idade de Duncan, falava com naturalidade com ele como se ambos fossem colegas de idades próximas e de longa data. - O que descobriu? - Duncan abriu a boca num bocejo que daria para alguém ver todos os seus dentes se não a houvesse tampado com a mão. Robert abriu mais ainda seu sorriso satisfeito consigo mesmo. - Aqui está o endereço de um homem, um velhinho chamado Barney Thompson que vai lhe dizer o que quiser saber sobre os Filhos da Luz, ele foi membro ativo da seita durante os cinco anos que ela existiu e não se incomoda de revelar nada sobre o que acontecia nos cultos. - E você não sabe isso? - Sei. - Então por que ir lá para descobrir isso? É certo que vou à casa dele, só que para tentar saber outras coisas e ver se ele conheceu Janet Biler. - Claro, claro - disse ele cheio de paciência - mas comece com isso, ok? - Tudo certo. Mesmo porque a versão que ele tiver dos acontecimentos será muito peculiar, afinal ele fez parte ativa da seita e deve conhecer detalhes que nem imaginamos.

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- É, você tem razão nisso. Além do que o velho Thompson é fanático pela seita. Se hoje ainda existisse os Filhos da Luz ele seria um dos principais entusiastas. Há alguns anos atrás fui até ele a fim de colher dados para constar no disquete destinado à seita, ele me recebeu muito bem apenas me ocultou o porquê da religião ter sido extinguida. - Terei que descobrir isso. - Será difícil. - Esse tipo de pessoa, Dr. Sands, precisa apenas de uma boa conversa para soltar a língua e eu vou fazê-lo soltá-la. Na mesma noite Duncan pegou a sua mochila no hotel, comprou uma garrafa de vinho e voltou para a casa de Sands. Na manhã seguinte bem cedo Duncan pretendia visitar o ex-membro do Filhos da Luz. 19 - Acabou de ver os testes Benny? - perguntou o Dr. Doug Hall entrando na pequena sala onde outro médico olhava pensativo o envelope amarelo sobre a mesa na sua frente. - Terminei - disse ele sem tirar os olhos do envelope. Hall foi até um canto de onde pegou um cinzeiro de vidro com o nome do hospital, voltou depositando o objeto na mesa e sentando na frente do colega de trabalho. - Quer um? - perguntou Hall mostrando o maço de Marlboro. - Manda pra cá - disse o outro. Acenderam os cigarros e recomeçaram o diálogo. - Acho o caso dele digno de um melhor acompanhamento - Disse o Dr. Benny Walder - analisei todo o processo policial, jurídico e os exames feitos pelos psiquiatras da instituição e cada vez entendo menos como ele pode lembrar-se de tudo que fez com exceção dos detalhes, parece até que tudo não passou de um

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sonho. Existem coisas simples que mesmo no estado dele se é capaz de recordar e ele não faz nem idéia de como aconteceu. Hall coçou a cabeça torcendo o olho. - Espere aí Benny, acho melhor você me colocar a par dos detalhes que você tem conhecimento, afinal foi você que conduziu as entrevistas posteriores e não eu, tá lembrado? Walder sorriu mostrando os dentes esbranquiçados e bonitos dos quais possuía visível orgulho e que contrastavam com sua pele marrom-escura. - Não sei bem porquê ao chegar aqui na Instituição instituição era o nome pelo qual os funcionários do Hospital Psiquiátrico do Estado ou Sanatório Estadual simplesmente o chamavam para que a palavra sanatório ocorresse na mente deles Luís Polaro identificou-se comigo, dizendo ele, quando era criança costumava brincar com um garoto negro que era filho de um dos empregados de sua casa, até convidou-me para jogarmos uma partida de xadrez. - Se pode considerar isso como progresso. - Também acho - concordou Walder que trabalhava na Instituição há mais tempo. Hall ainda era assistente, mas era tratado e considerado membro da equipe por Walder - só que tudo que ele tem dito não acrescenta nada no que consta nos autos do julgamento. O caso dele é difícil. Ao que parece, Doug, o trauma sofrido por ele ao ver a namorada o traindo levou-o a cometer o primeiro assassinato em 1980 onde a vítima foi a própria namorada. Já os atuais crimes não parecem ter ponto de partida, alguma... motivação inicial, a não ser o fato de ele ter passado a morar sozinho numa quitinete, talvez essa solidão tenha feito seu inconsciente reviver o papel de estuprador. - Nossa! Ele já te contou muita coisa... - Que nada - discordou Walder - ele se nega a falar sobre esse assunto, aliás, só fala que está arrependido, que só matou o policial com receio de ser aprisionado e que desconhece os

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motivos que o levaram a estuprar novamente. Cheguei a indagar sobre o significado da flor de papel e ele ficou muito irritado - fez uma pequena pausa na qual apagou o cigarro pela metade ainda enfiando-o de ponta no cinzeiro, abanou a fumaça que desprendeu e continuou - Foi o psicólogo dele, o Dr. Harry Hardrige, que me falou isso tudo assim que soube que eu estava encarregado de conduzir as pesquisas para a apuração do perfil psicológico de Polaro. Sinto-me culpado por ter que fazer perguntas tão incisivas ao rapaz, mas o poder jurídico insiste em que eu apresente esse relatório no máximo até no fim do mês. - Ele é bom? - O Dr. Hardrige? Hall fez que sim com a cabeça. - Não sei - disse Walder abrindo os braços com as mãos espalmadas para cima - pelo menos dizem que ele tem um consultório com a agenda constantemente lotada e leva muito à sério sua ética profissional. Fez questão de ressaltar antes da nossa conversa que ia contar-me o que relatou porque era um colega de profissão e por ter interesse direto no restabelecimento do rapaz que é amigo seu pessoal. Ele até encaminhou um pedido ao diretor para conseguir permissão para visitar Polaro pelo menos uma vez por semana. - E conseguiu? - Oras Doug, como é que vou saber? Você sabe muito bem que esse tipo de permissão é sigilosa e dada através de carta ofício enviada ao endereço do requerente... - Não vem com essa pra cima de mim Benny interrompeu Hall com evidente ironia - pensa que não sei que você está de caso íntimo com a secretária do diretor, é? - Opa!!! Vamos parar por aí. Não estou tendo caso coisíssima nenhuma com a Laurie. Estamos sim, é namorando sério e não costumo misturar, você bem sabe, trabalho com o

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amor - a expressão de Walder era tão cínica que até mesmo uma criança não acreditaria, embora aquilo realmente fosse verdade. Eles riram. Vinte e cinco anos seria muito tempo para ele ficar aprisionado. Polaro, só, em sua cela imaginava a vida lá fora, nunca dera tanto valor a ela como agora, como seria bom poder voltar a dirigir seu carro pelas ruas congestionadas de Nova Iorque, voltar a estudar, relacionar-se novamente com as pessoas e nunca mais voltar a cometer os erros do passado. Sairia daquela prisão em forma de hospital somente com cinquenta e três anos, já estaria velho demais para retomar sua vida do ponto onde a deixara, não teria mais graça nenhuma ter uma existência em liberdade e por mais bela que pudesse ser a perspectiva de voltar à essa liberdade, ela estaria tão toldada pelos anos futuros que estavam diante dele como uma turba de fantasmas com aquele sorriso arrepiante nos lábios a zombarem dele e de sua vida. No entanto merecia aquilo, era um criminoso e considerado perturbado mentalmente, ou como preferiam dizer os médicos que constantemente o visitavam, possuidor de um distúrbio psicológico. Era muito difícil pensar nas moças que matara, sabia o que tinha feito baseado nas visões, falsas é claro, que pensava ter tido. Aquilo era até um alívio, não conseguiria suportar lembranças mais detalhadas daquelas mulheres, seus rostos amedrontados como os de Linda Stacy, suas gargantas cortadas como a do policial e a flor sinistra que deixara junto aos seus corpos sem vida... Pelo menos já fizera um amigo ali no hospital, o Dr. Benny Walder, iriam até jogar xadrez juntos qualquer dia desses. Sentiu vontade de falar sobre sua vida, de responder as perguntas que ele costumava fazer, mas tinha que esperar, não podia correr nenhum risco desnecessário. Polaro esticou-se na cama e puxou o lençol cobrindo- se até a cabeça. Seu “alojamento” - como disse Benny - era pequeno,

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só havia a cama, uma estante com livros e uma pequena latrina, embora fosse impossível usá-la com aquela câmera num canto do teto a mostrar todos os seus movimentos. Era ridículo! Restava-lhe apenas resignar-se e esperar por Harry. Como se enganara acerca do amigo, imaginara que ele se decepcionaria que a amizade deles seria abalada ou até mesmo destruída quando ele soubesse de tudo. Porém não foi que aconteceu, Harry foi mais amigo do que jamais havia sido antes durante aqueles momentos de crise em sua vida. Contratou o melhor advogado, conseguiu obter na justiça a chance dele cumprir pena num hospital psiquiátrico em vez da penitenciária do estado. - Lucas - disse ele naquele dia no tribunal dentro da antessala onde os réus permaneciam até a hora do julgamento vamos fazer o possível para livrá-lo da prisão, em todo caso você sabe que isso será muito difícil. Polaro baixou a cabeça. - Ei rapaz! O que é isso? Seja forte. É impossível se mudar o passado. Temos que remediar essa situação. Como eu estava dizendo, será difícil fazer você ser inocentado, mas podemos dar um jeito de reduzirmos bastante a sua pena. - Como, Harry? - o indagou abatido - eu matei aquelas mulheres e ainda fui apanhado em flagrante, não tenho a menor chance de escapar, mesmo porque eu mesmo sei que não mereço clemência. Hardrige encarou Polaro, seus olhos brilhavam de tanta vontade de convencer ao rapaz de que ele precisava acreditar. - Escute Lucas - disse ele brando - você precisa confiar no que eu vou dizer a você, está bem? - Sim. - Você está doente. Alguma coisa o tem feito agir da maneira que agiu, os psicólogos e psiquiatras que examinaram você deram o parecer hoje: acham que você está perturbado psicologicamente, esse resultado é a chave que precisamos para

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tirá-lo da prisão, seu advogado acredita que após isso não há outra alternativa a não ser enviá-lo para o Hospital Psiquiátrico. Mais tarde você será dado como curado e sairá em menos de dois anos. - E se não me curar? - A cura vai depender de você. Quando estiver lá não responda a nenhuma pergunta sobre seu procedimento até eu conseguir aprovar uma petição para visitar você e assim conversaremos melhor. Agora só restava a Polaro esperar, tinha um medo louco de falar qualquer coisa que viesse a influir diretamente sobre a sua chance de sair dali antes do final da pena, portanto esperaria até Harry poder vir vê-lo para saber o que dizer. Estava assistindo ao telejornal na sala de vídeo do hospital. Sem dúvida havia bem mais vantagens em cumprir sua pena naquele lugar do que em um presídio. A Instituição era limpa, confortável e com uma comida até que agradável. Havia várias pessoas na sala, mas nem todas assistiam TV. Um rapaz fazia palavras cruzadas, havia um cigarro preso atrás de sua orelha e era o único interno que possuía uma aparência mais ou menos normal, além de Polaro, é claro. Polaro sentiu vontade de aproximar-se dele para conversar, mas lembrou do conselho de Harry e o sujeito parecia normal demais para um louco, poderia ser algum funcionário que ele ainda não havia notado. Voltou a prestar atenção na TV. - Ei - disse alguém falando com ele, virou-se e constatou que era o rapaz a quem estivera observando. Só aí percebeu que ele não era tão rapaz assim, devia ter mais de trinta, trinta e cinco talvez - gosta de jogar xadrez? Polaro balançou a cabeça afirmativamente. - Quer jogar uma partida? - Quero.

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A barba por fazer do sujeito dava a ele um aspecto selvagem, seus olhos eram grandes, mas conservados semifechados dando a aparência de alguém com problemas de visão. - Meu nome é Vincent Tatter e o seu? - Sou Luís Polaro. Apertaram-se as mãos enquanto Tatter arrumava animadamente as peças no tabuleiro, eram peças plásticas com um pequeno pedaço de ímã colado em suas bases para aderirem ao tabuleiro metálico. Tatter iniciou seu jogo colocando o peão que estava diante do segundo cavalo duas casas para frente. Ambos eram bons jogadores e a partida levou mais tempo do que ambos esperavam. A partir de um determinado movimento de Polaro, Vincent Tatter tentou uma conversa, achou que se queria conhecer aquele rapaz iniciaria o diálogo falando de si. - Sabe por que estou aqui? - iniciou ele. - Não. - disse Polaro secamente sem tirar os olhos do tabuleiro. - Quer saber? - insistiu Tatter. - Se você quiser contar... Tatter contou. Há alguns anos fora preso no lugar do sujeito que andava por aí assassinando homossexuais e mendigos, havia muita coincidência entre ele e o verdadeiro criminoso, inclusive semelhança física e ele foi levado ao Tribunal por isso. Seu pai conseguira um parecer psiquiátrico que o livraria da penitenciária e o jogara na Instituição. Os médicos disseram que se ficasse curado seria solto, mas ele sabia que isso nunca aconteceria. - Você sabe de uma coisa - confidenciou Vincent sussurrando - fazem a gente acreditar que vai sair dessa espelunca, só que esse dia não chega porque não acreditam que fiquemos sarados. E não adianta ficar aborrecido com os médicos não, eles até fazem o possível para nos ajudar e chegam a encaminhar petições de liberdade condicional, acontece que o Supremo Júri

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não aceita, daí enviam um de seus médicos para nos examinar, o cretino faz uma série de testes sacanas com a gente e depois diz: ele ainda tem tendências selvagens e é nocivo à sociedade - no final desse desabafo Vincent já quase gritava sem que ninguém desse atenção a isso - desculpe o desabafo - ele terminou encabulado. - Deixa pra lá - Polaro acenou com a mão em desprezo acho que é xeque. Tatter observou incrédulo o tabuleiro de xadrez, estava acostumado a jogar com aqueles mentecaptos idiotas que se deixara pegar por uma jogada tão elementar. - E mate! - observou Vincent, seu rei estava encurralado pelo cavalo e a rainha de Polaro numa posição que não admitia saída. Mais tarde em seu alojamento Polaro remoia as palavras de Tatter sem saber se dava crédito à elas ou não, a negativa calou com mais firmeza em seu cérebro. Estava preocupado. Outra vez a possibilidade de passar vinte e cinco anos enterrado naquele sanatório o aterrorizava transformando sua mente numa arena onde várias alternativas degladiavam-se para ocupar a maior parte de seu pensamento. Na manhã seguinte, no refeitório, Vincent e Polaro sentaram juntos. Vincent tentava adivinhar o pensamento de Polaro e usava as poucas palavras que esse pronunciava para conseguir isso. - Não prometo ficar muito tempo aqui! – segredou Tatter. - Como? - Polaro não escutara o sussurro do outro. - Disse que não pretendo ficar por mais tempo aqui. Polaro não deu atenção àquelas palavras e Tatter ia repetilas quando viu o Dr. Walder aproximar-se. - Vejo que já fez amigos Polaro! - referia-se a Vincent embora falasse no plural - tem um outro amigo seu esperando para falar com você lá no jardim.

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- Harry? - Isso. O Dr. Harry Hardrige veio ver você. Polaro levantou deixando o restante da refeição matinal na bandeja. Walder o conduziu ao local onde Hardrige estava e os deixou a sós. Os amigos trocaram amabilidades e conversaram coisas fúteis até Hardrige começar a indagar sobre o que aconteceu naqueles dias ali no hospital. Polaro disse tudo, desde sua conversa com o Dr. Benny Walder até sua recente amizade com um dos internos chamado Vincent Tatter, como Hardrige não dera importância a esse fato, pois conhecia o caso Tatter, Polaro decidiu não falar o que Vincent dissera por último. Hardrige por sua vez aconselhou ao seu amigo e paciente a manter-se esquivo diante das indagações de Walder, disse que não confiava no médico porque fizera uma investigação descobrindo que qualquer dúvida que pairasse acerca da memória de Polaro levaria os diretores a mantê-lo mais tempo na Instituição. Antes de ir embora ressaltou que criaria um plano de comportamento simulado que convenceria a equipe médica a concederem-lhe a liberdade, mas que por enquanto era cedo para aquele procedimento, pois causaria desconfiança. Luís Polaro voltou a adquirir confiança na sua liberdade. Nas noites seguintes Polaro e Tatter voltaram a se enfrentar no xadrez. A simplicidade de Vincent criava em Luís Polaro uma aura de confiança fazendo esse ceder pouco a pouco e até chegasse a falar de sua própria vida. Certo dia ele surpreendeuse falando do passado, da mãe que não conhecera e do pai arredio que tivera, do dinheiro que possuía e que nunca dera valor e da liberdade que antes enterrara numa quitinete e que agora fazia tanta falta. Tornaram-se amigos embora Polaro mantivesse ainda certas reservas com relação a essa amizade. Havia algo em Vincent Tatter que não compreendia, talvez desconfiasse de que ele mentia

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acerca de sua inocência - e quem não mentiria? - até ele ao ser questionado por alguém de quem quisesse ser amigo sentiria a tentação de mentir para evitar que a pessoa se afastasse. - Você se considera curado? - perguntou Polaro certa noite quando ambos, cansados de jogar, procuravam as palavras de um quebra-cabeça. - Nunca fui doente mental! - disse Tatter defendendo-se, sua testa ficara cheia de rugas ao compreender a verdadeira intenção da pergunta de Polaro. Reorganizou as ideias preparando uma mentira eloquente no intuito de disfarçar sua aparente agitação, mas logo dissuadiu-se preferindo falar a verdade. Pensou que se queria a confiança de Polaro e obter a colaboração dele, a verdade seria o melhor caminho - Você quer saber a verdade? indagou Tatter por fim. - Que verdade? - Sobre porque eu vim parar na Instituição. - Escute Vincent, você não deve satisfações de sua vida a mim, fale apenas o que você gostaria de falar, independente de eu querer ou não saber. Eu vim pra cá porque matei e estuprei moças inocentes e estou arrependido amargamente por isso, nunca mais voltarei a fazer isso. Assim você pode ser um inocente e se não for quero acreditar que também está arrependido. - Estou, Lucas, e muito! - Vincent estava com água nos olhos - tudo o que queria agora era minha liberdade de volta... Lucas segurou no ombro do amigo confortando-o, não conversaram mais sobre o assunto naquela noite e em nenhuma outra noite mais. Vincent ainda convidou Lucas para assistir com ele uns filmes em seu alojamento, ele possuía TV e videocassete nele, conquistara esse privilégio depois de algum tempo na Instituição, Polaro não aceitou alegando que estava cansado e preferia dormir mais cedo.

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Walder comentou com Hall que após a visita do Dr. Hardrige Polaro o evitava com grande veemência, recusou a partida de xadrez que haviam combinado jogar e mostrava distração diante das perguntas que o psiquiatra fazia, o perfil psicológico que traçara do interno, para usar as próprias palavras dele, era um lixo que faria a cura para o caso dele parecer um sonhos de criança em encontrar um ET. - Acha que a visita do Hardrige prejudicou sua suposta amizade com o Polaro? - É... acho! - Sabe por quê? - Não! - Pois eu sei. - Então diga Doug! - Veja bem - iniciou Hall eloquente - é notório que Luís Polaro apresente um comportamento desajustado oriundo de um problema psicológico ou mental ou até ambos. Esse tipo de pessoa tende a mostrar-se esquiva fugindo de tudo e de todos até encontrar alguém que por algum motivo inspire confiança a ela. “Polaro estava sentindo-se só quando você surgiu fazendoo lembrar de uma figura do passado e isso o levou a confundir a situação fazendo tornar-se seu amigo. Era, porém algo muito tênue a que você apoiou sua orientação e tirou o máximo proveito da situação. Daí surgiu o Hardrige, amigo íntimo de Polaro, isso o fez esquecer novamente de você mostrando-se arredio com relação à sua pessoa como anteriormente”. - Muito bem Dr. Hall - Walder aplaudia e sorria, sua pele oleosa brilhava sob a parca luz da lâmpada no teto - agora que conseguiu diagnosticar a doença dê-me a cura. Hall enfiou a mão no bolso do guarda-pó e prosseguiu. - Impedir as visitas de Hardrige seria o caminho mais curto para essa cura. - Isso seria antiético.

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- Concordo. Talvez você devesse conversar com ele e expor a situação, querendo o bem do seu ex-paciente por certo ele concordaria em ajudar. - Ou ficar aborrecido - replicou Walder. - Então peça-lhe que faça as entrevistas no seu lugar, ora bolas... Ficaram em silêncio alguns minutos até Benny Walder decidir interrompê-lo: - Se pelo menos o Tatter pudesse nos dizer o que eles conversaram... - Mas ele nunca faria isso, só pelo prazer de causar algum transtorno à Instituição. Walder levantou-se, foi até a janela e olhou seu carro parado no estacionamento, junto com ele estavam outros sete, daria tudo para poder esquecer o hospital por uns dez dias e sair no velho Maverik com Laurie pela cidade. - Será que o Hardrige acha que você pode querer prejudicar o Polaro e o alertou para prevenir-se contra você? - Ora que bobagem, Doug, de onde é que você tirou essa idéia absurda. - Sei lá, surgiu na minha cabeça. Deixa pra lá, ok? Walder olhou para o amigo e disse: - Estamos há tanto tempo trabalhando com criminosos, doentes mentais que começamos a desconfiar de todo o mundo. Hall girou o dedo fazendo círculos ao redor das têmporas. - Estou ficando biruta, Benny - disse ele divertindo-se com suas palavras. - E quem não está, Doug? Quem não está? No nosso trabalho findamos adquirindo um pouco dos doentes a quem tratamos. Doug Hall saiu em seguida deixando o companheiro imerso em seus pensamentos.

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20 Quando Barney Thompson ouviu o ruído do Jeep era tarde demais para esconder-se, detestava todo visitante inoportuno e principalmente turistas que insistiam em invadir seu terreno. Da última vez que os deixara ficar transformaram sua propriedade num chiqueiro de porcos, havia lixo por toda parte, papel higiênico usado, roupas íntimas e outras coisas mais nas quais preferia não pensar. Ele cortava madeira seca em pedaços de quarenta centímetros para usar em seu fogão à lenha, mantinha seus costumes antigos à risca e não gostava da idéia de usar fogão à gás, já estava cansado de ler nos jornais sobre as vítimas muito queimadas ou mortas que aquela invenção fazia e ele jamais seria uma delas. Continuou levantando seu machado sobre a cabeça e deixando-o cair usando seus braços para guiar a lâmina até o ponto da madeira que pretendia cortar. Barney morou toda sua vida sozinho. Era um solteirão assumido, pois nunca fizera questão de arranjar companhia para seus últimos dias. Percebeu que o Jeep fora estacionado, ouviu os passos de alguém que se aproximava e sem voltar-se para quem quer que fosse disse: - O que deseja aqui, filho? Duncan não soube como o velho sabia que se tratava de um homem, mas deduziu que a vida que levava ali naquela casa fora dos limites da cidade deixaram-no muito sensível aos ruídos. Havia árvores por todo o terreno e do local onde deixara o veículo pôde ver uma pequena horta do lado direito do chalé térreo que devia pertencer a Barney Thompson. - Meu nome é Joshua Piemound Duncan - Josh não soube por que disse seu nome completo, mas sentiu-se impelido a isso mas sou conhecido como Josh Duncan. - Piemound? - disse Thompson divertido. - Sim. É de minha mãe, ela era filha de franceses...

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- Ainda não me disse o que quer aqui - insistiu o sujeito sem parar de golpear a madeira fazendo “v” até que se partisse. - Estou escrevendo um livro, quer dizer, estou pesquisando para escrevê-lo. É sobre a seita Filhos da Luz. - Barney parou o machado a meio caminho da madeira e deixou-o cair de lado. Virou-se e reconheceu o Jeep parado sob uma de suas árvores. - Foi Sands que o mandou? - Isso mesmo - Duncan viu em que direção o velho olhava. Possuía cabelos mesclados de branco e preto que davam um aspecto de pêlo de preguiça e ao virar-se notou-lhe os olhos grandes e amendoados cheios de rugas. Thompson avançou até sua casa fazendo um sinal com a mão para que Josh o seguisse. Dentro do chalé de madeira rústica sentou-se com o detetive a sua frente em outra poltrona e iniciou: - Que tipo de livro você vai escrever? - Documentário - disse ele a primeira palavra que surgiulhe na mente. - Vou lhe dizer uma coisa, Piemound. Você não é o primeiro, o próprio Sands veio aqui com essa conversa mole há algum tempo. Portanto vou lhe pedir que diga suas verdadeiras intenções, ou melhor, nem precisa dizer, acho que posso perfeitamente adivinhar... Sua mãe não se chamava Piemound coisíssima nenhuma, possuía um outro nome qualquer. Você está tentando resgatar o passado dela e sabendo que ela era membro dos Filhos da Luz veio falar com Sands, ele lhe mostrou a lista e você viu o nome dela, daí veio até mim para saber se eu a conheci, certo? - Certo - Duncan estava confundido com a tremenda estória que aquele homem na sua frente criara e resolveu concordar com tudo - como o Sr. soube de tudo? - perguntou tentando mostrar-se surpreso com a conversa de Barney.

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- Pare com esse negócio de senhor, sou Barney Thompson, apesar de saber que isso não deve ser surpresa para você e todos me chamam de Barney. Como sabia de tudo isso, nem eu sei, acho que sonhei essa noite com algo parecido. Agora me diga como é seu nome, o verdadeiro é claro. Duncan pensou rapidamente em um nome da lista de Sands, mas os que vinham à sua mente eram confusos, só o de Janet Biler vinha-lhe com total nitidez. - Barney - iniciou Duncan - você só errou em um detalhe, meu nome verdadeiro é o que eu lhe disse, fui criado por pais adotivos e só recentemente descobri isso - ele admirava-se de sua capacidade de mentir - soube que a minha legítima mãe era dos Filhos da Luz e o resto você acertou. Barney pareceu um pouco decepcionado. - Como era o nome dela? - indagou ele. Josh sentiu o peso da garrafa de vinho no bolso do terno e decidiu que aquele era o momento certo para presenteá-la. Retirou-a e estendeu-a a Thompson. - O que é isso? - indagou ele. - É uma garrafa de vinho que trouxe para você. Barney a pegou e leu o rótulo. - Por que fez isso, Piemound? - Trazer o vinho? - Sim. - Sempre é bom sermos corteses com pessoas que podem nos ajudar, não para comprar a ajuda e sim para agradecer por antecipação. - Vou colocá-la na geladeira para podermos beber juntos antes que Josh esboçasse qualquer reação o homem já havia desaparecido por uma porta. A sala do chalé era ampla e muito mobilhada. Na parede da frente havia uma porta de correr com quatro folhas sendo duas fixas e duas móveis e mais duas janelas. Ao lado direito de quem

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entra estava um sofá de madeira e duas poltronas do mesmo estilo. Quase tudo era de madeira, o chalé, os móveis, a cobertura, só peças menores eram compradas, o restante parecia ter sido feito à mão e talvez pelo próprio Barney. Do lado esquerdo era a sala de jantar com uma mesa e quatro cadeiras além de uma cristaleira. Barney tivera muito trabalho de fazer tudo aquilo, se é que fora ele realmente. Duncan levantou e caminhou até à cristaleira. Lá estava ela. A estatueta dourada com uma esfera cheia de hastes em cima de uma coluna em cuja base se lia: Filii Lux. Imaginou-se no lugar de Wilson no dia em que este vira o mesmo objeto na mansão de Luís Polaro. Um calafrio percorreu-lhe a coluna de pensar que ainda podia haver algum mistério no caso de Polaro, e esse pensamento foi corroborado pelo depoimento de Estélio Cortez. - Bonita, não acha? - a voz era de Thompson que pareceu surgir do nada. Josh assustou-se. Olhou para Barney que estava ao seu lado, não entendeu como ele chegara ali sem fazer nenhum ruído. - É. Muito, foi você quem a fez? O homem compreendeu que Duncan pensava que ele se referia ao móvel e explicou-se: - Fui eu que fiz a cristaleira sim. Mas não me referi a ela, falei da estatueta. - Ah, sim - Duncan não demonstrou embaraço - é bonita mesmo. De que é feita? Barney abriu a cristaleira e retirou o objeto colocando-o sobre a mesa. Sentou-se em uma das cadeiras e Josh fez o mesmo. Apoiando o queixo na mesa, Barney passou a examinar detidamente o objeto, parecia querer vê-lo do ponto de vista de alguém da altura dele. Girou a estatueta e por fim disse: - De cobre. Não sei onde o Reverendo Sinford foi arranjar tanto cobre para fazer dezenas de estátuas iguais a essa. Naquela época cobre já era barato, mas difícil de ser encontrado, as

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indústrias que trabalhavam com esse material monopolizavam a compra. A estatueta é maciça! - Quem é esse Reverendo Sinford? - Sands não lhe contou? Duncan balançou a cabeça e acrescentou: - Ele não me disse nada a mais do que você já sabe. Disse pra eu procurar você para ter uma visão mais nítida dos Filhos da Luz e saber como era minha mãe. O velho tossiu alto colocando o punho fechado sobre a boca num gesto de educação. Ele era educado e instruído denotando sua origem. Não fora a vida toda uma ermitão, em algum dia no passado aquele Barney Thompson fora diferente. - Isso é admirável - disse ele recuperando-se da tosse geralmente ele conta tudo sobre os Filhos da Luz, gosta de se gabar de seu arquivo que contém muito das religiões que estão espalhadas por aí. Uma coisa eu admiro naquele rapaz, ele nunca sai por aí dizendo que éramos fanáticos ou que recebíamos lavagem cerebral. Duncan sorriu complacente. - O Reverendo Sinford, Larry Sinford - continuou Barney Foi o homem que trouxe a religião até nós. Falava de paz, de amor e nos acolhia em sua casa que mantínhamos com trabalho e dedicação e os que possuíam riquezas doavam-na em prol do sustento dos irmãos. Mas se você quiser saber sobre ela conto-lhe mais tarde. Botei a garrafa de vinho numa bacia de gelo e acho que já deve estar no ponto de ser aberta. Vá para a sala de estar - disse indicando a parte do grande cômodo em que se encontravam anteriormente - leve-a para lá - referia-se à estatueta. Saiu para apanhar o vinho. Duncan percebeu que Barney demorava mais tempo do que o necessário para o que fora fazer e inquietou-se, mas logo compreendeu o porquê da demora ao ver o velho entrar na sala com outra camisa e um balde com o vinho dentro. Depositou tudo

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na mesinha e foi até a cristaleira retornando em seguida com duas taças de vidro comum. - Quer abrir? - indagou Barney. - Não, abra você. Thompson segurou a garrafa pelo gargalo e enfiou o sacarolha, logo a garrafa estava aberta e ele derramava o líquido transparente nas taças. Ergueram um brinde à saúde de ambos e após o tilintar Barney tomou a metade do conteúdo de sua taça enquanto Duncan mal molhou a garganta. - Agora me diga - disse Thompson - como se chamava sua mãe. - Não sei. - Como não sabe? - Esse é o maior problemas Barney, não sei o nome dela. - E como você espera que eu o ajude Piemound? Josh tomou um gole de vinho e prosseguiu. - Conheço o nome de uma amiga dela. - Ora Piemound, todos nós éramos como irmãos, é difícil pelo nome de um amigo qualquer identificarmos outro colega. É bem verdade que sempre tínhamos alguém mais chegado ou se talvez as duas fossem companheiras de quarto eu até poderia identificar sua mãe. Acontece que 1962 é um ano distante pra eu guardar na memória quem morava com quem. Infelizmente eu sou o único que pode ajudar você, pois os outros membros que moravam por aqui ou já faleceram ou se mudaram para longe, locais que desconheço - Barney tomou o restante de sua taça e tornou a enchê-la - Bem... - continuou ele - ... só nos resta tentar, diga o nome da amiga de sua mãe. Duncan encarou o velho que voltava a sorver outro grande gole. Daquela maneira antes que o detetive terminasse a segunda taça Barney já teria tomado a garrafa toda. - O nome dela era Janet Biler.

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Thompson tossiu novamente, dessa vez botando para fora um pouco de vinho que conservava na boca. Limpou-se com a própria camisa e disse: - Janet Biler? Havia algo de surpreendente no nome de Janet Biler e Duncan não pôde deixar de notar isso diante da reação daquele homem à sua frente. Sentiu que poucos centímetros o afastavam de descobrir algo grande e temeu dizer qualquer coisa que o distanciasse mais ainda desse fato novo. Notou que as rugas da testa e dos cantos dos olhos de Barney acentuaram-se mais ainda. - Você disse Janet Biler? - insistiu Barney a despeito de ter ouvido perfeitamente o que Duncan dissera. Duncan fez um sinal afirmativo de cabeça. Thompson observou o movimento de Duncan e levantouse. Foi para a janela que ficava próxima da mesa da sala de jantar e abriu. Respirou fundo com a cabeça para fora e voltou-se de chofre. - Você sabe quem é essa mulher, Piemound? - perguntou do outro lado da sala aumentando o volume da voz para ser ouvido por Duncan. - Não - disse ele. - Como você sabe que ela era amiga de sua mãe? Josh hesitou, não esperava aquela reação de Barney e não planejara nada responder. Era muito difícil mentir, era algo que requisitava estudo para não ser descoberto. Sempre achara a mentira degradante, mas tivera que recorrer a ela muitas vezes em sua vida de policial. Com Wilson era fácil, pois ele sempre sabia exatamente o que dizer, talvez repassasse ponto por ponto do que diria a alguém e imaginasse até as possíveis perguntas que poderiam surgir preparando-se para elas. Só que com ele era diferente e agora se encontrava em uma situação muito embaraçosa.

