Lisi harrison monster high 02 o monstro mora ao lado

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Monster High 2 2


Nesse segundo livro da série Monster High, Cleo era a abelha rainha dos IRADOSs, os normais, e todo mundo entre eles no Merston High. Mas agora é tudo “Frankie isso” e “Melody aquilo”… essas novas garotas sabem mesmo como colocar o delas em jogo. Quando Cleo consegue uma photo de ouro da Teen Vogue para suas amigas, tudo parece estar voltando ao normal… até que elas dão o bolo por estarem em algum filme… o filme de Frankie e Melody! Pode uma rainha ter alguma lealdade? Já Frankie perdeu sua cabeça por Brett uma vez e prometeu nunca mais fazer isso. Não que ela tivesse uma escolha: Bekka está em cima do seu garoto como plástico bolha. Mas quando Brett vem com um plano que poderia ajudar as RADs a ficarem livres, brilharem, Bekka não tem intensão de deixar nada disso acontecer… mesmo que isso signifique destruir toda a comunidade de monstros. O relógio está batendo. Melody tem um sério problema com o pouco tempo pra salvar seu namorado, Jackson, a ser exposto pela eu-procuro-vingança Bekka. Pertencer está fora de moda.

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CAPÍTULO 1 O SÁBIO FARAÓ

O ar impregnado de fumaça de infusão de âmbar estalou de ansiedade. Rachou de expectativa. Borbulhou de impaciência. Mesmo assim, Cleo se recusou a descansar até que o Palácio do Nilo estivesse pronto para receber um rei, mesmo que todo o pessoal achasse que ela era um pé real no… — Melhor assim? — perguntou Hasina, levantando o canto esquerdo do cartaz que ela e o marido, Beb, foram ordenados a pendurar.

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Cleo virou a cabeça e deu três passos para trás, buscando outra perspectiva. Lá fora, caía a chuva, abafando os ecos ocos de suas sandálias plataforma no chão de calcário. Era o clima ideal para alugar filmes, aconchegar-se com o namorado, e… PARE!

Cleo

sacudiu

a

cabeça,

livrando-se

da

imagem

confortante. Deuce não era mais bem-vindo em seus pensamentos nem na sua sala de TV. Não desde que tinha levado Melody Carver ao baile da escola na noite anterior. Além disso, ela precisava se concentrar. Haveria muito tempo para planejar sua vingança depois. Juntando as pontas dos polegares, Cleo esticou os braços como um diretor de cinema alinhando um enquadramento. — Hum… Suas mãos cor de café com leite formaram uma moldura através da qual ela podia analisar a posição do cartaz. Era crucial que ela pudesse ver exatamente o que a plateia veria. Seus expectadores esperavam a perfeição e ele estava sendo esperado em casa. Cleo olhou para o relógio de sol bem no centro do grande salão. Ugh! Aquilo era completamente inútil à noite. — Tempo! — gritou ela. Beb tirou um iPhone de dentro de sua túnica de linho branco. — Sete minutos. Grande onda! Teria sido muito mais fácil escrever a mensagem numa fonte 72 e imprimir na impressora a laser. Mas seu pai não tolerava tecnologia. Para bilhetes, listas ou cartões de aniversário, eram hieróglifos ou nada.

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Ramsés do Nilo, ou Rami, como os ocidentais o chamavam, insistia que todos embaixo do seu teto honrassem sua ascendência egípcia escrevendo com os caracteres antigos, que demoravam em média 20 minutos para serem escritos com perfeição. Era por isso que no cartaz estava escrito Bem-Vindo ao Lar Doce Lar e não BemVindo ao Lar Doce Lar, PAPAI. “Pelo amor de Geb! Quem tem tanto tempo assim?” Felizmente, essa tarefa mundana não comprometeu a rotina de sábado à tarde com Clawdeen, Lala e Blue, porque os 3 Ss — sol, spa e shopping — não podiam acontecer. Tomar sol não era possível devido à tempestade e os outros dois Ss tinham sido cancelados até que fosse seguro voltar a sair em público. “Obrigada, Frankie Stein!” Desde o baile da noite anterior no Merston High (aquele a que Deuce levou Melody Carver!), a polícia de Salem estava à procura de um “monstro verde” (Frankie!) cuja cabeça tinha caído durante uma sessão intensa de pegação com Brett Redding. A comunidade dos IRADOs

(Indivíduos

Refratários

a

Atributos

e

Designativos

Oridinários) decidiu que era melhor que todas as suas crianças ficassem em casa por precaução. Ainda

bem

que

seu

pai,

um

renomado marchand de

antiguidades, estava numa escavação arqueológica e perdeu o drama. Ele era superprotetor, na melhor das hipóteses. O que ele faria se soubesse que Cleo tinha concordado com o plano de Frankie? Que ela tinha ido ao baile à fantasia (cujo tema era monstros) vestida de múmia ou, melhor ainda, vestida como ela mesma? Que Blue tinha feito suas escamas de monstro marinho brilharem? Que Lala exibiu as presas? Que Clawdeen expôs a pelagem típica de sua família de 6


lobisomens?

Que

o

objetivo

de

tudo

aquilo

era

mostrar

aos normies que as “excentricidades” dos IRADOs não eram para ser temidas mas admiradas? Cleo tremeu ao pensar nisso. Se Rami soubesse metade daquilo, ele iria trancá-la numa tumba subterrânea e embalsamá-la até o ano 2200. — Tá bom? — Beb perguntou entre os dentes cerrados, que pareciam ainda mais brancos em contraste com sua pele oliva. Era

a

imaginação

de

Cleo

ou

o

canto

superior

esquerdo ainda parecia torto? Seu peito ficava apertado como um cadáver

enrolado

demais.

Ela

queria

acabar

com

aquilo. Precisava acabar com aquilo. O vinho ainda precisava ser servido, os aperitivos arrumados e a playlist de Sharkiat preparada. Se ela não dispensasse os funcionários, nunca conseguiria concluir essas tarefas a tempo. Claro que Cleo poderia ajudar, mas ela preferia cortar um braço a emprestar uma mão. Afinal de contas, seu pai sempre disse: — Há os chefes e há os trabalhadores. Mas você, minha princesa, é preciosa demais para ser qualquer um dos dois. E Cleo concordou plenamente. Mas ninguém tinha dito que ela não podia supervisionar. — Mais para cima, à esquerda! — Mas… — Beb começou a protestar, mas rapidamente pensou melhor. Ele ativou a função “nível de carpintaria” de seu iPhone e o alinhou horizontalmente. Ele observou pacientemente enquanto a bolha digital borbulhava um veredito, seus lábios negros balbuciando à tela que entregaria seu destino.

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— Para mim está perfeito — insistiu Hasina, equilibrando-se no braço folheado a ouro do antigo trono egípcio. — E quando Beb mede alguma coisa, ele é extremamente preciso — completou, arregalando os olhos negros delineados com kajal. A mulher tinha razão. Dezesseis anos atrás, Rami designou que Beb construísse uma casa

que

tivesse uma

fachada impressionante pelos modelos

ocidentais e um apelo palaciano real pelos modelos egípcios. Meses mais tarde, tudo isso estava em Radcliff Way, 32. Cinza e branco, o exterior de muitos níveis tinha o aspecto de uma mansão suburbana de novos ricos, uma McMansão. A porta da frente revelava uma sala apertada, com paredes forradas por painéis de madeira. As paredes eram pintadas de bege, a luz era fraca e tudo era chato.

De

entregadores

que de

outro

pizza

e

jeito

a

família

garotinhas

conseguiria

escoteiras

manter

bisbilhoteiras

vendedoras de biscoito sem suspeitar de nada? Mas, ao passar pela sala apertada, havia uma segunda porta, a porta real, que dava acesso à verdadeira casa. Ali começava o estilo palaciano. O salão principal tinha três andares e ficava sob uma imponente pirâmide de vidro. Quando não estava chovendo, a luz natural se derramava no interior como manteiga no pão quente. Quando a chuva caía, o tic-toc rítmico embalava os habitantes como uma trilha sonora ambiente. Hieróglifos coloridos demarcavam as paredes de pedra calcárea. Potes esculpidos de alabastro detalhavam a localização dos túmulos dos seus ancestrais. E um rio, feito por Beb com águas trazidas do Nilo, serpenteava por todos os cômodos do palácio. Em ocasiões especiais, Hasina adornava o rio com velas

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flutuantes. No dia a dia, flutuavam ali lírios-d’água egípcios. À noite, as velas e os lírios flutuavam lado a lado. — Cinco minutos! — anunciou Beb. — Pendure! — decidiu Cleo, batendo as mãos de repente. Chisisi, o mais tímido dos sete gatos da família, correu em disparada até a alta tamareira que crescia no meio do cômodo. — Desculpe-me, Chi! — murmurou Cleo. — Eu não queria assustar você! Um sininho ecoou pelo salão. Chisisi não tinha se assustado com Cleo. Tinha sido… — Ele chegou! — gritou Hasina, enquanto observava a imagem distorcida do patrão no monitor de segurança da porta real. — Depressa! — rebateu Cleo. Hasina pressionou a ponta do cartaz na coluna com um ímpeto de “cole agora ou nunca!” e olhou para o marido, sinalizando para que fizesse o mesmo. Mas era tarde demais. — Senhor! — As bochechas escuras de Hasina ficaram da cor de uma ameixa madura. Ela rapidamente se levantou do braço do trono e limpou qualquer marca que suas sandálias gladiadoras pudessem ter deixado. Sem dizer mais nenhuma palavra, ela e Beb escaparam para a cozinha. Segundos depois, uma voz acelerada explodiu nos altofalantes embutidos. Com a voz multioitavas de Mariah Carey e o som de Alvin and the Chipmunks, Sharkiat sacudiu o palácio com “Ya Helilah Ya Helilah”. — Papai! — gritou Cleo, soando animada e murcha ao mesmo tempo, como um M&M derretido. — Bem-vindo! Como foi sua viagem? Gostou do meu cartaz? Eu mesma fiz! 9


Ela se colocou orgulhosamente entre as colunas e esperou a aprovação do pai. Mesmo sendo uma adolescente de 15 anos muito madura (graças à mumificação), ela ainda precisava da aprovação do pai. E isso às vezes era mais difícil que conseguir manter os cílios postiços durante uma tempestade de areia. Mas não hoje à noite. Nesta noite, Rami afastou seu assistente, Manu, e seguiu direto ao encontro da filha, com os braços abertos como se dissesse “eu te amo um tantão assim”. — Senhor! — Manu chamou a atenção com sua voz suave um pouco alterada de preocupação. — Seu casaco! — Princesa! — disse Rami, puxando Cleo para dentro de seu largo casaco preto e abraçando-a com força. Nem toda a chuva do mundo conseguiria lavar o cheiro de mofo de um voo internacional, seguido por um Bentley com motorista cheio de fumaça de cigarro ou o inebriante cheiro de almíscar da pele dele. Não que Cleo se importasse. Ele podia estar cheirando à caixa de areia de gatos depois de um grande gole nas águas do Nilo e ela continuaria agarrada a ele. Segurando seus ombros, ele afastou-se um pouco e observou-a intensamente. Todo aquele excesso de atenção fez Cleo se contorcer. “Será

que

meu bandage

dress1 Herve

Leger

está

muito

apertado? Meu delineador roxo muito exagerado? Meus cílios muito cheios de glitter? As estrelas de henna nas minhas bochechas muito pequenas?” — O que foi? — perguntou Cleo, dando uma risadinha nervosa.