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- Bem - pausou tentando articular melhor o que diria minha mãe adotiva, que se chamava Marguerite, me falou certa vez nesse nome e nunca esqueci. Recentemente minha tia disse que minha verdadeira mãe havia sido amiga de uma tal de Janet Biler e que ambas haviam pertencido aos Filhos da Luz. - E como ela soube? - Barney mostrava sua desconfiança e Duncan incomodava-se com aquilo. - Foi minha tia quem tratou da adoção. Barney pareceu ficar satisfeito com aquela resposta e aproximou-se de Duncan, sentou novamente e bebeu outro gole. Duncan havia misturado mentiras com verdades em busca de convencer a Thompson e saber porque o velho reagira daquela forma. Joshua Piemound Duncan fora realmente adotado, mas nunca soubera de sua verdadeira mãe e não fora sua tia que tratara da adoção e sim os próprios pais que eram canadenses, Marguerite e Octave Duncan, herdara o Piemound da mãe. Pelo que seus pais lhe disseram a mãe verdadeira era desconhecida e o tiraram de uma casa de adoção com dois anos de idade. - Muito bem, Piemound - voltou Barney a falar - sua mãe era amiga da pior mulher que pode existir na face da terra. Uma Judas que traiu os Filhos da Luz e ocasionou a extirpação, a extinção de nossa sagrada religião. Arruinou tudo que jurou defender diante do altar. Até aquele momento Duncan não havia notado nada em Barney que justificasse a afirmação de Robert Sands ao dizer que o velho era um fanático, porém agora percebia que o pesquisador de seitas religiosas tinha razão. Barney estava com uma expressão sombria, o que se via no seu rosto não era raiva e sim um profundo rancor. Encheu sua taça, a terceira que tomava, e sorveu o líquido de uma só vez fazendo uma careta como se o vinho o tivesse queimado por dentro.

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- Uma jura diante do altar jamais poderia ser traída, Piemound! - disse ele. - Barney - cortou Duncan após ter pensado no que iria falar - não sei do que você está falando, de um momento para outro você ficou irritado, perdoe-me se disse algo inconveniente. - Você realmente disse algo muito inconveniente, mas não foi sua culpa. Você apenas quer descobrir quem é sua mãe sem imaginar que ela foi amiga de uma Judas. Duncan recostou-se no descanso da poltrona esperando que Thompson continuasse falando. O velho não parecia ser forte para o álcool, pois os sinais de descontrole que mostrava não era somente a irritação de ter ouvido o nome de Janet Biler ou as implicações que o nome dela trazia. Era o álcool que mostrava seus efeitos em Barney Thompson. Apesar disso o velho voltou a encher sua taça e beber a metade dela antes de falar. - Vou contar pra você quem era Janet Biler - disse ele com os olhos a faiscarem de emoção - ela era a Escolhida! Imagine só... de todas as moças que compunham o corpo de nossa fé, justamente ela foi a Escolhida. Eu até poderia imaginar que isso havia sido um erro fatal do Reverendo Sinford, sinto um pouco de culpa por ter um dia pensado que ele havia errado, os olhos da fé, entretanto revelaram-me a verdade e hoje compreendo que ele sabia de tudo, como o Nazareno sabia da traição de Judas Iscariotes e não fez nada para impedir isso, o Reverendo também sabia de tudo... Duncan compreendia pouco ou quase nada do que Barney falava porém não ousava interferir para não interrompê-lo e impedir que ele dissesse algo de importância vital. Fazia força para gravar o que o velho dizia para mais tarde comparar com Sands, o fanático gesticulava desordenadamente e alterava seu tom de voz a cada minuto fazendo o policial ficar de sobreaviso temendo uma reação violenta que Barney pudesse ter.

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- Sabia de tudo e não fez nada... - repetiu Barney mais para si próprio do que para Duncan - ... e ela saiu do meio de nós naquele Domingo depois de arrasar com todos nós. “Eu era diácono-mor, sabia da vida de todos os membros e fiquei muito desconfiado quando Janet consultou-me acerca de seu namorado de fora da seita. Naquela ocasião, entretanto, apesar do cargo que ocupava achei que era normal na idade dela e deixei o assunto de lado. Um dia Denise me procurou, ela era amiga de Janet e bem que poderia ter sido sua mãe, mas duvido muito porque ela não era nada parecida com você, isso se você não saiu ao pai... - Barney parou um instante e olhou fixamente para Duncan tentando ver no rosto do investigador traços de alguém que conhecera no passado - ... Não!! Você não pode ser filho de Denise pois eu conheceria a fisionomia do possível pai que você teria, aquela moça não era de fazer coisas erradas... Você sabe o que eu quero dizer com isso...” - Como eu estava dizendo - Barney continuou com um soluço - Denise procurou-me dizendo que desconfiava que Janet iria abandonar a fé por causa do namorado e sendo ela uma das possíveis aspirantes a ser a Escolhida seria algo muito ruim. Percebi que a moça poderia estar com a razão procurei o Reverendo e contei a ele... era mesmo um homem forte, o verdadeiro enviado da luz, o mais autêntico filho da luz que já andou sobre a terra... sua decisão foi digna dele! Marcou a data da proclamação da Escolhida para aquela noite e a consagração para a noite do dia seguinte. Janet foi proclamada a Escolhida, mas antes da consagração o namorado dela apareceu por lá levando consigo os mantenedores da falsa paz que há no mundo e eles destruíram tudo. De alguma forma Janet avisou seu namorado e comparsa, aquele safado filho do velho Benedict, sempre achei que ele não era um bom elemento. “O Reverendo Sinford não quis reagir, achava que não seria bom lutar com gente pecaminosa pois estaria se misturando a

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eles e seria contaminado pela perversão de suas almas. Warren Hayworth não pretendia deixar seu mestre cair nas mãos dos inimigos e lutou por ele até o fim.” “Warren Hayworth era o segundo pupilo do Reverendo Sinford - todos nós o olhávamos com inveja porque ele substituiria o mestre, que era o Reverendo, após sua ascensão à luz. Havia o primeiro pupilo que deveria ser o substituto, mas este não seria porque Warren era mais velho tanto na fé quanto na idade de vida nessa terra.” “Então, ao ver a segurança do mestre ser abalada, Warren empunhou armas e ainda deu cabo de vários agentes das trevas antes de sucumbir ao poder deles, pena que não tenha conseguido acertar Raphael junto com aqueles canalhas, talvez fizesse parte dos planos do Reverendo...” “Naquela noite o Reverendo Sinford ascendeu à luz como ele sempre dissera que faria, deixando atrás de si muitos fiéis sem seu comando. Acho que Warren morreu nas chamas junto com o jovem primeiro pupilo eleito pelo mestre, Drah era como o chamávamos. Antes disso o mestre deixou uma maldição para aquele que o traiu, e não falhou!” “Soube alguns meses depois que ela morreu.” Duncan não conseguia dizer uma só palavra. Diante dele estava um homem que fizera parte de uma realidade que ele não conseguia compreender. Incitado pelo nome da mulher que considerava uma vilã Barney desatara a falar de coisas que, embora a ele parecessem significativas, para o detetive faziam bem pouco sentido. Duncan queria poder extrair algo mais substancial daquilo tudo, mas agora qualquer tentativa que fosse feita com essa intenção não traria o menor resultado porque Barney Thompson parecia ter desmaiado de tanto álcool que havia ingerido. Cuidadosamente Josh Duncan aproximou-se de Barney e retirou a taça vazia que este segurava nas mãos. Concluiu que o velho ermitão havia adormecido após dizer tudo àquilo que

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guardara, talvez por tanto tempo. Ressonava baixinho como se estivesse adormecido há muito tempo e não naquele momento. “Piemound” - pensou Josh com um sorriso no canto da boca. Desde criança nunca mais ouvira alguém chamá-lo pelo seu segundo nome. Seus colegas de escola costumavam usar esse nome de forma pejorativa para aborrecê-lo e isso realmente acontecia. Nessa manhã o velho Barney pronunciara tantas vezes aquele nome que até achara divertido embora houvesse estranhado no começo. Duncan retirou-se deixando Barney ressonando diante da garrafa de vinho com o pouco do líquido que nela restara. 21 Sands dera uma chave para Duncan poder entrar na casa sem precisar bater porque o Teólogo não gostava de ser interrompido quando estava trabalhando. Quando Duncan chegou à casa de praia, entretanto, encontrara a porta apenas encostada e ao entrar assustou- se com a desordem em que tudo se encontrava. Móveis revirados e furados com o seu estofado à mostra, a TV quebrada, a estante da sala derrubada, enfim não havia nada em seu devido lugar. Instintivamente o detetive passou a mão no coldre que levava embaixo do braço e sacou a Smith&Wesson.44 que mais parecia um brinquedo nas mãos dele. Iniciou a busca pela casa. Era improvável que quem fez aquela bagunça ainda estivesse por ali, o que não o impedia de manter-se atento, qualquer surpresa que encontrasse poderia ser fatal. Duncan agora mantinha em sua mente um pensamento fixo: os assassinatos cometidos por Luís Polaro era apenas parte de algo maior que ele ainda não conseguira mensurar e que aos poucos se apresentava em detalhes tão pouco significantes que

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toldavam quase que inteiramente sua relação com o Assassino da Flor. Sabia que um elo forte era a mãe de Polaro, Janet Biler. Algo que chamava sua atenção aumentando suas suspeitas pelos Filhos da Luz. “Sim” - pensou ele abrindo a porta do banheiro com todo cuidado - os Filhos da Luz eram de alguma forma os responsáveis por aquilo tudo e descobriria o por quê. O banheiro estava vazio. Aproximou-se da sala onde havia o computador. Entrou parando na porta assustado com aquele quadro que se apresentava a ele. Sands chegara em casa meia hora antes de Duncan e também encontrara a sua casa totalmente revirada. Seu primeiro pensamento foi de que alguém tentara roubar alguma coisa de sua casa, porém ao ver um candelabro de prata que possuía deixado displicentemente sobre a mesa afastou por completo essa possibilidade. Se alguém entrasse ali para roubar por que deixaria o objeto tão valioso de lado? Foi a idéia de ver seus arquivos remexidos que o assustou, mas não podia conceber anos de trabalho jogados fora por um ladrão safado que não reconhecia sequer o valor de um artefato de prata. Pulando por cima dos móveis espalhados no chão foi até seu arquivo. Antes que pudesse tocar na maçaneta sentiu-se agarrado pela parte posterior de seu colarinho e jogado em seguida no meio dos destroços daquilo que fora o sofá. Virou-se meio atordoado com o choque e deparou-se com um sujeito enorme, devia ter pelo menos um metro e noventa e cinco de altura e era forte como um touro selvagem. - Quem é você? - indagou Robert Sands. Sua voz era trêmula e assustada, tentava controlar-se embora desse sinais visíveis de seu estado de puro nervosismo. O sujeito limitou-se a sorrir. Não era um sorriso cínico, ainda que fosse dado por um brutamontes violento, parecia ser a

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própria expressão da bondade. Vestia uma calça jeans índigo muito azul e uma camisa amarela com gola de padre. - Sinto muito Dr. Sands - disse ele com o sorriso sempre estampado no rosto, sua voz era muito calma e grossa - é que o Sr. me assustou. - Assustei você? - disse Sands agora recuperando-se de seu nervosismo diante da brandura do outro - você é que me espantou... o que está fazendo em minha casa? O estranho aproximou-se estendendo a mão para ajudar Sands a levantar-se. Este recusou a ajuda colocando-se em pé. - Lamento a bagunça que tive que fazer mas eu precisava encontrar algo, eu sabia o que procurar só não sabia onde achar, e como achei que o Sr. o esconderia saí vasculhando tudo. Sands quase riu da petulância daquele sujeito. - Quem é você? - tornou a perguntar o jovem teólogo. - Ah, sim. Já ia me esquecendo, foi a primeira pergunta que o Sr. fez. Meu nome é Mark Dykstra... - Ei - interrompeu Sands - eu já vi o seu nome antes... - É claro que já. O que comprova a teoria dele - disse para si em voz alta - quero que me dê o seu fichário sobre os Filhos da Luz. - O quê? Eu não tenho nenhum fichário, o que tenho é um disquete com poucas informações que... agora lembro, seu nome consta na lista dos Filhos da Luz... - Não! Sou muito jovem para ter pertencido à seita, é o nome de meu pai que está na sua lista. Dykstra levantou a perna de sua calça jeans revelando um coldre de onde retirou uma pistola automática. - Quero o disquete Dr.! - disse ele ameaçando com a arma. Sands não tinha outra saída a não ser entregá-lo ao homem. Entrou na sala do computador seguido por Dykstra e foi direta até à estante de onde retirou a caixa com o disquete e entregou-a ao sujeito.

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Dykstra examinou desconfiado o quadrado fino que a caixa continha, era óbvio que nunca vira um daqueles antes. - Como posso saber se você não está me enganando Sands? - perguntou ele assumindo uma expressão sóbria no rosto e deixando de se referir a Sands como Dr. ou Sr. - Posso colocá-lo no computador para ver... - Faça isso! Em alguns segundos a listagem que Sands pedira ao computador dava início a impressão, o ruído assustou um pouco Dykstra mas não se via um sinal disso em seu rosto. Sands apanhou o papel e entregou a ele, este pôs-se a ler para em seguida pedir o disquete de volta. Sentado diante da tela do computador, Sands tentava adivinhar que atitude Mark Dykstra tomaria e chegou a acalmar-se ao vê-lo guardar a arma no lugar onde ela se encontrava anteriormente. Sands jamais conseguiu entender como o brutamontes arrancara o cabo do computador tão rapidamente passando-o ao redor de seu pescoço. Ainda tentou segurar o cabo, mas seu movimento posterior foi debater-se até que uma escuridão o envolveu. Robert Sands morreu bem depressa. Um sorriso de triunfo surgiu no rosto de Dykstra, porém o barulho do jipe sendo estacionado lá fora despertou sua mente para a principal tarefa daquele dia. Duncan contemplou a imagem de Sands sem se surpreender, era fácil imaginar o que havia acontecido depois da bagunça em que a casa se transformara. Se o assassino que pusera fim na existência de Sands ainda estivesse por ali representava um perigo iminente. - Não se vire! - a voz de Dykstra soou atrás do detetive largue sua arma bem devagar, estou armado e se você tentar virar herói vai morrer com um tiro nas costas! Josh obedeceu devagar tentando adivinhar quem era o homem atrás dele. Sentia um desconforto terrível em abandonar

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sua arma que era, sem dúvida, sua única defesa contra uma atitude desesperada daquele inimigo. Vendo a arma de Duncan cair pesadamente no chão, falou: - Agora vire-se devagar e tire o paletó - enquanto Duncan fazia o que Dykstra mandava, este continuava falando - Você é o policial Josh Duncan não é? O do caso Molina e do Estuprador de Manhattan. Duncan afirmou com a cabeça. - Drah enviou-me para cá a fim de capturar você, ele está querendo saber o que você quer xeretando sobre os Filhos da Luz. Como foi sua entrevista com Barney Thompson? - Quem é Drah? - perguntou Duncan em resposta à indagação de Dykstra. - Perguntei primeiro - disse ele com um sorriso confiante. - Está bem - Duncan mostrou as palmas das mãos em atitude de concordância - foi boa, mas nem tanto, o que ele falou trouxe-me mais dúvidas do que esclarecimentos. - Sei... - Agora responda a minha! - Naturalmente - respondeu cínico - Drah é o chefe. Não se preocupe com ele, pois logo o conhecerá. - Logo quando? - Você é afobado mesmo ou está tentando me manter falando para ganhar tempo para pôr em prática algum plano, aliás, alguma idéia maluca? Josh sorriu. Seus olhos verdes percorreram aquele homem de cima à baixo e depararam-se com a arma. Estava um pouco excitado com a morte de Robert Sands nas mãos de um sujeito que parecia a própria expressão da benevolência e dado a esse fato não notou que a arma que ele possuía era diferente, parecendo ser um brinquedo que era ameaçadoramente verdadeira, embora seu desenho dissimulasse qualquer ameaça. Era preta, bem lustrada, refletia bem a luminária presa no teto que continha apenas uma

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lâmpada de 60W. Um detalhe final chamou a atenção de Duncan, a arma não tinha cão, deveria ser uma automática, mas diferia da maioria das que conhecia e o calibre... Aí o detetive percebeu que não se tratava de uma pistola comum, era uma lança-dardos, dessas que são usadas para sedar e não para matar. Realmente o tal sujeito chamado Drah o queria vivo e a única maneira de conhecer quem ele era seria deixar-se apanhar. Dykstra percebeu o olhar inquiridor que Duncan vez por outra lançava para sua arma. - Acho melhor nos sentarmos - disse ele - a propósito, Duncan, meu nome é Mark Dykstra - ele indicou o sofá rasgado onde o detetive deveria sentar. - Sei que sua pistola contém dardos sedativos, Dykstra. Seu chefe me quer mesmo bem vivo, não é? Mark Dykstra acomodou-se numa poltrona sem deixar de apontar a arma para Josh que suava a camisa de mangas curtas que estava usando por baixo do terno que deixara no chão da sala do arquivo. - Você é um bom observador - concluiu Dykstra com uma piscadela com o olho esquerdo - Infelizmente é péssimo em dedução. Drah realmente o quer vivo para saber das coisas que você conseguiu descobrir, é claro que se houver algum imprevisto... e você tiver que morrer... posso dizer que você sabia muito e que ao reagir tive que matar você! “É mesmo uma pistola lança-dardos, só que ela não está com dardos sedativos, ao contrário, cada dardo contém um pequeno filete de um veneno caseiro preparado por mim mesmo, em contato com a corrente sanguínea mata em menos de dois minutos, tudo depende da resistência da pessoa que for envenenada, no seu caso creio que os dois minutos dão conta!” - Você é louco! - Não sou não. Estou sendo pago e muito bem para isso. Louco é você que está se empenhando uma investigação que devia

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estar encerrada. Não ficou satisfeito com a morte de seu companheiro e quer ir encontrar-se com ele? Se é isso eu até posso ajudá-lo, fui eu quem deu a localização do apartamento de Lisa Chambers para aquele boliviano o Estélio Cortez, ajudei seu amigo a ir pro céu e creio poder fazer o mesmo por você - e dizendo isso Mark Dykstra soltou uma sonora gargalhada. - Agora diga-me - disse ele recuperando sua expressão irônica embora essa fosse a mistura de sadismo e tensão que emprestava-lhe um aspecto grotesco que deformava mais ainda sua cara feia - O que você sabe a respeito dos Filhos da Luz? Pode dizer tudo mesmo, pois eu tenho muito tempo para ouvir. Sem outra saída o investigador abriu o jogo, talvez devesse ter ocultado algum detalhe, mas não sabendo qual preferiu optar pela verdade. - Então é isso! - comentou Dykstra - você sabe mais do que eu imaginava, de fato não pensei que Barney fosse abrir tanto a boca e principalmente em se tratando de Janet Biler! - Dei a ele uma garrafa de vinho e ele ficou bastante embriagado antes de falar, ficou bem à vontade e soltou a língua, é claro que Barney não sabia a verdadeira natureza de meus interesses, se soubesse nem bêbado diria o que disse. - Você é esperto! - Dykstra estava com os olhos brilhantes parecia emocionado com o que Duncan acabara de dizer, mas o verdadeiro motivo de sua emoção estava ainda por vir - abra a camisa Duncan! - O quê? - Isso mesmo que falei, abra a camisa! O sujeito era um sádico, Duncan sabia o que o tal Dykstra faria em seguida, uma curta guerra de nervos e depois atiraria em seu peito descoberto. Se ele falou a verdade Duncan seria morto em minutos pelo veneno caseiro. De repente um acesso de tosse acometeu o policial fazendo-o curvar-se sobre os joelhos, na ânsia

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de deter a tosse Duncan pegou uma almofada que se encontrava no canto do sofá semidestruído. Quando Dykstra percebeu a farsa de Josh já era tarde para reagir. Sentiu um violento golpe com a almofada em sua mão armada, viu a arma estatelar-se na parede caindo em seguida no chão, o impacto disparou o único dardo que ela continha. Enfezado o sujeito pulou sobre Duncan que o empurrou com o pé, pulando em seguida para trás. A Smith&Wesson de Duncan encontrava-se no chão do arquivo, sua única chance seria apanhá-la pois um confronto direto com o grandalhão Dykstra era algo bem próximo do suicídio. Dykstra arrastou-se para apanhar sua pistola, já próximo dela sentiu uma dor aguda nas costelas, Duncan se aproximara desferindo-lhe um pontapé. Dykstra levantou- se um pouco tonto, mas conseguiu segurar o punho direito que vinha na sua direção, agora com as duas mãos no braço direito do oponente torceu-o com força arrancando um gemido de dor que lhe trouxe muita satisfação. Com o braço torcido às costas, Duncan apoiou-se no chão com outro, inclinou a cabeça para baixo de uma posição em que pudesse localizar o inimigo. Trouxe uma das pernas para frente tomando impulso e a empurrou para trás com mais força do que imaginava ter. O golpe semelhante a um coice atingiu a virilha de Dykstra que soltou um gemido mais forte do que Duncan soltara antes. A forte dor que sentiu o fez soltar o braço do investigador e cair sentado próximo à pistola. Duncan por sua vez caiu também mas levantou-se rapidamente temendo que o seu chute não tivesse sido forte o suficiente para dar-lhe os segundos de vantagem que precisava para poder pegar sua arma.

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Dykstra segurou a pistola e meteu os dedos no bolso da camisa de onde retirou outro dardo que foi colocado com extrema habilidade na arma. Fora um movimento tão rápido que ao dar seu primeiro passo na direção do arquivo Duncan já via a arma ser apontada em sua direção. Ouviu um estalo e voltou-se para Dykstra que já colocava outro dardo na pistola, por instantes Duncan imaginou que o sujeito havia errado o primeiro, pois que outro motivo ele teria para preparar um novo disparo. Uma súbita vertigem, olhou seu corpo à procura de um dardo e viu o pequeno objeto cravado em sua coxa, arrancou-o depressa e ouviu outro estalo. Um novo estalo atingiu-lhe o ombro. A tonteira era tanta que Duncan caiu com a metade do corpo, da cintura para cima, na sala do arquivo e o resto no corredor. Seus olhos turvados localizaram a arma, segurou-a com força como sendo aquele o último ato de sua vida. Novo estalo e mais outro dardo cravou-se na perna de Duncan. Uma dor terrível passou por todo seu corpo, pressionou o gatilho da Smith&Wesson num espasmo final de dor, ficando em seguida inerte. “A morte era algo impressionante” - pensava Duncan. Não sentia mais dor nenhuma, apenas uma curiosidade dominava seu pensamento, o que viria em seguida! Era uma escuridão muito intensa que o cercava, em todas as direções que olhava não via nada, não havia mesmo nada em parte alguma por ali ou apenas estava viajando num limbo em direção a algum lugar que veria logo mais. Muitas perguntas povoavam a mente de Duncan, a principal delas era onde sua alma estava indo, sua mente procurava não se importar com o passado agora, tudo que lhe interessava era o futuro. Não possuía nenhuma sensação, o próprio peso de seu corpo agora era totalmente desprezível pois sentia-se como

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flutuando. Não via nada, mas escutava murmúrios, eram vozes humanas, porém não as reconhecia. Súbito, um odor se fez presente naquela escuridão, demorou a reconhecer de que se tratava, mas finalmente entendeu que era cheiro de café. “Café? duvidou ele, estava no céu ou no inferno? Não sabia, mas não achava que café fosse o tipo de bebida que houvesse no céu. Duncan conseguiu enxergar, embora sua visão fosse turva e mal pudesse distinguir determinados objetos que haviam ao seu redor. Havia dois vultos num canto daquela sala, mas não fazia idéia de quem se tratava. Pelo menos teve certeza de algo, não estava morto, o que era um grande consolo! Não lembrava muito bem como chegara até ali nem mesmo o que acontecera antes. Sua visão melhorou um pouco e distinguiu o bule fumegante sobre uma mesa ali próximo, era o café cujo odor perfumava a sala. Estava um pouco frio e achou aquela sensação estranha, mas não sabia por quê. Reconheceu a voz de um dos sujeitos e lembrou-se do que havia acontecido. Os dardos não o mataram, Mark Dykstra o havia enganado, o sugestionamento fora tão forte que chegara a pensar que estava mesmo morto. A voz de Dykstra conversando com outra pessoa chegava aos seus ouvidos distorcida, devia ser o efeito da droga que havia no dardo que também embaçava sua visão. Uma dor aguda no estômago trouxe a Duncan novas indagações quanto tempo havia passado inconsciente? Onde estava? Quem era o homem conversando com Dykstra? Seria o tal Drah? Barney mencionara esse nome em referência ao primeiro pupilo do Reverendo Sinford, será que o rapaz havia sobrevivido no dia em que a seita foi destruída? - Parece que nosso hóspede acordou! - era a voz do outro sujeito que pareceu a Duncan muito familiar. Os dois aproximaram-se sentando à frente de Duncan. Só nesse momento o detetive percebeu que estava imobilizado, metido numa camisa de força! Sentiu vontade de fazer perguntas

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àqueles homens, no entanto achou de melhor termo manter o silêncio deixando que eles falassem. - Está com fome, Duncan? - perguntou Dykstra. O detetive não respondeu. Reconhecia Dykstra pela voz, o outro não sabia quem era embora a figura parecesse mesmo com alguém conhecido. - Que pergunta tola, Mark - comentou o desconhecido - é claro que ele está, ninguém fica três dias sem comer e permanece sem fome. Nosso amigo está apenas um pouco ressentido conosco pelo tratamento que tem recebido e perturbado por dúvidas que logicamente estão permeando sua consciência! - Que está havendo com você, Duncan? - foi Dykstra quem perguntou cheio de ironia, aliás, o homem não devia ter outra entonação para dar para suas frases, aquilo devia ser o normal dele - Há três dias você estava tão falador e agora fica aí calado! - Alguém está sabendo de sua viagem a Los Angeles perguntou o outro. O investigador continuou calado. - Noto que você não quer cooperar conosco - observou o estranho - isso é muito ruim para você detetive Joshua Piemound Duncan precisamos saber de certas coisas e se você não disser por sua livre e espontânea vontade, teremos que usar métodos que não nos agradam para obter essas informações! Ora Duncan, pare de me olhar desse jeito, a droga que ainda está agindo no seu corpo o impedirá por muito tempo de ver bem, não adianta forçar seus olhos verdes, pois a única coisa que conseguirá será uma bela dor de cabeça. Duncan não tinha dúvidas de que aquele estranho estava com a razão, isso, entretanto, não o faria cooperar com eles de forma alguma. Talvez tentasse ganhar tempo até a visão melhorar... mas era uma possibilidade remota pois o tal homem parecia muito seguro do que dizia, porém não custava nada tentar.

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- Mark? - disse o homem. - Sim, Drah! “Então ele era o tal Drah!” - concluiu Duncan. - Apanhe uma seringa e aplique um pouco daquela droga alucinógena... - Espere - interrompeu Duncan, de nada adiantaria ficar fora de si naquele momento, seria melhor responder as perguntas do homem chamado Drah - vou colaborar. - Ótimo Duncan. Nunca duvidei de que você fosse capaz de tomar atitudes sensatas a despeito de você ser um mero policial. Alguém sabe de sua viagem à Los Angeles? Josh Duncan poderia blefar dizendo que alguém mais sabia e faria assim com que aqueles homens o forçassem a dizer de quem se tratava colocando seus amigos em perigo de vida, ponderando sobre isso concluiu ser melhor usar a verdade. - Um amigo sabe que viajei, mas não sabe para onde ou por quê. - E ele tem algum meio de descobrir... caso você demore? - Talvez se fizer uma pesquisa muito profunda nas agências de viagem. - Hum... creio que sua curiosidade deve estar aguçada para saber o que somos nós, não é? - Não. Sei que você é Drah, o primeiro pupilo do Reverendo Larry Sinford e que é membro ou pelo menos foi da seita dos Filhos da Luz. Drah riu alto e disse: - Você é muito inteligente, estou admirado com o que você conseguiu descobrir, não que Mark não tivesse me participado disso, mas ouvir de você mesmo é bem mais compensador. E eu que pensei que o tal Wilson era mais esperto do que você e me enganei! - O que você tem a ver com Ron Wilson?

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- Ah, não me venha com essa Duncan. Você sabe muito bem que fui eu quem criou o roteiro para a morte dele... - Então foi você que contratou Esteban Moreno e Estélio Cortez para nos matar... - É claro que sim e Mark dava todas as instruções e dicas para eles. Duncan espantou-se com aquilo. Finalmente descobrira o sentido de todos aqueles acontecimentos. - O que isso tem a ver com Luís Polaro e os assassinatos que ele cometeu? Drah encarou os olhos de Josh Duncan antes de responder, dali a alguns minutos Duncan estaria enxergando bem novamente. - Tem alguma relação sim e gostaria de lhe deixar sabendo de tudo, infelizmente agora vou ter que sair pois existe alguns problemas que precisam de mim. No entanto não existe razão para ficar chateado, Mark vai contar tudo pra você, ficará sabendo sobre os Filhos da Luz, finalmente. Dykstra levantou-se e caminhou até à uma mesa de onde, após alguns instantes, voltou com um objeto na mão. Quando Duncan percebeu que era uma seringa inquietou-se e tentou levantar, mas seus braços estavam presos e suas pernas fracas. Sentiu a fisgada no ombro e uma pequena dor, aos poucos sua visão ficou mais turva ainda e ele desfaleceu. Acordou novamente alguns minutos depois e seus olhos podiam enxergar com bastante nitidez. Estava preso em uma cadeira de madeira maciça, suas pernas amarradas e seus braços também atados à cadeira. O cheiro da sopa à sua frente inundou-lhe o olfato, sentiu o estômago roncar pedindo pelo alimento. Deu-se conta de que estava em uma sala pequena de uma casa de alvenaria, pôde ver pela janela que lá fora havia árvores e concluiu que não sabia onde

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estava. Ouviu o barulho da porta se abrindo e fechando em seguida atrás de si. Era Mark Dykstra que entrava. - Ainda bem que já acordou - disse ele - precisa se alimentar, Duncan - aproximou-se e enfiou um canudo na boca de Josh para ele poder tomar a sopa. Alguns instantes depois o prato se encontrava vazio. - Quer mais? Duncan balançou a cabeça, queria desesperadamente comer mais. E devorou o segundo prato com a mesma avidez. - Agora que está alimentado posso lhe contar o que Drah me mandou dizer. Vou ser sincero com você, Duncan, não sei por que ele o mantém vivo, por mim você já deveria estar morto, mas se ele o quer vivo quem sou eu para questioná-lo. Está preparado para o que eu vou lhe contar? Sei que está. Eu particularmente não acredito na seita, mas meu pai era um fiel e ele disse que eu deveria ajudar Drah a cumprir a tarefa designada pelo Reverendo Sinford e não posso deixar de lado o pedido de meu pai. Já que Drah pediume para lhe falar, farei isso, só que do meu ponto de vista e não segundo a visão fanática que meu pai possuía e que Drah também possui. “Tudo começou nos idos de 1961 em Los Angeles... - Los Angeles? - Sim, por quê? - Você falou de um modo estranho, como se não estivéssemos mais em Los Angeles... - E não estamos. Durante o período em que você ficou desacordado apanhamos um avião que havia sido previamente fretado e viemos para Nova Jérsei encontrar Drah. - Então estamos em Nova Jérsei? - É claro. Não tão distante de Nova Iorque quanto você possa supor, ao contrário, estamos até bem próximos. Agora voltando ao assunto... a história que tenho para contar começou praticamente em 1961...

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22 A camioneta estava suja e cheia de caixas contendo mercadorias que Polaro encomendara. O pneu furara no meio da estrada e o jovem tentava com esforço desenroscar os parafusos para trocar a roda inutilizada. Sentia uma tremenda raiva e chutou diversas vezes o pneu antes de iniciar a troca. Saíra da faculdade há dois anos e viera ajudar ao pai com a loja em vez de aceitar a proposta de uma empresa de seguros onde por certo teria uma carreira promissora. Ele não sentia nem um pouco de arrependimento por sua decisão, mas estava embravecido com o azar do pneu estragado. Empurrou a tralha inútil para longe e efetuou a troca, à sua esquerda ao longo da estrada um cadilac aproximava-se levantando poeira pela pista de areia. Quando o carro parou perto dele levantou-se e pôs-se a olhar para as pessoas dentro dele, em especial para uma garota de cabelos negros que lançava-lhe um olhar belamente tímido. - Jovem - disse o motorista - aquele pneu é seu? - aponto para o objeto na estrada. - É sim! - Queira tirá-lo do caminho, por favor, ele está obstruindo a passagem. O rapaz obedeceu rapidamente ficando de lado para que o cadilac pudesse passar. - Já conhece os Filhos da Luz? - indagou o motorista, era um jovem de uns vinte e cinco anos mais ou menos com a pele curtida pelo sol. - Não. - Janet - chamou ele - a moça de cabelos negros - dê um folheto a ele.

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A moça estendeu um pequeno pedaço de papel ao jovem que ao apanhá-lo tocou de leve os dedos dela que corou ao contato. Quando terminou de ler o folheto o cadilac já distanciara bastante do lugar onde o rapaz estava. - Olá, Mark! - disse Ralph passando a mão no cabelo do garoto, filho do Sr. Dykstra que examinava um carrinho de brinquedo no balcão da loja de seu pai. - Você demorou filho, o que houve? - Pneu furado. Levei algum tempo para colocar o estepe, mas valeu a pena, conheci uma garota linda! - Você vive conhecendo garotas lindas... - comentou Benedict Polaro. - Não, pai. O S r. não entendeu, ela era diferente e me deu um sorriso lindo e insinuante... Benedict estalou a língua duas vezes em ironia. - O que é isso em seu bolso? - indagou ele ao notar a ponta do papel que estava para fora da camisa do filho. - Um folheto que ela me deu - disse Ralph entregando o papel ao pai. O velho Benedict desdobrou o papel e depois disse taciturno. - Acho melhor você esquecer essa moça, Ralph, ela não é para você. Ralph não deu ouvidos aquele conselho de seu pai, estava decidido a namorar com a garota de cabelos negros. Daquele dia em diante passou a investigar a vida da moça para descobrir onde podia encontrá-la fora do internato em que ela residia. Janet Biler era o nome dela, uma órfã rica, possuía uma casa aqui e outra ali, sua herança incluía propriedades que ela mesmo desconhecia, mas não era isso que atraía Ralph Polaro, ele estava realmente apaixonado por Janet e sem poder vê-la pois só

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os Filhos da Luz podiam entrar na propriedade do Reverendo Sinford, o amor porém torna as pessoas passíveis a atos insanos ou, como nesse caso, corajosos. Assim, Ralph em uma certa noite observou através de um binóculo o comportamento daqueles religiosos que segundo seu pai estabeleceram-se ali logo após ele ter viajado para estudar. Facilmente achou o dormitório feminino e para uma melhor observação dava a volta em torno de vários prédios para se posicionar bem. Muitas noites de persistência o recompensaram com a determinação do quarto de Janet. Em uma das noites ela saiu para tomar ar e o viu, em vão, sua consciência religiosa a mandou voltar para o dormitório, pois seu coração falando cada vez mais alto acabou convencendo-a de ir ao encontro de Ralph. Foi a primeira noite de amor na vida do jovem casal, seus corpos arderam em busca do outro e os olhos deles contemplavam suas formas a despeito da escuridão que insistia em escondê-los. Trocaram juras intensas antes da separação e quando Ralph Polaro afastou-se, Janet Biler já não era mais a mesma, uma séria mudança havia ocorrido em sua vida e na sua forma de pensar. - Diácono Thompson! Aquela voz meiga o perturbou muito, sentiu a aproximação de Janet e preferiu ignorá-la, não podia dar atenção ao desejo que sentia por ela, mais tarde talvez o fizesse, caso o Mestre não a proclamasse a Escolhida... - Sim, irmã Biler - disse ele indiferente. - Estou com um problema e preciso conversar com o Sr., necessito de seus conselhos. Ela ajoelhou-se ao lado dele diante da imensa estátua com uma esfera cheia de hastes parecendo raios de luz. Janet relatou o que havia acontecido, mas o desejo no coração do diácono-mor o fazia pensar em outras coisas para tentar escondê-lo e o relato da moça passou quase completamente despercebido e a não ser por

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alguma coisa relacionada a Ralph, o filho do lojista Benedict Polaro. O diácono aconselhou Janet a rezar muito para que a luz a iluminasse e dispensou-a. Os Filhos da Luz formavam uma comunidade bastante heterogênea. Adoravam a luz como única divindade digna de culto. Sua comunidade era bastante comum, havia os seguidores mais velhos que moravam fora do internato e ali compareciam nos dias de culto e os jovens moravam lá mesmo. Um prédio era destinado aos rapazes e um outro às moças, havia um refeitório e uma capela. O líder da seita, Larry Sinford, se autodenominava de o Filho da Luz e sua autoridade era inquestionável. Ele criou uma série de doutrinas duvidosas que incitavam os jovens a cometerem atos que se caíssem no conhecimento das autoridades seria o fim da seita. Bebidas preparadas por eles eram ingeridas pela membresia que sem perceber deixavam sua mente à mercê de qualquer coisa que o líder determinasse. Denise foi ao encontro de Thompson após a meia- noite e na ocasião mencionou a paixão de sua colega de quarto, Janet Biler, ao diácono-mor que se mostrou preocupado com o objeto do amor daquela moça. Foi aí que ele percebeu o que Janet tentara dizer a ele no dia anterior e a decisão que tomou foi a de revelar tudo ao Reverendo Sinford. - Você fez muito bem em dizer-me essas coisas, irmão Barney - disse o taciturno Sinford. Após dispensar a Barney um pensamento ocorreu-lhe, chamou a Warren e deu algumas ordens ao rapaz que cheio de si saiu para desincumbir-se delas.

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Ralph Polaro aguardava no local de sempre ansioso por encontrar sua namorada. Durante os encontros anteriores ela participou a ele tudo sobre sua misteriosa religião e isso o deixou profundamente preocupado e por isso, aos poucos, usando ao máximo sua influência e perspicácia, ele a dissuadiu de beber as poções que eram oferecidas nos cultos, daí chegaram a elaborar um pequeno plano para que ela pudesse ludibriar os outros membros fingindo tomar o líquido. Um ruído na vegetação chamou a atenção de Ralph e ao voltar-se viu a graciosa forma de Janet aproximar-se. - Ralph... - murmurou ela abraçando-se ao corpo dele com força - algo vai acontecer amanhã à noite e eu preciso sair daqui! - De que você está falando, Jan? - Uma amiga disse que serei eu a Escolhida... oh, Ralph, não quero mais permanecer aqui, preciso que ajude-me a sair daqui o mais rápido possível. Já não posso nem mais tolerar o que vejo aqui, antes eu não conseguia ver nada, acho que a bebida toldava minha compreensão, mas agora vejo e além de fugir daqui quero que o Reverendo Sinford seja desmascarado. - Como faremos isso? - Preste atenção, Ralph, amanhã à noite será realizada a cerimônia de proclamação da Escolhida, é a moça que será a companheira do Reverendo nesse ano. Antes eu acreditava que deveria ser a moça mais fiel e devotada, e realmente fui, isso tudo para ser a Escolhida, agora graças a você consigo ver a verdadeira natureza do ritual e compreendo as reais intenções do Reverendo Sinford. Serei a Escolhida não por minha devoção, mas por causa dos meus bens e casando-se comigo ele será dono de tudo que é meu. Ralph estreitou-a nos braços. - Vamos fugir agora mesmo, Jan. - Não, querido. Se fizermos isso o Reverendo nunca será apanhado e continuará enganando jovens e velhos inocentes que

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acreditam estar seguindo o Emissário da Luz na pessoa de Larry Sinford. - Jan - disse ele segurando os ombros dela com firme delicadeza, seus olhos brilhavam de emoção sob a pálida luz do luar - quero que você fale exatamente o que está na sua cabeça, sei que está decidida a destruir a falsa fé que Sinford apregoa, mas creio que é muito perigoso ficar aqui exposta a ele... - Espere, Ralph - ela tomou o rosto dele nas mãos e beijoulhe os lábios - não se preocupe, o que tenho em mente é muito simples... Janet Biler era uma mulher decidida quando era ainda uma criança, e agora com vinte e dois anos de idade o aspecto decidido tornara-se inerente do caráter dela. Resolvera conhecer os Filhos da Luz quando encontrara uma moça que ofertara-lhe um folheto há seis meses atrás. Naquela ocasião Janet havia acabado de receber uma grande herança que seus pais Alex e Fabella Biler haviam deixado, o choque da morte dos pais em um acidente de trem chocou-a tanto que suas defesas ficaram baixas deixando livre o acesso para o aliciamento dos Filhos da Luz. O amor por Ralph Polaro, entretanto, surgiu para destruir toda a pregação que o Reverendo Sinford tivera tanto trabalho para arraigar no coração de Janet. Através dos sentimentos Ralph conseguiu trazer a moça de volta à razão que ela abandonara meses atrás. O plano dela era o seguinte: Polaro deveria procurar a polícia e contar o que acontecia dentro dos muros da Seita, convencendo assim o delegado a fazer uma visita de surpresa na hora da cerimônia da proclamação quando todos os membros beberiam juntos do Cálice da Luz, como era chamado o recipiente que continha a droga que inibia o pensamento lógico dos membros deixando-os à mercê das palavras hipnóticas do chefe da seita.

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Questionando a eficiência do plano de Jan, o rapaz ainda tentou dissuadi-la daquela idéia, mas firme e irredutível foi ela que acabou convencendo Ralph de pôr o plano em prática. Minutos mais tarde ele se encontrava varando a mata para chegar no local onde costumava esconder a camioneta em meio a arbustos e galhos quebrados. Ao chegar no lugar retirou rapidamente a camuflagem e acionando o motor partiu na direção da cidade. Pela estrada escura apenas iluminada pelos faróis da velha camioneta Chevrolet, Ralph Polaro ensaiava em busca das palavras corretas para convencer o delegado da veracidade dos fatos que ia apresentar e sabia que isso seria difícil, pois a seita havia convivido em uma existência pacífica por quase cinco anos. De repente a luz do farol de um outro carro invadiu a cabine da camioneta de Ralph refletindo pelo retrovisor interno. Parecia ser um carro de passeio, pois aproximava-se rápido demais para ser um outro tipo de veículo. Não demorou muito para que chegasse no carro de Polaro e quando os veículos encontravam-se lado a lado, reconheceu o Cadilac em que vira Jan pela primeira vez, desta vez, entretanto, trazia dois homens, um deles já conhecia, chamava-se Hayworth, o vira algumas vezes fazendo compras na loja de seu pai, o outro não fazia idéia de quem fosse, era muito jovem, dezesseis ou dezessete anos de idade, talvez. - Encoste o carro, Polaro! - ordenou Hayworth fazendo uma careta. - Como é que é? - Disse para encostar o carro! - repetiu ele furioso, o outro rapaz dirigia sem tirar os olhos da estrada. Ralph não pôde deixar de desconfiar logo daquela atitude, aquilo não poderia ser de forma alguma normal. Sua desconfiança se transformou em certeza quando Hayworth colocou um rifle de cano duplo para fora e apontou para ele dizendo: - Se não parar, vou ter que atirar!

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Sem dar tempo para um segundo pensamento, Polaro pisou fundo no acelerador deixando o Cadilac uns dez metros para trás. Sentiu a carroceria de seu veículo trepidar com a velocidade de noventa quilômetros a que era submetida. Sabia que sua vantagem era pequena demais para ser considerada um trunfo contra seus perseguidores, então seria necessário que utilizasse sua habilidade de dirigir para impedir o assédio do Cadilac pelas laterais. Recordou-se de Jan, de alguma forma haviam descoberto a ligação que havia entre eles e o perigo que isso representava para a Seita, seu coração bateu forte ao imaginar a possibilidade de sua amada estar passando por alguma situação difícil. Pelo retrovisor Ralph pôde ver a capota conversível do Cadilac ser removida, estremeceu diante do que pensou que seus perseguidores pretendiam. Hayworth colocou-se de pé e tentava mirar nos pneus da camioneta de Polaro. A estrada de chão, todavia não ajudava muito, ainda mais com a velocidade com que se deslocavam. Finalmente um disparo foi dado. A velha Chevrolet de Ralph Polaro ziguezagueava na estrada desgovernada pelo tiro certeiro do rifle de Hayworth. Ralph segurava firme o volante embora fosse praticamente impossível pôr a camioneta de volta ao centro da rodovia. Um novo disparo atingiu a parte traseira da carroceria e saindo do rumo o carro adentrou o matagal indo chocar-se com uma árvore. O Cadilac foi para um pouco distante e iniciava o retorno de ré. Polaro abriu a porta com dificuldade, pretendia esconderse no meio das árvores, uma tonteira súbita o fez passar a mão na testa e sentiu o sangue quente escorrer pelo rosto. Nesse momento foi segurado pelo ombro e virado levando em seguida um soco tão forte que o tirou do chão e jogou-o de costas na estrada. Sem tempo ou chance de recuperar-se Ralph foi atingido por um pontapé no abdômen. Quando voltou a entender o que estava

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acontecendo, achava-se encostado à lateral da Chevrolet e seguro pelo colarinho. - Acorda, palerma! - gritou Hayworth furioso espirrando saliva no rosto do aturdido Polaro - Pensa que pode desafiar nossas leis e sair impune. Quero que você se afaste definitivamente da irmã Janet Biler, ela não tem nada que possa interessar a você e se tiver trate de esquecer. - Você está errado - balbuciou Ralph com a boca cheia de sangue - vou tirar Jan de lá e nenhum filho de uma vaca vai impedir-me... Foi impelido de continuar falando por causa de um novo soco no estômago. - Não, Polaro! Não é bem assim. Se você pensa que estou sendo violento com você, está enganado, posso ser infinitamente mais violento, quero fazer você sofrer um bocado e deixá-lo vivo para meditar no que eu disse. O que acha babaca? Ralph sorriu mostrando-se superior às ameaças de Hayworth. - Já chega Warren! - disse o rapaz que dirigia o Cadilac. - Porcaria nenhuma, Drah. Esse safado ousa desafiar o sagrado poder da Luz e ainda sorri desdenhando... - Acho que a lição já foi dada - apesar de sua idade, o poder de persuasão em sua voz era inquestionável e o mesmo se podia dizer de sua autoridade. Contrariado, Warren Hayworth ainda desferiu uma série de golpes no abdômen e no rosto de Ralph, deixando-o cair ao lado da camioneta acidentada. Semiconsciente Polaro ainda ouviu o barulho do motor do Cadilac perder-se na escuridão. Larry Sinford ficou muito satisfeito em saber que Ralph Polaro estava fora de ação. Lutara demais para ver seus planos concluídos

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e não se deixaria vencer e nem ao menos intimidar por jovens impetuosos que nada sabiam a respeito do grande poder da Luz. Quando Sinford chegou naquela cidadezinha próxima de Los Angeles percebeu que era o lugar ideal para estabelecer sua ordem religiosa. Alugou um pequeno salão aonde as primeiras reuniões foram realizadas e pouco mais de três meses depois o corpo da igreja estava formado com quase trezentos fiéis. A segunda parte foi colocada em ação. Convocou a membresia da recém formada religião dos Filhos da Luz e convenceu a todos da necessidade que possuía de construir uma espécie de fazenda-escola onde os jovens pudessem obter uma melhor formação naquela religião e ter uma ocupação. A idéia do Reverendo Sinford era a princípio boa, mas suas intenções futuras não eram as melhores. Entusiasmados com as hipnóticas palavras de seu mestre, os membros depositaram grandes somas de dinheiro, joias e outros objetos de valor que foram usados na compra de terras e na construção do Santuário, que foi o nome escolhido pelo mestre para a comunidade agrícola. Em 1959 foi inaugurado o Santuário e o trabalho de aquisição de novos membros foi se acentuando de tal forma que no início de 1960 não havia mais vagas na grande comunidade. Sinford estava rico, mais do que jamais sonhou ser um dia, mas sua tarefa ainda não estava completa. Pretendia proclamar Denise Axler para sua esposa e ficar com tudo que a rica moça possuía, daí desapareceria e deixaria um de seus pupilos na continuação da obra da Luz. No final daquele ano, entretanto, muitos jovens obtiveram o grau da suma-vocação e foram enviados a outros lugares para aumentar o número de fiéis. Sinford resolveu adiar por algum tempo sua “Ascensão à Luz”, pois ainda não achava seus pupilos preparados para assumirem o comando.

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Janet Biler chegou ao Santuário em 1962 e Sinford não conseguia definir se estava apaixonado pela moça ou pela fortuna que ela possuía. O Reverendo mudou de pensamento em relação à Denise Axler. Em sua conta particular em algum lugar do país, Larry Sinford acumulara uma verdadeira fortuna e ainda tinha a vantagem de deduzir do imposto de renda a ajuda que prestava a tantos jovens que moravam no Santuário. Ralph Polaro havia sido sem dúvida seu único empecilho, mas que já fora removido de seu caminho. O Reverendo sempre tomara cuidado na escolha dos fiéis para não admitir por engano agentes do governo, que talvez descobrissem o efeito da bebida servida nos cultos na mente dos fiéis, deixando-as como papel limpo onde Sinford, usando suas palavras hipnóticas como caneta, escrevia o que bem entendesse. Assim, naquela noite, o Reverendo Sinford, o verdadeiro Filho da Luz, anunciou a proclamação da Escolhida, aquela que o acompanharia na “Ascensão à Luz” como sua esposa. Quase meia-noite. O pátio gramado sob o céu cheio de fiéis esperando que o Reverendo Sinford fizesse a proclamação. Todos se vestiam de branco, túnicas brancas da cabeça aos pés e com sua taça na mão. Quase dez fileiras de rapazes e moças, cada uma das filas com vinte membros, taciturnos, olhos fixos no altar onde mais tarde o Reverendo, seus pupilos, o diácono-mor e as moças candidatas à Escolhida, estariam presentes. A noite estava um pouco fria. Um solitário e cambaleante andarilho dava passos incertos em direção da vila. Ralph sentia dores nas costelas, no maxilar e em outras partes do corpo, embora tentasse inutilmente ignorar isso. Precisava chegar à vila e contar o que acontecera ao delegado,

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eram seis quilômetros a serem percorridos a pé, mas a imagem de Janet em sua mente o impelia com uma determinação que ele não conhecera antes. A camioneta Chevrolet ficara abandonada para trás. A trombada a inutilizara e os esforços de Ralph em consertá-la de nada adiantaram. Uma hora e meia depois, Polaro caminhava pela rua principal e já via a porta da delegacia no quarteirão a sua frente. Jeff Solon deu um salto da cadeira ao ver Polaro penetrar na sala. - Meu Deus, Ralph, o que houve com você?! - perguntou ajudando o rapaz a sentar numa cadeira. Polaro tomou fôlego e desatou a falar, cada palavra deixava o delegado mais assustado ainda. - Você tem certeza do que disse, Ralph? - É claro que tenho, o estado em que me encontro é mais que o suficiente para comprovar o que digo - Ralph agradeceu profundamente a Deus pela surra que levara, talvez tendo chegado na delegacia em boas condições tivesse dificuldade para convencer o delegado Solon. Depois de uma rápida ligação e uns cinco minutos de espera, toda a força policial da pequena vila, que consistia em cinco homens sem contar o próprio delegado, que era até muito em face das dimensões do lugarejo, estava reunida e a par do que tinham para fazer. Ralph sabia, embora estivesse errado, que a proclamação da Escolhida só seria na noite do dia seguinte, a ansiedade que sentia em tirar Jan de lá era tão grande que insistiu em ir com os policiais naquela noite mesmo. Os fiéis silenciaram os aplausos quando Larry Sinford levantou as mãos. Nenhum som humano era ouvido e o silêncio noturno só era quebrado pelo assovio do vento e o roçar das folhas nos

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galhos agitados das árvores. A plataforma no centro do pátio natural estava completa com os seus ocupantes. O Mestre da Luz pediu ao seu diácono-mor que servisse a bebida aos expectadores. Uma moça segurava um caldeirão enquanto com uma concha de alumínio, Barney Thompson retirava de seu interior um líquido com o qual enchia todas as taças. Quando o último membro foi servido o diácono voltou à plataforma, era a vez dos ocupantes dela serem servidos. Como que hipnotizados, após beberem o misterioso líquido, os Filhos da Luz ouviam as palavras inflamadas de seu líder que gesticulava e balançava o corpo num frenesi para frente e para trás. Desta vez, Janet Biler não escapou da bebida. Das outras vezes estava no meio dos outros membros e ocupando a última fileira, deixava o licor cair no chão antes de levar o pequeno cálice aos lábios sem que ninguém notasse. Nessa noite, sob o olhar da multidão e principalmente o do Reverendo Sinford, Janet sorveu até a última gota. A antiga viatura policial chegou ao local quando Sinford falava. Um alvoroço tomou conta da multidão quando viram o delegado Solon avançando por entre ela na direção da plataforma seguido por outros homens. Warren Hayworth distinguiu Ralph Polaro junto com o delegado, aquilo significava encrenca e imediatamente o segundo pupilo arrependeu-se de não ter dado cabo do rapaz na estrada, mas ainda não era tarde para isso. A vida do Mestre da Luz corria perigo e com ela toda a irmandade que ele criara e à qual dedicara parte de sua vida. Hayworth estava indignado, não permitiria que aquilo acontecesse, jamais deixaria a Obra da Luz ser lançada por terra por aqueles malditos infiéis. Inseguro, o pupilo deu dois passos para trás. Abriu o baú onde estava a túnica branca que a Escolhida vestiria e retirou dele

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o rifle que usara poucas horas atrás e com o braço esquerdo em apoio mirou e atirou. O forte barulho foi ouvido por todos, nenhum dos Filhos da Luz que além de dopados pela bebida estavam hipnotizados por Sinford puderam compreender o que aconteceu em seguida. Hayworth era um bom atirador e muito certeiro, dificilmente errava um alvo e dessa vez não podia considerar aquilo como um erro. No momento do disparo Jeff Solon ficou entre a bala e o alvo, o delegado caiu desajeitadamente no solo, uma mancha vermelha se formara em seu abdômen que, caído de costas, apontava ao céu. Logo em seguida outros disparos foram ouvidos e alguns dos membros dos Filhos da Luz caíram mortos vitimados pelos tiros de seu correligionário que vendo seu alvo ainda vivo tentava acertá-lo. Na confusão ninguém notou Sinford segurar Janet e fugir para a capela onde ficava seu dormitório. Drah, o primeiro pupilo os seguia de perto. Atirando para cima os policiais conseguiram acuar parte da multidão em um canto entre o refeitório e o dormitório feminino. Entretanto, alguns Filhos da Luz corriam pelo pátio sem rumo definido, um deles, procurando esconder-se na capela, derrubou o lampião cujas chamas se alastraram pelo púlpito que, feito de madeira, não demorou em consumir-se nas enormes labaredas que atingiram o forro e as paredes mais próximas. Um dos policiais, Barry Hutton, após constatar que o delegado estava morto ordenou que prendessem o atirador e o chefe da seita também. Craigg, outro policial, viu Warren Hayworth descer da plataforma e correr na direção da capela, cuja estrutura de cobertura já parcialmente consumida pelas chamas deixou cair uma peça de madeira que bloqueava a saída do Reverendo Sinford e as duas pessoas que estavam com ele. Do lado de fora, deixando

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o rifle de lado, Hayworth tentava deslocar uma tábua para salvar seu mestre do fogo. De alguma forma pressentiu a aproximação de alguém e apanhando a arma virou-se para Donald Craigg que também preparava-se para atirar. O Filho da Luz era mais ligeiro e Craigg morreu sem perceber que dois projéteis perfuraram seu tórax. Hutton apontou sua arma para Hayworth quando este descobria que não havia mais munição para sua. O sub-delegado sentia uma enorme vontade de atirar, queria matar aquele desgraçado que assassinara seus dois amigos, mas não teve tempo para decidir. Algo em chamas desprendeu-se da parede apanhando de surpresa o Filho da Luz. Ao ver sua roupa em chamas, Hayworth ainda tentou livrar-se dela, o fogo, no entanto foi inclemente e logo atingiu seus cabelos causando nele um desespero total. Debatia-se em vão tentando desvencilhar-se das chamas, seu grito de dor ecoava pelo pátio causando arrepios nos que ouviam. Cinco minutos depois, embora o fogo insistisse em continuar queimando, Hayworth estava morto. Polaro estava desesperado, não achava Janet naquela confusão, precisava achá-la antes que se machucasse. Decidiu averiguar o local onde Hayworth tentara soltar a tábua, por puro instinto. Janet perdera os sentidos ao ver Hayworth atirar em Ralph, Sinford aproveitou o desmaio dela e a carregou para dentro de sua casa que ficava dentro da capela por trás do palco. Agora tudo estava em chamas e os três não podiam sair de lá. - Tudo culpa dessa maldita mulher! - Drah estava em lágrimas, era o mais nítido ódio que sentia por Janet. - Acalme-se Drah. A Luz fará ela pagar com a vida e nenhum descendente dela jamais permanecerá vivo sobre a terra! - Como assim, mestre?

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Voltando seu olhar para o sofá onde Janet estava deitada, Sinford percebeu que aquilo era o fim. A polícia revistaria tudo e descobriria a origem do pó com o qual se fazia a bebida, somando isso com a atitude de Warren matando o delegado, toda a Seita seria extinta. Era quase inconcebível que aquela moça, de aparência frágil, houvesse desencadeado a sequência de fatos que culminaram com o fracasso de seus planos. - Nós dois, querido Drah - disse ele recuperando-se de seu devaneio - ascenderemos à Luz, faremos parte do universo de onde veremos todos os seres humanos e escolheremos um para ressurgir em toda sua glória nossa esplendorosa irmandade. - E quanto a ela, Mestre? - Ela tem que desaparecer, temos que pôr fim em sua existência para que quando nós partirmos ela não venha junto... dê-me o punhal - sua mão indicou a mesa onde um punhal afiado estava depositado. Drah apanhou-o entregando em seguida ao seu mestre. Subitamente, a parede lateral despencou enfraquecida pelo fogo e Sinford foi imprensado por ela no chão. Polaro entrou na sala e viu o desespero do jovem tentando retirar o Reverendo de sob os escombros. Apanhou Janet nos braços e saiu correndo. - É o fim, Drah! - disse Sinford ao seu pupilo vendo o fogo aproximar-se sem poder fugir - saia daqui o mais rápido que puder. - Não, mestre, nós vamos subir para a Luz juntos, já esqueceu?! As labaredas já consumiam boa parte do local onde encontravam-se. - Não! - gritou Sinford para ser ouvido acima do crepitar das chamas - você tem que escapar, nossa seita precisa ser vingada, aquela infiel fugiu e você deve ser o instrumento dessa vingança! Eu o nomeio Drah, o novo mestre dos Filhos da Luz, para que cumpra os desígnios de seu mestre aqui na Terra - nesse momento

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o fogo atingiu o braço livre de Sinford que logo tomou conta de seu corpo. Impotente, Drah viu seu mestre debater-se até quase à morte. Olhou ao redor e distinguiu um pequeno espaço entre as chamas, correndo por ali envolto num tapete que tirara do chão, do lado de fora livrou-se dele que começava a incendiar-se. O ar puro da noite inundou seus pulmões trazendo de volta o raciocínio. Precisava fugir, livrar-se da polícia e mais tarde voltar para cumprir o último desejo de seu mestre. O primeiro pupilo de Larry Sinford desapareceu na escuridão da floresta. Os Filhos da Luz se dispersaram, a polícia realizou uma investigação mais profunda e o pó de ópio foi descoberto e muitas pessoas, após o devido tratamento psicológico, denunciaram outras faces ocultas como a riqueza dos fiéis que era passada através de documentos legais onde colocavam suas assinaturas coagidas pelo poder hipnótico de Larry Sinford. Tudo foi devolvido ao seu legítimo dono e o terreno ocupado pela seita foi incorporado ao patrimônio público. Os poucos membros que insistiam naquela fé errônea separaram-se e mudaram de cidade não suportando a pilhéria a que os outros moradores os submetia. Os remanescentes preferiram as localidades mais afastadas e solitárias. Foi praticamente o fim da seita, que só não foi completo porque alguém totalmente corrompido pela própria fé continuava vivo e planejando uma vingança contra Janet Biler e Ralph Polaro. Entre os crentes que continuaram fiéis uma nova crença foi difundida como alento para aqueles corações feridos que clamavam por justiça contra aqueles que destruíram sua sagrada seita; o Reverendo Sinford não foi encontrado morto nem tampouco seu primeiro pupilo, apesar da polícia insistir na versão de que as chamas os consumiu por completo e até ter realizado uma busca na floresta ao redor da comunidade para comprovar

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que eles não haviam fugido, eles acreditavam que o Reverendo subira para a Luz levando consigo seu pupilo, o jovem Drah, mas antes disso deixara uma maldição contra os causadores da dispersão e humilhação dos Filhos da Luz. Ralph e Janet casaram-se e ela já estava grávida de dois meses quando isso aconteceu. Mudaram-se para Nova Iorque e passaram a residir na casa que Jan herdara de seu avô Johannes Biler e seus pais. Entretanto, sua vida de casada foi muito curta. Janet, a despeito de seu caráter, era fisicamente fraca. Tivera problemas com a gravidez desde o início causando muito desconforto para ela e seu marido. Ele até sentia vontade de trabalhar na profissão na qual se graduara, mas viu-se forçado novamente a deixar isso para depois, para ficar em casa e acompanhar sua esposa. Foram sete meses de dolorosa espera para ambos, as visitas médicas eram tão constantes que passaram a fazer parte da rotina do casal. O grande dia chegou. Como era esperado o parto não pôde ser normal. Do lado de fora da sala de espera um pai nervoso esperava ansioso pelo final da operação. Quando o médico surgiu sob o umbral da porta quase foi agarrado pelo marido de Janet. - Tudo bem - disse o médico enxugando a testa e sorrindo - foi um parto difícil mas ambos estão bem. Ninguém pode mensurar a enorme felicidade de Ralph Polaro. Os médicos sempre diziam que o risco do parto era tão grande que um dos dois, a criança ou a mãe, poderia morrer. E agora tudo aconteceu diferente. Naquela mesma tarde ele viu a criança, um menino, e orgulhou-se do forte rapaz que um dia ele seria. Benedict Polaro, presente naquele dia no hospital, aconselhou seu filho a ir para casa descansar e este obedeceu.

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Era cedo na outra manhã quando Polaro levantou-se, pediu a Edgar, o jardineiro que colhesse algumas flores para ele levar a sua esposa. Havia uma grande agitação na maternidade quando ele chegou. Médico e enfermeiros iam e vinham naquela agitação comum de quando alguém passa mal. - O que está havendo? - perguntou ele à recepcionista colocando seu cotovelo no balcão. - Não sei senhor e se soubesse não diria - ela o encarou normas do hospital - justificou ela. Escute, quero ver minha esposa, ela deu à luz ontem. - Qual o apartamento dela, por favor, Sr... - Polaro. É o 525. A moça ficou lívida. Pediu licença dizendo a Ralph que esperasse e cinco minutos depois retornava acompanhada de um médico, o mesmo que fizera o parto, o Dr. Crisp. As poucas palavras que o médico usou foram bem claras para justificar muita coisa, até mesmo a agitação que havia naquela ala do hospital. Janet Polaro sofrera uma parada cardíaca, quando Ralph chegou eles tentavam salvar a vida dela, um esforço inútil, o corpo frágil da Sra. Polaro não resistiu e ela faleceu. O braço de Ralph pendeu deixando as flores caírem no piso brilhante do hospital, a finalidade delas não mais existia a não ser se fossem guardadas para o dia seguinte... Luís Polaro cresceu um rapaz muito forte e sadio embora não possuísse tanta força no campo psicológico e seu pai percebeu isso ainda cedo. Não chegou a conhecer bem o avô, pois o velho Benedict morreu quando ele ainda era da idade de três anos e o pai era um homem distante. Logo após a perda da mulher, Ralph perdera todo o apego pela vida e quase tornara-se um recluso. Não fosse pelo pai a criança seria criada por estranhos. A morte de Benedict trouxe

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novo alento a ele que decidiu enfim trabalhar em sua profissão. Tornou-se amigo do filho embora os períodos que passassem juntos fossem insuficientes à carência de estima que Luís possuía. A dedicação ao trabalho levou Ralph a adquirir as ações de uma construtora falida, isso na época causou grande admiração por parte dos investidores que achavam aquilo uma loucura. Em 1970, porém, a construtora Life Style lançara no mercado imobiliário um empreendimento em Hamptons transformando a herança de Janet em uma pequena parte da fortuna da família Polaro. Esse trabalho afastou mais ainda o pai de seu filho que ficava renegado aos momentos de folga, que se tornaram cada vez mais escassos e curtos, de Ralph Polaro. Vendo a necessidade do filho de uma companhia que desse a ele orientação, o milionário requisitara currículos de vários psicólogos especializados em orientação de menores e escolheu o que lhe pareceu mais indicado, cobrava mais caro do que os outros. Harry Hardrige começou então a dar ajudar psicológica ao jovem Luís Polaro, então com quinze anos de idade. Adquiriu a total confiança de Ralph e uma sólida amizade por parte de Lucas, como passou a chamá-lo. Um ano mais tarde Ralph Polaro morreu e tudo o que possuía passou para seu filho sob a tutela de seu orientador e amigo. A maldição do Reverendo Larry Sinford foi lançada sobre Janet e Ralph Polaro e estava se cumprindo, um a um os Polaro foram morrendo até que só restasse um, primeiro Janet, depois Benedict, Ralph, agora só faltava o último. Luís Polaro, no entanto, seria o objeto final da ira dos Filhos da Luz, primeiro tornando-se um psicopata assassino de mulheres, desonrando o nome de sua família.

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23 - Como é que você sabe de toda essa história, Dykstra? indagou Duncan parcialmente cético após a história que o outro contara. - Ora, Duncan... - disse ele contente de conhecer tanto sobre os Filhos da Luz - ... o próprio Drah me contou. O investigador fitou aquele homem com intensidade, aquela novela parecia muito reveladora e num ímpeto que não pode conter perguntou: - Drah, o primeiro pupilo é o Dr. Harry Hardrige? Sem dizer nada o homem levantou-se do sofá e caminhou até a janela. - Você se julga muito esperto, não é Duncan? - as cortinas balançavam agitadas pelo vento, sem voltar o rosto para Josh, Dykstra continuou - só que às vezes você não é tão esperto assim. Imagine só se for verdade que Drah é o Dr. Harry Hardrige, então você acaba de assinar sua sentença de morte, com um segredo desses jamais seria permitido que você continuasse vivo... - Você é que é burro Dykstra - interrompeu ele - mesmo que eu não houvesse descoberto nada, ainda assim você não me deixaria vivo! Dykstra estava imperturbável. Com um sorriso cínico que era sua marca registrada retirou-se deixando Duncan só na imensa sala. Amarrado fortemente a uma cadeira de madeira, Duncan ainda tentou forçar as cordas sem nenhum resultado, pôs-se a esperar. Nada fazia Duncan crer naquela lenda de maldição, sua vida como policial e até a própria formação de sua personalidade corroboravam para a não aceitação daquela versão. Como um fanático religioso que usava a própria fé que pregava poderia lançar uma maldição sobre uma família e essa vir a se cumprir. A

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não ser, é claro, que agentes humanos, mais fanáticos ainda que o Reverendo Sinford, desejassem que a maldição fosse verdadeira de tal forma que chegassem ao ponto de se considerarem os executores dela. A desconfiança sobre o Dr. Hardrige aumentava, numa análise mais apurada Duncan chegou à conclusão de que até o nome “Drah” era oriundo de “Hardrige”, tomando as quatro primeiras letras do nome e lendo-as de trás para frente. Sendo assim, Harry Hardrige poderia ter assassinado Luís Polaro e acabado de vez com a família dos destruidores dos Filhos da Luz. Mas não fizera isso. Preferiu deixar a psicose de Polaro levá-lo à prisão, quem sabe esperasse que num confronto com a polícia o rapaz viesse a encontrar a morte, causando assim a desonra e fim da família ao mesmo tempo. O que lucraria ele com isso? Será que alguma vez, aproveitando-se da fraqueza psicológica de Polaro, fizera-o assinar algum documento deixando seus bens pra ele? Até que essa hipótese seria aceitável, justificaria melhor as atitudes de Hardrige. Sendo o único herdeiro de Polaro ele não poderia matá-lo, pois atrairia as suspeitas sobre si e algo poderia vir a incriminá-lo, recorrendo a deixar Polaro livre em suas loucuras até ser preso ou assassinado pela polícia. Tudo, no entanto, não passava de meras conjecturas, poderia ver um rumo totalmente diferente das coisas, Duncan, porém desprezava outra hipótese, afinal, se Drah não era o Dr. Hardrige, por que Dykstra ficara tão apreensivo e se retirou logo depois? Pensou em Polaro, confinado no sanatório sem desconfiar que seu caso fazia parte de algo bem maior e mais complicado que a sua vida. Quando Dykstra retornou, Duncan parecia estar dormindo de tão concentrado em seus pensamentos que estava. O ruído da porta batendo despertou-lhe apanhando seu carcereiro em posse de uma bandeja com uma seringa e agulha preparada para a aplicação.