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Tipo de vestido bastante conhecido, caracterizado por sua estrutura em tiras

horizontais bem justas ao corpo (N.T. e N.E.).

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— Você está bem? — suspirou ele, exalando o doce aroma do tabaco. Havia algo de estranho em seus olhos negros amendoados. Suavidade. Procura. Talvez até medo. Na maioria das pessoas, seria visto como ansiedade. Mas ansiedade não combinava com seu pai. Era como uma relíquia exumada num sítio arqueológico. — Claro que estou bem — sorriu Cleo. — Por quê? Um sininho badalou na área de jantar. Os aperitivos estavam prontos. Chisisi desceu da tamareira; Bastet, Akins, Eboni, Ufa, Usi e Miu-Miu saíram com passos macios debaixo de um dos sofás em direção à farta mesa. Cleo abriu um sorriso ao perceber como os gatos eram previsíveis. Mas Rami não era assim. A preocupação endurecia seu rosto como uma máscara mortuária de barro. — As notícias se espalharam — disse ele, esfregando as têmporas, seus cabelos grisalhos mais brancos do que nunca. — O que aquela Frankie estava pensando? Como os Steins deixaram isso acontecer? Eles puseram toda a nossa comunidade em perigo! — Então você ficou sabendo? — perguntou Cleo. Mas o que ela realmente queria saber era quanto ele já sabia. Rami tirou um jornal Salem News do bolso de dentro de seu casaco e bateu-o com força na palma da mão, colocando um ponto final tenso naquele momento tão afetuoso. — Será que Viktor se esqueceu de colocar um cérebro naquela filha dele? Porque eu não consigo, por Geb, eu não consigo entender por… O sininho dos aperitivos tocou novamente.

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De repente, a urgência de defender Frankie brotou dentro de Cleo. Ou será que era apenas uma urgência para salvar a própria pele? — Ninguém sabe o nome dela. E na escola ela sempre usa aquela maquiagem normie, então ninguém a reconheceu. Talvez ela estivesse tentando agarrar o ka pelos chifres — sugeriu Cleo, balançando nervosamente em cima de suas plataformas. — Sabe como é, para mudar as coisas. — Que tipo de coisa? Ela foi criada há um mês! Que direito ela tem de mudar as coisas? — perguntou ele, levantando os olhos em direção ao cartaz de boas-vindas. Finalmente! Mas suas feições embrutecidas não mostraram nenhum sinal de apreço. — Como você sabe tanto sobre Frankie? — Cleo não conseguia entender. Porque, sinceramente! Os pais de seus amigos não iam além de São Francisco e ainda assim continuavam maravilhosamente abstraídos de todas as festas e baladas que aconteciam durante a ausência deles. Enquanto isso, seu pai ia desenterrar artefatos do outro lado do mundo e voltava mais sintonizado que estação de rádio sorteando ingressos para show. Isso era muito ka! — Qual é o problema com a sua geração? — continuou ele, ignorando a pergunta da filha. — Vocês não apreciam o passado. Não respeitam o patrimônio herdado nem a tradição. Tudo o que querem fazer é… — Senhor? — interrompeu Manu, a careca brilhando com pequenas gotas de chuva. Ele segurava uma maleta de alumínio com tanta força que seus dedos escuros já estavam perdendo a cor. — Onde quer colocar isso? 12


Enquanto pensava na resposta, Rami acariciou a barba crescida durante a viagem. Depois de um momento, olhou para Cleo e fez um gesto em direção às grandes portas duplas no final do salão. Segurando o cotovelo da filha com firmeza, conduziu-a através da arejada sala de estar com uma graciosidade bem ensaiada até a sala do trono. Uma família de falcões levantou voo em direção à tamareira. As asas pontudas das aves ecoaram pelo palácio como bandeiras tremulando ao vento. Iluminadas por lâmpadas à óleo de alabastro, as paredes de cobre martelado refletiam um suave brilho âmbar. Um macio corredor de junco trançado, polido por milhares de anos de pés ancestrais, levava à plataforma onde ficavam os tronos. Cleo deslizou sobre o assento de veludo púrpura e descansou as palmas nos braços incrustados de joias. Instintivamente, seu queixo se projetou para a frente e suas pálpebras cobriram metade de seus olhos. Agora, com a visão ligeiramente obscurecida, tudo ia chegando aos poucos. Ela havia se transformado numa rainha, tomando goles saborosos de seus domínios em vez de engolir tudo de uma só vez: o escaravelho preto e verde em cima da porta… Os juncos às margens do serpenteante Nilo… Os dois sarcófagos de ébano que ladeavam a entrada. As visões, os cheiros e os sons do seu reino baniram a tensão dos últimos dias e a fizeram se sentir segura, especialmente agora que o soberano tinha voltado. Respirar ficou menos trabalhoso e sua pele formigava com tamanho poder. Oh, como se sentia a realeza!

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Depois que tinham se acomodado, Manu gentilmente colocou a maleta na mesa de cobre entre os tronos e deu um passo para trás, aguardando instruções. “Abra”, pediu Rami com um simples gesto de pulso. Manu deu um clique no fecho, levantou a tampa forrada com veludo e deu um grande passo para trás. — Admirem! — disse Rami. — Eu encontrei isso na tumba da tia Nefertiti — completou, acariciando seu anel de esmeralda no polegar com uma audácia silenciosa. Cleo debruçou sobre seu trono e engasgou. Imediatamente começou um inventário mental da recompensa que agora brilhava diante dela:

1. Um colar de lápis-lazúli, esculpido na figura de um

falcão com as asas abertas, executado para descansar sobre os ossos de uma das mulheres mais admiradas do Egito 2. Braceletes

modelados,

com

fechos

de

rubi

e

esmeraldas, adornando o olho de Hórus

3. Uma coroa de ouro maciço, representando um abutre,

que

pesava

brilhantes

tanto que

devido

Cleo

à

quantidade

conseguiu

ver

de seus

pedras olhos

esbugalhados e cheios de desejo em cada uma das pedras coloridas 4. Um anel de ouro em forma de espiral, com uma pedra

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da lua do tamanho de uma bola de chiclete que praticamente brilhava no escuro 5. Brincos de jade no formato de peras, envolvidos em fios

de ouro, que faziam com que os brincos que Angelina Jolie usou

no

Oscar

2009

parecessem

bugigangas

6. Uma gargantilha de ouro com pedras e penas de pavão

penduradas, fazendo uma franja 7. Um bracelete que era uma cobra com olhos de rubi que

subia

desde

o

pulso

até

o

bíceps

8. Um cartão de visita de papel bem grosso e branco

jogado entre outras coisas na mala

— Espere! — Cleo chegou mais perto e pegou o cartão. —O que é isso? — perguntou, mesmo já sabendo. Quem não saberia? O imponente logotipo prateado no alto do cartão era uma palavra de cinco letras que significava “grande oportunidade”. — Brilhante

— sussurrou, admirada. Trêmula, Cleo leu as

palavras no cartão, enquanto suas muitas pulseiras tilintavam ao ritmo da alegre música egípcia. — Onde você pegou isso? — perguntou. Com o olhar ainda firme, Rami sorriu presunçosamente. — Espetacular, não é mesmo? Como se sente sobre seu passado agora? Você tem alguma ideia de quanto isso vale? Não apenas financeiramente, mas em termos históricos? Apenas o anel… — Papai! — Cleo pulou do trono, que já não era grande o suficiente para todo o seu entusiasmo. Ela esfregou cuidadosamente 15


os dedos nas letras em alto relevo. — V… O… G… U… E… Como você conseguiu o cartão dela? Rami olhou para a filha e sua decepção veio à tona, nua a crua. — O que tem de tão especial nessa Anna Winter? —respondeu rispidamente, fechando a maleta. Manu deu um passo adiante para pegá-la, mas Rami o dispensou com um aceno de mão. — Win-tour, papai! — insistiu Cleo. — Ela é a editora-chefe da Vogue! Você a conheceu? Você falou com ela? Ela estava de óculos escuros ou não? O que ela disse? Conte-me tudo! Rami finalmente sacudiu o corpo, tirando o casaco preto. Manu correu para pegá-lo e rapidamente ofereceu um charuto ao patrão. Como se estivesse se divertindo ao observar a inquietação da filha, Rami deu algumas tragadas calculadamente vagarosas antes de começar a falar. — Ela se sentou ao meu lado na primeira classe no voo do Cairo até o JFK — respondeu, soltando uma baforada fedida dos lábios semicerrados. — Ela viu um artigo sobre minha escavação na primeira página do Business Today — Egito e começou a falar sem parar sobre sua recém-descoberta paixão pela alta-costura do Cairo… O que quer que isso seja… — acrescentou, revirando os olhos. — Ela quer dedicar uma edição inteira a esse assunto. De seu posto atrás do trono, Manu balançou a cabeça. Ele parecia tão ofendido quanto Rami. — Ela disse exatamente “alta-costura do Cairo”? — Os olhos de Cleo brilhavam. O Egito estava finalmente na moda! — Aquela mulher disse um monte de coisas — respondeu ele, batendo palmas duas vezes.