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- Por que você não para com isso Dykstra? Já não adianta mais me drogar para que eu não conheça que Drah é o Hardrige, por que insiste em fazer isso? - Como eu lhe contei, você assinou sua própria sentença de morte, Josh Duncan - Dykstra olhava-se no grande espelho que havia na parede como se fosse um galã de cinema - não é sedativo que contém a seringa, é veneno. Dessa vez é verdade, pode acreditar na minha palavra - ele ergueu a mão direita em atitude de juramento - disse a Drah o que você havia descoberto e ele me permitiu dar cabo de você... - Então eu acertei? - Eu acho. Assim não haveria motivo para eu matá-lo, não acha? Duncan ficou calado. Mark pegou a seringa e aproximou-se de Duncan. Com a ponta do dedo indicador da mão esquerda pressionou o ombro esquerdo do detetive. - Vai ser bem aqui a injeção, que acha? O medo infantil que todos temos de levar uma agulhada finalmente vai provar que não é infundado - Dykstra soltou uma ruidosa gargalhada. A porta abriu-se novamente dando entrada a Harry Hardrige. Estava de jeans e camisa escura carregando um jornal. - Já sentiram sua falta Duncan - disse ele de forma jovial sem importar-se com o olhar assustado que Josh lançava a ele vendo suas suspeitas confirmadas - Você foi muito inteligente, descobriu mesmo que Drah e eu somos a mesma pessoa mas não vou dar-lhe o prazer de conhecer fatos que você ainda não sabe. - Como assim? - Ora, Joshua Piemound Duncan, você, em posse desse conhecimento, não conhece outras verdades e vai morrer sem sabê-las. Quer dizer, talvez você não chegue a morrer - fazendo uma pausa serviu-se de uma dose de uísque de uma garrafa de Jack Daniel’s que havia sobre a mesa. - Tenho um jogo muito

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interessante para fazer com você e caso você ganhe terá o direito de levar para o túmulo a parte da história que não sabe. Duncan balançou a cabeça sorrindo da demência do homem à sua frente, procurou relacionar a nova imagem que estava tendo de Hardrige àquela que vira no tribunal em ávida defesa do Assassino da Flor. Era difícil encaixar em sua mente a peça do quebra-cabeça relativa à intenção dele em ver Luís Polaro no sanatório em vez da prisão, já que nela, os próprios presos, sabendo da natureza dos crimes que ele cometeu, se encarregariam de dar cabo dele, isso se a justiça não o sentenciasse a uma pena bem mais rigorosa. - Que jogo é esse? - indagou ele cortando o pensamento que ainda o levaria muito longe e percebendo a necessidade de ganhar tempo. - Calma, Joshua - acercou-se de Duncan e depositou o exemplar do New York Times nas pernas dele - leia o jornal antes. Era uma notícia sobre Linda Stacy. Dizia que a moça, que era namorada do policial Josh Duncan, ela fizera uma notificação sobre seu namorado dizendo que havia desaparecido e pedindo à polícia que se mobilizasse na procura dele. - Há quanto tempo estou preso? - Duncan perdera a noção do tempo confinado àquelas paredes. - Uma semana e meia - respondeu Dykstra. - Como vê - completou Hardrige - sua namorada está convocando a polícia para encontrar você e acho que vão encontrar mesmo se você perder seu jogo. Existe um veneno naquela seringa, é africano, causa paralisia nos músculos e leva a pessoa à morte por asfixia, pois a vítima é incapacitada de respirar. É claro que não é instantâneo, demora cerca de vinte a trinta minutos para liquidar alguém forte como você e esse tempo você pode utilizar para apanhar o antídoto e tomá-lo. Para não dificultar as coisas pra você, resolvi já deixar o antídoto na seringa, tudo que precisa fazer é pegar o aparelho de injeção e aplicá-lo em seu

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músculo. Se conseguir e acredito que consiga dada a facilidade do jogo, ganhará seu prêmio. - Você é um maníaco, Hardrige. - Sem ofensas Joshua, por favor. Não vamos descer a esse ponto - e voltando-se para Dykstra acrescentou - traga-o. Pouco depois os três homens encontravam-se dentro de uma sala fechada que parecia ser a dispensa. A uma ordem de Hardrige, Dykstra aplicou o veneno em Duncan e pouco depois este já se achava atordoado. Foi desamarrado e deixado completamente nu naquele ambiente frio. - Ali está a seringa, Josh. Pegue-a e salve-se. Bata na porta ao terminar. Dizendo isso, saíram. O local onde estava a seringa era uma prateleira com enlatados onde havia dezenas de latas de atum e azeite de oliva, a distância a ser percorrida era curta, mas sob o efeito da droga Josh via o triplo. O efeito inicial surgiu tão rápido que chegou a duvidar daquela história de vinte a trinta minutos até a morte. Se pensasse bem nunca houvera nenhum motivo para acreditar naqueles homens, desde que encontrara Dykstra na casa de Sands começara a ser enganado sobre venenos, chegou até a pensar, da outra vez que estivesse morto. Agora precisava agir com cautela, o lugar onde estava era desprovido de aquecimento e o frio tomava conta do seu corpo quase à mesma velocidade que o veneno. Fitou o pequeno suporte de madeira na prateleira onde estava o antídoto e colocou-se de pé. O efeito da droga o levou ao chão tão depressa que só percebeu isso quando viu o que lhe pareceu ser uma imensa parede vindo em sua direção. Compreendeu que não poderia caminhar, sua alternativa seria arrastar-se, temendo não ter muito tempo não cogitou nenhuma

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outra solução e passou a arrastar seu corpo apoiando-se nos cotovelos. A dor era quase insuportável, sentia os músculos doerem em cãibras provocando um suor que parecia incrível sentir dado o frio do ambiente. Centímetro a centímetro Josh aproximou-se da estante e daí veio outro problema, como poderia levantar-se até à altura da prateleira onde estava a seringa? A despeito de sentir um leve embaçamento nos olhos pôde notar que a estante era fixa na parede possibilitando assim de se pendurar nela até a seringa. O nível de dor aumentou. Os músculos se retorciam em cãibras. Josh sabia que não podia cair, se isso acontecesse uma segunda tentativa seria praticamente impossível. O veneno era realmente mais veloz do que o safado do Hardrige havia dito, pouco mais de dez minutos e ele já se encontrava praticamente paralisado, em meia hora já seria com certeza um cadáver rígido. A paralisia começou a agir nos pés e foi subindo, quando atingiu as coxas, Josh quase gritara de dor. O terror que sentia lutava para colocá-lo em pânico, mas ele resistia, precisava reagir com todas as forças e depois escapar dali. Imaginou a dor chegando a seu tórax e paralisando seu coração... Não! Isso não iria acontecer, mais duas prateleiras e alcançaria a seringa. Pensou em Linda preocupada com ele. Ela já tivera muitas decepções na vida para receber mais uma vinda dele. Surgiu em sua mente a imagem de Linda Stacy sendo abordada por um policial que falou qualquer coisa e após retirar-se deixou-a só, em prantos. Era a notícia da morte dele. - Não! - balbuciou ele. A voz difícil, mais parecia um gemido. Suas mãos escorregaram. Josh conseguiu segurar-se novamente duas prateleiras abaixo. Batera o queixo numa tábua e o corte que surgiu sangrava.

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Ignorando o ferimento com uma determinação maior, ele subiu e alcançou a seringa. Apoiou-se firmemente no braço esquerdo e com outro apanhou o aparelho. Segurou-o com força, era a sua salvação que estava em jogo e não queria desperdiçá-la. Prendeu o protetor da agulha entre os dentes e puxou-o, estava bem preso e ao sair provocou um pequeno ruído. A posição era ruim, porém isso pouco importava, segurou o aparelho apontando a agulha diretamente para o ombro formando um ângulo de noventa graus com a pele, o que qualquer enfermeiro sabe que é errado, mas para ele o que importava era somente empurrar o líquido para dentro do músculo e ficar curado. Certa vez vira sua mãe aplicar injeção na filha de uma vizinha e ele observou o fato escondido atrás da cortina, a menina fez uma careta e depois foi embora como se nada tivesse acontecido. Então sua mãe falou: “Pode sair de trás da cortina Josh, da próxima vez que quiser ver o bumbum de uma menina peça a ela que lhe mostre”. A recordação trouxe um breve sorriso ao seu rosto, era gostoso lembrar-se de sua mãe e pai lá no Canadá. Foram as melhores pessoas do mundo em sua opinião, jamais lhe deixaram faltar alguma coisa, escola, brinquedos e muito carinho. Tivera realmente uma infância muito feliz junto com eles. A agulha já quase encostava-se à pele quando Josh teve um sobressalto. Naquela posição que lhe exigia força para manter-se firme, o braço que usava como apoio começara a suar diminuindo o atrito com a madeira à qual prendia, sentiu-se escorregar e percebendo que não dava tempo para aplicar o antídoto, recolocou rapidamente o protetor da agulha segurando firme o aparelho. Foi uma pequena queda. Josh estava apenas a um metro e meio do chão, no entanto, devido à paralisia das pernas, o tombo foi bem mais forte. Sentiu sua cabeça bater bruscamente no piso de madeira e quase perdeu os sentidos. A tonteira momentânea logo passou e

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Josh notou que não sentia o braço onde estava o aparelho, não acreditou logo que estava paralisado como suas pernas, pois a imobilização delas foi precedida de uma enérgica dor e não sentira nada no braço. Conscientizou-se que isso era mesmo verdade, o veneno marcara mais um ponto naquele jogo de vida e morte arrebatando seu braço como prêmio. Virou-se de lado para apanhar a seringa e deparou- se com a mão vazia. Durante a queda a mão semiparalisada deixara escapar o aparelho em direção indeterminada. Os olhos turvos - a visão de Josh poderia ser perfeitamente comparada a um vidro embaçado - vasculhavam toda a área ao redor em busca do antídoto. Algo pareceu ser a seringa, ao aproximar-se, porém percebeu que se tratava de um frasco sem a menor utilidade. O braço esquerdo já apresentava sinais de enfraquecimento, a dor cortante e o enrijecimento dos músculos estavam presentes no pulso e em rápido progresso rumo à sua mão. Subitamente surgiu uma nova esperança, outro objeto pareceu ser a seringa. Era a última tentativa, pois não sobraria mais tempo para outra. Os dedos quase inertes de Duncan tocaram o objeto. Era mesmo a seringa. Apesar do esforço descomunal, foi lento o trajeto que sua mão traçou em direção ao ombro. O aparelho, seguro entre o indicador e o dedo médio, continha 2 ml do antídoto para estancar o processo de paralisação do corpo. Duncan não chegou a sentir a agulhada e mal pôde ver a agulha penetrar no músculo, mas quando teve certeza de isso acontecera, passou a empurrar o êmbolo do aparelho. O esforço cada vez maior o deixava com vertigem. O braço de Duncan pendeu.

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Uma escuridão inundou sua visão. Permaneceu ali no chão da dispensa deitado de costas. Ao seu lado a seringa da injeção pela qual tanto lutara estava imóvel. Pouco mais de meio milímetro havia sido introduzido em seu braço. Harry Hardrige fumava seu cigarro tranquilamente soltando baforadas no ar, enquanto observava a fumaça se dissipar pensava em sua vida como Drah, o primeiro pupilo do Reverendo Sinford. De início não compreendera bem por que ele e Warren foram escolhidos para ocupar o lugar do mestre e nem tampouco porque ele era o primeiro e Warren o segundo, para eles isso nunca fez diferença mesmo, eram como irmãos antes de Sinford aparecer e se uniram mais ainda após isso. Ambos eram órfãos de pai e mãe, dois garotos de rua que mal tinham onde dormir e muito menos o que comer. Em uma noite qualquer de verão de 1959 eles encontraram Larry Sinford. O pequeno e subnutrido Harry deu-lhe uma trombada em uma movimentada rua de Los Angeles. Aproveitando o embaraço daquela situação, Warren aproximou-se inadvertidamente metendo a mão no bolso do sujeito. Ambos foram agarrados. Ao sentir-se roubado, o que veio mais de uma desconfiança do que certeza, Sinford segurou os dois pivetes, um em cada mão e empurrou-os para dentro do carro que o esperava. Contrariando o que os garotos pensavam que ele faria, que seria levá-los à uma delegacia de menores, o Reverendo os conduziu para sua própria casa, deu a eles o que comer, roupas e um teto para dormir. Nunca mais separaram-se daquele homem. O que Sinford fizera por eles foi retribuído na forma da mais pura fidelidade. Obedeciam a tudo que ele os mandava fazer e acreditavam em cada palavra que saía da boca do homem que eles amavam como a um pai ou até mais.

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Assim, relembrando aquele passado tão feliz, Hardrige acreditava mais ainda nas características divinas de seu mestre, compreendia perfeitamente que fora em um dia de iluminação que o Reverendo Sinford prevendo o futuro abriu uma conta bancária para ele e outra para Warren. E também motivado por essas visões do que estava pra acontecer, impediu que seu verdadeiro nome fosse conhecido pelos Filhos da Luz, passando a chamá-lo de Drah, uma inversão das letras da primeira metade de seu sobrenome, não deixando inclusive que seu nome legítimo fosse colocado nos registros da seita. Graças a isso pudera reconstruir sua vida e planejar sua vingança. Infelizmente Warren ascendera à Luz e a tarefa deixada pelo mestre repousava apenas sobre seus ombros. Dykstra o ajudava muito embora fosse claro demais que seus motivos não eram religiosos, apenas se divertia com as coisas que tinha que fazer e com o dinheiro que ganhava para isso. Apagou o restante do cigarro no cinzeiro de louça e viu Dykstra entrar com um copo de uísque na mão. - Acha que ele vai conseguir, Drah? Hardrige cruzou os braços e fitou o vazio. - Não sei, ele tem força de vontade. Nunca imaginei que ele chegasse a ir em Los Angeles investigar sobre o mestre. Achei que o verdadeiro perigo era o outro policial, o Ronald Wilson, e me enganei. Tenho certeza que o elo que levou Duncan a procurar Robert Sands foi a esposa de Wilson e também alguma coisa que aquele palerma do Cortez deve ter dito. Por falar naquele idiota, o serviço foi feito? Dykstra tossiu antes de responder, estava embaraçado por dizer a Hardrige que não conseguira articular ninguém para matar o boliviano na penitenciária. - Sim, Drah! - mentiu ele desviando os olhos.

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O psicólogo levantou-se e foi até Dykstra, segurou em seus ombros e olhou dentro dos olhos dele. Era uma das poucas vezes que o sorriso de Dykstra se apagava totalmente. - Há quanto tempo estamos juntos, Mark? - Dez anos, Drah - disse ele lembrando-se do dia em que Hardrige foi até sua casa. Seu pai abraçou-lhe com firmeza e disse: “- Vá arrumar sua mala, filho, você vai viajar com esse homem.” Sabendo ser impossível contrariar seu pai, partiu com Hardrige para Nova Jérsei. Passou a ver seu pai apenas uma vez por semestre até que ele morreu. Dez anos se passaram desde que Drah fora buscá-lo em sua casa. - Muito tempo, não acha? - É, Drah, muito tempo mesmo! - Diga-me uma coisa, Mark. Alguma vez eu tentei enganar ou enganei você? - Não, nunca. - Então por que você está tentando me enganar? - Como assim? Não estou entendendo o que você está dizendo. - São dez anos Mark - disse Hardrige pressionando o ombro do outro - conheço você muito bem para saber que está mentindo para mim. Fale-me a verdade sobre Cortez. Dykstra sentiu-se traído pela expressão de seu rosto, tentara esconder a verdade de Hardrige e ele havia descoberto simplesmente observando suas feições. Um rubor cresceu-lhe até aos olhos e baixando-os disse: - Sinto muito, Drah, perdoe-me. - Não há nada a ser perdoado, amigo, sentimos vergonha de admitir as falhas que cometemos e é natural procurarmos escondê-las sob a capa de alguma mentira que embora nos pareça aceitável, as pessoas percebem que é falsa. - Mas eu não falhei. - Então me diga logo o que aconteceu.

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Hardrige voltou a sentar-se esperando que o outro falasse. - Contratei um cara conhecido por... - Poupe-me dos detalhes, Mark. - Bem... o cara já recebeu a faca e só está esperando o momento adequado para mandar o boliviano pro espaço. Sucede que Cortez é bem relacionado no presídio e só anda com gente que certamente vai querer vingança caso algo aconteça a ele. A qualquer instante pode surgir uma boa oportunidade e o nosso homem faz o serviço. - Você pareceu um gângster falando assim - comentou Hardrige sorrindo. Depois disso saiu. Dykstra sabia o que seu chefe iria fazer, era o dia de mais uma visita a Luís Polaro. Ficou fantasiando como o idiota do Josh Duncan estaria se portando em face da morte, devia ter instalado uma câmera para filmar o cara lutando por sua vida, seria um filme que por certo assistiria muitas vezes. Teve o ímpeto de ir até aos fundos da casa e entrar no depósito de mantimentos, mas conteve-se, achou melhor não desagradar a Drah desobedecendo a uma ordem dele. Conformouse em esperar o retorno de seu chefe para ir ver o policial. 24 Os dias no sanatório eram longos por falta de uma atividade que envolvesse mais os doentes, não todos, é claro, pois alguns encontravam distração adequada em assistir TV, jogar cartas, tomar sol no jardim, mas particularmente para dois dos internos Vincent Tatter e Luís Polaro. Eles eram diferentes dos demais e isso podia ser percebido em uma rápida olhada. Vincent estava na Instituição há anos, conhecia todos os meios de diversão que ela oferecia considerando-os dispensáveis. Através da influência de seu pai, que fora inútil quando mais precisara dela, mas que era vantajosa para obter pequenos favores,

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conseguira receber o jornal todos os dias, apesar da Instituição ter um que ficava à disposição dos doentes passando antes pela mão dos funcionários de tal forma que parecia ser de um mês atrás quando chegava às suas mãos, preferindo ter o seu, um videocassete e um televisor a cores de dezessete polegadas onde podia assistir os filmes que perdia no cinema. Polaro contentava-se em ler o jornal de Vincent, jogar xadrez com ele e conversar. Apesar dos convites do companheiro ele recusava-se a assistir filmes com o outro, pois sentia uma sensação claustrofóbica ao perceber que não poderia voltar a ir ao cinema tão cedo, isso somado ao fato de achar que a telinha do televisor tirava metade da empolgação do filme. Uma vez a cada semana Polaro era visitado por Hardrige e isso o deixava sempre mais animado embora essa animação desaparecesse ao ver-se sozinho no cubículo que representava seu dormitório. Um dos funcionários da Instituição organizara um pequeno torneio de xadrez e deixou Luís e Vincent participarem. O resultado foi o esperado, Vincent fora imbatível do começo ao fim e Luís imaginava se durante as vezes que jogaram juntos antes do torneio Vincent não o deixara vencer apenas para analisar seus pontos fracos. - Lucas! - disse Vincent aproximando-se deste que lia o jornal na sala de jogos - eu preciso falar com você. - Sobre o quê? - Ora, não posso dizer aqui. Quero que após o jantar você vá até o meu quarto, então contarei tudo. Após a refeição noturna, Lucas foi para o seu quarto. Não queria saber nada sobre o que quer que fosse que Vincent tivesse para falar, mesmo porque achava que tudo não passava de um plano para fazê-lo ir até seu quarto e assistir algum filme em sua companhia. Sentiu-se inamistoso em retribuir a amizade que o

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companheiro gratuitamente ofertava a ele com essa desdita e esse pensamento o perturbou muito. Quase oito e meia da noite Polaro resolveu ir até o quarto de Vincent. A porta estava trancada e depois de duas batidas ligeiras ela foi aberta. Vincent estava pálido e suava um pouco. - Pensei que não viesse mais e resolvi fazer uma farrinha disse ele justificando seu estado, no videocassete havia uma fita com um rótulo preto onde se lia o título de um filme pornô. Entre - ele enxugou o suor com um lenço de papel que se esfarelou um pouco deixando fiapos na testa avermelhada. - Você não me convidou para vir até aqui sob o pretexto de ter algo para me dizer apenas querendo fazer com que eu assista a um desses filmes com você, não é? - Não, de forma alguma. Por que, você tem algo contra eles? - Acho que não - Lucas tentou mostrar displicência fazendo o assunto ter menos importância do que o normal - nunca assisti um filme desse tipo, Vincent. Eles sentaram. O televisor ficava fixo ao teto e abaixo o videocassete. Além desses objetos havia uma cama, duas cadeiras e uma estante abarrotada de livros, fitas de vídeo, jornais e peças de vestuário, tudo misturado numa bagunça que depois de uma melhor observação chegava a um aspecto organizado. Vincent caminhou à porta e a trancou, isso era contra o regulamento da Instituição, mas o dinheiro e o pouco que restou da influência do senador Tatter tornavam as regras tão maleáveis quanto às necessidades que seu filho exigia. - Não acredito nisso! - declarou Vincent. - Como? - Não creio que você nunca tenha assistido a um filme pornô, todo americano adulto que se preze já assistiu um, pelos menos...

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- Pois acredite. Apesar de gostar muito de frequentar cinemas, esse tipo de filme nunca teve nenhum atrativo sobre mim. Acho que sexo é como exercício, ver os outros fazerem de nada adianta, temos que fazer para sentir os efeitos. Os dois riram alto daquela piada, Vincent chegou a lacrimejar de tanto rir. - Contudo penso que não foi para falarmos de filme pornô que você convidou-me para vir aqui... - interrompeu Lucas, as risadas de seu companheiro não chegavam ao fim embora não achasse particularmente que a piada fora tão engraçada que justificasse o riso descontrolado de Vincent. Tentando deter o riso Vincent tossiu um pouco com a mão fechada sobre a boca e então conseguiu falar. - O que tenho para dizer a você - iniciou ele - é tão secreto que jamais deverá ser mencionado a qualquer outra pessoa, nem ao seu amigo médico, está bem? - Ora, Vincent, por que eu sairia dizendo o que você me conta por aí? - Por nada, apenas para enfatizar que isso é sigiloso demais, ok? - Fale logo. - Eu vou fugir. Polaro fez uma careta incrédula e Vincent percebendo isso prosseguiu: - Tenho um plano formado desde dois dias antes de você chegar aqui na Instituição e só estava esperando a oportunidade certa e um material que faltava para isso. O material chegou hoje e a chance será na sexta-feira! - De que você está falando, Vincent, é impossível fugir da Instituição... Tatter levantou-se enfiando as mãos no cabelo loiro comprido deixando à mostra sua testa que já apresentava sinais de rugas.

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- Engano seu, Lucas - declarou ele - durante todo esse tempo que estou aqui nessa porcaria, tentei inúmeras vezes conseguir a condicional e sabe o que os sacanas dizem, que ainda não possuo sanidade mental suficiente para voltar a conviver na sociedade. Quem eles pensam que são? Passam cinco anos numa bosta de faculdade e quando saem de lá acham que podem dizer com cem por cento de possibilidade de acerto o que se passa na mente das pessoas... Os olhos de Vincent Tatter estavam cheios de lágrimas. Enquanto falava, embora seu tom fosse moderado de tal forma que sua voz não passava de um sussurro, gesticulava nervoso demonstrando todo o seu desgosto pela situação que atravessava. Vincent deixava transparecer um íntimo desejo de vingança que fez com que Lucas entendesse a sinceridade das palavras que saíam atropeladas da boca do companheiro. - ... mas eu sei o que se passa aqui dentro da minha cabeça - continuou ele apontando seu crânio com o dedo indicador encostado um pouco acima da orelha direita - essa cabeça Lucas, que os sacanas acadêmicos dizem que não funciona bem, conseguiu elaborar o esquema mais eficaz para tirar alguém de dentro da Instituição. - E você pretende contar-me seu plano. - Sim. - Por quê, Vincent? - Porque ele depende de você para funcionar, meu amigo Vincent enfatizou bastante a última parte da frase tentando impressionar Polaro. - Como é que é? - perguntou Lucas assustado. - Isso mesmo que você ouviu. - Como seu plano que nem imagino qual seja pode depender de alguém que sequer sabe como chegou aqui! - Lucas referia-se ao estado de inconsciência no qual chegara à Instituição. - Você está disposto a me ouvir?

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- Claro que sim. Consultando o relógio de pulso para ver quanto tempo tinha antes do toque para os doentes se recolherem às celas, Vincent constatou que contava com pouco mais de uma hora. Pegou um grosso volume da estante, era um livro do tamanho de um desses da enciclopédia Britânica, mas que era do modelo de um diário com cadeado e tudo mais. - Você já conhecia meu diário, Lucas? - perguntou ele tornando a sentar ao lado do colega de sanatório. - Não. Vincent foi até a caixa onde os fios do vídeo e da TV ficavam embutidos e trouxe uma chave com a qual abriu o caderno. O livro era falso. Apesar do aspecto externo, o volume não passava de uma caixa oca cujo conteúdo era retirado gradualmente sob uma explicação detalhada de sua finalidade. Havia um mapa, um alicate com cabo isolante, uma faca de caça, dois mapas, um velho e outro novo em folha. - Para quê tudo isso, Vincent? - Isso que você está vendo, somado com outros apetrechos que estão presos lá no túnel, representam o nosso passaporte para a liberdade. Polaro ignorou o “nosso” para que Vincent pudesse prosseguir. - Bem, do jeito que estou falando só prejudica o seu entendimento das coisas. Mas agora preste muita atenção no que vou lhe dizer. A fuga seria brincadeira de criança pela forma com que Vincent a descreveu. O sanatório foi edificado sobre as ruínas de um antigo casarão. Através de boatos e especulações bobas Vincent descobriu que o homem que construiu o casarão, criou um túnel sob a fundação que levava até a desembocadura do rio Hudson. Depois de muito esforço ele adquiriu a planta do antigo prédio e a

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planta do sanatório. A entrada para esse túnel coincidia com um bueiro que ficava exatamente ao lado de um dos três tanques de ferver roupas na lavanderia da Instituição. Certa vez, Vincent tivera a oportunidade de entrar no túnel para confirmar sua existência e voltara lá depois para colar em um lugar qualquer da circunferência que formava a parede os apetrechos que precisaria para a fuga. No final de cada semana dois internos da Instituição ficavam responsáveis pela limpeza da lavanderia. A escala obedecia ao padrão simples de formarem dois grupos de pessoas e depois sair formando pares com elementos de cada grupo misturando-se sempre as duplas. - Já consegui reunir esses elementos. Entende o que pretendo? - perguntou Vincent. - Acho que sim. Daqui a quinze dias, numa sexta-feira nós dois estamos escalados para a limpeza na lavanderia e você tem como intento fugir nesse dia, e eu terei que ficar fazendo a cobertura para o seu escape. - Quase tudo certo! - Elogiou Vincent. - E onde eu errei? - Na parte da fuga. - Explique logo. - Não desejo fugir só, quero que você fuja comigo. Lucas encostou-se à parede atingido por aquelas palavras. Não pretendia fugir dali. Seu desejo era a liberdade, mas não ao preço de uma fuga que inclusive poderia ser bem sucedida. A coragem, no entanto, lhe falhou em tentar dizer aquilo ao companheiro. - Por que você me escolheu? - Porque você é o único, além de mim, que é saudável física e mentalmente. Além disso, você é meu amigo. Essa última declaração desarmou completamente a Polaro, que permaneceu calado.

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- Você tem certeza que quer que eu vá com você? quebrou ele o silêncio. - É claro que sim, Lucas. De outra maneira eu não teria posto o meu plano em perigo contando-lhe sobre ele. - E se eu ficar vigiando a lavanderia enquanto você foge? - Não dá, ou você vem comigo ou terei que arranjar outro parceiro, sozinho é impossível pois de acordo com a planta do túnel subterrâneo, antes de chegar à boca próximo ao Hudson há uma pequena galeria para o caso de uma cheia do rio, que se houvesse inundaria o túnel, mas com a galeria a água é escoada, deixando a passagem livre. Para transpô-la é preciso ajuda. - Qual a intenção do antigo dono dessa propriedade, antes de ser um sanatório, em mandar construir esse túnel? - indagou Lucas em tom pensativo. - Sei lá. - respondeu o outro. A despeito do que Vincent sabia, era só o que poderia precisar para benefício de suas intenções de escapatória. - Dizem que ele embarcava mercadorias contrabandeadas através dele. - Imagino. Vincent abriu a planta do túnel e mostrou-a passando o polegar pelo caminho que seguiriam embora não fosse preciso, pois só havia um. Era antiga a cópia que Tatter possuía, daí supondo-se que o original seria tão velho que talvez já nem existisse. - Você tem certeza que o túnel continua intacto, será que os anos não estragaram a construção ou até mesmo o próprio dono não o destruiu antes de vender a outro - Lucas procurava arranjar defeitos no plano do companheiro mostrando-se preocupado com os detalhes. - Não! - disse Vincent com segurança - você sabe como essas obras antigas são fortes, além do mais aqui no rodapé da planta diz que o túnel deve ser construído em pedra...

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- Você não percebe que os construtores geralmente não obedecem as especificações técnicas que são descritas na planta? Vincent Tatter levantou rápido e foi até a porta destrancando-a. Virou-se para o companheiro ainda sentado e falou: - Sei que é uma decisão difícil, Lucas, é muito arriscado o que tenho em mente embora o plano seja quase perfeito. Portanto vou lhe dar um tempo para que pense e decida ok? Uma semana está bom? Lucas assentiu com a cabeça e após essa pequena pausa acrescentou: - Como faremos ao chegarmos à saída do túnel? - Já havia pensado nisso. Ao meu sinal, o jornaleiro que trás o jornal todas as manhãs providenciará um barco que ficará lá escondido na vegetação ao redor. E não se preocupe, ele é de confiança. Há duas mudas de roupa, uma sacola com dólares bastante para nos levar até depois da fronteira mais próxima, duas pistolas para o caso de encrencas e uma picareta pequena para a remoção de algum obstáculo no caminho e outros equipamentos menores como lanternas, pilhas extras e outras miudezas. Lucas viu todas as suas indagações posteriores respondidas antecipadamente. - Agora acho melhor você ir - completou Vincent - em uma semana você me dá a resposta, está bem? - Ok, Vincent. Boa noite. - Boa noite, amigo. Luís Polaro realmente teria muito o que pensar e ponderar até a sua decisão chegar. Após ler o exemplar do jornal que Vincent lhe emprestara, Polaro achava-se disposto a pensar melhor sobre a proposta de fuga. Um medo excitava-lhe a consciência impelindo o pensamento a

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dissipar-se, mas já estava quase no dia de dar a resposta ao companheiro. Todos os detalhes foram revisados mentalmente por Polaro que começava a vê-los como peça de uma grande engrenagem cujos encaixes eram perfeitos e devidamente lubrificados. Imaginar várias vezes fugindo sozinho com cães latindo atrás dele aterrorizadoramente, era apenas a imagem de um filme antigo que o perseguia para aumentar seu temor. E Harry? Ficaria mais decepcionado ainda com ele? Preferia não pensar nas reações de seu amigo, mais tarde diria a ele em que país se encontrava e pediria que fosse vê-lo para mostrar ao amigo sua cura e seu propósito firme de levar uma vida nova sem sombras de seu passado. Foi aí que percebeu que inconscientemente já admitia a possibilidade de fugir do sanatório. O próprio Vincent era perfeitamente normal e os médicos insistiam em mantê-lo na Instituição. O que seria dele então que acabara de chegar. Polaro por certo não suportaria um ano naquele lugar, ainda mais vinte e cinco. A fuga, se bem sucedida, seria um boa solução e se não, apenas atrasaria o processo de liberdade condicional por mais tempo. A escolha era entre ficar e esperar que os médicos um dia o considerassem curado e libertassem-no ou ficar logo livre para sempre. Uma decisão muito difícil. Era a véspera da visita de Hardrige e isso também contribuiu para que Luís Polaro se sentisse animado, é claro que uma certa apreensão existia em ter que esconder aquilo de seu amigo, mais tarde porém Harry compreenderia. Polaro decidiu-se. - Vincent! - chamou Lucas pelo companheiro que acabava de entrar na sala de jogos, levantou o braço direito com a mão espalmada para ser melhor localizado mesmo estando na mesa de xadrez onde ambos costumavam encontrar-se.

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Tatter sentou-se no outro lado do tabuleiro e avançou duas casas com o peão que estava na frente do cavalo da esquerda. - Calma homem - disse Lucas ao contemplar o amigo esfregar as mãos para aquecê-las, após a mexida no tabuleiro você hoje parece disposto a me massacrar. - O quê? - Vincent sorria - você quase acaba comigo da última vez. Tive que usar todas minhas armas secretas para não perder. - Que é isso, Vincent. No torneio eu não dei nem para o começo com você. - Que nada, eu estava com sorte naquele dia. Polaro fez uma jogada inicial e apoiou seu queixo sobre as mãos pensativamente. - Eu topo! - disse Lucas. - Como? - Eu topo o seu plano! - Sabia que podia contar com você - Vincent ficou excitado - você é do meu tipo, Lucas, enfrenta as coisas. Precisamos conversar melhor, vá até meu dormitório hoje, não podemos nos arriscar a falar nesse assunto no meio de tanta gente. Dizendo isso, Vincent olhou ao redor percebendo as figuras taciturnas que transitavam mecanicamente pela sala, eram tão inofensivas que até sorriu do que acabara de falar. O jogo foi interrompido devido à ansiedade que ambos experimentavam, retomariam a conversa logo mais à noite. Ao se encontrarem novamente no quarto de Vincent Tatter, uma onda de insegurança tomou Polaro, preocupado com escutas ou qualquer coisa que fizesse alguém descobrir o plano dele. - Por que não existe uma câmera no seu alojamento, Vincent? - Câmera? - Vincent surpreendeu-se com a pergunta, pois já fazia tanto tempo que a do seu quarto fora retirada que ele

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pensava que não devia haver mais nenhuma nos outros alojamentos - os loucos mais irracionais do sanatório e os mais perigosos possuem câmeras em seus quartos. Havia uma ali apontou para um canto do teto - quando cheguei, mas apresentando uma determinada melhora eles a retiraram. Há alguma no seu dormitório? - Há. Quando quero usar o vaso sanitário eu jogo um lençol nela e depois retiro. É uma sacanagem que fazem com os doentes. - Com efeito. No entanto, a maioria dos que vem pra cá são tão doidos que nem notam a câmera e os que notam não sabem o que é. Ambos ficaram em silêncio por alguns instantes e Vincent o quebrou. - Vai mesmo comigo, Lucas? - Vou - disse o outro secamente. Sua voz mostrava uma decisão que Vincent não conhecia no companheiro de sanatório. - Não temos mais muito o que conversar. No dia da nossa escala na lavanderia não leve nada, vá só com a roupa do corpo, nada de roupas por baixo, pois não precisaremos disso, tenho tudo que vamos precisar lá no túnel e dentro do meu diário, ok? - Tudo bem, Vincent. Tatter segurou o antebraço de Lucas com força e disse: - Vamos conseguir amigo, pode confiar em mim. Lucas levantou ensaiando ir embora quando Vincent o deteve dizendo: - Fique para assistir um filme comigo, Lucas. - Não Vincent, melhor deixar para outra vez. - Que é isso, depois que fugirmos daqui teremos que nos separar para que ninguém nunca nos veja juntos e assim sermos facilmente descobertos, talvez jamais voltemos a nos ver, portanto, vamos passar esses últimos dias desfrutando das mordomias que o filho do senador Tatter conseguiu adquirir aqui nessa espelunca.