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Beb e Hasina vieram rapidamente da cozinha, equilibrando bandejas de comida sobre as cabeças. Bastet, Akins, Chisisi, Eboni, Ufa, Usi e Miu-Miu pulavam famintos atrás deles. Cleo se sentou. — Que tipo de coisas? — continuou pressionando. — O que mais ela disse? — Algo sobre um ensaio para a revista do público jovem. Hasina baixou uma bandeja de bronze na frente de Rami, que pegou uma pita triangular e mergulhou-a num redemoinho de húmus. — O quê?! — engasgou Cleo, gesticulando para que Beb levasse embora a travessa com sambouseks de queijo e carne de cordeiro. A única coisa que queria naquele momento era o aplicativo da Teen Vogue para iPhone à venda no iTunes por $1.99. — Alguma coisa sobre modelos andando a camelo nas dunas de areia de Oregon, usando as joias da minha irmã e a mais moderna alta-costura do Cairo. Cleo sacudiu-se no seu trono. Primeiro, cruzou a perna direita sobre a esquerda, depois colocou a esquerda sobre a direita. Balançou o tornozelo e tamborilou nos braços macios da poltrona. Mesmo sabendo que seu pai não tolerava agitação, ela não conseguia se segurar. Todas as suas células, nervos, músculos, ligamentos e tendões estavam cutucando sua vontade de subir pelos muros do palácio como o Homem-Aranha e gritar lá de cima dos telhados a novidade incrível. Se ela pudesse sair de casa… “Obrigada, mais uma vez, Frankie Stein!” — Acho que tudo isso é uma exploração. É a minha opinião — murmurou Manu. 17


Cleo fulminou o servo com um olhar de “cale a boca senão vou cobrir sua careca de fígado de ganso e chamar os gatos”. Ele pigarreou e baixou os olhos redondos, castanhos e mareados. — Quero participar! — insistiu Cleo, piscando seus longos cílios. — Participar do quê? — Rami apoiou o toco do charuto numa travessa no formato de ankh cheia de baba ganoush. Hasina apareceu e, com a agilidade de um felino, levou-o embora. — Eu não concordei com nada. — Mas isso não impediu Anna Winter de organizar toda a sessão fotográfica do caminho da saída do avião até o portão de desembarque. Ela até escolheu uma data — disse Manu. — Quando? Rami deu de ombros, como se não ligasse a mínima. — 14 de outubro. — Estou totalmente livre nesse dia! — Cleo deu um pulo e bateu palminhas aceleradas. Seu pai olhou sobre os ombros e fuzilou Manu com o mesmo olhar de “gatos na sua careca”. — Essa Anna Winter age como se fosse uma rainha, pelo amor de Geb. Eu não quero trabalhar com… — Você não vai fazer nada. Sou eu que vou trabalhar com ela! — Cleo estava tão entusiasmada que não tentou corrigir a pronúncia errada do pai e de Manu. Isso tinha que acontecer. Era o destino. Rami procurou no rosto da filha algum tipo de pista na direção certa. Apesar de seu coração galopante, Cleo permanecia parada e controlada.

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— Já sei! — disse ela, estalando os dedos, como se tivesse acabado de ter uma ideia. — Eu serei uma das modelos! — Observou os olhos do pai. — Desse jeito, posso conhecer todo o processo, do começo ao fim! — completou, sabendo exatamente como funcionava a mente do pai. Rami podia escrever em hieróglifos e falar egípcio, mas pensava como

Donald

Trump.

Ele

valorizava

iniciativa,

confiança

e

planejamento minucioso mais do que qualquer coisa que tivesse exumado. Enquanto ele rodava o anel de esmeralda no polegar, seus olhos amendoados pareciam distantes e pensativos. — Por favor! — suplicou Cleo, caindo de joelhos. Ela inclinou-se diante dele até que sua testa tocasse o tapete, que tinha o mesmo cheiro doce e almiscarado de seu óleo marroquino para cabelo. — Porfavordigasimporfavordigasimporfavordigasimporfavordigasim… — Não criei você para ser modelo — disse ele. Cleo levantou os olhos. — Eu sei disso! — murmurou. — Você me criou para ser uma designer de joias mundialmente conhecida. Ele concordou, lembrando do sonho da vida da filha, mas ainda não tinha visto nenhuma ligação entre as duas coisas. Cleo se sentou. — Tem jeito melhor de conhecer pessoas e fazer um network — e impressionar os amigos e fazer Deuce se arrepender do dia em que convidou Melody para o baile — do que trabalhar com a editora de acessórios da Teen Vogue? — Por que você precisa de network? — perguntou Rami, soando magoado. — Posso conseguir emprego para você onde você quiser. 19


Cleo queria bater suas plataformas no chão e gritar. Em vez disso, pegou a mão do pai. — Papai — conseguiu dizer, calmamente. — Sou descendente de uma rainha. Não de uma princesa! —E o que significa isso? — perguntou, seus olhos reavivados por uma semente de brincadeira. — Quer dizer que eu quero o que quero — sorriu Cleo. —E posso fazer o que eu quero sozinha. — Com licença, senhorita Cleo — interrompeu Hasina. —Você quer que eu prepare o seu banho? — Lavanda, por favor. A serva baixou a cabeça e se afastou rapidamente. Rami deu uma risadinha. — É assim que você faz as coisas sozinha? Cleo não conseguiu segurar o riso. — Pedi que ela preparasse o banho, não que tomasse o banho por mim. — Ah, sim! — sorriu ele. — Então você quer que eu confirme que você participará do ensaio, insista que você será uma das modelos e depois saia de cena para você fazer o resto? — Exatamente — Cleo beijou a testa bem preservada do pai. Acariciando os lábios cerrados, Rami deu um último show antes de decidir sobre o pedido da filha. Cleo segurava-se para não se debater. — Talvez seja exatamente isso que sua geração precise — meditou. — Hã? — Essa não era nem de longe a resposta que ela esperava ouvir. 20


— Aposto que se Viktor Stein tivesse encorajado sua filha a se envolver mais nas atividades extracurriculares, ela não teria se atolado em tantos problemas. — Concordo plenamente — Cleo balançou a cabeça com tanta força que sua franja foi de um lado para o outro. — Quem tem tempo para problemas quando está ocupado? Eu certamente não! O rosto de seu pai foi coberto de alívio. Ele pegou o cartão de visita das mãos de Cleo e passou para Manu. — Faça a ligação. Yessss! Mesmo Rami sendo tão sério, Cleo sempre conseguia o que queria. — Obrigada, papai! Cleo cobriu a bochecha do pai com beijos melados de cereja. Esse era o primeiro passo significativo de seu plano de dominar o mundo da moda. E todas as possibilidades que se abriam com isso faziam seu bem preservado coração subir mais alto que o cartaz de boas-vindas mais alto do mundo. “Chispa, Frankie Stein. Tem manchete nova na cidade.”

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CAPÍTULO 2 PASSA A CERA, ARRANCA A CERA.

Os raios açoitavam o céu noturno como um jóquei sobre um cavalo. A chuva tinha aumentado. As árvores balançavam e quebravam. Ouviram-se uivos a distância. A recepção na tela plana da TV vacilou e voltou… Vacilou e voltou… Vacilou e… Ping! Melody Carver curvou-se para se afastar da irmã mais velha, Candace, e entocou-se no canto do sofá roxo. Ela apertou o PLAY no telefone e se apoiou para curtir outra iAmeaça. — Tick… Tick… Tick… Era como os outros. Gravado por sua ex-amiga Bekka Madden e enviado para o iPhone de Melody a cada 60 minutos, era um lembrete assustador que o prazo de 48 horas agora devia estar em 23. O objetivo de Bekka era simples: capturar o monstro verde que tinha pegado — e traumatizado — seu namorado, Brett, no baile da escola. Melhor ainda: ela queria que Melody capturasse o monstro 23


para ela. E Melody tinha até às 22h de sábado para fazer isso. Se falhasse, Bekka ia publicar um vídeo de Jackson Jekyll virando D.J. Hyde. Daí ele também seria um “procurado”. Melody queria proteger Jackson mais do que qualquer coisa. Mas tinha conhecido esse monstro. Na verdade, o monstro deu um choque acidental em Melody na fila do lanche no primeiro dia de aula. E com exceção do parafusono-pescoço-pele-verde-eletricidade, Frankie Stein era completamente normal. Tente ignorar a maquiagem pesada e o guarda-roupa de freira e ela era até bem bonitinha. Outro raio chocante no barranco atrás da casa dos Carver. E um estrondo de trovão. — Aaaahh! — gritaram Candace e Melody. A TV vacilou e voltou… Vacilou e voltou. — Ugh! Isso é coisa de dez mil anos atrás! — Candace deu um soco numa almofada aveludada. — Sinto-me uma mulher das cavernas! Ondas elétricas faiscaram até o canto do sofá onde estava Melody. — Acho que não tinham HDTV há dez mil anos. — Preste atenção! — Candace deu um cutucão na coxa de Melody com seus pés de unhas pintadas. — Não estou falando da TV! Candace, usando um quimono cor-de-rosa clarinho, estava cercada de pedaços de pano, palitos de sorvete, montanhas de talco para bebê e uma vasilha cheia de alguma coisa que parecia mel congelado. — Estou falando desse maldito kit para depilar as pernas com cera! É tão primitivo!

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— Desde quando você depila as próprias pernas? — perguntou Melody, enquanto checava o telefone para ver se não tinha perdido twits ou mensagens durante os segundos que desviou o olhar do aparelho. — Desde que o monstro de ontem à noite assustou todo mundo e fez com que o melhor salão da cidade fechasse aos sábados — respondeu Candace, espalhando um montão de cera na canela e cobrindo-a com uma tira de tecido retangular. — Se não abrir logo, Salem

ficará

cheia

de

feras peludas

completou, puxando

vigorosamente o tecido. — Quer dizer, você viu as meninas na escola? Eu disse para uma das meninas que as calças de pelúcia dela eram super rock’n’roll e sabe o que ela me disse? Luzes de um carro de patrulha iluminaram as paredes de madeira da sala dos Carver. Os policiais caçavam Frankie Stein como tubarões. Melody cutucava as pontinhas das cutículas. Quanto tempo ela ia aguentar ficar na moita? Uma hora? A noite toda? Até a próxima ameaça de Bekka? O relógio não parava. O tempo estava passando. — Mel — Candace cutucou-a novamente com o dedão do pé. — Sabe o que ela disse? Melody deu de ombros, incapaz de parar de pensar em Jackson e do perigo que ele estaria correndo se ela não encontrasse um jeito de impedir Bekka de fazer vazar o vídeo. Outro jeito, claro, além de entregar Frankie. Alguma coisa ousada, inteligente, e… — Ela disse: “Eu não estou usando calças de pelúcia!” — respondeu Candace, segurando uma nova tira de cera. — Sabe por que ela disse isso? Porque ela estava de minissaia, Melly! Minissaia! A

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pobrezinha era peluda demais! — Ela apertou os olhos e puxou. — Arrrrrgh! Fora, pelo! Ping! — O que foi agora? — perguntou Candace, espalhando talco de bebê na pele esfolada. Melody checou o telefone. Era Jackson. JACKSON: VC

VIU

O

RETRATO

FALADO

DE

FRANKIE NA TV? MELODY: NAUM, CHUVA TÁ ATRAPALHANDO O SINAL DA TV. JACKSON: PA-RECE VESTIDO DE NOIVA. Melody deu uma risadinha. — O que foi? O que é tão engraçado? — Candace quis saber, balançando as longas ondas loiras para trás dos ombros com o charme de uma modelo. — Nada — murmurou Melody, evitando os curiosos olhos verdes da irmã. Será que ela mantinha Candace desinformada para protegê-la? Ou estava fazendo isso para se testar? Para ver se conseguia

sobreviver

a

situações

complicadas

ou

até

mesmo

conseguir vencer uma situação dessas sem a ajuda de sua irmã corajosa e perfeita? Ela não tinha certeza. MELODY: ALGUMA IDEIA? JACKSON: NÃO

MAS

TEMOS

Q

PENSAR

EM

ALGUMA COISA. SE BEKKA MOSTRAR O VÍDEO, MINHA

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MÃE VAI ME MANDAR P/ LONDRES P/ VIVER COM MINHA TIA. Essa notícia rasgou Melody por dentro com a força de uma tira de cera sendo arrancada. Mesmo que eles se conhecessem há apenas um mês, ela não conseguia imaginar Salem sem ele. Não conseguia imaginar nada sem ele. Na linguagem do amor, era como se Melody fosse a letra Q e Jackson a letra U. Um completava o outro. MELODY: VAMOS FALAR COM BEKKA! PODEMOS IMPLORAR… JACKSON: ELA

OCUPADA

D+

DANDO

ENTREVISTAS NA TV E NA WEB. ELA NAUM VAI PARAR ATÉ PEGAR FRANKIE. BRETT ESTÁ EM CHOQUE, AINDA NO HOSPITAL, VIGILÂNCIA TOTAL. LOUCURA! VÍDEOS NO YOUTUBE DE FLAGRANTES DE MONSTROS FALSOS. Outra tira de cera arrancada de dentro de Melody. Essas novidades estavam apenas deixando-a mais estressada. Ela precisava sair daquele sofá e tomar uma atitude. Achar um jeito de deletar aquele vídeo do Jackson do telefone de Bekka e… A porta da frente foi aberta de repente. Um golpe de vento entrou enregelando a sala, seguido por vários trovões. — Aaaahhh! — As duas garotas gritaram novamente. Candace chutou o ar, apavorada. Suas canelas estavam cobertas de tiras brancas. — Quem está pronto para o jogo de hoje à noite? — perguntou a mãe, balançando seu guarda-chuva Louis Vuitton marrom e 27


dourado antes de entrar em casa. — Temos UNO, Balderdash e Apples to Apples — anunciou, colocando duas sacolas molhadas da Target e quatro da Nordstrom em cima da pia. A única coisa que essa ex-personal shopper destestava mais do que meias azuis com calças pretas eram manchas de água no chão de madeira. — Jogo, hoje? — Candace murmurou silenciosamente. Melody deu de ombros. Era a primeira noite de jogos de que ela ouvia falar na vida. — Que tal algumas pizzas light crocantes? — perguntou Beau, seu pai eternamente bronzeado e supermalhado. Ele seguiu Glory com uma sacola de delivery e um sorriso “alegria pra toda a família”. — Papai vai comer queijo? O que estamos comemorando? — Candace gritou do sofá. Glory reapareceu e deu a cada menina uma caixa de sapato de papelão, com a marca UGG. — Estamos apenas tentando fazer o melhor durante esse toque de recolher. Queremos nos divertir caso esta seja nossa última noite no mundo dos vivos — disse ela, dando uma piscadinha brincalhona para Melody, deixando claro que ela acreditava que toda essa febre de caçar monstros era apenas uma estratégia de cidade pequena com economia em baixa para aumentar as vendas de comidas enlatadas, água

engarrafada,

lanternas e

baterias.

Mas, no

espírito

de

entrosamento, seus pais decidiram participar do jogo. Candace levantou a tampa da caixa e cuidadosamente deu uma espiada lá dentro.

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— Ahn? Você sempre disse que UGGs eram sapatos de homens das montanhas. E que nunca deveriam ser usadas por mulheres solteiras. — Isso era quando eu vivia em Beverly Hills — explicou Glory, desamarrando o lenço de seda dourada que lhe cobria a cabeça e balançando seus cabelos ruivos. — Estamos no Oregon agora. As regras mudaram. É frio aqui. — Não nessa casa — respondeu Melody, apontando para o aquecimento quebrado. Lá fora, o vento estava uivando, mas ela estava suando em bicas dentro de seus shorts e camiseta. — Está todo mundo de UGG? — perguntou Beau, dando passos pesados com um par cinza novinho. Mesmo com todo o botox que tinha no rosto, sua alegria estava claramente visível. — Por que vocês estão tão… felizes? — perguntou Candace e logo em seguida… Rrrrrip! Puxou outra tira da perna. — Ai! — gemeu, e acariciou rapidamente o local avermelhado. — Estamos ansiosos por um fim de semana em família — Beau apoiou-se na parte de trás do sofá e acaricou os cabelos loiros da filha. — Esta é a primeira noite de sábado em anos que Candace não sai para um encontro. — Ahn, corrigindo! — Candace apertou o nó do quimono e ficou em pé. Um papel de bala prateado estava grudado na cera do seu joelho. — Eu tinha um encontro. Foi cancelado por causa desse estúpido toque de recolher. Agora estou trancada aqui dentro com jogos de tabuleiro, pizzas individuais e botas UGG — disse, puxando o papel de bala e amassando-o até virar uma bolinha prateada, que ela jogou na lareira. — Esqueça da Candace que sai. Agora, só tem a Candace que fica. Acreditem, não tem nada de excitante nisso. 29


— Desculpe-me! — falou a mãe, amuada. — Não tinha ideia que seu pai e eu éramos uma companhia tão terrível. — Não foi isso que eu quis dizer — Candace revirou os olhos. Ping! Melody olhou para o telefone, agradecendo a oportunidade de se desligar um pouco da briga em família na noite em família. JACKSON: AINDA PRECISAMOS

DE

UM

TAIH? PLANO.

Q O

ACONTECEU?

TEMPO

TAH

SE

ESGOTANDO. Assim que Melody levantou o dedo indicador para começar a teclar, o telefone sumiu de suas mãos. — O que você está fazendo? — Melody deu um grito agudo com a irmã. — Tentando me divertir em família — provocou Candace, balançando o telefone sarcasticamente. — Você está totalmente torpedomaníaca a noite toda e eu quero saber o que está acontecendo. — Melody! — Beau chamou a atenção dela, sério. — Você está fazendo torpesexo? — O quê?! — Melody indignou-se. — Argh, não! Em outras circunstâncias, ela teria achado graça nessa tentativa do pai em falar a linguagem adolescente, mas não havia nada de engraçado em perder o telefone naquele momento. — Candace, devolva-me!

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— Não até que você me conte o que está acontecendo! — insistiu Candace, levantando o telefone acima da cabeça. — Com quem você está falando? Sr. Hollywood? — Quem? — Melody tentou alcançar o telefone, mas Candace rapidamente tirou-o do alcance da irmã. — Aquele cara el misterioso que sempre usa um chapéu e óculos escuros. Não foi ele seu par no baile de ontem? — Na verdade, não. Foi Bekka que nos obrigou a ir juntos. A gente nem ficou e… — Melody parou a frase no meio. — Por que estou me explicando para você? — Eu sabia! É o Jackson! — Candace! — Melody atacou novamente. — Devolva meu telefone! Papai, pegue! — De jeito nenhum! — Ele fez uma careta. — Vocês duas que se resolvam! — Ele se levantou e foi arrastando suas UGG até a cozinha, resmungando sarcasticamente sobre os prazeres de ter filhas adolescentes. — Can-da-ce! — Melody jogou um travesseiro no peito da irmã, mas Candace o afastou com um golpe ligeiro, com a finesse de quem já estava acostumada a lutar contra invasores. — Devolva agora! — insistiu Melody. Ela atacou pelo sofá, os dedos prontos para puxar cabelos. No momento em que alcançava o cabelo da irmã, sua vista ficou embaçada por uma nuvem de pó branco. Melody começou a tossir instantaneamente. — Não se aproxime! — alertou Candace, empunhando o pote de talco para bebê como se fosse uma lâmina. — Ou eu jogo de novo!