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Um dia, livres e com nossas mulheres contemos a elas sobre nossas aventuras. Fique companheiro. Mais uma vez Lucas deixou-se convencer pelos argumentos de Vincent e voltou a sentar. O outro passou a preparar a fita, colocou-a no videocassete, como uma criança que mostra seu brinquedo novo a um coleguinha. Com o controle remoto nas mãos ele avançou o filme para não perderem tempo com letreiro inicial embora essa abertura não durasse mais que um minuto e meio, típico daquele tipo de filme. Foi por isso que Polaro não pôde notar o nome de Ginger Silks como atriz principal e mesmo que o fizesse não saberia que se tratava de Margot Williams, a terceira vítima do Assassino da Flor. As imagens seguintes, em rotação normal, surpreenderam Lucas de maneira tal que ele não conseguia esboçar nenhuma reação, as cenas eram terrivelmente semelhantes com algo que já havia visto antes, não sabia como mas vira aquele filme em algum outro lugar. Como? Não gostava de filmes pornôs e nunca assistira a um antes, então como podia recordar-se daquelas cenas? Por que aquilo era tão familiar? O bloqueio desapareceu. Polaro entendeu tudo num tempo tão rápido que um piscar de olhos seria muito demorado, foi um choque muito forte para sua mente despreparada. Vincent levou um susto tão grande que saltou da cadeira com o corpo todo arrepiado pela emoção. Lucas gritou tão alto e aterrorizado, aquilo quase desmaiou seu companheiro. Benny Walder e Doug Hall estavam de plantão naquela noite e aproveitavam o tempo para datilografarem os boletins de saúde dos internos que estavam sob suas responsabilidades, inclusive Luís Polaro, quando um guarda irrompeu sala adentro assustando Walder.

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- Que diabos, Ralston - disse ele - o que aconteceu para você entrar aqui desse jeito? - Aquele cara, o Polaro, teve um troço... - Troço? - perguntou Walder apanhando seu guarda-pó acompanhado por Hall que o imitava. No corredor que separava a ala médica da que os detentos ocupavam os três homens caminhavam apressados. Dean Ralston com uma pistola na mão contava o que sucedera. - O Tatter chegou desesperado onde eu estava dizendo que estava assistindo um filme com Polaro e de repente deu um grito medonho caindo tremendo e esperneando... - Guarde isso, Ralston - disse Hall apontando para a arma Já estou levando o necessário para qualquer eventualidade mostrou a seringa com calmante que carregava no bolso. Alguns doentes acotovelavam-se em busca de saber o que estava acontecendo e Vincent os enxotava com gritos e palavrões. Vendo os médicos chegarem logo dispersaram-se. - O que houve? - perguntou Walder a Vincent que se afastou para que o médico passasse como resposta. Luís Polaro estava caído de costas, seus olhos estavam inexpressivos, uma lágrima escorria pelo seu rosto gotejando em sua orelha. Walder curvou-se sobre seu paciente verificando o pulso e fazendo uma análise superficial do quadro que se apresentava a ele. - Ligue para a Enfermeira dos detentos, Doug, mande trazerem uma maca e prepararem um leito para ele. - O que aconteceu a ele? - perguntou Hall antes de desincumbir-se do pedido. - Ainda não sei ao certo. Acho que ele levou um choque emocional muito grande. Mais tarde, após Polaro receber medicação e ficar em observação, os dois médicos resolveram escutar o que Vincent Tatter tinha

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para falar sobre o incidente com Lucas. Vincent disse tudo que vira, desde o grito até a queda do companheiro. - Você não está nos escondendo nada? - perguntou Hall maliciosamente. - Não. - Será mesmo? - insistiu. - Claro que não! - respondeu cabisbaixo. - Então pode ir. Levantou e chegando à porta voltou-se. - O Lucas vai morrer? - Lucas? - É como Polaro disse que os amigos o chamam respondeu ele mostrando o orgulho por ser o único amigo de Lucas na Instituição. - Não - Walder respondeu - algo o deixou perturbado, talvez algo que você tenha dito sem a menor intenção... - Espere - disse Vincent lembrando subitamente de alguma coisa que tinha certeza ser o elemento causador do que aconteceu com o amigo - acho que sei o que foi. - Então diga logo o que foi - pediu Hall. - Só se vocês prometerem não denunciarem os filmes que tenho ao diretor. - Que filmes? - Prometam. - insistiu o detento. Curiosos e sabendo ser aquela promessa o único meio de descobrirem o que Vincent tinha em mente, prometeram. Alguns minutos depois Vincent Tatter apertava a tecla “PAUSE” do controle-remoto de seu vídeo quando o rosto da atriz Ginger Silks aparecia em close na telinha. - Foi por causa dela - disse Vincent categórico. - Você deve estar fazendo uma brincadeira - Dough Hall achava que havia acabado de cair numa piada de louco.

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- Não. Ela é Margot Williams, uma das vítimas do Estuprador de Manhattan. Os médicos entreolharam-se lembrando de que o Estuprador de Manhattan era o próprio Luís Polaro. - Volte a fita para o começo - pediu Walder quase ordenando - vamos ver se o nome dela consta no início do filme. O detento voltou a fita e ficou observando, quando o nome de Ginger Silks apareceu nem ele nem os médicos relacionaram-no a Margot Williams. - O nome dela não está aí - observou Walder mirando Vincent de forma inquisidora. - Mas eu tenho certeza - objetou Tatter. Indo até um canto da estante, apanhou um maço de jornais passando a revirá-los em busca de alguma coisa - Aqui está - ele mostrou um jornal antigo com a foto de Margot Williams. Avançou novamente a fita e parou a imagem para compararem a fotografia do jornal com a imagem da tela. - É ela mesma! - confirmou Hall de boca aberta. - Então foi isso - Walder pensou em voz alta - ao ver o rosto de sua vítima Polaro teve uma reação psicológica qualquer que o deixou naquele estado. Os médicos saíram em seguida deixando Vincent Tatter em seu quarto, chateado por ter sido o culpado da situação do amigo e futuro companheiro da fuga. Agora teria que fugir sozinho. A dificuldade seria um pouco maior, mas não tinha outro jeito, a não ser que Lucas voltasse ao normal antes. Um pensamento preocupante assomou Vincent e se naquela situação Lucas desse com a língua nos dentes sobre a fuga? Sem o controle total de sua mente ele poderia chegar a fazer aquilo... certamente diria algo qualquer que levasse os médicos a descobrirem seu plano. Depois de tantos meses de planejamento seu intento iria por água abaixo. Não! Isso não iria acontecer.

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Seria duro fazer aquilo, Lucas havia se mostrado um bom amigo naqueles últimos dias, infelizmente ele seria obrigado. Daria um tempo até para saber se Lucas estaria dizendo algo revelador e... Não! Não poderia arriscar-se em esperar, na manhã seguinte ele faria o que tinha a ser feito. 25 Linda Stacy sabia que aquilo não passava de um sonho, mas não conseguia libertar a tensão que sentia. Vira Duncan sendo maltratado por um homem enorme e musculoso enquanto ela, impotente, amarrada a uma cadeira, tentando soltar-se. Demorou algum tempo para perceber que o sujeito era o Estuprador de Manhattan embora notasse que ele não tinha a menor semelhança com o homem que fora preso: Luís Polaro. A despeito de achar aquilo estranho e irreal, esforçou-se tanto para se soltar que acabou derrubando a cadeira de lado. Duncan era colocado de pé à força pelo Estuprador que desferia golpes nele atingindo o estômago e o rosto. Foi aí que Linda percebeu uma faca ao lado de seu rosto, ela teve mais certeza ainda de que estava vivendo um sonho, pois não estava mais amarrada à cadeira, agora, caída de bruços e livre das cordas, não pensou duas vezes antes de apanhar a faca e investir contra o homem que surrava seu namorado. O Estuprador percebeu a aproximação de Linda e virou-se encarando a moça com a ferocidade de um predador. Caído a seus pés jazia Duncan, desmaiado e sangrando. Ela investiu contra ele. Segurando o braço desarmado de Linda o Estuprador esbofeteou-a no rosto fortemente. Linda enfiou o objeto na perna do homem que gritou de dor, afastando-se e olhando para o ferimento.

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A moça não esboçou o menor sinal de surpresa ao ver que não era mais a faca que penetrara a perna do Estuprador, era um palito de cabelo! Embora fosse um ferimento pequeno sangrava muito. O Estuprador correu desaparecendo na escuridão. Ela virou-se para Duncan e só aí percebeu que ele estava morto! - Josh! - chamou ela em desespero - Josh, acorde... acorde... Linda acordou. Estava suada e sua camisola estava aderida à pele, uma luz amarelada vinha da lâmpada do abajur destacando sua forma bem delineada. Levantou observando o termostato para verificar a razão daquele suor, mas o aquecimento não estava tão forte para esquentar o apartamento. Era a tensão que passara no pesadelo que a fizera transpirar. Pelo menos um saldo positivo trouxera do sonho. A certeza que realmente acertara a perna do Estuprador com o palito de cabelo. Porém não foi só essa certeza que Linda Stacy obteve. Em algum lugar Josh corria perigo de vida e ela não podia ajudar em nada. Fazia um dia que ela conseguira que um jornal publicasse suas suspeitas sobre o desaparecimento do detetive, mas nenhuma novidade surgira. Refeita da tensão, a moça tornou a deitar pensando em como encontrar um meio de agir para fazer a polícia acreditar naquilo que sua intuição insistia em dizer: Josh Duncan corria perigo! A polícia por si só jamais daria crédito a ela e somente no final das férias de Josh, quando ele retornasse ao trabalho teriam motivos para começar a crer que ela estava certa. Seria, no entanto, tempo demais e poderia ser tarde.

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Linda não conseguiu mais dormir aquela noite. Devido à publicidade negativa que ela adquiriu no caso do Assassino da Flor, seu chefe, o proprietário do Break Burger, deu férias de trinta dias a ela até a poeira sentar e o caso ser esquecido pelas pessoas. Linda então aproveitou o tempo para ver seu irmão, descansar e conhecer melhor seu futuro marido, agora, preocupada com seu paradeiro, ela ficava mais uma noite sem dormir. O furgão Cherokee Jeep cantou os pneus impulsionados pela tração 4x4 na pista lisa e molhada de neve derretida no estacionamento do Hospital Psiquiátrico. Em seu interior ia o compenetrado Dr. Harry Hardrige imerso em seus pensamentos que deixavam sua testa ligeiramente franzida. Pouco depois do meio-dia chegara ao sanatório e o Dr. Benny Walder viera trazerlhe as más notícias. Aquilo não podia ter acontecido, o maldito Vincent Tatter estragara ou colocara em risco todo seu intento de vingança. Não pode matar Janet e nem Ralph, e agora, quando estava quase no final de tudo aquele imbecil achara de convidar o filho de Janet para assistir um filme pornô e justamente àquele em que Margot Williams trabalhava. Mas o mestre não ficaria sem sua vingança, Drah, o primeiro pupilo do Reverendo Sinford jamais permitiria que seu mestre fosse privado da justiça que lhe era devida. Lucas iria morrer naquela semana e como não poderia matá-lo pessoalmente, pelo menos arranjaria alguém para fazer isso. - Preciso que você faça outro serviço para mim, Mark! - disse Hardrige entrando na residência aonde Duncan era mantido preso. - O que aconteceu, Drah? - perguntou este vendo o nervosismo do que chegara. - Polaro descobriu tudo!

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- O quê? Hardrige contou o que aconteceu, usou quase as palavras do Dr. Walder. - Que azar! - observou Dykstra. - Não nosso. Isso só apressa a morte dele - Hardrige coçou o queixo pensativamente, sentou no sofá enorme da sala servindose de uma dose de uísque - temos que fazer com ele o mesmo que mandamos fazer com Estélio Cortez, só que não pode haver atrasos. - Acho que sei quem pode fazer o serviço para nós. - Quem? - Você não conhece Drah. É um facínora ótimo em disfarces. - Você vai mandar um homem disfarçado lá para matar o Lucas? - perguntou Drah. - Sim. - Isso é perigoso! - Mas não tem outro jeito, não pode ser alguém de dentro, pois lá só tem loucos, ademais, Lucas não se encontra mais na área de detenção e sim na enfermaria tornando difícil um detento chegar até ele. - De fato - concordou Hardrige - faça o que tem que ser feito, Mark, eu quero Lucas morto antes que ele acorde. Sem responder, Dykstra deu um giro sobre os pés e encaminhou-se para a saída. - Mark - chamou Hardrige quando este ia fechando a porta - como está nosso hóspede? - Acho que ele perdeu o jogo, chefe. Não voltei lá depois que o deixamos. - Tudo bem. Eu mesmo irei até lá. Dykstra bateu a porta. Ao acabar seu drinque Hardrige decidiu ir ver o estado de Duncan. Apanhou uma arma e do lado de fora da dispensa ligou o

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interruptor que acionou duas lâmpadas no interior do local onde Duncan se encontrava. Cautelosamente ele penetrou na pequena sala, arma em punho para se defender de uma possível investida do detetive caso ele tivesse conseguido injetar-se o antídoto. Um sorriso iluminou o rosto de Hardrige ao ver o corpo de Duncan caído numa posição disforme, de maneira alguma poderia ser classificado como natural. Abaixou-se ao lado do corpo após ver a seringa com quase todo o antídoto em seu interior. Tocou o pescoço a fim de auscultar os batimentos cardíacos. Duncan estava vivo! Era incrível como a pequena quantidade do líquido que ele conseguira injetar-se, manteve seu corpo em equilíbrio. Hardrige aplicou o restante do conteúdo da seringa e saiu trancando a porta da dispensa atrás de si. A campainha tocou e Linda apressou-se em atender. Stain Gibbs entrou na sala do apartamento de Linda sem deixar de virar-se instintivamente para a parede onde ele e Duncan ficaram acuados por Polaro. A mancha de sangue de Duncan não estava mais lá. - Lavei-a - disse ela notando o olhar pensativo que o policial lançava sobre a parede - não combinava com a decoração da sala. Gibbs sentou-se, sua pele escura e oleosa brilhava refletindo a iluminação. - Gibbs - disse Linda sem saber por onde iniciar a conversa - telefonei para que viesse até aqui porque ... - Eu sei porque Srta. Stacy - cortou ele. - Como? - Isso mesmo. Eu sei por que a Srta. me ligou. - Me chame Linda.

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- Tudo bem, Linda. Também desconfio que alguma coisa está errada no desaparecimento de Josh, apesar de saber que ele está de férias. Outro dia ele me ligou querendo informações sobre uma seita religiosa e precisava do endereço do perito da polícia de Nova Iorque no assunto, um teólogo chamado Robert Sands Gibbs fez uma pausa que durou mais tempo do que esperava. - E daí? - insistiu ela. - Escute Linda, o que vou lhe dizer não pode passar ao domínio público e espero que você não conte a ninguém. - Tudo bem - disse ela - não tenho mesmo pra quem contar. Apenas tenho uma intuição de que algo aconteceu a Josh, algo de ruim e quero fazer alguma coisa para ajudá-lo. Gibbs retirou um recorte de jornal do bolso de seu sobretudo caqui e deu à Linda. Era uma pequena reportagem sobre a morte súbita de Robert Sands. Leu com atenção e devolveu-a ao policial. - Acha que tem alguma relação? - indagou ela, os olhos brilhavam de esperança. - Sinceramente eu não sei - disse ele baixando os olhos para o rodapé da parede à frente - mas vou investigar e assim que souber algo, comunico a você. Agora tenho que ir - disse ele levantando-se. Linda o acompanhou até a porta. - Eu pensei que seria eu quem falaria mais em busca de convencer você das minhas suspeitas - disse a ele. Gibbs sorriu, os dentes muito brancos contrastavam com sua pele. - Josh é um bom policial e amigo, não posso deixá-lo na mão... Linda sorriu também e deu um beijo no rosto do policial. Gibbs se foi.

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Ela depositou nele a esperança de encontrar Josh, não podia imaginar que apesar da extrema competência de Gibbs seria praticamente impossível ele chegar até Josh Duncan. Hardrige escutou a música do conjunto Dee Dee Ramone que anunciava a chegada de Mark Dykstra que escutava as músicas do conjunto muito alto dentro do Cherokee Jeep. Cinco horas haviam passado desde que o médico psiquiátrico injetara o líquido restante na seringa no músculo do braço de Duncan. Dykstra entrou na sala. - Falei com o homem, Drah. - E daí? - Ele topou o serviço, acho que amanhã a essa hora você estará se preparando para o enterro do Lucas - Dykstra sorriu cinicamente de seu humor mórbido mas percebendo a expressão impassível de Hardrige voltou a falar sério - tive que pagar metade do dinheiro adiantado... - Depois eu faço um cheque pra você, Mark - disse ele vendo o que o outro queria. Lembrou-se de Duncan e continuou enquanto Dykstra pendurava seu agasalho no cabide perto da porta e sentava numa poltrona perto da janela - Duncan quase sobreviveu. - Hein? - Fui até à dispensa. Ele chegou a apanhar a seringa da prateleira e injetar-se um pouco do antídoto - a voz de Hardrige era calma e casual - mas não o bastante. Estava vivo quando cheguei lá e injetei-lhe o resto, infelizmente não é o bastante agora já que o veneno agiu por muito tempo no corpo do desgraçado. Amanhã quero que você se livre do corpo. - Tem certeza de que ele vai mesmo estar morto até lá? - É claro, mesmo que escape dos efeitos do veneno, o que é muito improvável, o frio da noite se encarregará de dar cabo

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dele. Assim, não haverá mais nada a ser feito e eu poderei esperar tranquilamente o dia em que o Reverendo Sinford me chamará para a luz. Dykstra disfarçou um pequeno riso de ironia que se formou em seu rosto. A assistente de ponto ficou admirando o loiro bonito de um metro e oitenta que entrou na portaria do Hospital Psiquiátrico naquela manhã e suspirou fundo ao vê-lo dirigir-se a ela. - Em que posso ajudá-lo, senhor? - Bom dia, sou o enfermeiro novo... - Enfermeiro novo? Mas aqui só consta um assistente de cozinha novo - disse ela pegando uma prancheta. Passando rapidamente os olhos na prancheta ele viu um nome e conseguiu ler embora estivesse de cabeça para baixo: Brian Hopkins. - Deve haver um engano - disse ele mostrando-se confuso - meu nome é Brian Hopkins. - Seu nome está aqui, mas diz apenas que é o novo assistente de cozinha! - É que fiquei encabulado de dizer pra uma moça tão bonita que sou cozinheiro. Elsie Berenson sentiu-se lisonjeada e disse: - Ora, pare com isso, não devemos nos envergonhar do que somos. Vá até o final do corredor, dobre à direita e pergunte ao guarda onde é a cozinha que ele lhe informará melhor. O loiro apertou a mão da moça com delicadeza e caminhou para o local que ela indicara. Passou por vários lugares e esbarrou com um enfermeiro que dobrava um corredor, ele não sentiu que seu crachá havia desaparecido. O falso Brian Hopkins viu a placa onde se lia vestuário em uma porta e entrou. Minutos depois ele saiu trajando

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um guarda-pó em cujo bolso estava um crachá escrito: Tim O’Neal, enfermeiro. Começou então sua busca nas enfermarias do Hospital Psiquiátrico. O Hospital era grande e não se destinava só a detentos, mas a ala destes era separada e quase independente. Suas únicas ligações eram a cozinha e a enfermaria oito para os enfermos em cárcere que era bem vigiada. 26 Lucas acordou no meio da noite, em sua mente, lembranças confusas misturavam-se e ele fechava os olhos com firmeza para apagar aquelas imagens. Isso, porém não acontecia. Não sabia como havia ido parar naquele lugar que lembrava um hospital. Tentou mexer-se, mas a camisa de força o impediu. Lembrou-se de Vincent e do filme pornô. Agora uma nova versão dos últimos acontecimentos invadia sua realidade, será possível ser aquilo verdade? Ou estava louco? Ouviu um pequeno ruído e virou o rosto na direção de onde vinha o som. Um enfermeiro entrou empurrando um carrinho de remédios e iniciou seu trabalho oferecendo os medicamentos aos enfermos. Lucas resolveu fingir que estava dormindo, se o rapaz visse que ele havia voltado ao normal avisaria aos médicos que viriam o mais depressa possível com suas perguntas e o que mais ele queria era ficar a sós para poder ordenar seus pensamentos e assimilar aquelas novas recordações. Sentiu uma pequena espetada no ombro esquerdo seguido de um leve ardor. Uma sonolência o invadiu imediatamente e em menos de dez segundos ele estava dormindo.

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Era só uma pequena dor no ombro e depois um sono. Seu corpo foi transportado e o deslocamento de ar atingindo seu rosto o fez abrir os olhos. Notou que era uma sala fechada e escura, um pequeno divã em frente a um aparelho de televisão e uma cadeira não havia mais nenhum outro móvel. - Agora você está sob minha vontade - disse uma voz vinda do nada. Lucas procurou pela pessoa que havia falado e encontrou um vulto por trás do televisor, cuja a imagem parada emitia uma luz forte que o impedia de reconhecer o dono da voz. - Quero que conte de um a dez bem devagar! - ordenou o vulto. Sua voz era muito calma e falava vagarosamente pronunciando as palavras com muita perfeição. A boca de Lucas abriu-se sem que ele pudesse deter o movimento: - Um... dois... três... quatro... - iniciou ele timidamente a contagem. Uma série de outros testes foi feita até que finalmente o vulto ficasse convencido de que Lucas estava sob seu poder hipnótico. Um filme passou a ser exibido na TV. Era o filme pornô que Vincent mostrara a ele. A voz do vulto soou: - Essa é a próxima vítima do Assassino. A imagem que você contempla é sua próxima visão, você deve ver sob a ótica do Estuprador, ele usa roupa preta dos pés à cabeça e o rosto dele não é visível, veja... após aproveitar-se da moça ele a mata... Assim, o homem passou a ditar ordens e implantar falsas memórias na mente vazia e limpa como um papel em branco de Luís Polaro. Então Lucas percebeu quem era o estranho vulto. Harry Hardrige desapareceu na escuridão.

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O falso enfermeiro entrou na enfermaria quando faltava pouco menos de uma hora para amanhecer. Procurou pelo homem a quem devia matar naquele pouco iluminado salão e o encontrou com uma segura facilidade. Lucas balbuciava palavras incoerentes como se estivesse em um pesadelo muito ruim. O sonífero a que fora submetido na noite anterior perdia o efeito e daí a pouco tempo iria acordar. O próximo enfermeiro encarregado da outra dose do medicamento encontrava-se agora morto por asfixia dentro de um depósito de vassouras e outros materiais de limpeza. Um fio de náilon ao redor do pescoço dele mostrava como havia morrido. O sujeito tomara o lugar do enfermeiro que matara e munido de seu crachá penetrou sem contratempos na área dos detentos sem que o guarda não desconfiasse de nada. O carrinho de medicamentos estava repleto dos mais diversos remédios para os pacientes daquela ala composta por quase cinquenta leitos divididos em quatro enfermarias. O assassino de aluguel apanhou o registro e descobriu o nome de Luís Polaro na enfermaria “C”, a penúltima e logo chegou lá. Um murmúrio de alguém falando em pleno sono chegou aos ouvidos do assassino. Pensou ter visto alguém, mas fixando o olhar notou que não havia ninguém ali além dele e dos enfermos deitados em seus leitos. Munido de uma pequena lanterna que poderia muito bem passar por uma caneta, iniciou o exame das tabuletas presas nos suportes metálicos nos leitos. Quando achou Luís Polaro viu que era ele o falador noturno e não pôde deixar de sorrir daquilo, embora lutasse tanto contra o riso que mais parecia uma careta. Entendeu logo que Polaro estava acordando e sem pensar muito tomou atitude, puxou o travesseiro de sob a cabeça do enfermo.

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- Meu Deus... Sou inocente! - resmungou Polaro em estado semiadormecido. Nesse momento, apesar de sentir um torpor no corpo e estar amarrado na camisa de força, Lucas tentou mover-se, sem conseguir isso abriu lentamente os olhos um segundo antes de sentir alguém retirar seu travesseiro. O falso enfermeiro levou um pequeno susto ao ver sua vítima abrir os olhos. Lucas viu o enfermeiro apertar a almofada em seu rosto impedindo que respirasse. Não entendeu por que o sujeito estava fazendo aquilo, mas percebeu que morreria se não agisse logo. Amarrado como estava, Lucas notou com pesar sua cabal impotência. Era duas horas da madrugada quando Vincent Tatter conseguiu chamar atenção do guarda acenando com a mão pela janelinha de vigia em sua porta. - O que há Vincent? - indagou o guarda aproximando-se. - Preciso sair um pouco, Jeb - disse ele ao policial que se deixava subornar por Vincent quando este precisava sair de seu alojamento. - O que você vai fazer? - Ora... o de sempre - disse ele colocando uma nota de dez dólares na abertura da janelinha. O guarda abriu a porta em seguida. - Escute Vincent, deixe os pratos limpos por lá dessa vez, na outra noite tive que arrumar sozinho a bagunça que você fez na cozinha. - Não se preocupe Jeb - Vincent deixou cair a cédula, o guarda Jeb curvou-se para apanhá-la e levou uma cotovelada na nuca. Vincent abaixou-se depressa pegando o molho de chaves e a pistola Hecler&Koch P7A-13. Lamentou muito o que havia feito mas Lucas não podia continuar vivo. Infelizmente as chaves do guarda não davam acesso à saída da Instituição que era cercada de

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cães e guardas durante a noite toda, por isso, mesmo que dessem, não poderia usá-las. O guarda não possuía a chave da lavanderia, mas Vincent conhecia outro método para entrar nela. Decidira fugir naquela noite mesmo, assim que matasse Lucas e antes não fizera isso porque não queria envolver ninguém, muito menos Jeb Whitman que confiava nele e também porque assim seria mais facilmente descoberto diminuindo sua vantagem de tempo em cima dos perseguidores. Minutos mais tarde, Vincent chegava à enfermaria usando as roupas do guarda Whitman que ficara amarrado e amordaçado dentro de sua cela. Sob suas axilas carregava o falso livro com o material que usaria na fuga. Aproximou-se de Lucas lamentando muito o que iria fazer. Deixou o livro no chão para ficar com as mãos livres e segurou o travesseiro de Polaro. - Sou inocente! - disse Lucas dormindo. Vincent quase caiu de tão grande que fora o susto de ouvir Lucas falar. - Foi Harry... ele me induziu... sou inocente, meu Deus! continuou Lucas. Vincent Tatter perdeu totalmente a coragem de matar aquele rapaz que até considerava seu amigo. Em vez disso cogitou a possibilidade de levar o doente consigo de qualquer forma. De repente a porta da enfermaria abriu-se e Vincent abaixou-se depressa escondendo-se embaixo da cama de Polaro. Distinguiu uma pequena luz que provinha de uma mini lanterna e retirou a faca de caça que havia dentro do falso livro. O estranho aproximou-se da cama de Lucas e Vincent ouviu o som de pano remexido e compreendeu que o sujeito estava apanhando o travesseiro do enfermo. Saiu silenciosamente de baixo da cama e deu a volta no leito ficando em seguida de pé atrás do homem.

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À pequena luminosidade da lua que penetrava pela janela Vincent observou o homem tentando asfixiar Lucas. - Ei, o que está fazendo? - perguntou Vincent baixinho. Assustado, o falso enfermeiro voltou-se para quem havia feito a pergunta e antes de poder ver quem era, sentiu uma lâmina fria penetrar em seu abdômen. Segurou o ferimento na vã tentativa de estancar o sangue e sem emitir um único gemido caiu de joelhos tombando para frente. O som do baque do corpo no chão foi ouvido. O falso enfermeiro estava morto. Vincent retirou o travesseiro de cima da cabeça de Lucas e este deu um suspiro profundo de alívio ao sentir o ar gelado de noite de inverno nova-iorquino inundar seus pulmões. - Você está bem? - perguntou Vincent. - Estou, agora. Graças a você. Vincent estremeceu um pouco lembrando que viera até ali para matar Lucas e acabara salvando a vida dele. - Mudança de planos, Lucas - disse ele cortando as amarras da camisa de força e libertando o companheiro - temos que fugir ainda esta noite. - Quem é o cara? - a curiosidade de Lucas surgiu em saber quem era o homem que tentara matá-lo. - Eu não sei. Cheguei aqui para levar você comigo na fuga e o encontrei tentando asfixiar você, daí tive que matá-lo. - Foi Harry quem o mandou! - observou Lucas. - O quê? - Nada, Vincent. Mais tarde eu esclareço a você. Agora me diga uma coisa, você tem idéia de como sairemos daqui? - É claro que sim. Venha, vamos embora - ele ajudou Polaro a se levantar e caminhar, pois os resquícios do efeito do sedativo eram ainda sensíveis pelo doente, deixando-o levemente tonto. Atravessaram cinco corredores sem encontrar ninguém. Lucas, a princípio apoiado nos ombros de Vincent, agora

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caminhava sem ajuda e nem mais cambaleava. Vincent procurava não cogitar a possibilidade de darem de cara com algum guarda ou enfermeiro esparrento, foi fácil matar alguém que tentava matar um amigo seu, aliás, não tão fácil, mas matar um inocente seria muito ruim. Por fim chegaram a um corredor sem saída e antes que Lucas perguntasse o que fariam, o companheiro apontou uma porta pela qual penetraram. - Onde estamos? - indagou Polaro. - Aqui é a sala onde a camareira faz a distribuição de roupas, lençóis de cama e toalhas para os doentes e para onde recolhe as roupas sujas. - Como você sabe? - Estava escrito na porta, Lucas! Preste mais atenção, somos fugitivos agora. - Como sairemos daqui? - A roupa limpa é trazida através do pequeno elevador manual para roupas, vamos achá-lo e desceremos por ele até a lavanderia. - Desceremos? - É claro. Estamos no quarto andar. - E se ele não aguentar nosso peso? - Desceremos um de cada vez... é um risco que temos de correr. Lucas confirmou com um gesto de cabeça e ambos empreenderam a busca ao elevador embutido em uma das paredes daquela sala. - Porcaria! - xingou Vincent. Polaro aproximou-se. Vincent havia achado o pequeno elevador cuja abertura era protegida por uma partícula metálica fechada com um minúsculo cadeado. Ele introduziu a faca de aço no espaço entre a clave e o corpo do cadeado e usando a coronha da pistola que roubara do guarda Whitman como martelo passou a

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desferir pequenos golpes. Com medo de usar muita força e tornar aquela operação ruidosa demais só conseguiu destruir o fecho metálico após diversas pancadas. Decidiram que seria Vincent quem desceria primeiro e este se meteu contorcidamente dentro daquele cubículo. O fundo de madeira não aguentando o peso cedeu, quase derrubando o fugitivo. - Acho que o elevador não suporta o nosso peso, Lucas disse ele sem demonstrar hesitação - vamos fazer uma corda com os lençóis e descer como alpinistas. Pouco tempo depois Vincent iniciava a descida. Era tão apertada a abertura que encostando-se na parede de trás mal podia apoiar-se na parede da frente. A saída, ao contrário da entrada, não possuía nenhuma porta de ferro e os dois companheiros de fuga viram-se dentro da lavanderia. Jeb Whitman conseguiu soltar-se. Correu até a janela da porta do alojamento de Vincent e gritou alto. O outro guarda, Ernest Watts, ouviu a voz do companheiro ao longe e imediatamente dirigiu-se para o local de onde ela vinha. Era um túnel largo, um homem poderia caminhar de pé dentro dele e ainda faltaria pouco mais de um metro para tocar na parte mais alta. Uma lama viscosa no chão exalava um odor de lodo e mofo. Vincent apanhou o pacote preso ao teto, entregou um saco plástico a Lucas e iniciaram a caminhada. Ambos calados, com dificuldade de respirar aquele ar viciado, caminharam ouvindo o ruído que seus pés faziam ao afundar e serem retirados da lama. À frente, cerca de dois ou três metros, Vincent com a lanterna em mãos observava com cuidado o túnel antes de prosseguir.

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Um som de água corrente chegou aos seus ouvidos e após quinze minutos chegaram a um lugar amplo aonde a água vindo de dois outros túneis desaguava. - É a galeria? - perguntou Lucas. - Acho que não - respondeu o outro abrindo e examinando o mapa à tênue luz de sua lanterna. - Não entendi? - Parece a galeria mas nós estamos aqui - disse ele apontando um local no mapa - e a galeria está no mínimo a uns oitenta metros adiante. - Como você sabe? - Calculei a nossa velocidade pelos anéis de junção dos tubos, há um anel a cada seis metros - Vincent balançou a cabeça que diabos de lugar é esse? - Deve ser uma construção nova de redes de esgoto aproveitando esse túnel existente - sugeriu Lucas. - Acho que você tem razão. - E acho que sei como confirmar. Lucas opinou que fossem até o outro lado e verificassem se o material usado era o mesmo do antigo túnel. O encontro dos quatro tubos era uma sala circular com uma plataforma de sessenta centímetros ao redor que unia um tubo ao outro. O buraco formado, de profundidade indefinida, apresentava-se como uma espécie de lago por onde alguns ratos nadavam em busca de um local firme. O odor seria quase insuportável não fosse a determinação dos homens em saírem dali. O material era diferente. O silêncio dos dois foi a prova da muda constatação de ambos de que uma obra sanitária posterior interferira ou pelo menos, poderia interferir em seus planos. - Se a empresa que construiu isso sabe da existência do antigo túnel então mais cedo ou mais tarde a polícia saberá concluiu Lucas.