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— Minha asma! — Melody conseguiu falar, tentando dissipar a nuvem perfumada. — Ai, droga, esqueci! — disse Candace, deixando cair sua arma. — Você está bem? Precisa do inalador? Melody enlaçou a garganta e fez que sim com a cabeça. No momento em que Candace lhe deu as costas, Melody avançou como um raio e arrancou uma tira de cera da parte interna da coxa da irmã. — Ahá! Te peguei! — Aaaaahhhh! — gemeu Candace. Mesmo assim, conseguiu se levantar e, com uma moeda grudada na batata da perna, correu até a porta corrediça de vidro que dava para o barranco. — Adeus, telefone! — Você não faria isso! — Melody ficou vesga. Candace destrancou a porta e deslizou um dos painéis. — Ou você me conta o que está acontecendo ou juro que este telefone vai virar uma TV em algum ninho de passarinho. Melody não ousaria dizer que a irmã estava blefando. Na última vez que isso tinha acontecido, sua mochila da Barbie foi atirada dentro de um conversível que estava passando. Ela desisitiu, como sempre desistia, e sussurrou no ouvido de Candace tudo sobre Bekka, Brett, Frankie, Jackson, o vídeo e o prazo que se esgotava. — Uau! — exclamou Melody depois que Candace terminou de contar tudo. Ela entregou o telefone sem que a irmã pedisse, levantou ligeiramente a cabeça e encarou-a. Sua expressão era uma mistura de

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intriga e confusão, como se ela estivesse estudando alguém que ela podia jurar que nunca encontrara antes. Melody mordeu a unha do dedão, apavorada pela expressão da irmã. “Ela vai rir da minha situação? Vai me chamar de idiota por não entregar Frankie? Me culpar por ter me tornado amiga de Bekka, antes de tudo? Forçar Jackson a sair da minha vida? Dizer aos nossos pais que toda essa coisa de monstro não é parte do pacote de estímulos de Salem?” Um trovão quebrou o silêncio que pairava entre elas. — Pare de me encarar assim — pediu Melody. — Fale alguma coisa! — Você quase me enganou — respondeu Candace, sorrindo. — Mas toda essa coisa de “filha do Frankenstein se escondendo no laboratório do pai”? Sinceramente? — Ela passou por Melody e voltou ao sofá. — Olhe, se você não quer admitir que você e Jackson estão trocando mensagens de amor, tudo bem. Mas pelo menos invente alguma coisa mais criativa. Você é a última pessoa que eu esperava ver pegando carona nos monstros para conseguir ser popular. Está muito abaixo de você. Melody ia começar a se defender, mas voltou atrás. Por que não deixar Candace acreditar que todo o drama de Frankie era invenção dela? Assim era melhor para todos. — Você está certa — suspirou Melody, sentando-se na mesa de centro espelhada. — Estava mentindo. Agora estou com vergonha… — A-há! — Candace deu um pulo. — Você estava falando a verdade! — O quê? Não, não estava!

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— Mentira! — Candace espetou o ar com o dedo em riste. — Você nunca admite que estou certa quando estou certa mesmo. Melody deu uma risadinha culpada enquanto se impressionava ao ver como Candace estava distante do estereótipo da loira burra. Aquela cabeça não estava cheia de ar. A roda que girava seu cérebro levantava vento entre suas orelhas. — Então, tem mesmo uma filha do Frankenstein? — sussurrou Candace. Melody gesticulou que sim. — E ela vive num laboratório? Melody confirmou novamente. — E ela é carregada de eletricidade? — Sim! — Muito clichê! — Candace espiou pela porta de vidro que dava no barranco. — Tem outros? — Não tenho certeza — respondeu Melody. — Mas você não precisa ficar com medo. — Melody sentiu necessidade de explicar mais. — Eles são completamente normais… quase. — Com medo? — Candace sorriu lentamente, sua face se iluminando como um lago ao cair da tarde. — Não estou com medo. Estou vibrando! — Ahn? — Melody abraçou os joelhos. A superfície fria da mesa espelhada gelou seus pés úmidos. — Estou orgulhosa de você — Candace abriu um sorriso. — Você finalmente faz parte de algo perigoso. — Sério? — Sim, só não sei exatamente por que — admitiu, batendo o pó branco das almofadas. — Não faz o seu tipo se envolver assim. 34


Melody se ofendeu com esse comentário, mesmo sabendo que vinha da garota que achava que fazer o download de “Hope for Haiti Now” a transformava numa humanitária. — Acho que eu sei como é se sentir julgada pela sua aparência — explicou, aparentemente pela centésima vez. — E? —Candace ficou em pé, passando a mãos nas pernas em busca de sobras de cera. Seu tom era mais curioso do que condescendente. Melody sabia que era difícil uma pessoa geneticamente perfeita como Candace entender como era ser esteticamente prejudicada. Mesmo depois de falar tantas vezes para a irmã como era sua vida antes da cirurgia do nariz e todo o abuso que sofreu dos colegas de escola, ela parecia não entender. Era como explicar o que era um hipermercado para um nativo da Tanzânia. — E eu quero que as pessoas parem de julgar — continuou Melody. — Na verdade, quero que as pessoas parem de se sentir julgadas. Oh, e eu quero que os valentões parem de intimidar as pessoas… Ou monstros… Ou o que quer que sejam… — concluiu, tendo consciência de que soava um pouco confusa. — Eu só quero ajudar, OK? Candace começou a rodar como um cachorro atrás da própria cauda. — Você pode começar a ajudar puxando esse resto de cera — disse ela. — Eu não consigo puxar direito a parte de trás. — Esqueça — murmurou Melody. — Depois de tudo que eu lhe contei, é nisso que você está pensando? Suas pernas? Ping!

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Melody olhou para o telefone. Era outra mensagem de áudio de Bekka. Dessa vez, ela escutou no viva-voz. — Tick… Tick… Tick… O rosto sardento de Bekka apareceu na mente de Melody. Era uma face que já tinha inspirado confiança. Um rosto que almoçava junto com ela. A cara de uma amiga. Agora, era uma face presunçosa que

provavelmente

tipouuuuuháháháháháhá toda

dava vez

risadas

que

mandava

malignas uma

de

suas

mensagens sonoras, com o estúpido “tick… tick… tick…”. Melody tentava imaginar a ex-amiga bisbilhotando seu telefone. Encontrando o vídeo de Jackson. Arquitetando o esquema de chantagem. Ameaçando Frankie. Liderando a caça aos monstros. Espalhando medo e pânico. Usando seu ego inflado como desculpa para destruir vidas… Ugh! O coração de Melody batia cada vez mais rápido e cada vez mais forte a cada pensamento. Ela queria se levantar e tomar uma atitude.

Arrancar

a

cabeça

dela

do

mesmo

jeito

que

Brett

acidentalmente arrancou a de Frankie. Melody queria saltar da mesa de centro, agarrar uma das tiras de cera da parte de trás das pernas maravilhosas de Candace e arrancar toda a sua frustração. E foi exatamente o que ela fez. — Aaaahhh! — berrou Candace. Melody marchou pela sala com um novo objetivo na vida. — O próximo grito que eu ouvir será o de Bekka. — Espere! — pediu Candace, correndo atrás dela. — Você acha que tem alguns monstros gatinhos? — Peraí, Bella! Quem é que está pegando carona agora? 36


— Pare! — insistiu Candace. — Eu quero ajudar. Dessa vez, Melody virou-se e encarou a irmã. — Verdade? — Sim — Candace balançou a cabeça com genuína sinceridade. — Eu preciso de um bom assunto para meu trabalho de faculdade. — Candace! — O que foi? Quanto mais pessoas normais ajudarem, melhor, certo? Melody considerou essa frase por alguns minutos. Mais uma vez, sua irmã tinha razão. Quem melhor para lutar pelos direitos dos esteticamente prejudicados do que os geneticamente perfeitos? Nada explica melhor a frase “somos todos iguais por dentro” do que EP e GP vivendo em harmonia. Nem mesmo um filme. — Tá bom. Vista-se — consentiu Melody. — E não coloque nada chamativo. — Chamativo num avião ou numa aula de yoga? — Chamativo em lugar nenhum. — Por quê? Para onde estamos indo? — perguntou Candace, dando um jeito no cabelo. — Ainda não tenho certeza — respondeu Melody, subindo os desnivelados degraus de madeira até o quarto. — Mas onde quer que seja, vou certamente precisar de uma motorista.

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CAPÍTULO 3 CARREGADA E SEM RUMO

Frankie Stein virou-se de frente para a gaiola dos ratos de laboratório ao lado de sua cama. — Eu não tenho muita experiência com esse tipo de coisa — disse ela. — Mas é costume visitar o amigo depois que ele teve a cabeça decepada? Rato B, ou Gwen, como Frankie a chamava, levantou o nariz rosado e fungou. Gaga, Girlicious, Green Day e Ghostface Killah continuaram indiferentes. — Bem, se não é costume, devia ser — continuou, deitando-se de costas. Uma única lâmpada balançava acima. Como um ciclope intimidador, já estava olhando para ela pelas últimas 24 horas. “Mas também, quem não estava?”

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Tinha chovido o dia todo. Um flash iluminou a rua através da vidraça congelada. Não era o primeiro raio a atingir a cama de Frankie. Mas tinha sido o mais forte. Tinha feito o carregador doméstico fabricado por seu pai parecer um touro com a pata quebrada. Suas pernas sacudiram para cima e aterrissaram com um baque. Assim como sua vida social. — Estou completamente carregada e sem nenhum lugar para ir — suspirou, abrindo as garras que se prendiam em seus parafusos como pequenas bocas de jacarés. Sua energia tinha sido totalmente restaurada. Seu pescoço, recosturado. E todas as suas suturas reforçadas. Depois de perder a cabeça durante um amasso de amolecer as pernas com um normie, Brett Redding, Frankie tinha ganhado uma nova chance na vida. Infelizmente, não era a vida que ela queria. Respirando o cheiro impregnado de formol do laboratório do pai, Frankie sentia falta dos toques femininos eletrizantes dos quais seu pai a privara depois do “acidente”: as velas perfumadas de baunilha, o esqueleto com o rosto de Justin Bieber, os bequers cheios de gloss e pincéis de maquiagem, os tapetes cor-de-rosa, o sofá vermelho, o glitter em Gaga, Gwen, Girlicious, Green Day e Ghostface Killah. Tudo se foi. Todos os traços da Frankie feliz foram removidos. No

lugar

dessas

coisas,

estavam

instrumentos

cirúrgicos

esterilizados, espirais elétricos de arame e ratos de laboratório comuns e brancos — lembretes desalmados de como ela tinha vindo ao mundo. E de como seria fácil simplesmente tirá-la da tomada e acabar com tudo. Claro que seus pais não queriam desligá-la. Eles obviamente amavam Frankie. Por qual outro motivo Viktor tinha passado a noite 40


toda consertando a filha? Era o resto dos IRADOs que queria puxar a tomada. Afinal, ela era a culpada pela primeira caçada aos monstros desde os anos 1930. Tinha assustado Brett a ponto de mandá-lo direto para a emergência psiquiátrica. E todos os policiais da cidade estavam procurando por ela. Mas, mesmo assim, seus pais tinham que confiscar seu celular? Confiná-la ao laboratório? Arrancá-la de Merston para educála em casa? Tá, ela saiu de casa escondida para ir ao baile, mesmo estando (injustamente) de castigo. E, sim, sua pele verde ficou (completamente)

exposta.