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- Acho que devemos arriscar. - Arriscar o que? - Continuarmos na rota que estamos até ao Hudson respondeu Vincent. A testa enrugada e os olhos semicerrados deixavam transparecer toda a preocupação que norteava sua cabeça. O ruído de um rato caindo na água, afundando e logo depois retornando à superfície, chegou ao ouvido dos fugitivos. - Se continuarmos por essa rota em direção ao Hudson disse Lucas virando-se para ver o rato que agora nadava para uma borda - seremos os tolos mais desprezíveis do planeta pois fizemos uma fuga sensacional para cairmos em seguida nos braços abertos da polícia. - Acha que eles já sabem? - É claro que sim - Lucas com a costa da mão enxugou o suor que escorria da sua testa - a polícia de hoje tem um departamento só para informações que as fornece para os outros escritórios existentes. Nesse ínterim, já devem estar arrumando toda uma operação para nos apanhar. Vincent não chegou a sentir-se desapontado embora um vazio no estômago insistisse em dizer, através de uma náusea e frio na coluna vertebral, que seu sonho de fuga chegara ao fim. Encostou as costas à parede circular daquela galeria e baixou a cabeça. - Sinto muito, Lucas - sua voz era quase um sussurro que foi mais abafado ainda pelo som da água que saía dos enormes tubos e desaguavam em cascata no salão circular. - Não estou pensando em desistir - disse Lucas sem aparentemente dar ouvidos ao que o outro havia dito. - Como? - questionou Vincent alterando um pouco sua voz. - Ainda temos uma chance de escapar - Lucas não pareceu entusiasmado - vamos fugir por esse tubo abandonando nossa rota

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inicial. Isso aqui - disse ele referindo-se ao complexo de esgoto - é uma verdadeira sequência de caminhos que nos levarão a lugares diferentes dos que os policiais podem prever. Embora discreto, o sorriso de Vincent foi facilmente enxergado pelo companheiro à parca luz da lanterna. - E a possibilidade de nos perdermos - acrescentou Polaro - é bem melhor do que a de sermos apanhados ou o retorno. Vincent Tatter não disse nada. Simplesmente entrou no tubo e passou a caminhar. Lucas seguiu-o, era uma determinação bem mais forte que o movia do que aquela que o levara a perseguir Linda Stacy. No Bureau de Homicídios o telefone tocou e a ligação foi passada em seguida para o carro que o investigador Stain Gibbs ocupava naquela noite. - Alguém aqui disse que esse caso pertence a você! - disse a voz em meio a um leve ruído de estática no rádio- transmissor Luís Polaro acaba de fugir do sanatório junto com outro criminoso, Vincent Tatter. Os dois já deixaram o saldo de um morto no pavilhão hospitalar. - Quem era? - Um cara vestido de enfermeiro, segundo os policiais que estão no local o cara deve ter matado um enfermeiro e tomado o lugar dele, só não se sabe por quê. Após mais alguns detalhes irrelevantes, Stain Gibbs pôs-se a pensar enquanto se dirigia para o Departamento de Homicídios. Como Wilson e Duncan, Gibbs era investigador de primeira categoria e conquistara sua posição e seu belo distintivo dourado a um custo de muitas prisões e investigações bem sucedidas. Era um solteiro convicto sempre crendo que o casamento acabaria com sua carreira policial se antes ela não pusesse um fim no casamento.

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A dúvida que pairava sobre o paradeiro do seu amigo, Josh Duncan, acelerava seu fluxo de pensamento em virtude da realização de alguma tarefa que se relacionasse a ele. Através do rádio solicitou alguns favores de seus amigos do Departamento e ao chegar à sede de Bureau, havia uma planta do sistema de esgoto e outra do antigo túnel sob o sanatório. Uma pequena operação policial foi montada no intuito de capturar os fugitivos. Em todos os momentos policiais uniformizados e à paisana que participariam da busca revoltavam-se com a negligência por parte dos dirigentes do sanatório em conservarem o acesso ao túnel desguarnecido ou aberto. Gibbs posicionou homens na desembocadura do túnel antigo no Hudson e outros nas sessões mais próximas dos dois outros ramais que poderiam servir para a fuga. Era um plano simples, os policiais armados entrariam nos tubos e aguardariam a chegada dos fugitivos enquanto outros rumariam em rota de colisão e em direção a eles, cobrindo dessa forma os dutos em que eles pudessem se encontrar. Seria um esquema quase perfeito se algo não tivesse acontecido algum tempo antes com os dois fugitivos. Os pés atolados na água fétida pareciam adormecidos e de fato estavam. Ali, sob as ruas de Nova Iorque, o frio era maior e a água que corria gelada aumentava esta sensação no corpo dos fugitivos. - Lucas? - O que há? - Acho que cometemos uma estupidez. - Por quê? - Se os policiais têm meios de informação tão rápidos então nossas saídas já devem estar bloqueadas a essa hora. Polaro assentiu com a cabeça. - Alguma sugestão? - perguntou Lucas.

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- Não. Novo silêncio adejou sobre eles. - Pelo menos um de nós tem que conseguir! - O que você quer dizer com isso, Vincent? - Que devemos nos separar. - Não concordo - disse Lucas fazendo um sinal com as mãos.

- Aposto que se eu lhe expor o que tenho em mente você concordará comigo. - Será? - Deixe-me tentar. - Ok. - Temos três túneis pelos quais podemos sair daqui: este em que estamos, o outro semelhante a este e o que leva para o Hudson. Esse último é prisão certa, resta-nos os outros dois. Assim um de nós vai por esse e o outro segue por aquele apontou com o dedo indicador em direção ao retorno - quando a polícia pegar um de nós, dizemos que o outro quebrou a perna e está impossibilitado de andar. Então eles desmancham a guarda do túnel que um de nós estará e é só fugir. O que você acha? - Tem sentido! - limitou-se Lucas a dizer. - Sentido? - retrucou Tatter - é a única saída, um de nós precisa mostrar a esses imbecis que nós somos capazes de escapar daquela maldita espelunca. Embora relutante, Lucas curvou-se diante da atitude correta que Vincent propunha. Tiraram a sorte para ver quem voltaria e Lucas perdeu. Despediram-se desejando boa sorte mutuamente e Lucas partiu. Vincent permaneceu parado dando a Lucas dez minutos que foram previamente combinados. Após esse tempo ele passou a andar. A sorte é quem diria qual dos dois sairia dali.

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- Esses caras pensam que eu posso fazer milagres - bufava Gibbs revoltado com o que haviam cuidadosamente datilografado no papel em suas mãos - como é que eles querem que eu mantenha os repórteres afastados se estamos com tanta agitação que até uma velha cega saberia o que está acontecendo? - o investigador amassou com força o papel e jogou-o no bueiro aberto à sua frente. - O que vamos fazer, senhor? - indagou o jovem cabo da força policial. - Tente manter os repórteres longe, mas não se esforce muito, se um ou outro conseguir entrar na área escondido, finja que não viu, ok? - Ok. - Cabo? - Sim. - Depois esqueça o que eu lhe disse. - Certo. Gibbs iniciaria uma longa jornada mental analisando as intenções políticas do secretário do prefeito, que fora quem redigira o bilhete que amassara, mas foi logo interrompido por um policial que afirmava ter detectado um movimento no túnel em que se encontrava. O investigador apanhou o walkie-talkie da mão de um guarda e pediu detalhes, havia realmente alguém lá. - Ouvi um barulho na água e uma pequena luz que se apagou, devia ser de uma lanterna de foco pequeno - disse um dos três policiais de dentro do túnel. - Muito bem - soou a voz de Gibbs no aparelho intercepte-os. - E se eles estiverem armados e reagirem? - perguntou o rapaz. Gibbs sabia o que o policial queria dizer com essa pergunta, sua voz pareceu grave ao acrescentar: - Pegue-os, se possível, vivos!

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A comunicação foi interrompida. O guarda com o walkie-talkie não precisou transmitir a ordem do investigador Gibbs, limitou-se a acenar com a mão esquerda indicando que deviam prosseguir. Logo adiante o duto fazia uma curva de 45° à esquerda. Vincent aproximou-se dela nervoso, um calafrio percorreu seu corpo e desligando a sua lanterna prosseguiu com a mão apoiada na parede para poder guiar-se. Pensou ter ouvido um ruído e ficou parado por um instante para ouvir se ele se repetia. Minuto e meio se passou antes que ele continuasse a caminhada. Esgueirou-se pela curva e antes que pudesse dar mais um passo esbarrou com alguma coisa pontiaguda no túnel escuro. Uma luz brilhou. Três policiais armados estavam à sua frente sendo que um deles tinha sua arma encostada na barriga de Vincent. - Fim da linha, chapa - disse o guarda. - É... eu sei - assentiu Vincent. - Ele não parece louco - comentou outro policial. - E não sou - confirmou Vincent. Outro guarda avançara até a curva e varria o túnel com o foco de sua lanterna de longe alcance. - Não há mais ninguém aqui - disse ele. - Onde está o segundo fugitivo? - perguntou o policial pressionando levemente o cano de seu fuzil Walther 7mm. - Ficou pra trás. - Por quê? - Acidentou-se - Vincent dizia uma palavra de cada vez a fim de garantir mais tempo para Luís Polaro. - O que houve com ele? - insistiu o policial. - Caiu num buraco. - Morto?

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- Não. Perna quebrada. O guarda que conduzia o radiotransmissor relatou o que estava acontecendo a Gibbs que mandou que aguardassem os reforços. Pouco menos de dez minutos depois mais três guardas chegavam aonde os outros se encontravam. - Vamos continuar - disse um dos membros do grupo que chegou - vocês levam ele para fora. Gibbs viu que o homem que era retirado do túnel não era Luís Polaro e sua satisfação por ter cumprido cinquenta por cento da tarefa não era nada. Aproximou-se do fugitivo sem deixar de fungar de leve ao sentir o cheiro que o homem exalava. - Como foi que o outro quebrou a perna? - indagou. Ao ver-se interpelado pelo policial negro e bem vestido, Vincent disse como quem não se importava. - Escorregou num buraco. - Não pôde mais andar? - Não. As respostas de Vincent Tatter eram sem hesitação. Gibbs observou o prisioneiro ser colocado no camburão da polícia e ser levado em seguida para o local de onde não deveria ter saído. Um policial veio mostrar os objetos que foram encontrados junto com o fugitivo e perguntou: - Devemos avisar aos outros que estão nos túneis a oeste e do rio Hudson para voltarem? - Não - disse Gibbs retirando a mão direita de dentro do bolso da calça - deixe tudo como está. O policial não questionou a ordem de seu superior apesar de não entendê-la. O grupo que vinha pelo túnel oeste logo chegou à galeria onde encontraram os outros que vieram pela parte leste. Estes explicaram o que aconteceu e eles se espalharam à procura do prisioneiro.

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Após vinte minutos de busca sem resultado eles se comunicaram com Gibbs que mandou vasculharem tudo novamente. O resultado foi o mesmo. Uma nova ordem foi emitida pelo walkie-talkie, o grupo deveria percorrer os túneis até chegar ao fim, inclusive o par que iria pelo túnel que levava até ao sanatório. Em vão. O fugitivo desapareceu por completo, pois não havia sinal algum dele nos túneis percorridos. - Ele não está por aqui! - foi a mensagem que os dois grupos que possuíam transmissor repetiram. O par que chegou ao Hudson não achou nada e nem tampouco o que retornara pelo túnel leste. Gibbs, lá fora não conseguia entender. 27 O asfalto frio em contato com os pés de Luís Polaro o fazia estremecer. Não sabia onde se encontrava, mas procurava afastar-se cada vez mais do bueiro de onde tinha saído. O fedor que desprendia o incomodava e o impedia de apanhar um táxi. Acercou-se de um posto de gasolina fechado e após pular uma pequena mureta entrou na auto-lavanderia. Abriu a válvula de pressão e lavou-se. A água fria doía-lhe no corpo e apesar de seu banho ter sido o mais rápido possível, sua pele já mostrava-se roxa ao contato com o frio líquido. Vestiu as roupas que havia no saco, uma calça jeans com forro de lã, um suéter, uma par de botas adidas e um sobretudo, acrescentou a isso a pistola Mauser HSC e um pequeno pacote de notas de dez dólares. Passou a mão nos cabelos tentando fazê-los parecer mais naturais e voltou a caminhar.

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Avistou um táxi aproximou-se e sinalizou. Este, porém não parou, havia uma loira platinada com cara de prostituta sentada ao lado do motorista que explicava a sua pressa. Outro táxi surgiu e parou. - Brooklin - disse ele ao motorista. - Em que parte? - indagou este arrancando. - O que você quer dizer com isso? - O Brooklin é grande, amigo. - Onde estamos? - Via Expressa West Side - disse o motorista estranhando. - Pegue a ponte e deixe-me em algum lugar próximo ao hospital St. Catherine. - Tudo bem. Era uma viagem longa e Lucas perdeu-se em pensamentos que trouxessem alguma luz aos seus problemas. Achou que tivera sorte em escapar dos policiais no túnel, mas lembrou-se que achara ter muita felicidade quando, sob influência, matara um policial e tentara matar Linda Stacy. Estava só, ninguém para ajudá-lo, a essa hora Vincent Tatter deveria estar sob a custódia da polícia. Congratulou-se pela sua fuga e uma profunda determinação surgiu em sua mente, pois se conseguira escapar de um cerco policial tão fechado, certamente alcançaria seu objetivo. Sua mente recordou sua fuga... Lucas ouviu ruídos vindo do túnel leste, de onde havia deixado Vincent. Compreendeu instintivamente que todas as saídas estavam bloqueadas pelo cerco policial encurralando-o ali na galeria de ligação. Estava tão nervoso que em certos momentos pensou ouvir as batidas do coração mais audíveis do que os ruídos do despejo da água. Racionalmente, a despeito de sua agitação interior, analisou suas possibilidades de fuga e ao crer que as probabilidades tendiam invariavelmente para zero, cogitou uma chance quase desesperada.

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O túnel fazia uma pequena prolongação de cerca de sessenta centímetros sobre a laje ao redor do fosso, isso, no entanto, não oferecia grande perspectiva de esconderijo a não ser que optasse por um mergulho na água fétida colocando-se atrás da pequena cascata que era despejada. Foi o que ele fez. Pouco tempo depois, uma quantidade que Polaro não conseguia determinar de policiais irrompeu na galeria. Modulando pelo walkie-talkie em busca de ordens os homens tentavam obter informações que os levassem à captura do fugitivo. Uma voz estranha em meio a estática do aparelho de transmissão disse a eles o que fazer, darem uma busca na galeria. Várias vezes o foco gigante das lanternas dos policiais incidiu diretamente na cortina de água que o protegia, aumentando de forma considerável o frio e tensão que ele sentia. Lucas chegou a sentir um formigamento nos membros inferiores, mergulhados na água, mas resoluto, manteve-se firme esperando uma chance. E ela surgiu. Uma nova ordem foi dada e os homens separaram-se em duplas embrenhando-se no túnel adentro. Através de uma pequena fresta na água, Lucas observou o grupo iluminado pela luz de suas próprias lanternas escolhendo um par que não possuísse transmissor. Achou que o que tomou o caminho do Hudson não era bom, preferindo àquele que voltara pelo túnel onde deixara Vincent. Apoiou-se nas bordas pondo-se a seguir os dois policiais que caminhavam seis metros à sua frente. Era uma idéia simples, seguiria os homens até eles saírem do túnel, então passaria por eles até a próxima saída que encontrasse. Não era totalmente seguro, mas era melhor que nada. Silenciosamente Lucas os acompanhou. O que mais temia era fazer um ruído que levasse os policiais a direcionarem o foco

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de sua lanterna para trás ou que fizessem isso por intuição e fatalmente o pegassem. De longe Polaro viu os policiais subirem por uma escada descida ao túnel por uma abertura no topo e aproximou-se. Quando a escada começou a ser içada passou por ela e prosseguiu sua rota pelo túnel. Transpôs por várias aberturas que sendo muito altas eram inacessíveis. Momentos depois encontrou uma que possuía escada de marinheiro. Desatarraxou a tampa, vendo que estava em uma auto-estrada, verificou se não transitava veículos naquele instante e saiu fechando o buraco atrás de si. O táxi amarelo estacionou no acostamento de uma via de mão única ao descer a ponte do Brooklin. Lucas entregou algumas notas para pagar a corrida e saiu sem esperar o troco. Andou diversos quarteirões dobrando mais tarde na esquina de uma rua conhecida. Dentro de mais algumas horas o sol estaria com todo seu fulgor, mas não o bastante para derreter a neve que se amontoava nas calçadas. Polaro não deu muita atenção ao portão metálico que semanas atrás abrira apressado em fuga. Bateu duas vezes com força na porta sem pensar que era estranho alguém dar pancadas à porta de uma moça às quatro horas da madrugada. Tornou a bater. Instantes depois a voz sonolenta de Linda Stacy indagou quem estava lá fora. - Josh! - arriscou Polaro. A porta foi aberta tão rápido quanto o sorriso de Linda se desfazendo ao ver quem realmente era. Lucas entrou enquanto a porta se fechava atrás dele e Linda Stacy se afastava. - Não vou machucar você - disse ele - preciso explicar umas coisas.

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- Afaste-se de mim, Polaro - disse ela emprestando um tom de ameaça à sua voz. Polaro abriu o sobretudo, apanhou a pistola Mauser HSC pelo cano e esticou o braço para Linda. - Segure a arma - ordenou ele. Insegura ela apanhou a arma pela coronha. - Cuidado - advertiu - ela está carregada. - Por que está fazendo isso? - Não sou o Assassino da Flor. - O quê? Você tentou me estuprar e matar duas vezes e diz que não é o estuprador? Como você conseguiu fugir do sanatório? - Talvez eu tenha feito realmente isso, mas não voluntariamente. Linda estava agora de pé atrás do sofá com a arma presa seguramente entre as duas mãos, o dedo indicador pressionando levemente o gatilho. Havia pensado tantas vezes no estuprador... uma dúvida pairava sobre sua identidade, não que realmente tivesse suspeita sobre ele ser Luís Polaro, mas qualquer desconfiança, por menor que seja, se for alimentada, transforma-se numa grande incerteza. A moça aproximou-se do telefone. - Não faça isso - suplicou Lucas temendo que ela fosse chamar a polícia - por favor, dê-me uma chance, você é a única pessoa que pode me ajudar. - Não me venha com drama barato. - Não é drama, eu sou inocente. Linda balançou a cabeça. - De outra forma - continuou ele mostrando-se aflito - eu não teria entregado a arma a você deixando em suas mãos a minha vida. - Ela pode estar descarregada - disse ela demonstrando que não conhecia armas. - Não está, verifique! Ela fingiu fazer isso.

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- Viu só - disse Lucas confiante. Linda permaneceu muda. - Fui submetido a uma hipnose, meu médico me induziu a matar aquelas moças, eu não sei como, mas pretendo descobrir. - Já vi isso num filme. - Só que agora é verdade, por favor Srta. Stacy, ajude-me. - Como? - Comece acreditando em mim. - Não posso. - Tente. - É difícil... eu vi você tentando me matar duas vezes. Lucas sentou no chão apoiando a costa na parede e baixou a cabeça. - Você sabe algo sobre o paradeiro de Josh? - perguntou ela após uma pausa de quase dois minutos. - Não. Mas pode ser que Harry o tenha pego também. - O que você está dizendo? - Harry Hardrige, meu médico, pode ter desconfiado que o policial Duncan tenha descoberto algo sobre o que ele fez... mas isso é muito difícil. Linda deu a volta ao redor do sofá e sentou com o telefone à sua direita. - Você lembra do que fez àquelas moças? - Como num sonho, ou melhor, um pesadelo. - Para você ter praticado tudo assim é necessário que ele tenha executado uma lavagem cerebral em você. Ele concordou com a cabeça. Era uma situação difícil, como acreditar em alguém que tentara lhe matar... entretanto se Polaro realmente estivesse certo poderia ser o elo entre ela e Duncan. Polaro por sua vez aguardava entre ansioso e preocupado a decisão de Linda Stacy pois colocara-se ingenuamente nas mãos dela, se ao menos tivesse cogitado a possibilidade dela não

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acreditar nele... o que fazer no entanto? Procurar a polícia e contar sobre o médico seria o mesmo que pedir para o trancarem na solitária mais fedorenta do sanatório. - Polaro? - chamou Linda interrompendo o curso dos pensamentos de Lucas. - Sim? - Você se lembra da vez que me atacou lá no beco? - Não. - Por quê? - Eu não consigo me lembrar das mortes das moças, não entendo nada sobre hipnose, mas creio que Harry colocou algum bloqueio em minha mente. Linda passou a mão nos cabelos desimpedindo sua visão. - Alguma coisa me diz que devo crer em você. Acho que é intuição, acontece que isso é muito difícil, você deve compreender. - Eu compreendo Srta. Stacy! - Diga mais alguma coisa, qualquer dado que possa fazer você mudar a sua imagem e que viabilize algum crédito de minha parte. - Eu não sei o que dizer! Nem eu sei direito sobre o que houve comigo ou os motivos que Harry teve para obrar isso, apenas sei que algo que eu vi naquele filme me fez lembrar de Harry comigo numa sala escura onde havia um televisor e imagens... imagens iguais as que vi no filme que Vincent, um amigo meu lá do sanatório, me mostrou. - Que filme? - Se eu lhe disser você terá mais certeza ainda que eu sou doido. - Deixe que eu decida sobre o que ter certeza - disse ela parecendo um policial em um interrogatório. Lucas fitou aquela mulher denotando em seu olhar uma mistura de admiração e receio. Era incrível a determinação e coragem de que ela era munida. Lembrava com nitidez sua

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tentativa de matá-la e a forma como enfrentou cada momento reagindo a tudo como se fosse mais forte do que ele e do que qualquer homem que tentasse usá-la. - Filme pornô. - O quê? - ela estava admirada daquilo. - Isso mesmo. Harry usava filmes pornôs para induzir-me a cometer os crimes... espere! - disse Lucas como se um pensamento importante passasse por sua mente naquele instante e não quisesse deixar escapar - é isso! - exclamou triunfante - ele usava os filmes para imprimir em minha mente as mulheres que seriam as minhas próximas vítimas, elas eram atrizes de filmes pornôs. Linda desviou rapidamente o olhar para voltá-lo em seguida penetrante para Lucas. - Não me lembro delas - continuou Lucas - mas sei que era isso. - Então você assistiu a um filme em que eu... participava, telefonou para confirmar meu endereço e veio me atacar. - Não me recordo de ter ligado, nem de ter atacado você antes da última vez. A única certeza que tenho é de que não matei Allie, cheguei a pensar que tinha sido eu, agora estou convicto de que foi mais um engodo criado por Harry. - Allie? - Sim. Minha ex-namorada Allisson Budaker, foi assassinada em 1980 por um estuprador cujos métodos Harry me fez copiar para que eu fosse iludido mais ainda de que era o Estuprador de Manhattan. - Por que seu médico fez isso? - Eu realmente não tenho a menor desconfiança, mas pretendo descobrir... se você me auxiliar. - E como fará isso? - Primeiro tenho que chegar à minha casa, Harry mora nela, quero fazer com que ele confesse tudo que fez a mim tendo você como testemunha.

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- Você acha que pode chegar lá e pedir que ele conte tudo e comigo ao seu lado? Se ele foi frio o bastante para fazer o que você mencionou, ele não admitirá sua culpa. A não ser que o obrigue apontando uma arma para ele, o que torna a confissão sem validade diante de um tribunal. - De que outra forma então? - indagou Lucas, fechando-se dentro do sobretudo. - Não sei - respondeu ela - se levássemos um policial conosco... - Você tá brincando. Tudo que eu fizer tem que ser sem a polícia e dentro das próximas horas antes que a notícia da fuga se espalhe e Harry previna-se. - Temos que arranjar um jeito - Linda falou sem aperceberse que com essas palavras demonstrara claramente que passara a crer em Luís Polaro. - Quer dizer que você confia em mim? - Sim, apesar de saber muito bem que posso vir a arrepender-me por isso, embora creia que isso também pode me levar até Josh. Como soube que Josh e eu... Como ficou sabendo que abriria a porta se fosse Josh Duncan quem estava lá? - Os jornais disseram que você e ele são namorados. Ela permaneceu pensativa por alguns momentos erguendose em seguida e dizendo: - Levante daí - disse ela apontando o sofá - é melhor sentar ali. Lucas obedeceu colocando-se no lugar que indicara. - O que você vai fazer? - perguntou ele ao vê-la abrir a porta do quarto. - Vou trocar de roupa, não quer que eu saia com você vestida assim? - ela mostrou o roupão que usava. A despeito de Linda querer colaborar com Polaro, sentia um leve receio, mas resignada avançou até o guarda-roupa e escolheu um par de tênis, calça comprida, pulôver e um sobretudo

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tipo casaco impermeável para usar por cima. Não esqueceu a Mauser HSC que Polaro dera a ela. Saiu do quarto totalmente transformada. Foi ao telefone, o que causou um desconforto em Lucas que tranquilizou-se ao saber a natureza da ligação, ela pediu um táxi. - Há um par de óculos escuros na gaveta sob a mesa do centro - disse ela indicando o lugar - é melhor que o use, pois o motorista do táxi pode reconhecer você. - Está bem. Só que óculos escuros tão cedo, o sol ainda nem nasceu... - Esqueça. Os punks usam o tempo todo, dia e noite e ninguém fala nada, portanto, coloque-o! Lucas pôs os óculos afastando-o um pouco dos olhos. - Agora vamos fazer assim - acrescentou ela - você anda na frente, dois ou três metros e senta no banco da frente do táxi, nunca matei ninguém mas não hesitarei em fazê-lo se você tentar algo de errado. - Não precisa se preocupar. - Bem, vamos indo, o veículo vai esperar lá no portão. Um arrepio de excitação percorreu todo o corpo de Lucas ao se aproximar de sua casa depois de tão pouco tempo, mas que parecia ter sido há um século. Atrás dele seguia Linda com a mão firme na coronha da arma dentro do bolso do impermeável cinzento. Ambos ficaram em silêncio durante todo o percurso que o carro fizera do Brooklin até ali, agora a ambos restava esperar o que os minutos futuros lhes reservavam. Adiante, sob a proteção de uma árvore, Lucas parou e observou a casa grande de dois andares que se erguia. - Era aí que eu morava - murmurou ele sem obter nenhum comentário da moça. Caminhando alguns metros para a esquerda Lucas notou dois carros no estacionamento coberto na frente da casa, um deles era o seu Monza Classic e o outro era o furgão Cherokee

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pertencente ao Dr. Harry Hardrige. Chegando-se a uma janela na lateral da mansão abaixou-se e começou a cavar a neve usando as mãos como pá. - O que está fazendo? - perguntou Linda. - Aqui embaixo há uma pequena janela que dá no porão, é por ela que vamos entrar. - Não existe outra entrada? - Há, só devem estar todas devidamente trancadas e esta aqui é uma que eu usava quando criança brincando de escondeesconde com o filho de um dos empregados. Ignorando o frio Polaro continuou cavando, instantes depois a abertura rés ao chão apareceu. Habilmente ele tateou o vidro deslocando-o e abrindo a passagem que permitia a entrada de um só de cada vez. Lucas pôs os pés para dentro empurrando-se a seguir até passar por completo. Linda fez o mesmo, não sem antes pedir que ele se afastasse o bastante para dar a ela uma margem para reação em vista de um ataque dele, embora ela já considerasse remota a possibilidade, mas não custava nada manter-se prevenida. - Escute, Srta. Linda - murmurou ele - não podemos acender a luz, isso denunciaria nossa presença, então ou esperamos amanhecer ou você me segue com cuidado para não fazer nenhum ruído. - Não pense você em aconselhar-me - disse ela mostrandose autossuficiente - eu sei cuidar de mim mesma muito bem. Vá em frente. Cuidadosos, subiram a escada, passaram pela porta entrando na cozinha. - Harry acorda cedo - confidenciou Lucas - são seis e trinta mais ou menos.

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Harry Hardrige estava sentado em sua poltrona de costas para a cozinha, de tal forma que do ângulo onde Luís Polaro e Linda Stacy se encontravam não o viam bem. - Harry? - chamou Lucas. Levantando-se instantaneamente ao reconhecer aquela voz, o médico voltou-se e encarou calmo quem o chamara, se estava surpreso seria praticamente impossível notar em seu rosto. - Sabia que você viria, Lucas - disse ele pondo as mãos nos bolsos da calça social de fino talhe que usava - só não previ que viria acompanhado, principalmente de uma quase vítima sua. - Por que fez isso comigo? - Eu não fiz nada com você e sim sua mãe. - O que minha mãe tem a ver com essa história? - Botou você no mundo - respondeu Hardrige cínico. - Às vezes penso que tudo não passa de um sonho, um maldito sonho, imaginei que fosse meu melhor amigo e me deparo com essa situação totalmente inimaginável. Hardrige virou a poltrona e sentou-se de frente para o par fitando-os. - Sente-se Lucas e você também Srta. Stacy. Tenho algo para dizer e quero que estejam bem à vontade. Como já deve estar sabendo e naturalmente deve ter contado a ela, eu hipnotizei você transformando sua vontade na minha vontade e o induzi a agir como eu queria que agisse. - Você é um monstro! - exclamou Linda. Ela ainda estava de pé, Lucas também apesar de se encontrar diante de um sofá. - Agora já chega - disse Hardrige abanando as mãos - creio que a Srta. está com muita saudade de seu namoradinho... - Josh, aqui? Onde está ele? - Não, não está aqui. Porém como eu sabia que Lucas viria, providenciei para que ele fosse levado para onde está Duncan, e agora que você está aqui, irá junto, não é mesmo Mark?

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Lucas e Linda viraram-se simultaneamente deparando-se com a figura alta e de ombros largos de Mark Dykstra. Portando um rifle de caça bem polido. O estalo da arma sendo engatilhada assustou um pouco os dois observadores. - Deixem as armas caírem no chão, sem nenhuma tentativa em falso, pois terei que pôr um fim às suas vidas caso revidem. Linda soltou a pistola Mauser HSC. - Não estou armado - disse Lucas. Hardrige aproximou-se por trás e revistou os dois prisioneiros. - Pode levá-los, Mark. Espere por mim para a cerimônia final. Impelidos pela arma de Dykstra os dois saíram da casa e entraram na parte traseira do furgão aonde foram trancados. Ouviram o barulho do motor entrando em funcionamento e a inércia jogando-os para o fundo do carro. 28 Duncan voltava a si. O frio reanimou-o repentinamente trazendo-lhe imagens deformadas que pouco a pouco foram se delineando o conjunto de estantes onde podia localizar quantidades exageradas de comida enlatada. Conscientizou-se de sua nudez e procurou algo ao redor que a cobrisse. Alguém havia colocado suas roupas na parte de dentro da dispensa ao lado da porta, pelo menos parte dela estava lá, faltava, é claro, sua arma, que era considerada como uma peça indispensável de sua vestimenta. A roupa, de início, trouxe mais frio ainda, pois estava gelada, alguns minutos depois, porém, estava aquecida devido ao calor de seu corpo.

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Refeito, apesar da forte dor no estômago que insistia em pedir alimento, ele procurou alguma lata que oferecesse condições de ser aberta, as únicas existentes eram as de atum que misericordiosamente possuíam chaves de enrolar. Foram os peixes em conserva mais gostosos que ele já havia comido em toda sua vida, pelo menos foi o que pensou naquele momento e após cinco delas terem sido literalmente devoradas, Duncan pôde raciocinar com mais clareza em escapar dali. Nesse instante lembrou-se da seringa, procurou-a e vendo-a totalmente vazia ficou satisfeito consigo pelo incrível desempenho. Mais tarde ele recordaria de uma imagem confusa de Harry Hardrige aplicando-lhe o restante do antídoto e ficaria sem compreender o porquê daquela atitude. A dispensa não oferecia muitas esperanças para alguém conseguir escapar de dentro dela, não por se destinar a prender alguém e sim porque os enlatados já estavam suficientemente mortos para qualquer tentativa de fuga, além do que teriam que primeiro escapar de suas latas antes de sair da dispensa. Um sorriso meio apagado surgiu nos lábios de Duncan quando este pensamento norteou sua mente. Não havia mesmo outra coisa a fazer ali senão refletir e isso o fez chegar à conclusão de que era o policial mais tolo de todo o Bureau de Homicídios de Nova Iorque, ainda mais por ter aceito o convite para entrar no FBI, pois os agentes que nele eram introduzidos passavam por um rigoroso aprendizado que culmina num concurso onde só os melhores ficam e do jeito que tinha cometido tantas burradas desde o início da investigação do caso do Assassino da Flor, seria um dos últimos colocados sendo posto no olho da rua. Se saísse vivo dessa confusão tomaria uma resolução acertada em sua vida, voltaria para o corpo de investigadores do Bureau de Homicídios e casaria com Linda. Um vazio no peito sufocou-lhe ao imaginar o estado de dúvida em que sua futura esposa deveria estar. Influenciado por essa razão, vasculhou os quatro cantos do mal iluminado ambiente. As paredes feitas de alvenaria e o chão

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feito de madeira corrida que um dia fora laqueada e os indícios disso estavam nos lugares menos utilizados para andar. Sua única conformação por não poder partir dali era o fato de nunca ter estado numa situação parecida, vira que seu treinamento policial fora fraco, pois os policiais livravam-se de condições mais difíceis nos filmes. Neles os mocinhos sempre encontravam algo útil que usavam para criar as soluções mais mirabolantes. Pura fantasia, bem diferente da realidade com a qual se confrontava. Aproximou-se da porta tateando o pequeno espaço entre ela e o caixilho à procura de uma fresta por onde pudesse introduzir algo que a arrombasse, não que pretendesse fazer realmente isso, era, no entanto, um começo e precisava iniciar por algum lugar. Só que a porta era metálica. Tudo bem - pensou Duncan - não quero tirar a porta do lugar, só forçar a fechadura até destrancá-la. O ferimento causado por Luís Polaro na noite de sua prisão pareceu incomodar um pouco o policial, era apenas a sensação traumatizante que fica na mente de uma pessoa que se fere mesmo após sua cura. Coçou o ombro e a seguir um pequeno som de vozes que aumentava o fez afastar da porta. Poderia se colocar um algum lugar e pegar os dois canalhas desprevenidos, porém, além de presumivelmente Dykstra estar muito bem armado, a maldita porta ainda abria para fora. Um estalo, um movimento na maçaneta de ferro batido e o abrir da porta. A reação perfeitamente natural de Linda Stacy foi correr e abraçar-se ao homem que amava sem dar qualquer importância à sua aparência em evidente desgaste devido aos maus tratos a que fora submetido. A porta fechou-se novamente antes que o beijo do casal terminasse e não foi demorado, Dykstra é que a trancou assim que Polaro entrou por ela.

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O estonteado policial não podia esconder sua surpresa dupla de ver aquelas pessoas. O Assassino da Flor e sua última vítima. - Ele foi induzido a cometer os crimes - disse ela ao ver a expressão de seu namorado. - Só o último - replicou Duncan. Polaro manteve-se calado sem saber o que dizer ao policial que quase matara e cujo colega tirara a vida naquela fatídica noite. - Como assim? - perguntou Linda. - Depois falamos nisso - atalhou ele - agora quero saber como foi que você veio parar em Atlantic City e ainda mais com ele. - Atlantic City? - duvidou ela. - Sim - confirmou o policial. - Acho que você deve estar enganado - intrometeu-se Polaro - nem devemos ter saído dos limites de Nova Iorque. - Tem certeza? - Absoluta, de minha casa até aqui não levamos mais que duas horas de viagem. - Pelo menos podemos ter saído de Nova Iorque - sugeriu Linda. - Então eles fizeram isso para me desnortear... - pensou Duncan em voz alta. - Isso o quê? - foi Linda quem perguntou. - Mentiram dizendo que eu estava nas proximidades de Atlantic City. - Quer dizer que você não sabia onde estava? - Não, Linda. Bem, finalmente quero saber o que houve. Um curto silêncio e um turbilhão de palavras relataram a Josh Duncan os acontecimentos das últimas horas. Por sua vez Polaro narrou sua fuga da prisão e os motivos que o levaram a procurar a moça para ajudá-lo.

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O trio, sentados no chão de sua prisão, olhando um para o outro, remoíam aqueles fatos que pareciam ter saído de um filme. Polaro levantou-se, caminhou triste até à porta, virou e indagou sem dirigir-se a algum dos dois em especial. - Por que alguém faria isso com outra pessoa, ainda mais alguém que parecia ser um amigo a toda prova? Duncan suspirou e disse: - Psicose. - Harry demonstra ser tão normal... - É uma forma avançada de psicose - Duncan se dirigia a Polaro como se falasse a uma vítima - eu não entendo bem do assunto, não sou psicólogo, mas cheguei a essa conclusão da forma mais dura, acredite-me. - Acho que você nos deve algumas explicações - disse Linda querendo incluir Polaro que voltara a sentar-se, dessa vez de costas na porta. - É uma história bem longa... - anunciou ele. - Parece que temos tempo de sobra - disse Polaro insinuando a situação de cárcere em que se encontravam. Duncan aconchegou-se nos braços de sua namorada, sentia-se feliz pela companhia dela e triste por imaginar que algo de ruim viesse a acontecer. Escolheu meia dúzia de palavras para introduzir o que diria e minimizadamente, sem entusiasmo contou sua singela aventura desde a leitura do diário de Ron Wilson até sua luta contra o veneno que lhe foi injetado, é claro que preferiu não falar da história de Janet e Ralph Polaro temendo acrescentar mais angústia ao sofrimento que Luís experimentava, sabia que mais cedo ou mais tarde o rapaz tomaria conhecimento de tudo, mas preferia que não fosse por ele. Apesar da dor que afligia Polaro, sua razão insistia em formular perguntas para aliviar as dúvidas que as atitudes de Hardrige lhe proporcionavam, alívio, no entanto, era o que menos sentia, pois um crescente vazio corroía sua mente.

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- Não consigo manter um raciocínio coerente para justificar o que Harry fez comigo. - Nem tente, creio que só os psicólogos conseguem fundamentar os atos dos psicopatas - comentou Linda - e talvez nem eles! - É difícil acreditar que Harry, um psicólogo e médico, seja um doente mental. - Mas é, Polaro - afirmou Duncan. - Você disse alguma coisa sobre eu ter sido incutido a cometer só o último crime, o que foi mesmo? - Um comentário apenas - dissuadiu o policial. Lucas empertigou-se fazendo uma carreta como se ao esticar a coluna sentisse dor. - Você deve ter descoberto mais e deixou oculto - insinuou Lucas - acho que deve contar o que é, fui preso e condenado por crimes que outra mente articulou, sou como um marionete, quer dizer, já não sou mais, entretanto nas mãos de Harry fui usado, mais do que qualquer outra pessoa, tenho o direito de saber o que você sabe. Matei quatro mulheres e um policial, quase morri, isso sem entrar nas minúcias do drama interior que tenho suportado, uma mistura de remorso e frustração, acho que são suficientes prérequisitos que me habilitam a saber de toda a verdade. Duncan estava bastante anestesiado com a morte de seu amigo investigador e a do Dr. Robert Sands para comover-se com a retórica de Polaro, percebeu a sinceridade com que as palavras do rapaz foram pronunciadas, porém o que o levou a partilhar o que sabia com ele foi a simples constatação de que Luís Polaro era indubitavelmente, a maior vítima de todo aquele episódio. - Não creio que você tenha matado aquelas moças, Polaro! Sem palavras para questionar aquela afirmação em busca de idéia plausíveis, Polaro limitou-se a observar o detetive com os olhos brilhantes de curiosidade. - Deixe de mistério, Josh.

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- Não sei definir com precisão o método usado por Hardrige para impelir você a agir como agiu, note bem, ele conseguiu que você fizesse apenas algumas coisas, pois seja como for o que ele fez não foi perfeito ao ponto de levar você a cometer todos os assassinatos. - Não entendi. - Hardrige precisava convencer de que você era o Estuprador de Manhattan, para tal apenas um trabalho de hipnotismo não seria o bastante, pois sua mente resistiria. Ele teve então a brilhante idéia que só uma mente perturbada seria capaz de ter, realizou uma potente lavagem cerebral que não chegou à perfeição porque ele temia deixá-lo demente. Eu, Linda e principalmente você sabemos que sua mente chegou perto, bem perto mesmo, de um colapso. “Embora todo seu conhecimento empregado nessa empreita, fora a dedicação a que Hardrige forçou-se, seu trabalho ficou bem longe de atingir a precisão que necessitava para por seus intentos em prática. É claro que isso não significou nenhum obstáculo incontornável para a astuciosa inteligência de seu médico”. “Ele partiu para uma nova tentativa, que dessa vez apresentava uma margem de êxito de quase cem por cento. Dirigiu sua linha de hipnose para você crer que havia alguma ligação psíquica de você com o assassino. Ora, nessa época ainda não havia nenhum estuprador e a mensagem que Hardrige fixou em seu cérebro deveria permanecer guardada sob uma forte tranca cujo poder de removê-la somente ele teria, infelizmente não sei do que se trata”. - Mas eu sei - interrompeu Lucas - embora eu não me lembrasse disso até o dia em que o bloqueio hipnótico foi quebrado, antes de sentir as náuseas, enjoos e tonturas que precediam a falsa visão, havia um telefonema bem estranho em

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que uma voz rouca e grave pronunciava uma palavra esquisita e da qual nunca ouvi falar antes, acho que era indígena. - Que palavra era essa? - indagou Linda afastando uma mecha de cabelo que caía em seus olhos com uma das mãos, a outra massageava o ombro de Duncan. - Drah - arriscou Duncan. - Como você sabe, Duncan? - Dedução baseada nos fatos a que tive acesso. - Sherlock Holmes! - brincou Linda. - Longe disso - comentou Duncan - para descobrir isso tive que dar de cara com pistas que sempre estiveram na minha frente e eu não percebia. - Não entendi... - Meu colega... ex-colega, Ron Wilson, ao chegar em sua casa no dia em que tínhamos uma entrevista com Hardrige, quase de imediato reconheceu a estatueta dos Filhos da Luz... - Filhos da Luz? - Linda estranhou o termo usado por seu namorado. Até àquele momento, Josh Duncan contornara toda e qualquer alusão ao passado dos pais de Polaro, ocultando sua verdadeira intenção de viajar para Long Beach com o objetivo de entrevistar o Dr. Sands, disfarçando sua visita ao teólogo sob a carga de uma armadilha preparada por Hardrige para apanhá-lo. Ingenuamente aceitaram essa versão, agora, porém, a velha dificuldade de Josh em mentir voltava à tona. Os olhares desconfiados sobre ele o impeliam a dizer, sem demora tudo que sabia, pois já havia ficado calado tempo demais. - Muito bem - disse ele por fim suspirando profundamente - vou dizer o que sei. Antes quero terminar o que estava dizendo sobre o domínio de Hardrige sobre você, Polaro, ok? Ele assentiu com um movimento de cabeça, não havia mais pressa afinal, eles não podiam sair dali e tinham que esperar que Harry aparecesse.

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Josh retomou seu ar eloquente e prosseguiu, sem o embaraço que a mentira o submetia. - Hardrige, após o telefonema que dava para você ter as falsas visões, que eram simplesmente as imagens dos filmes pornôs modificadas por sugestões hipnóticas, colocava em ação outro elemento, o Estuprador de Manhattan ou o Assassino da Flor como eu o batizei e que não era você. Esse outro homem, especialmente instruído por Hardrige, estuprava e matava as moças que você via nos filmes, seguindo sempre o mesmo padrão do assassino de Alisson Budaker em 1980, deixando inclusive a flor de papel que era sua marca registrada. “Deparando com os crimes semelhantes ao que tirou a vida de sua namorada, iniciou uma reação traumatizante à qual Harry Hardrige teve acesso, pois você se submetia voluntariamente às hipnoses em busca de algum conforto”. “Aos poucos você encontrou objetos ou peças de roupa que pertenciam ao Estuprador em sua quitinete, fazendo pensar que era o assassino e levando a acreditar que suas visões eram lapsos de memória durante os quais matava as moças”. “Obviamente Hardrige mantinha-se à margem dos acontecimentos sabendo e manobrando tudo. Ah, antes que esqueça, ao você tomar conhecimento dos crimes através dos jornais, assimilava certos detalhes que incorporava ao conteúdo das visões, tornando-as mais convincentes e mais tarde, eventualmente, crendo serem os tais lapsos de memória.” “Assim, seu médico opôs-se a qualquer possibilidade de que você fosse o Assassino da Flor, assegurando sua idoneidade por trás de uma falsa ética profissional.” “Você, Polaro, fraco como estava mentalmente, transformou-se num assassino em potencial que atacou Linda temendo que ela o reconhecesse, o que jamais teria feito, primeiro devido à escuridão do beco em que foi atacada e segundo porque não foi você quem investiu contra ela.”

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“Demorei a chegar a essa conclusão e as provas que confirmam a minha... vamos chamar de teoria, não existem por ela ser baseada em conjecturas que podem ser ratificadas por Hardrige.” - Não sei se concordo - disse Lucas - é muito bom imaginar que não matei aquelas moças, apesar de ter matado o policial no beco, pelo menos é uma perspectiva melhor. - Não precisamos do Hardrige para tirarmos a teoria de Josh a limpo - disse a moça em viva excitação. Os olhares dos homens voltaram-se para ela, Duncan teve que afastar-se um pouco para poder observar o rosto dela. - Durante o primeiro ataque do Assassino da Flor eu estava usando palitos japoneses de prender o cabelo, cheguei a dizer isso em meu depoimento, então, desesperada, tirei-o do cabelo e o arremeti contra ele. - Mas você disse que não tinha certeza de ter acertado retrucou Duncan. - Na época eu estava muito nervosa e uma confusão completa sobre a ordem e a certeza reinava na minha cabeça. Dias atrás tive um sonho que organizou minhas lembranças e cheguei a uma conclusão acertada de que realmente o feri. - E daí? - questionou Lucas. - Ora, Polaro - explicou o detetive - é só verificarmos se você possui alguma cicatriz no local aonde Linda feriu o assassino. - Acertei-o na perna direita, aliás, na coxa da perna - disse ela. - Não tenho nenhuma cicatriz na coxa. - Polaro - Duncan estava ansioso - mostre-nos a perna, temos que confirmar isso. - Acreditem em mim... - Por favor, Polaro! - insistiu Josh.

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Relutante, não por vergonha, mas por medo de encontrar a marca, afinal de contas, sua noção sobre a realidade era uma sensação tímida e pouco concreta. Não obstante, abriu o sobretudo e baixou a calça. Não havia cicatriz nenhuma em ambas as pernas. - Você tem razão, Duncan - murmurou ele emocionado eu não sou o Assassino da Flor! Só após algum tempo dessa agradável constatação, o trio voltou a conversar. Naturalmente o mais empolgado de todos era Polaro que de uma hora para outra ficara livre de um peso que carregara durante semanas como se fosse seu. Um sentimento de rancor semelhante ao que outrora nutrira pelo assassino das moças de Manhattan voltara a ocupar o lugar em seu peito, dessa vez o ressentimento era dirigido a Hardrige. - Quem você acha que é o verdadeiro Estuprador de Manhattan? - perguntou Linda Stacy após ter levantado e procurado por alguma coisa, que ela não sabia ao certo o quê, nas prateleiras da dispensa que servia de cárcere. - Harry Hardrige! - respondeu Lucas emprestando um pouco de seu ódio a essas palavras. Duncan sorriu e disse: - Acho que não, ele não se arriscaria desse jeito. Até agora ele procurou manter-se acima de qualquer suspeita e isso caracterizaria insensatez de sua parte. - Então quem? - perguntou Polaro - o gorila que segue as ordens dele? - Também não. Linda confrontou-se com o assassino e eu mesmo cheguei a trocar uns sopapos com ele e sei que o tipo físico dele não é semelhante ao de Dykstra, o gorila de Hardrige como você o chamou. - Quer dizer que pode haver mais alguém nessa trama sugeriu Linda voltando-se para eles.

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- Quanto ao tipo físico - comentou Lucas - Harry e eu temos o mesmo, nosso manequim é igual e divergimos apenas no número do calçado, o pé dele é menor que o meu. Inclusive em certos períodos da minha vida em que eu não gostava de freqüentar lojas de roupas era ele que as comprava tendo cuidado na compra de sapatos. - Ele demonstrava ser amigo - comentou Duncan. - Ele fingiu ser meu amigo - retificou Lucas - a propósito Duncan... - Diga. - A estatueta de minha mãe pertencia aos Filhos da Luz que você mencionou? - Esse objeto é um símbolo sagrado de uma seita à qual sua mãe pertenceu antes de conhecer seu pai, o nome desta seita era Filhos da Luz. - Não me diga que esta seita tem a ver com Hardrige? inquiriu Linda. - Tem sim - respondeu Josh preparando-se para transmitir a Lucas e Linda o que Mark Dykstra contara. E foi como procedeu embora de forma bem mais resumida do que a ouvida por ele, mas sendo suficientemente substancial para esclarecer o intuito das ações de Hardrige. Luís Polaro escutava atento, sorvia cada palavra como se fosse a última gota d’água que bebia após uma longa caminhada pelo deserto. Chegava a duvidar do que o policial falava cogitando que esta também havia enlouquecido, sua razão evocava os créditos necessários para fazê-lo interessar-se mais e mais pelo que ouvia. Ao final do relato permaneceu emudecido. Linda então tomou a iniciativa: - Antes de chegarmos a essas considerações tínhamos convicção de que Hardrige era um louco psicopata. Agora, cientes de todos esses detalhes devemos nos preparar para o que ele

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pretende fazer conosco e que sabemos não ser nada de agradável, temos que fugir daqui! - Fiz uma vistoria em tudo - interveio Duncan aproximando-se dela - e o único meio de sairmos daqui é pela porta. - Quer dizer então que estamos definitivamente à mercê de Harry? - perguntou Polaro, sua voz era apenas um sussurro, parecia estar falando para si mesmo. - Polaro - disse Linda observando o que se passava com ele - sabemos que sua condição é difícil, mas este drama não acabou ainda. Temos muita chance, fugimos daqui e levamos o caso ao conhecimento da polícia, então você fica livre e Hardrige vai preso. Duncan baixou a cabeça e Polaro, vendo sua atitude, fez o mesmo. - Há algo que não sei? - indagou ela. - Só um esclarecimento, Linda. - Qual? - Não há provas contra Hardrige - explicou Josh - sei de tudo devido a detalhes que só a mim foram mostrados, será a palavra de um policial contra a de um psicólogo de renome, bem conhecido em quase toda Manhattan. - Tem a mim e a Polaro como testemunhas – replicou ela. - Ele tem o Dykstra e naturalmente um bojo de provas forjadas que colocarão os depoimentos de vocês no lixo. - Então não há chances? - Eu não disse isso - Duncan esclareceu - falei apenas que é difícil e temos não só que sair daqui como também levar Hardrige conosco e o que pudermos utilizar como provas contra ele. - O que você sugere? - Lucas perguntou. - Que peguemos os dois e os forcemos a confessar. - Mas como?

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- Não sei, mas se pensarmos juntos é claro que encontraremos a resposta. Lucas estava esmorecido. Aquelas palavras não o animaram muito, seu futuro parecia ser tão obscuro que a chance de sobreviver era mais remota do que mostrava ser a liberdade quando estava preso. Apoiou-se na parede e fitou o detetive. - Da última vez que nos encontramos fora do tribunal eu tentava matar sua namorada e quase matei você - Lucas pronunciou com pesar a frase. - Você pensava que era o assassino. - Fui um fraco. - Está na hora de você provar o contrário ajudando a capturar Hardrige. Lucas concordou. Unidos pelo interesse comum, e isso de certa forma reforçava a decisão de escapar e prender o psicólogo, puseram-se a deliberar em como tornar possível seus planos. O estalo da porta metálica, subitamente sendo aberta, anunciou a entrada de alguém, primeiro surgiu o cano duplo do rifle de caça e em seguida um homem: Harry Hardrige! 29 Hardrige estava orgulhoso de sua missão estar sendo executada dentro dos parâmetros pré-estabelecidos por ele. Em todos os momentos conduziu às rédeas curtas todos os passos dados em função do último desejo de seu bem-amado mestre e senhor, Larry Sinford, o supremo mestre da Luz! Jamais tivera chance de agradecer a seu mestre pelo que ele fizera e nada o impediria de levar adiante aquela vingança estando ele tão próximo do final. Sua frustração maior era o que considerava como sendo sua única falha desde que tudo começara e essa falha tinha um

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nome, o nome de Linda Stacy! A determinação daquela mulher fora tal, que criara uma bifurcação em seus planos iniciais pondo em perigo toda a trama, obra de anos de minucioso estudo e elaboração, que era o melhor tributo que poderia pagar ao seu divino mestre e à luz que ele dera. Não possuía poderes para amaldiçoar aquela mulher como o Reverendo Sinford fizera com Janet Biler e todos os que eram ligados a ela. Mas Sinford usava a ele para executar suas derradeiras vontades. Hardrige estava triste por não ter mais o rebanho que seu mestre havia deixado, apenas dispunha do ambicioso e traiçoeiro Dykstra, era por deveras ruim ter que pensar em eliminar alguém que compartilhara com ele todos os principais momentos daquele plano e cujo pai fora fiel e militante na causa da Luz por tanto tempo, sem desvanecer nem mesmo em face dos boatos espalhados pelos jornais da época em que o Santuário foi incendiado, dizendo blasfêmias como Larry Sinford ter morrido queimado... os verdadeiros fiéis sabiam, porém, que o acontecido foi bem diferente, ele mesmo, Hardrige, vira seu mestre subir para a Luz... - Vá embora daqui, Drah - disse Sinford inerte sob o peso da estrutura de madeira em chamas que sobre ele caíra - você precisa fugir daqui para que as ideias que eu defendi toda minha vida possam sobreviver! - Vou ficar aqui mestre - o jovem Drah, lágrimas nos olhos e cabelos ensopados de suor, lutava contra as chamas que fustigavam aquela figura tão querida presa sobre os escombros da parede. Atrás deles, aproveitando o rombo aberto pela queda da parede, um rapaz confuso pelo clarão adentrava o local protegendo os olhos com o braço. Observou em volta e descobriu Janet Biler deitada em um sofá num canto da sala ainda não completamente atingido pelo fogo, apanhou- a nos braços e correu para fora.

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- É o fim Drah! - disse o Reverendo - saia daqui o mais rápido que puder. - Não mestre, nós vamos subir para a Luz juntos, esqueceu? O fogo a tudo devorava, uma parte da cobertura caíra fechando a abertura pela qual Janet fora retirada dali. - Não! - gritou o Reverendo, sua voz poderosa se fazia ouvir acima do crepitar das chamas que reduziam a construção a meros restos de madeira carbonizada - Você deve sair daqui, escape e sobreviva para vingar nossa sagrada religião, tudo o que edificamos foi destruído por aquela mulher e o namorado dela. Você, meu querido e amado primeiro pupilo, tem que perpetrar essa vingança e cumprir os desígnios de seu mestre! - o fogo atingiu a túnica de Sinford e as chamas se alastraram pelo seu corpo diante dos olhos espantados de Drah. Hardrige ficou paralisado alguns instantes, foi para ele uma eternidade, vendo diante de si a figura de seu mestre ser incinerada, sem compreender porque ele não subia para a Luz de uma vez por todas e acabava logo com seu próprio sofrimento. Então aconteceu o milagre. Angustiado pela cena que descortinava-se na sua frente, o jovem Hardrige virou-se e procurou alguma fenda entre as chamas por onde pudesse escapar. Foi aí que ouviu o barulho de uma pequena explosão, mas forte o suficiente para abalar o que restava de firme naquela edificação. Voltou-se na direção da explosão e ajoelhou-se diante do jato de fogo que ia do chão à parte quase sem danos do telhado. Compreendeu ao procurar seu mestre em derredor que aquilo que acabara de presenciar fora a ascensão de Sinford. Outro ruído, parte da parede de trás desabava abrindo caminho para que Drah fosse ao encontro da liberdade que a floresta oferecia. Sem olhar para trás, embora sentisse vontade,

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correu para a mata negra procurando refúgio na escuridão que ela, envolta no manto da noite, possuía. A construção em chamas ruiu por completo. Hardrige corria por entre as árvores sem dar importância aos galhos que o feriam no rosto e nos braços, distanciou-se o mais que pôde do cenáculo incendiado e somente parou quando seu pé engatou num cipó derrubando-o desajeitadamente na lama. Alguns meses depois Hardrige iniciava um pequeno negócio de venda de discos nos arredores de Atlantic City, o dinheiro que o mestre deixara para ele daria para viver durante muito tempo, mas não a vida toda, precavido, ele investiu em um negócio que tivesse a rentabilidade necessária para suprir suas necessidades e garantir o cumprimento das ordens de Sinford. Ele se transformara numa pessoa diferente daquele rapazola que o Reverendo retirara das ruas para o aconchego de seus conselhos no Santuário. Não tivera a sorte de ter conhecido seu pai e sua mãe, nem ao menos conhecia o real significado dessas palavras, fora órfão desde que percebera que era um ser humano pensante e ativo, mas quando descobriu isso estava na companhia de seu melhor amigo, Warren. Conheceu o outro lado da vida, tudo de que fora protegido entre as paredes do refúgio espiritual de Sinford agora era apresentado a ele pela própria vida: a perda de seu mestre... de seu amigo... de sua família. Cada um desses fatores, sem excetuar-se, é óbvio o pedido de Sinford, que sem dúvida foi o determinante, levaram Hardrige a se tornar uma pessoa fria, seus sentimentos toldados pela anestesia das perdas, seu caráter modificado e corrompido pelo mais íntimo e decidido desejo de vingança. Estudar, trabalhar, manter relacionamento com outras pessoas, eram apenas fases soltas dentro de um poema maldito que regia cada ato de suas decisões na direção única e exclusiva no sentido de punir aqueles que causaram a ele tanta dor.

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Acompanhou a vida da família Polaro como se fosse a sua própria, ora pagando detetives para manterem-no a par do que acontecia com eles, ora fazendo visitas a Nova Iorque para observar de longe a casa dos inimigos. Sua dor foi acentuada quando a morte de Janet na sala de parto o privou de parte de sua vingança, a morte do velho Benedict também acentuou esta dor tornando-o cada vez mais obstinado pelos seus desejos. Precisava aproximar-se mais de suas vítimas, queria infiltrar-se, se possível, no próprio convívio do lar delas para poder escolher a hora mais adequada para o acerto de contas. A oportunidade surgiu. Hardrige estudara psicologia apenas pelo prazer de imitar seu mestre, era conhecido erroneamente por médico nessa época, e isso viabilizara sua entrada na vida dos últimos Polaro. Ralph Polaro pesquisava um psicólogo para acompanhar o desenvolvimento de seu filho, já que ele tinha muito pouco tempo para dedicar a este. Durante a entrevista que Hardrige se submetera diante de Polaro, ele voltou a usar suas habilidades hipnóticas, herdadas de Sinford, para conseguir o emprego. O pupilo maior de Sinford via em cada acontecimento a mão invisível de seu mestre conduzindo a música da morte de seus inimigos. A loja de discos tornara-se obsoleta, Hardrige ganhava um ótimo salário para acompanhar o jovem Lucas Polaro além de seu próprio consultório cuja agenda estava sempre lotada. O dinheiro possibilitou-o cursar medicina recebendo o diploma oito anos depois. De sua parte não havia o menor sentimento pelo jovem Polaro, embora este se tivesse afeiçoado muito a ele, e nem podia haver, em seu coração só existia lugar para ódio e desejo de morte.

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Mais uma vez Hardrige foi frustrado. Ralph Polaro morreu sem que ele pudesse ter planejado sua vingança. Compreendeu que aquilo era um castigo merecido que era infligido por sua demora em arquitetar todo o plano. Cada um dos implicados na destruição dos Filhos da Luz foram ceifados pela morte sem que ele pudesse lhes castigar, primeiro Janet seguida de seu sogro e marido, era urgente que ele fizesse algo para que Luís Polaro pagasse pelo crime de seus pais. A década de 80 se iniciava e o Dr. Harry Hardrige permanecia estático em relação às suas vontades, tudo o que planejava era falho demais para ser posto em prática sem um risco muito grande de haver problemas. Observava Lucas em seu segundo ano na Universidade Empire State, o rapaz iria adquirir a independência perigosa para o relacionamento que existia entre eles. Certo dia quando Lucas falou sobre a namorada que arranjara, a idéia surgiu-lhe como um raio! Norman Stultz era um assassino de aluguel conhecido em Atlantic City. Através de seus antigos contatos, datados do tempo em que morava naquela cidade, Harry Hardrige contratou os serviços de Stultz. O assassino achou muito estranho a forma como teria que fazer aquele trabalho, mas em vista da quantidade de dinheiro ofertada por ele, aceitou sem restrições. A namorada de Luís Polaro foi encontrada morta com a garganta cortada seis dias depois do fechamento do contrato, a moça tinha sido estuprada e ao lado de seu corpo ensanguentado havia uma flor de papel. Stultz também encontrado morto, em um depósito de bebidas do Bronx seu corpo jazia perfurado por seis projéteis de 9mm disparados, segundo a perícia, de uma curta distância. Era o início dos crimes do Assassino da Flor.

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Hardrige levantou-se sobressaltado e ao verificar as horas em que havia se abandonado ao torpor de suas recordações, foi tomado por um sentimento de imediatismo que o impeliu a retomar de pronto o assunto que deixara pendente ao enviar Dykstra com os prisioneiros para a casa em Nova Jérsei. Riu ao imaginar a confusão na cabeça dos encarcerados, pois instruíra secretamente ao seu comparsa para rodar pela cidade no intuito de desnorteá-los quanto à localização de sua cadeia, apesar de que era uma medida sem importância, as chances que eles tinham de escapar eram inexistentes. Enfiou a mão no bolso e retirou uma chave pequena com a qual abriu o cofre devidamente oculto por trás de um quadro. Segurou-a experimentando-lhe o peso, era uma pistola Heckler&Koch P7A-13, prateada, bonita, leve e de fácil manuseio, colocou dois pentes de munição extra no bolso do terno cinza escuro que envergava e a pistola no cinto. Fechou o cofre, recolocou o quadro no lugar e verificou se estava com as chaves do Monza no bolso. Estava. Apanhou o casaco comprido, para onde transferiu a munição, vestiu-o e saiu para o frio da noite. Na segunda tentativa o carro pegou. Manobrou-o com prática pondo na estrada em direção aos prisioneiros. Era pouco mais das sete horas da noite e uma chuva fina caía levando a neve rala do final do inverno das calçadas. De vez em quando um sorriso se desenhava no rosto de Hardrige devido ao sentimento de realização de que em breve ele experimentaria. Ao ver o Monza Classic passar por ele na escuridão, Gibbs sentiu um arrepio de excitação e exclamou para si em voz alta: - É agora! Desde o momento em que perdera o fugitivo Luís Polaro, o investigador se torturava pelo infeliz incidente, ainda mais quando o autoritário secretário do prefeito mandara outro recado para não deixar o caso “vazar” para a imprensa.

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Quase teve um choque quando, após sua mente divagar e raciocinar por vários minutos, concluiu que mais cedo ou mais tarde Polaro faria contato com o amigo, o Dr. Harry Hardrige. Chegara à mansão e ocultara o carro nos arbustos quase dez horas da manhã. Perto do muro não muito alto galgou-o e empunhando o binóculo observou detidamente a casa suspeita. Duvidava que Polaro estivesse por lá, mas um policial esgota todas as suas possibilidades, assim, em viva convicção dedicou àquelas horas à silenciosa observância que em nada resultou. Não detectara um só movimento, insinuador ou não, na casa, mesmo sabendo que o famoso médico estava nela, pois enxergara-o, no curto espaço de tempo, aproximando-se e afastando-se de uma janela ao lado da porta de entrada. Seu carro não estava lá, só era visto o carro de Polaro. Somente desistiu da observação ao sentir o estômago revolver anunciando a falta de alimento. Precavido, o investigador Gibbs havia levado sanduíches frios e latas de Pepsi para o caso de ter que prolongar aquela investigação. Comeu um pouco e deixou o restante para mais tarde e quase 19h05min, ao tentar comer novamente, foi interrompido pelo carro de Polaro, sendo dirigido por Hardrige, passar por ele. O Monza seguia na sua frente pela via Expressa West Side dobrando à esquerda na Rua do Canal por onde seguiu direto até a ponte de Manhattan. Seis veículos separavam Gibbs de Hardrige ao tomarem a ponte e essa diferença deixou o policial de sobreaviso, pois havia um pequeno engarrafamento no final dela, que era grande o bastante para significar a perda de sua caça. Isso não aconteceu e mesmo no frio que imperava, Gibbs teve que enxugar a gota de suor que escorria da testa. Hardrige nesse momento seguia a via Expressa BrooklinQueens manobrando por ruas perpendiculares até retomar o caminho de volta dessa vez pela ponte do Brooklin, onde o investigador temendo perder o Monza deixou apenas um carro definir a distância que os separava.

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- O maldito está andando em círculos! - exclamou o policial desconfiando ter sido descoberto, o que seria difícil, o seu antigo Buick azul-escuro metálico à noite não chamava a menor atenção. Saindo da ponte o Monza dobrou à direita diante do City Hall para logo depois tomar novamente a rua do Canal. Nessa hora Gibbs perdeu sua presa. Um ônibus desviou na frente dele de algum obstáculo que ele não pôde divisar, segundos depois de ter ampla visão não conseguiu mais ver o veículo que Hardrige conduzia. Avançou depressa para a via Expressa West Side e esmurrou o volante ao notar a quantidade de carros em seu indo e vindo constante sem sequer distinguir um veículo parecido ao Monza. Depois das costumeiras voltas pela cidade a fim de despistar eventuais perseguidores, Hardrige encaminhou-se para a via Expressa West Side e tomou o túnel Holland para Nova Jérsei. Nem suspeitou que um policial quase o acompanhara ao seu destino. Estacionou o Monza ao lado do Cherokee e deixou o motor morrer. Encostou a testa nas costas das mãos apoiadas no volante rememorando o que faria. Era tempo de terminar com tudo, primeiro daria cabo do policial e Lucas, por fim Linda Stacy com a qual ajustaria certas contas e mandaria Dykstra livrar-se dos corpos. Quando este voltasse o mataria e o jogaria com pedras pesadas atadas aos pés no rio Hudson. Seria um fim perfeito e sem vestígios, daí estaria desvencilhado do laço que o prendia à cidade de Nova Iorque e recomeçaria sua vida distante dali. Ergueu a gola do casaco e percorreu a curta distância entre o carro e a porta da casa correndo para não se molhar. Introduziu a chave na porta e a destrancou. Dykstra encontrava-se modorrando na poltrona de tecido cor de vinho e encosto alto agarrado ao rifle de caça. Nem o frio súbito trazido pelo vento foi

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capaz de acordá-lo. Hardrige aproximou-se retirando a arma, num sobressalto Dykstra despertou permanecendo imóvel ao dar de olhos com o cano duplo apontado para sua testa, petrificado de susto ao perceber a quem pertencia as mãos que seguravam a outra extremidade da arma. - Se eu fosse um dos prisioneiros você seria um homem morto! - comentou Hardrige. Recomposto Dykstra contestou: - Duvido. O senso de moral dos policiais é muito elevado, eles me prenderiam, mas não me matariam. - Talvez, Mark, não se fie muito nesses conceitos. Hardrige abaixou a arma e caminhou para a dispensa seguido de perto pelo recém acordado Dykstra. - O que vai fazer? - perguntou ele. - Acabar com tudo, adiei por tempo demais a morte deles principalmente a de Lucas e da Srta. Stacy - havia uma dose de rancor quase imperceptível na sua voz - minha vingança e a de meu mestre estão quase completas, Lucas sofreu o bastante pelo crime de seus pais, está na hora de morrer. A porta gemeu e Hardrige entrou na dispensa, Dykstra permaneceu na retaguarda. - Como tem passado Lucas? - perguntou Harry com falsa amabilidade - todos para fora! - ordenou afastando-se da saída para que passassem. Os prisioneiros se levantavam para cumprir as ordens de Hardrige quando este, mudando repentinamente de atitude, gritou: - Parem! Eles estancaram. - Só a moça sai - disse olhando fixamente para Linda vocês dois ficam! - Se você fizer alguma coisa a ela... - ameaçou com seu tom de voz Duncan, seus punhos cerrados mostravam toda a energia que sua raiva armazenava.