E

sim,

sim,

sim,

sua

cabeça

(acidentalmente) caiu. Mas, vamos lá! Ela estava apenas tomando uma atitude contra a discriminação. Eles não conseguiam ver isso? Um trovão retumbou lá em cima. Gaga, Gwen, Girlicious, Green Day e Ghostface Killah se ergueram, apoiando-se nas pernas traseiras, arranhando freneticamente o vidro de suas gaiolas. Frankie colocou a mão lá dentro. Seus coraçõezinhos estavam batendo na velocidade “lutar ou correr”. Mas, lá dentro, presos, não tinham como lutar nem correr. Eram forçados a permanecer ali, diante de qualquer ameaça. Exatamente como Frankie. — Isso vai ajudar — disse ela, tirando um pacotinho de glitter multicolorido que ela mantinha escondido embaixo da serragem. — Só porque o papai está bravo comigo não significa que vocês devam sofrer. — Ela descolou o pequeno selo e espalhou o glitter sobre os ratos como se fosse sal em batata frita. — Está chovendo glamour! — cantarolou, tentando parecer animada. Mas ela soava muito mais desafinada. Segundos depois, os animais pararam de arranhar o vidro e se ajeitaram no estado de relaxamento-quase-coma de costume. Mas 41


agora pareciam bolas de sorvete de baunilha cobertos de glacê multicolorido. — Eletrizante! — Frankie sorriu, satisfeita. — Os Glitterati estão de volta! Era apenas um pequeno passo para restaurar o glamour no laboratório, mas era um começo. Sem nenhuma batida de aviso, Viktor e Viveka entraram. Frankie afastou-se da gaiola e voltou para cama: o único lugar que lhe tinha restado. — Você está acordada — disse o pai, sem aparentar satisfação ou decepção. A indiferença dele doía mais do que um milhão de pontos com uma agulha rombuda. — Boa noite, Frankie — disse a mãe, cansada. Ela cruzou os braços sobre o robe de seda negra, fechou os olhos cor de violeta e apoiou a cabeça no batente da porta. O verde da sua testa tinha desaparecido. O verde vibrante que lembrava um sorvete de menta agora parecia um suco de pepino em conserva. Frankie correu até eles. — Desculpem-me! — Ela queria abraçá-los e precisava que eles retribuíssem o abraço. Mas eles não se mexeram. — Por favor, me perdoem! Prometo que nunca mais… — Chega de promessas — Viktor levantou sua mão gigantesca. Seus olhos estavam meio fechados e os cantos de sua grande boca tremiam como uma minhoca pegajosa ao sol. — Conversaremos pela manhã.

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— Precisamos nos carregar — explicou Viveka. — Ficamos a noite toda consertando você e hoje foi… — Sua voz sumiu por um momento. — Exaustivo. Frankie baixou os olhos, encarando sua surrada camisola de hospital, envergonhada. Seus pais, já adultos, raramente precisavam se carregar. Mas eles obviamente precisavam de uma carga agora, e a culpa era dela. Levantando a cabeça, ela se forçou a encará-los. Mas a porta foi fechada e eles foram embora. “E agora?” Do outro lado da parede, a máquina de carga de Viktor e Viveka zunia. Enquanto isso, Frankie, mais eletrificada que a usina de Salem, andava sem rumo sobre o chão branco e brilhante, imaginando se haveria vida para ela além do laboratório do pai. Ansiava por notícias dos amigos. Mas onde estavam eles? Será que eles também estavam de castigo? Ainda eram amigos dela? E o que dizer de Melody e Jackson/D.J. Hyde? Eles deviam estar arquitetando um plano para salvar Frankie de Bekka. Mas ela não tinha notícias deles… A não ser que eles estivessem se vingando por estarem em perigo também. Talvez o D.J. nem gostasse dela. Talvez Melody e Bekka estivessem juntas, agora mesmo, rindo. Erguendo taças com refrigerante normie borbulhante e fazendo um brinde ao seu sucesso… “Para Frankie, que perde a cabeça mais rápido do que o pai da Lala, Drácula, consegue chupar sangue!” Encolhendo-se na cama, enrolou-se nos cobertores felpudos eletromagnéticos. — Veja, Cyclope! Sou um rolinho de abacate! A lâmpada apenas continuou brilhando. 43


A solidão enregelava as entranhas de Frankie como a primeira brisa fresca do outono: uma dica fria da escuridão que vinha adiante. Mais um trovão retumbou. Raios brilharam. O tap-tap-taptap dos Glitterati começou de novo. — Tá tudo bem — murmurou Frankie de dentro de seu rolinho de lã. — É só… Outro raio. As luzes da rua se apagaram. A máquina do outro lado da parede parou de zunir. O laboratório ficou escuro. — Isso é totalmente choqueletrificante! — Frankie chutou o cobertor e

sentou-se

na

cama.

Será

que

ainda

não

fui

suficientemente punida? Faíscas de energia nervosa estalavam na ponta de seus dedos, iluminando o seu redor. — Eletrizante! — sussurrou, com uma simpatia renovada pelo seu anteriormente constrangedor hábito de soltar faíscas. Guiada pelos estalos das luzes amareladas, Frankie andou até a porta. Se ela conseguisse chegar ao quarto dos pais antes que suas últimas faíscas de energia desaparecessem, poderia dar uma pequena carga neles, ou qualquer outra coisinha para que aguentassem até a máquina voltar a funcionar. Talvez assim eles conseguissem ver a sorte que tinham por ela existir. Talvez ela fosse perdoada. Talvez eles a abraçassem. Quando Frankie estava colocando a mão na maçanete, outro golpe de ar frio soprou. Só que desta vez não era solidão. Parecia o vento. Ela virou-se lentamente para encarar o frio, esforçando-se para enxergar na escuridão. Mas o seu alcance de visão se limitava à barra de sua camisola cirúrgica e a ponta de seus pés descalços. 44


O vento soprou mais forte. A boca de Frankie secou. Seus parafusos começaram a formigar. Faíscas cintilavam. — O-oi? — sua voz tremeu. Os Glitterati corriam pra lá e pra cá na serragem crocante. — Shh! — fez Frankie, esforçando-se para ouvir o que não conseguia ver. Tac! Alguma coisa bateu do outro lado do laboratório. Porta do armário? O esqueleto? A janela? “A janela!” Alguém estava arrombando a janela! “Bekka!” Será que ela mandou a polícia? Eles levariam Frankie enquanto seus pais ficavam deitados desamparados na cama? Pensar que podia ser levada embora sem tempo de se despedir fazia com que ela piscasse como uma árvore de natal… E foi assim que conseguiu ver o tijolo que voava em sua direção no escuro. Frankie só conseguia imaginar que aquilo tinha vindo de uma multidão normie gigantesca que tinha se formado do lado de fora. E, pelo que se lembrava da história de seu avô, os normies tinham forquilhas, fardos de palha em chamas e uma grande intolerância a vizinhos movidos a eletricidade.

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CAPÍTULO 4 MEDIDAS EXTREMAS

Frankie buscou todas as dicas referentes a ataques de multidões de normies que seu pai teria implantado no seu cérebro quanto a construiu. Mas a única coisa que lhe veio imediatamente à cabeça foi… Abaixe-se! Deixando cair o linóleo, ela deitou de bruços e abriu os braços para ficar o mais achatada possível junto ao chão. Lâminas de medo cortavam seu estômago como um ventilador de teto. Estava ofegante como um animal encurralado. Frankie apertou os olhos e… — Não imaginei que ia dar de cara com uma bochecha hoje à noite — disse uma voz masculina. “Por que os assassinos sempre vêm com conversinha fiada?” — Acabe logo com isso! — gritou Frankie. — Tá bom.

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Frankie apertou ainda mais os olhos. A imagem de seus pais em luto passou pela sua mente. Mas eles provavelmente estariam mais seguros e muito menos descarregados se ela se fosse. Esse pensamento foi como quilowatts de alívio. — Rápido! Acabe logo com isso! O intruso colocou algo no chão ao lado da cabeça dela. “Uma arma? Um gancho para remover pontos? Um descarregador de energia?” Ela estava com medo demais para espiar. Podia sentir o calor dele. Podia ouvi-lo respirar. “O que ele estava esperando?” — O que você está esperando? Ele cobriu os shorts de menino que ela usava com um lençol fininho. — Aí! Ela se permitiu abrir os olhos. — Você me matou? — Matei você? — Ele deu uma risada. — Eu acabei de tirar o seu da reta! Literalmente! Frankie se sentou. — Hã? — Você estava com uma bochecha de fora. Eu acabei de cobrir — De repente, a voz pareceu familiar. — Billy? — Claro — sussurrou o amigo invisível. Frankie deu uma risadinha. Seus dedos pararam de faiscar. Ela ficou em pé. — Eu entrei pela janela. Espero que você não se importe — disse ele, em algum lugar na escuridão.

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— Nem um pouco! — respondeu ela, radiante. — O que você está fazendo aqui? — Queria ver como você está — disse ele, com doçura. — E te trazer isso. Ele colocou alguma coisa nas mãos dela. Era o tijolo voador. Só que não era um tijolo. Era uma caixa embrulhada em papel prateado. — O que é isso? — perguntou Frankie, rasgando o embrulho. Um retângulo branco caiu na palma de sua mão. — Um iPhone? — Um iPhone 4, pra ser exato. Eu estava tentando te ligar, mas uma mensagem gravada falava que seu número não estava mais ativo, então eu pensei que você pudesse precisar disso. — Como é que você… — Claude conseguiu para mim — afirmou ele. — Mas é tão caro! — Eu não gasto meu dinheiro com cinema e coisas assim. Eu entro de graça. E em relação às roupas… — Argh! — Ela deu uma risadinha, percebendo que Billy ficava nu o tempo todo. Senão, todo mundo ia ver calças andando sozinhas pela cidade. — Ligue! — disse ele, interrompendo o pensamento dela. Frankie apertou o círculo preto na parte de baixo do aparelho. Uma orquídea cantante apareceu na tela brilhante. — Essa é uma foto minha, segurando uma flor verde. Você pode mudar se quiser. — Ele clicou numa página cheia de ícones coloridos e chegou até a agenda de telefones. — Já carreguei os telefones e outras informações de todo mundo. — Ele clicou num quadrado cor de laranja. Uma lista aparentemente infinita de títulos de álbuns musicais apareceu. — E música, claro. 48


Frankie encarava o presente, procurando algo para dizer. Não era a tecnologia choqueletrificante que a deixava sem palavras. Muito menos a grande coleção de música, as páginas de aplicativos ou a agenda de telefones cheia. Era a bondade. — Isso é muito maneiro, Billy. Obrigada! — Não é nada — disse ele, mesmo que fosse muito. — Ah, dá uma olhada nisso. Quando a força acabou, eu fiz o download de um aplicativo de vela. Agora, você pode ver no escuro. Frankie tocou a tela. A doçura digital envolveu todo o seu corpo. — Isso é eletrizante! — exclamou, pressionando o telefone contra seu espaço do coração. — O que eu fiz para merecer isso? — Tudo. Você nos deu uma chance. E mesmo que tenha meio que saído pela culatra, todos nós estamos muito gratos. — Todos nós? — As lâminas no seu estômago começaram a ficar mais lentas. — Então, ninguém está bravo comigo? — Alguns pais, sim, mas nós, não. O Brett tendo aquele ataque até que foi bem engraçado. Frankie sentiu seu corpo todo sorrir. Se alívio fosse eletricidade, ela poderia iluminar um país inteiro. — Muito obrigada, Billy — disse ela, na escuridão. — Eu queria abraçar você, mas… — Tá, a coisa de estar pelado… Eu entendo. Frankie deu uma risadinha. — Então, cadê seus pais? — perguntou ele. — Hum, eles estão fora do ar — disse ela, consciente do trocadilho. — E quando eles vão voltar? 49


— Amanhã, a qualquer hora. — Perfeito — disse Billy, ativando o aplicativo de vela em seu próprio telefone. Logo em seguida, apontou-o para a janela. — O que você está fazendo? — perguntou Frankie, a paranoia reaparecendo. Era uma armadilha? — Tá tudo bem — disse Frankie, ainda apontando. — Veja… De repente, a janela se abriu. Um por um, seus amigos IRADOs começaram a se esgueirar para dentro. — Não era seguro nos encontrarmos debaixo do carrossel, então pensamos que podíamos nos reunir aqui — explicou Billy. — Espero que esteja tudo bem. Mais uma vez, a bondade dele a deixou sem palavras. Então, Frankie levantou sua vela digital ao lado da dele e mostrou como estava tudo absolutamente bem.

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CAPÍTULO 5 SELADO COM UM SILVO

Cleo cancelou o banho de lavanda e optou por algo bem menos luxuoso. Ajoelhando-se sobre uma almofada verde-esmeralda ao pé da cama, colocou as joias sobre o edredom lisinho. O glamour ancestral das pedras era ainda mais cintilante à luz oscilante das velas. Até os gatos percebiam que era algo especial. Deitando-se esticados, formavam uma fortaleza peluda ao redor das joias, guardando os tesouros reais como se suas sete vidas dependessem disso. A primeira reação de Cleo foi amaldiçoar o apagão. Seria impossível ensaiar suas poses para Bastet, Akins, Chisisi, Edoni, Ufa, Usi e Miu-Miu no escuro. Mas Hasina apareceu com uma caixa com 100 velas votivas perfumadas. E quando Bob terminou de acendê-las, seu quarto de dois andares foi transformado num templo antigo. As chamas oscilantes projetavam sombras dançantes nas paredes de 53


pedra. E ficou fácil imaginar que era a tia Nefertiti, iluminada pela chama de Rá e pelo brilho de sua beleza natural. Sozinha às margens do Nilo, ela estava à espera de um encontro secreto com um príncipe tão quente quanto o deserto: Khufu. Como sempre, seus olhos atentos estudariam sua beleza de todos os ângulos. Ela precisava estar perfeita. Cleo pegou o colar. O falcão no centro parecia quase vivo. Seus olhos de rubi brilhavam como se estivesse espreitando um pobre coelho distraído. Depois, ela se esforçou para levantar a pesada coroa. Quinze levantamentos de cada lado, e na segunda-feira ela teria braços como os de Michelle Obama. — Para que tudo isso? — suspirou, recolocando as joias na caixa. Aquela fantasia de tia Nefertiti só conseguia satisfazer seus desejos de glamour por alguns segundos. Ela precisava de um admirador real. Um príncipe moderno. Mas ela não estava falando com ele agora. Estava presa com uma ninhada de gatos vigias ronronantes. Cleo desceu as escadas de seu loft dormitório e cruzou a ponte até sua ilha de areia. As águas tortuosas do Nilo sempre a acalmavam. Ajoelhando-se, colocou as mãos em posição de oração e ergueu seus olhos azuis como topázio para o céu sem lua, além do teto de vidro. Tinha questões que precisavam de uma resposta urgente da ancestral deusa da beleza. — Oh, Hathor! Por que me abençoa com uma abundância de beleza se me priva do prazer de despertar a inveja nas pessoas? Especialmente num sábado à noite?

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Em seguida, ela ia expor a injustiça do recém-imposto toque de recolher em Salem e como ela não merecia sofrer pelo erro de Frankie. Mas lembrou-se que Rami sempre insistia que devemos buscar soluções e não inspirar pena, e Hathor provavelmente não era diferente. — OK, então minha verdadeira pergunta é — continou Cleo. — Rá, o deus do sol e do fogo, também controla os firewalls? Por que preciso que ele remova o firewall do meu pai para que eu consiga enviar algumas mensagens. Dois minutos, no máximo. E daí ele pode recolocá-lo. Manu fez isso em, mais ou menos, cinco minutos. Então, Rá poderia fazer na metade do tempo. Quer dizer, sinceramente… — Ela levantou a caixa com as joias para que Hathor pudesse enxergálas melhor. — De que adianta ter toda essa beleza se não tem ninguém por perto para admirá-la? Hathor não respondeu. Cleo baixou a caixa. — Exatamente. Não adianta nada. — Eu posso admirar — disse uma voz familiar. Bastet, Akins, Chisisi, Edoni, Ufa, Usi e Miu-Miu levantaram a cabeça. Ohmeugeb! Cleo sorriu ao ver o namorado apoiando-se casualmente na moldura dourada da porta do quarto. Mesmo assim, ela se recusou a cruzar a ponte e ir até ele. Vestido com um jeans skinny escuro, uma camiseta de manga comprida azul-marinho deliciosamente desbotada e as botinhas de cano alto de couro marrom que tinham sido presente de Cleo no Dia do Trabalho, Deuce era a própria sedução. 55


“Obrigada, Hathor!” Descendente das Górgonas, Deuce tinha cabelo de cobras e a habilidade de transformar qualquer coisa em pedra com um simples olhar, por isso, os óculos escuros e o chapéu. Apesar de esses acessórios serem cruciais ao bem-estar dos outros, Cleo admirava como faziam que seu estilo impreciso ficasse charmoso. De fato, as lentes escuras tornavam impossível olhar nos olhos de Deuce, mas o reflexo fazia com que Cleo visse seus próprios olhos. E ela sempre gostava disso. — Decoração maneira. Cleo passava os dedos preguiçosamente pela areia, evitando parecer ansiosa. — O que você está fazendo aqui? — perguntou, demonstrando sua majestade, caso ele já tivesse esquecido que ela estava brava com ele. — Tentei ligar — respondeu ele, enfiando as mãos nos bolsos da frente. — Mas você sempre me mandava pra caixa postal. “Sempre?” Cleo queria saber quantas vezes ele tinha ligado. Que hora ele ligou, o que teria dito caso ela tivesse atendido, se ele a amava mais agora por ela ter ficado distante. Mas ela não ousaria desfazer a pose. Por que dizer que Rami tinha cortado seu acesso ao celular? Em vez disso, ela decidiu deixar que Deuce pensasse que ela o ignorara de propósito. Isso lhe daria uma aura de indiferente. — Então… O que foi? — murmurou ele. — Você não quer falar comigo? Incapaz de respirar por mais um segundo em seu Herve Leger justíssimo, Cleo ficou em pé. O vestido bandage roxo minimizava sua 56


minúscula cintura e maximizava seu decote, provando que o estilista francês podia manifestar o poder de Geb do seu próprio jeito. — Sobre o que exatamente você quer conversar? — perguntou ela, colocando uma mão no quadril e levantando os ombros. Por que não fazê-lo ver quanto lhe custaria ter levado aquela garota desastrosamente fashion ao baile? — Quero que você saiba que não sinto nada pela Melody. — Quem? — perguntou Cleo, checando suas cutículas superhidratadas. — Ah, você quer dizer aquela coisa cuja única coisa certa no look era o elástico de cabelo? Deuce balançou a cabeça e provavelmente estava revirando os olhos atrás das lentes escuras. Ele odiava ter que ser meloso como um gatinho. Mas, ei, se ele fosse agir como um cachorro… ia sair arranhado! Miaaauuu! Finalmente, ele foi até Cleo. Faíscas de uma centena de velas perfumadas lambiam sua pela bronzeada. — Eu queria ir com você, lembra? Eu te convidei para ir comigo. Mas você decidiu boicotar por causa do… — Ele fez uma pausa para gesticular aspas. —… “tema ofensivo”. — Então, você foi com ela? — Fui obrigado por aquela amiga mandona dela, a Bekka. Eu não queria. E foi a pior noite de todos os tempos. Cleo queria muito ouvir como a noite tinha sido insuportável sem ela. Em relação à Deuce, ela se sentia como um camelo de amor: tinha que armazenar garantias em seu espaço vazio em formato de coração para saciar sua sede de insegurança, racionando as palavras em tempos de escassez. “Você está linda” durava até o dia seguinte. “Eu vou sentir sua falta” podia durar um final de semana. “Eu te 57