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- Você não está em condições de fazer ameaças, Duncan, cale essa maldita boca, pois sua vez ainda vai chegar. Saia Srta. Stacy! Nervosa, Linda ajeitou sua blusa como que disfarçando o medo e obedeceu ao mandado de Hardrige. A porta tornou a se fechar. - É ele! - exclamou Polaro agitando as mãos - Harry é o estuprador! - Cale a boca! - gritou Duncan. - Você não entende, não é possível que não tenha percebido quando ele a olhou, veio aqui com o objetivo de levar a todos nós, mas quando seus olhos pousaram em Linda, brilharam como fogo, ele a desejou, tanto que até mudou de idéia, ele é o Assassino da Flor! Duncan virou-se e atingiu Polaro com um soco. Não conseguia suportar a verdade sem poder sentir a terrível dor que o sentimento de impotência afligia. Surpreendido pelo golpe e excitado pela dedução, Lucas reagiu atingindo o policial da mesma forma. Duncan o agarrou pela gola do sobretudo e golpeou o estômago com o joelho direito extraindo um gemido seco de dor do outro. Lucas virou o corpo acertando uma cotovelada na boca de Duncan afetando o nariz e a visão deste que, tonto, caiu levando consigo, preso pelo colarinho, seu oponente. Rolaram pelo chão entre grunhidos e gemidos até esbarrarem na estante de enlatados. O impacto tombou-a para frente despejando seu conteúdo e seu peso sobre os homens. Duncan emergiu primeiro levantando o móvel até recolocá-lo no lugar, Polaro tinha um golpe na testa e sentou esfregando o ferimento. - Desculpe-me - disse o policial estendendo a mão para ajudar o outro a levantar.

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- Sei o que está sentindo - murmurou Lucas aceitando a mão - temos que dar um jeito de sair daqui para ajudarmos sua garota. - Vamos forçar a porta! - De que jeito? - Deixe comigo. O policial abaixou-se procurando novamente por algo que pudesse usar como alavanca, alguma peça solta do piso de tábua corrida. Não havia. - O que está fazendo? - Arranjando o que possamos usar como alavanca. - Então vamos quebrar a estante! - sugeriu Lucas. Segurando nas laterais do móvel voltaram a derrubá-lo. Não se importavam com o barulho, apenas pensavam em libertarse de sua clausura para socorrer Linda e se o ruído chamasse atenção de um dos patifes fazendo-os entrar, estavam dispostos a apelar para o corpo a corpo. Duncan pelo amor à moça e Polaro pelo sentimento de remorso e gratidão que nutria por ela. Rapidamente ambos soltaram as tábuas desferindo pancadas com as mãos nuas, levaram a peça de madeira que acharam mais resistente, introduziram-na na fissura e forçaram. Um forte estalo anunciou que a tábua não resistiu à força e a fechadura estava intacta. Nova tentativa com outra tábua. Nova falha. No entanto, a porta pareceu ceder um pouco dando a eles a esperança para continuar. Minutos mais tarde, sem que houvesse nenhum sinal de agitação lá fora, ambos destruíam a segunda estante que havia na dispensa, sem contar com as fixas na parede. Não se davam conta de que em vinte minutos muita coisa poderia ter acontecido à Linda. A outra estante foi totalmente destruída, a porta era invencível. - Maldição! - gritou Lucas - maldita porta! Maldita, maldita.

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- Calma, não adianta ficar gritando - Duncan tentava disfarçar seu próprio desespero. Com as mãos na cintura observou a destruição que fizeram. Seus olhos notaram a tubulação que conduzia os fios elétricos, era aparente, saia de um canto no teto indo até a lâmpada de 100 watts no centro - aquele tubo! exclamou o policial. Sem pronunciar nenhuma palavra, Lucas escalou uma estante fixa e segurou o tubo metálico de meia polegada - como é que não pensamos nisso antes? - indagou-se. Pendurou-se no tubo e as braçadeiras que o prendiam ao teto cederam, jogando Lucas ao chão em meio a uma súbita escuridão. - Conseguiu? - Sim. Tatearam até a porta e começaram novamente a tarefa. A princípio o tubo vergou e isso o tornou mais resistente, na terceira investida o trinco abriu, a luz da cozinha invadiu a moldura da porta e em seguida parte da dispensa. Duncan arriscou uma olhada, não havia ninguém na cozinha. - Vamos! - disse baixinho. Foram até a porta da sala onde Duncan esgueirava- se para adentrá-la quando, repentinamente, parou. Linda descia uma escada de madeira que, com certeza vinha do sótão, tinha a visão distorcida procurando um meio de passar por Dykstra que procurava segurá-la. Duncan notou que ela estava lívida e ao perceber a mancha de sangue no pulôver da moça quase o congelou de susto. A blusa estava manchada sob os seios e o sangue sujara também as mãos dela. - Linda! - gritou Duncan avançando como um louco na direção da moça sem dar importância a Dykstra que interpunha-se entre eles.

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30 Linda sentiu-se derrotada, o cano duplo do rifle de Hardrige estava colado na nuca da moça. O toque frio e ameaçador daquele instrumento de morte não trazia medo e pavor como aconteceu da primeira vez em que o Estuprador investira contra ela, percebeu que no segundo ataque o medo diminuíra mesmo sabendo quem a estava agredindo, pensava no rosto de Polaro tomado de selvageria que não podia ser comparada ao sarcasmo da expressão fisionômica de Hardrige. Vasculhou dentre a confusão de sentimentos que a importunavam qual mais se destacava. Estava tão concentrada na descoberta de suas emoções que mal ouvira o estalo do trinco fechando a dispensa, o ranger dos degraus da escada caracol sob seu peso e o comentário de Dykstra, numa voz distante, quase inaudível. O sótão era um lugar úmido e nojento bem típico dos homens que o ocupavam. O teto era rebaixado, sem forro e havia grossas teias de aranha que completavam o cenário de horror. A única mobília ocupando o ambiente era uma cama de solteiro feita de ferro com adornos arcaicos. A janela ficava na parte mais baixa do telhado. - Você terá o fim que merece - disse Hardrige. - Eu? - duvidou ela sem o menor sinal de receio - você é quem terá um fim bem estúpido para combinar com sua mente apodrecida. Hardrige riu alto. - Ainda tenta me ofender - grunhiu ele - a vítima tenta zombar do sacerdote. Quem sorriu dessa vez foi Linda, seu riso era ligeiramente forçado. - Sacerdote de merda, é isso mesmo, seu mestre não passa de um monte de esterco que só ensinou porcaria a você.

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- Cale a boca sua prostituta! - gritou ele empunhando a arma para intimidá-la. - Vai me matar? - disse ela céptica, sua procura interna acabara de achar o que predominava em suas emoções: determinação. Estava convicta que Duncan estando preso nada podia fazer, restava a ela agir por conta própria. - Duvida? - É claro que não, você me teme não é Hardrige ou será que devo chamá-lo de Estuprador de Manhattan ou ainda Assassino da Flor? Tem medo de mim porque não pode fazer comigo como fez com as outras, elas facilitaram, talvez pensassem que sendo dóceis ao final, você as deixaria viver. Mas eu sou diferente, eu sou mulher, mulher de verdade e não é qualquer fanático que me amedronta. Vamos, mate-me, é mais fácil do que me estuprar porque não tem coragem, talvez os seus dias como homem já tenham acabado. - Cadela! - Não vai me matar, porco?! Irado com a insolência daquela mulher, Hardrige retirou os cartuchos do rifle e lançou-os ao chão fazendo o mesmo com a arma. Proferiu alguns palavrões com os dentes cerrados de ódio e deu um passo na direção da moça. - Enfim tomou um pouco de coragem, pena que não seja mais homem para o resto - Linda retrocedeu dois passos para manter-se afastada e ganhar mais tempo - Não se preocupe que dessa vez não vou acertar sua virilha para você desculpar sua impotência. Aquilo foi a gota d’água, Hardrige esbofeteou-a com a costa da mão com tamanha violência que Linda rodopiou e caiu sentada de costa para ele. - Tire a roupa! - ordenou ele ciente que aquela tapa fora mais que o suficiente para derrubar todas as defesas daquela mulher.

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O sangue escorria do lábio partido, Linda enfiou a mão debaixo do pulôver. - Por que você mesmo não tenta tirá-la, seu verme! Com um rosnado animal Hardrige segurou o pescoço dela pressionando firmemente os polegares na nuca. A dor repentina a induziu a segurar os pulsos de seu agressor para não ser enforcada, sua mente deduziu em instantes que Hardrige não tencionava asfixiá-la e sim forçá-la a deitar de bruços para provar sua masculinidade ofendida. Retirou as mãos do braço dele e colocou-as sob a blusa. O grito de Hardrige só não foi ouvido por Dykstra porque este, tendo tomado a briga que se passava na dispensa como um truque para que abrisse a porta, foi para a cozinha preparar um lanche e os ruídos que chegavam a ele pareciam ser da confusão dos prisioneiros. - Desgraçada! - bradou Hardrige ao reconhecer uma lata de atum aberta com a qual ela feriu a sua mão. De pé, Linda descrevia semicírculos cortando o ar a sua frente. Essa manobra desviava Hardrige da arma descarregada e o impelia para a parte mais baixa da cobertura em direção à janela. Ela estava decidida a pôr um fim àquele monstro. - Você não seria tão ousada! - É o que você pensa. Ela avançou para ele ainda ameaçando-o. Ao ver a aproximação perigosa do objeto Harry tentou colocar a mão ilesa para proteger-se. Receava aquela mulher e isso o fazia odiá-la. Empurrava seu corpo contra o vidro da janela. Hardrige não soube o que aconteceu primeiro, se a lata quase golpeando sua outra mão ou o vidro da janela cedendo sob seu peso. Desequilibrado, ainda tentou segurar na borda da esquadria, mas não houve tempo. Linda ouviu o baque do corpo de encontro ao chão, olhou pela janela, ele estava caído com o rosto virado para cima, inerte.

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Experimentou uma pequena dor no abdômen e constatou que se ferira três lanhos superficiais que sangravam manchando seu agasalho, mas que não ofereciam perigo. Retornou para a escada sem lembrar-se do rifle que seria útil contra Dykstra, depositava sua proteção na lata firme em sua mão. Dykstra praticamente engolira o sanduíche, tomou uma soda e encaminhou-se para a sala. O barulho do vidro quebrando e um som estranho assustou-o. Perto da escada viu Linda descer simultaneamente ouvindo Duncan gritar o nome dela. detetive esmurrou o maxilar de Dykstra fazendo-o cambalear. - Estou bem... - disse Linda. - E Hardrige? - indagou Duncan. - Acho que está morto! Mark Dykstra segurou o detetive pela camisa imprensandoo à parede e socando-o no estômago. Polaro virou Dykstra pelo ombro acertando o nariz dele com um soco que o deixou tonto, mas não o derrubou, o homem era um gigante. Sem dar a ele tempo para recuperar-se Lucas esmurrou a barriga, voltando a ferilo no nariz. O sujeito caiu ao ser atingido pelo terceiro soco. - Obrigado Polaro! - Deixa pra lá, devo muito a vocês. Agora vamos... Polaro não pôde concluir a frase. Um pequeno círculo vermelho surgiu em seu peito após o estrondo de um disparo da pistola Heckler&Koch P7A-13. A queda fora terrível. Hardrige quase perdeu os sentidos, demorou a distinguir o vulto que se debruçara na janela para vê-lo. Tentou mover-se, mas com dificuldade virou o corpo tentando recuperarse, o desejo de matar aquela mulher dava coragem para lutar contra a vontade de ficar ali deitado sentindo as gotas de chuva no rosto.

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Ergueu-se, sua mão direita doía com o corte, sua cabeça doía com a pancada no chão, tudo estava dolorido. Murmurou uma praga ao lembrar-se da pistola dentro do casaco que poderia ter utilizado contra Linda. Sacou-a e destravou-a. Rodeou a edificação até encontrar-se diante da porta. Lá dentro o ruído característico de briga se propagava. Esperou um instante. A voz de Ralph seguida da de Lucas... Abriu a porta em silêncio. Ali estavam, Lucas, o maldito filho de Janet. Ao seu lado Ralph Polaro sorrindo com o braço em volta de Janet Biler. O disparo. Lucas caído. Josh Duncan não teve tempo de pensar, só de agir. Empurrou Linda para o chão caindo sobre ela ao lado de Lucas. O sofá de madeira rústica era o único obstáculo entre ele e Hardrige. - Pensei que ele estivesse morto, vi quando ele caiu pela janela do sótão. - Mas ainda está vivo - comentou Duncan apalpando o pescoço de Lucas - pelo menos Polaro está vivo também, mas precisa de socorro urgente. Tentarei distrair o Hardrige enquanto você sai rastejando pela cozinha. - Não deixarei você aqui! - Se você não for logo morrerá, há uma janela sobre a pia da cozinha, saia por ela e corra para longe, ache alguém... peça ajuda, ok? - Está bem - disse ela relutante. Ele a beijou e rastejando afastou-se dela. - Você ainda está aí Hardrige? - perguntou Duncan. Silêncio. Josh sinalizou para que Linda esperasse Hardrige manifestar-se. - Quer brincar de gato e rato, não é? - insistiu o detetive.

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- Você vai morrer, Ralph, chegou o dia de nosso ajuste de contas - Hardrige pronunciou-se - eu devia pôr fogo na casa para que você e Janet queimem do jeito que desejavam que o mestre e eu morrêssemos. Estúpido filho de uma vaca, eu sobrevivi e o Reverendo ilumina poderosamente cada ato de minha vida. Matei seu filho, vou acabar com você e sua mulher. Dois disparos assoviaram por sobre a cabeça do investigador. Josh indicou para que Linda fugisse e ela obedeceu. - Não seja tolo, Hardrige. Sinford está morto, os vermes já devem ter comido sua carcaça nojenta e a alma dele se perdeu no inferno! - Cale a boca, Ralph! - berrou Hardrige disparando novamente na direção da voz. Duncan teve a impressão de que as balas passaram mais perto, arrastou-se um pouco mais ficando próximo do desfalecido Dykstra. Linda chegou à cozinha sem ter sido notada por Hardrige. Sentou ao lado da porta e olhou de soslaio para a entrada da frente onde vislumbrou a arma prateada, ameaçadora, fumegante. Ergueu-se com a costa à parede, foi para a pia, levantou a janela e saiu. As gotas de água vindas do céu, grossas e frias molhavam seus cabelos loiros e refrescavam sua mente. Tremeu ao ouvir um novo disparo. As vozes dos homens chegavam distorcidas ao ouvido dela. Recordou a expressão de surpresa de Polaro ao ser alvejado no peito e do sangue que escorria do ferimento. Contornou a casa na direção oposta aquela que a levaria a encontrar com Hardrige. Um som que pareceu o ruído de automóveis a fez optar pelo rumo que tomaria. Um outro disparo. Um grito parecido com a voz de Duncan. Linda virou-se. Não era possível que ele estivesse morto. Oh, não... ele não! - murmurou ela já voltando para a casa.

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Passadas ligeiras espirravam lama para os lados. Linda parou ao avistar Hardrige ainda na frente da casa, se Josh estivesse morto ela não teria utilidade, seria uma grande tolice retornar. Hesitou por pouco tempo, indecisa sobre voltar ou continuar fugindo. Por fim, ela decidiu seguir o rumo da estrada. - Você está demente, Hardrige! - gritou Duncan. Linda não estava mais ali e era provável que nem na casa, era a sua vez de escapar. Vários projéteis cortaram a sala, disparados pelo ensandecido psicólogo, o homem havia perdido os últimos sinais de razão, se é que um dia ele os tivera, chegara ao ponto de confundir ele e Linda com os pais de Luís Polaro. O som de a arma ser recarregada foi percebido pelo policial. - Onde está Janet, Ralph? - gritou Hardrige um pouco rouco. - Protegida, vamos esperar sua munição acabar para podermos sair daqui - Josh não pretendia esperar por isso, foi a única frase que surgiu em sua mente naquele momento. - Eu a quero Ralph, vou matá-la como você fez com a nossa sagrada religião. - Os Filhos da Luz não possuíam nada de sagrado, muito pelo contrário, era a mais profana das seitas que já conheci. - Não ouse blasfemar contra a mensagem do Reverendo Sinford. Duncan retomou sua posição anterior, para o lugar a que ia não havia cobertura de mobília para servir de proteção contra os disparos. Não obstante, teria que permanecer ali mais alguns minutos para conceder a Linda mais tempo para obter ajuda. - Sinford era tão louco quanto você! Dois disparos. Ineficazes. Hardrige não desconfiava que Janet não estava mais na sala, do jeito que o raciocínio dele estava embotado não conseguia mais deduzir logicamente. Esse estado mental, porém, dava a ele

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brutalidade e uma força de vontade para usar suas últimas energias para realizar a vingança de seu mestre. O corte na mão, a dor na cabeça, de nada significava diante do objetivo a que se propunha, aquela noite não chegaria ao fim sem que todos os Polaro estivessem aniquilados. O investigador Josh Duncan por sua vez, ainda que ciente da chance de uma bala poder atingi-lo a qualquer momento, não se intimidava, nesses últimos dias estivera em situações piores como quando estava com seu corpo sendo tomado de paralisia por aquela droga que Dykstra e Hardrige aplicaram nele. A imagem da seringa caindo de sua mão retornou à sua lembrança. Não havia conseguido injetar todo o antídoto, quando acordou não havia nada na seringa, alguém aplicara o resto, Hardrige? Sim, fora ele para se divertir posteriormente com outros jogos fatais. Cautelosamente arriscou uma olhadela, Hardrige estava escondido na entrada. Mãos seguraram os cabelos de Duncan levantando e batendo a cabeça contra o chão de madeira. O policial gemeu de dor e a pancada se repetiu, uma, duas, três vezes e ele ficou no estado letárgico da quase inconsciência. - Peguei o bastardo, Drah! - berrou Dykstra emergindo de trás do sofá com sangue coagulado no nariz quebrado e um pouco roxo. Hardrige fitou aquele homem reconhecendo-o. - Onde está você Drah? Quem aquele idiota pensava que era para tratá-lo pelo nome que o Reverendo Sinford usava para chamar seu pupilo? Era mais um blasfemador que pagaria com a vida. A visão de Dykstra estava embaçada pelos socos que recebera no nariz, não pôde distinguir o que Hardrige estava por fazer. - O que há, Drah? Você matou Lucas, eu peguei o policial, só falta a mulher, temos que apanhá-la. Hardrige sorriu.

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- Está com medo de morrer velho, a tal ponto de matar o filho e entregar a nora? - Do que está falando? - Dykstra era a confusão em pessoa. - Velho ignorante! - Hardrige gritou - Morra Benedict! - Benedict? - Dykstra sussurrou a pergunta. Se ele não conseguiu entender o que se passava naqueles instantes jamais teve outra oportunidade. Hardrige atirou várias vezes, os projéteis derrubaram um quadro da parede, estilhaçaram dois vasos sem plantas e um deles formou uma flor vermelha na testa de Dykstra exatamente acima do olho direito arremessando-o para trás com um grito de morte. - Seu pai se foi, Ralph. Só falta você e Janet. Está me escutando? Não houve resposta. Hardrige entrou no cômodo tendo cuidado para não ser surpreendido por Ralph. Benedict havia dito que ele estava morto, mas poderia ser um blefe, se bem que aqueles covardes eram capazes de traições hediondas como aquela. Viu Ralph e Lucas caídos, Ralph de bruços e Lucas de costa, ambos imóveis. Chutou as costelas de Ralph e este não gemeu, virou o corpo dele com os pés, havia sangue em sua testa. Benedict tivera mesmo coragem de matar o próprio filho para obter clemência diante da justiça da Luz, ela, porém era implacável. Lucas também estava morto. - Consegui, Mestre! - ele levantou as mãos para o alto falta apenas Janet. Procurou a moça revirando a mobília, tudo o que pudesse ocultar Janet, ela não estava na sala. Correu para a cozinha. A janela aberta sobre a pia, a marca deixada por dedos sujos de sangue no vidro, ela fugiu através daquela abertura. Ele a imitou saindo para a chuva. Não pode precisar para onde ela havia fugido pelo instinto, mas a pouca lógica que possuía o induziu a correr para a estrada.

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O chão de cascalho estalava sob seus pés, aquela lama pegajosa fixava-se em seus sapatos dificultando sua corrida. Despiu o agasalho que atrapalhava e o jogou de lado sem lembrarse do pente de balas que ficara em um dos bolsos. A estrada estava logo à frente. 31 A luz alta dos faróis de um carro que se aproximava banhou o corpo de Linda. A moça acenava com os braços para cima suplicando que o motorista parasse. Sem diminuir a velocidade o carro passou por ela sem parar. Correra ao lado esquerdo do caminho de cascalho a fim de evitar que Hardrige, se viesse em seu encalço, a encontrasse. Ao chegar à auto-estrada apressou-se mais ainda para longe da entrada que levava à casa de onde fugira. O homem sobrevivera à queda de uma altura de quatro metros, não era tanto e o chão macio enlameado amortecera o choque, por isso não duvidava que ele fosse capaz de fazer qualquer coisa. Na outra investida de Hardrige, como o Estuprador de Manhattan no beco nos fundos de seu prédio, não havia tanta convicção nos atos dele, mesmo tendo persistido em assassiná-la. Agora era diferente, a linha que separava a sanidade da completa loucura rompera em algum momento entre a queda e o disparo certeiro em Luís Polaro, conferindo novas forças para ele prosseguir com aquelas mortes em nome da Luz que fora dada por Sinford. Mas se por um lado, Harry Hardrige estava determinado a tudo, ela também estava. Deixara cair a lata usada como uma arma quando Duncan a empurrou para o chão e esqueceu de recuperá-la ao fugir. A falta de uma arma e sua aparente fragilidade feminina não a amedrontavam.

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Sucessivos veículos passaram por ela sem darem atenção aos seus rogos, a esperança de encontrar ajuda de alguma alma caridosa que parasse aumentava a cada novo par de faróis que surgia nas extremidades da estrada. Um carro apareceu ao longe. Tomada pela urgência de um auxílio, Linda Stacy pôs-se no meio do asfalto acenando. Notou que o carro iniciava uma parada, mas continuou a agitar os braços. O veículo estancou uns cinco metros distante dela, o limpador de pára-brisas em seu incansável movimento de um lado para o outro revelava os rostos de um casal. Linda bateu no capô pedindo socorro, o rapaz fez menção de abrir a porta, mas foi impedido pela companheira que o segurou pela camisa dizendo palavras inaudíveis. Houve uma breve discussão entre eles enquanto Linda tentava abrir a porta do lado do motorista. Outro veículo passou por eles com velocidade reduzida e faróis baixos. - Abra, por favor! - gritou Linda. O rapaz ia abrir a porta quando um tiro estilhaçou o párabrisa traseiro, olhou pelo retrovisor e distinguiu uma silhueta indo em seu rumo. Assustado, ele engatou a marcha arrancando o veículo e derrubando Linda que segurava na maçaneta. O frio percorria o corpo dela molhado pela chuva, engatinhou para a margem da estrada e olhou de lado vendo aquela figura correndo para ela. Levantou e correu para o interior da floresta que erguia-se à sua frente, iria despistá-lo em meio às árvores. Hardrige temeu haver perdido Janet, olhava de um lado para outro e não a enxergava. Um carro passou e distante, à esquerda, parou. O farol iluminou Janet. Correndo como um desesperado, o que realmente estava, na direção do carro, o médico preparava-se para atirar. Apontou o cano da arma para algum ponto do veículo e

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disparou levando o motorista a partir deixando a moça caída. Viu quando ela entrou na mata. Cada vez ela empregava menos força para impulsionar seu corpo para frente na louca corrida, o cansaço estava se abatendo sobre ela. A respiração ofegante fazia arder suas vias respiratórias e o coração parecia clamar por uma pequena pausa naquela loucura em que sua vida havia sido transformada. Atrás dela, o chacoalhar de pés pisoteando a lama e folhas secas umedecidas pela chuva anunciava que seu perseguidor estava no seu encalço. Ouvia os gritos chamando pelo nome de Janet e pedindo que parasse. Não conseguiria mais fugir por muito tempo, estava quase no limite de suas energias, aliás, ultrapassara esse limite e se encontrava utilizando as reservas. Polaro estava morrendo e talvez Josh, pois Hardrige não a perseguiria sem antes dar cabo deles, uma prece íntima foi proferida em favor da vida de seu namorado e pela de Polaro. Eles dependiam dela. Linda Stacy parou - Chega! - pensou em voz alta - Estou aqui! - gritou ela ocultando-se por trás de uma árvore, Hardrige passou por ela arfando instantes depois. - Aqui! - insistiu ela. Ele parou, olhou ao redor em busca de um movimento que denunciasse a moça. Tudo estava quieto a não ser os arbustos açoitados pela chuva e pelo vento. - Onde está você Janet? Linda pensou um pouco e disse: - Aqui Hardrige, atrás de você. Ele voltou-se, mas não a viu. - Apareça! A moça abaixou procurando o que pudesse ser arremessado, encontrou um pedaço de pau com um palmo de comprimento e o lançou à esquerda de Hardrige, ele disparou na

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moita onde o galho caiu e foi para lá. Levantou decepcionado vendo que ela não estava ali. Linda decidiu usar outra tática. Quebrando um arbusto, arrancou as folhas em silêncio e protegendo-se ora atrás de uma árvore ora agachando tentava acercar-se do assassino. Hardrige procurava por ela. A vegetação arbustiva fechava ao redor dele, mas qualquer movimento diferente naquela folhagem chamaria a atenção dele. Linda gritou: - Aqui! Ele virando de repente a viu em meio às árvores. Atirou sem conseguir acertar e correu para ela. Quando percebeu estava caído no meio da lama e Janet o açoitava com um galho verde recém arrancado, tentou mirar a pistola mas o galho a arrancou e lançou-a distante numa poça d’água. Ele esticou suas pernas engatando-as nas de Janet até derrubá-la. - Peguei você, Janet! - disse ele segurando o braço dela em que havia o galho. - Eu não sou Janet, seu palhaço - gritou ela cuspindo no rosto de Hardrige - Sou Linda, Linda Stacy! Ele a atingiu no rosto com um soco. Linda cerrou os lábios doloridos e a mão esquerda livre, arqueou o braço para trás num grande impulso e, com uma força que quase deslocou o pulso dela, socou o nariz de Hardrige. Ele não esperava uma reação dessa vinda de uma mulher, foi apanhado de surpresa. A dor não tinha importância para Linda que voltava a preparar o punho para outro soco que dessa vez foi interceptado por ele. - Cadela! - vociferou. - Cretino! - gritou ela. Ambos estavam na lama, sujos e molhados. Hardrige segurava os dois braços dela apertando tanto que Linda viu-se obrigada a largar o galho. A moça parecia uma fera defendendo

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sua vida. Soltou uma das pernas e apoiou o pé enlameado no peito de seu agressor afastando-o. Subiu o pé para o pescoço dele obrigando-o a soltá-la. Rolou para o lado, livre do contato asqueroso com aquele homem, arrastou-se à procura da arma que vira cair por ali. As mãos de Hardrige agarraram a perna escorregando até ao tornozelo de Linda que já podia divisar a pistola a um metro em sua frente repousando sobre um monte de lama em meio a uma poça de água. Esforçava-se para apanhar a arma, os dedos frios de Hardrige entraram em seu tênis impedindo que prosseguisse. Ela virou-se e com a perna livre chutou o braço e a mão de Hardrige. O rosto dele, encolerizado, tinha uma expressão feroz acentuada pela chuva, lama e sangue que escorria do nariz. A dor que ela causava não freava sua intenção. O assassino retardava os movimentos dela e procurava ganhar espaço para chegar a ela ou trazê-la para ele. Concomitantemente ele tentava agarrar algo que pudesse improvisar como arma. Inesperadamente o tênis soltou do pé da moça dando a ela a chance de pegar a arma. Não foi ainda dessa vez porque, rápido como um felino, ele a segurou pela calça embora seus dedos não tivessem como firmar no tecido grosso e sujo de lama. Hardrige segurou alguma coisa, era um pedaço de pau rígido o bastante para ser usado como bastão ou até uma estaca, pois uma das extremidades era pontiaguda. Levantou a arma e atingiu o osso da frente da perna de Linda que gritou de dor sentindo os dedos quase tocarem a coronha da pistola. A mão de Hardrige escorregou da calça antes que pudesse desferir outra pancada. Linda segurou a arma com as duas mãos. Hardrige fez o mesmo com a estaca colocando-se de joelho e preparando-se para furar as costas da moça. Ela virou-se de súbito. O estrondo do disparo cortou a noite.

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O projétil atingiu Hardrige no esterno próximo ao pescoço. Linda tornou a puxar o gatilho e um clique avisou que a arma estava sem munição. Hardrige gritou forte e rouco com o sangue que o engasgava ao subir pelo esôfago. Reuniu suas forças, segurou firme a estaca num misto de determinação e espasmo de dor e caiu com a ponta da arma voltada para Linda e soltou um último gemido.

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ELEGIA Final Fiquei observando aquela cena em silêncio e tinha que ser assim. O policial depositava as flores no túmulo de um colega falecido naquele cenário bucólico. Foi só na manhã seguinte que acordei - na noite anterior Harry Hardrige havia morrido - numa cama do Hospital St. Catherine sob o olhar apreensivo do chefe do Bureau de Homicídios Joseph Lieberman. Ele perguntou se eu estava bem e respondi afirmativamente com a cabeça. Não queria falar muito, mas logo que me lembrei de o que havia acontecido tive o ímpeto de falar. Lieberman disse que estava tudo bem e que mais tarde eu sairia dali. Recordo ter visto o repórter policial Phil Brouke através do vidro da janela insistindo com um guarda uniformizado para entrar e falar comigo, este, porém não deixava. Disse alguma coisa a Lieberman sobre escrever um relato policial contando tudo sobre os crimes do Estuprador de Manhattan. Foi ruim ouvir o som da minha voz tão rouca, nem parecia ser a minha mesmo. Ele, Lieberman, foi até a porta e disse: - Você devia escrever um livro, só um relato não abrangeria toda a extensão desse caso. - E para me incentivar, uma semana depois, deu-me a cópia do diário de Hardrige, que fora encontrado na mansão Polaro. - Diga-me o que aconteceu depois que eu desmaiei - pedi a ele. - Está bem - disse ele pigarreando para iniciar. Alguém ligara para o Departamento de Polícia de Nova Iorque para informar que havia um incidente estranho próximo ao Túnel Holland, uma mulher tentava entrar num carro e um

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homem veio correndo atrás dela atirando. Os policiais demoraram a acreditar naquilo, mas devido à insistência do rapaz ao telefone que inclusive identificou-se como fotógrafo autônomo de Manhattan por nome Dick Warm e descreveu as pessoas em questão com extrema precisão. Os policiais decidiram averiguar levando o fotógrafo junto com eles para acharem o local. Dezenas de policiais varreram a área e encontraram a casa que encerrava em seu interior dois mortos e um ferido. Baseado nas informações que o ferido forneceu eles saíram para a floresta onde acharam os outros dois personagens do drama, um homem caído sobre uma mulher no meio da lama. Os esclarecimentos sobre os detalhes do que acontecera já haviam chegado ao conhecimento do Chefe Lieberman e do investigador Stain Gibbs. Os dias passaram, eu me recuperei, a imprensa divulgou o caso em matérias quase completas nos principais jornais da cidade, comprei todos. Depois fomos visitar o túmulo de Ron Wilson e fiquei de longe vendo Josh colocar flores sobre a lápide, contendo a frase: “No cumprimento do Dever” e a data do nascimento e morte do policial. Pensei ver uma lágrima no rosto de Josh e isso me manteve mais distante ainda, não quis com uma aproximação estragar sua última homenagem ao amigo. Achei estranho ele retirar algumas flores do maço e caminhar na minha direção, mas logo entendi o significado delas. - São para as outras vítimas... - murmurou ele. Certamente havia chorado. - Mas não sabemos onde ficam os túmulos das moças disse a ele. - Não importa. Vem comigo? - Sim. Andamos juntos por entre os túmulos e chegamos ao lugar que ele desejava.

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A primavera chegou ali também, era perturbador como aquela estação embelezava até mesmo aquele lugar destinado a sepultar os mortos e a receber visitas dos que sentiam as perdas. Josh virou-se para mim, já não parecia triste como antes, apenas um pouco abatido. - Infelizmente ele não conseguiu - disse ele fitando-me. - É... - falei com esforço. “O verdadeiro criminoso nunca pagou pelos seus crimes” pensei - depois imaginei Sinford morrendo queimado e percebi que ele pagou antecipadamente. Josh beijou-me naquele instante, não era hora nem lugar para aquilo, mas ele o fez e acrescentou: - Eu te amo, Linda! - Eu também - respondi a ele. Ele afastou-se um pouco e abaixando-se colocou as flores na lápide do túmulo. Uma brisa as afastou parcialmente e o nome de Luís Polaro apareceu como que agradecendo aquele gesto. Fomos embora calados e de mãos dadas.

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BIOGRAFIA Ivenio Hermes escreve por vocação, saiu da área de ficção onde publicou “A Chita” e “Vítimas da Luz” para se dedicar à realidade de uma sociedade que precisa de seus talentos, realizando estudos e pesquisas nas áreas de Criminologia, Direitos Humanos, Direito e Ensino Policial. Sua primeira graduação foi a Arquitetura e Urbanismo, hoje é graduando de Direito e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública, além de possuir mais de vinte outros cursos na área de segurança pública. É membro do Conselho Editorial e Colunista da Carta Potiguar. Colaborador e Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Escritor ganhador de prêmio literário. É Filho, irmão, pai e amigo.

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