amo” era o suficiente para três dias. Mas a traição dele fez com que todas as suas reservas secassem. E ela precisava de um grande refil. — Então, por que foi a pior noite de todos os tempos? — perguntou, tentando parecer muito entediada com o assunto. Quanto menos aparentasse precisar, mais conseguiria. Deuce baixou os olhos, encarando seus sapatos Varvatos. — Melody percebeu que eu não estava a fim dela. Então ela tentou me paquerar e… — E o quê? — quis saber Cleo, com um pequeno gesto de pescoço. O movimento sutil fez com que seu cabelo brilhante ondulasse um pouquinho. — Ela tirou meus óculos. Cleo prendeu a respiração, lembrando a estátua de bruxa estranhamente colocada apoiando uma mesa no ginásio. — Você fez isso? Deuce confirmou, constrangido. — Eu saí correndo como um raio, e foi aí que eu vi você e… Enfim, você sabe o resto. Não aconteceu nada. Eu juro por Adonis. — Num sei — suspirou Cleo. Aquela resposta foi tão insatisfatória. Ele tinha que ter falado que foi a pior noite de todos os tempos porque ele não estava com ela e não porque tinha feito uma bruxa virar pedra. Não importava se Cleo acreditava ou não se tinha acontecido algo entre ele e Melody. Ela queria suas garantias de qualquer jeito. Do mesmo jeito que acontecera daquela vez que tinha comprado o mesmo modelo de sandália de quatro cores diferentes. Se ela podia ter mais, por que não pegar mais? — Talvez seja a hora de começarmos a sair com outras pessoas. 58


— Ahn? — perguntou ele, enfiando ainda mais as mãos nos bolsos da frente. — Mas eu não quero outra pessoa, quero você! “Bon appétit!” Cleo podia se dar por satisfeita aí. Estaria saciada com essa afirmação até segunda-feira. Em vez disso, ela suspirou, tirando tudo dele, como um atendente da Starbucks enchendo o copo de café. —

Então,

tudo

bem

entre

nós?

perguntou

Deuce,

esquivando-se pela ponte, com uma presunção ensaiada. Cleo baixou os olhos e limpou a fina areia branca de seu vestido. Descalça, ela andou lentamente pela arcada de pedra fria. Quando chegou do outro lado, apoiou-se na grade e cruzou os braços sobre o peito. Os gatos acomodaram-se ao redor de seus tornozelos. — O que foi agora? — perguntou Deuce, andando em direção a ela segurando uma fina caixa vermelha. Estava escrito MONTBLANC em letras douradas na tampa e estava toda cheia de furinhos. Podia também estar marcada como SEGUNDA MÃO. Agora, face a face com Deuce e seu próprio reflexo, Cleo arrumou o espaço entre os fios de cabelo na franja e aceitou o presente. Mas não suas desculpas. Ainda não. — Abra — Ele sorriu. — Devagar. Cleo levantou a tampa articulada, que gemeu, protestando. Ela prendeu a respiração ao ver o que tinha lá dentro. — Legal, né? — disse Deuce, colocando o dedo indicador embaixo de uma delicada cobra iridescente levando-a até o braço de Cleo. As escamas prateadas da cobra refletiram a luz das velas em forma

de

caleidoscópios

coloridos

como

arco-íris,

cujos

raios

multicoloridos rivalizavam com as joias da tia Nefertiti. — Ela veio da minha mãe. Foi seu primeiro fio grisalho. 59


Cleo olhou mais de perto. — Olá! — murmurou dentro da caixa. — Qual é o seu nome? A

cobra

respondeu

levantando

a

cabeça

triangular

e

chicoteando a lingua bipartida: — Hsssssssssssssssssssssttttttttttttt! — Miaaaaaauuuurrrr! — miaram Bastet, Akins, Chisisi, Edoni, Ufa, Usi e Miu-Miu. Os gatos de espalharam como contas de um colar estourado. — Hissette! — disparou Cleo, como uma mãe orgulhosa. — Vou te chamar de Hissette. Hissette chicoteou a língua, aprovando. — Onde você quer colocá-la? — perguntou Deuce, acariciando a cabeça triangular da cobra com a ponta do polegar. Cleo sinalizou seu bíceps direito. Depois de sua maratona escrevendo hieróglifos o dia todo, estava ligeiramente mais fraco que o esquerdo. Deuce enrolou a cobra três vezes e meia, mantendo o mesmo formato das curvas e enroscando-a no braço de Cleo. A prata cintilante da cobra brilhou ainda mais em contraste com a pele escura de Cleo, como um redemoinho de creme no café preto. — Deuce, ela é realeza absoluta! — Que bom que você gostou. Agora, feche os olhos. — Fechados! As chamas de uma centena de velas perfumadas continuaram a brilhar na escuridão de suas pálpebras. Ou seria uma ilusão de ótica? Ou o amor fervendo de novo? — OK — disse Deuce. — Prontinho! Cleo abriu os cílios postiços. 60


— Aqui está sua pedra — anunciou Deuce, dando orgulhosos tapinhas na agora sólida Hissette no braço de Cleo. — Ela está morta? — perguntou Cleo, alisando a cabeça de pedra da cobra. — Não, está empedrada — respondeu ele, sorrindo. — Vai acordar em algumas horas sentindo-se revigorada. Cleo irradiou alegria. — Me perdoa agora? — Ele sorriu. — Com uma condição — pressionou ela. Deuce concordou, esperando. — Desse momento em diante, somos exclusivos um do outro. Nada de dar um tempo durante as suas férias em família na Grécia. Nada de substituir parceiros em bailes. E nada de Melody. Ele colocou uma mão sobre o coração e levantou a outra, fazendo um sinal de juramento. “Brilhante!” Cleo piscou os cílios, sinalizando perdão. Seu príncipe moderno tinha chegado. Ela chegou perto dele, os lábios fazendo biquinho. Deuce abriu a boca. Cleo chegou ainda mais perto… — Acho melhor a gente ir. Cleo abriu os olhos. — Ir? Onde? — Você não leu suas mensagens? — Hum, sim — mentiu Cleo, ainda sem disposição para confessar o firewall. — Então, temos que ir. 61


— Eu não posso simplesmente ir! Você ainda não viu minhas joias! — insistiu, plantando os pés no tapete de junco. — Além disso, e o toque de recolher? Meu pai não vai me deixar sair. Especialmente com você… Espere! Como é que você entrou aqui? Ele nunca deixaria… Deuce segurou as hastes de seu Ray-Ban. — Meus óculos deram uma escorregada quando Manu abriu a porta — sorriu, malandro. — Ele está empedrado? — Cleo ficou espantada. — Todos estão. Era o único jeito de tirar você daqui. — Deuce! — Cleo bateu o pé, sem saber se ficava brava ou se divertia com a situação. — Eles vão ficar bem em algumas horas, não se preocupe — Deuce a conduziu até a porta. — Venha. Temos que ir. Dessa vez, Cleo deixou-se levar. Normalmente, ela teria arrumado uma grande briga e insistido em saber para onde estavam indo. Mas por que estragar a surpresa? Ele estava servindo romance numa mesa farta. E Cleo estava faminta.

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CAPÍTULO 6 A SOLITÁRIA NECIP

O apagão tinha sido um milagre. Seis

lanternas

movidas

a

combustível

foram

colocadas

estrategicamente pela casa dos Carver. Chamas brancas ofereciam um aperitivo de luz à casa faminta por iluminação. Engatinhando de um trecho iluminado para o outro, Melody conseguiu passar sem ser detectada e chegar ao seu posto na porta da frente. Agora, escondida numa piscina de escuridão, ela agarrou a maçaneta de metal e esperou o sinal da irmã. A

decisão

de

inteirar

Candace

do

estresse

confusão Bekka-publicando-o-vídeo-do-Jackson acabou

de

toda

a

beneficiando

muito a causa, que Candace insistia em chamar de NECIP ou Normies Engajados Contra Idiotices Preconceituosas. — Que tal algo mais respeitável, como GUERRA: Garotas Ultra Envolvidas Rasgando o Racismo? — sugeriu Melody. 65


Candace revirou os olhos. — Podia se chamar CHATO: Caras Hilários Aniquiladores Totais do Oregon. Olhe, sinceramente, Melly, adequação é tudo — explicou, com uma autoridade que ela não tinha. — GUERRA é um termo ao qual as pessoas não querem ser associadas. Mas NECIP? Quem não ia querer fazer parte disso? — Hum, eu! — Melody deu uma risadinha. Em seguida, leu o texto urgente de Frankie. O debate tinha acabado. Era a hora da sua primeira missão, que Candace denominou de NECIP-Evasão. E estava programada pra começar em 3… 2… 1… — Mamããããeeee? — Candace gritou do alto da escada. — Papaaaaiiii? Protegida pela voz penetrante da irmã, Melody virou a maçaneta que rangia. A porta da frente se abriu. Uma trilha sonora tempestuosa retumbava lá fora. — O quê? — responderam os dois juntos. — Melly foi dormir e eu estou entediada! Vocês querem jogar UNOOOOOOOOOOOO? — Claro! — Glory respondeu da sala, suspeitando de algo, mas feliz. —

Eu

perguntei

se

vocês

querem

jogar

UNOOOOOOOOOOOOOOOOOO? — Sim! — respondeu novamente a mãe. — UNOOOOOOOOOOOOOOOOOOO! Segurando o riso enquanto fechava a porta do lado de fora, Melody não questionava mais a dedicação da irmã. Para Candace, UNO com os pais num sábado à noite era o sacrifício máximo, prova 66


definitiva que ela não era apenas uma jogadora. Ela sabia ser parte de um time. Lá fora, a rua estava fria e silenciosa. As trevas veladas pela chuva cobriam Radcliffe Way como um grande poncho de lã. O balanço da varanda rangia ao vento. Os galhos balançavam e batiam as folhas molhadas umas contras as outras. As velas faiscavam atrás da janela escura do vizinho. Assim como na noite anterior, quando as latas voaram até seus pés no estacionamento abandonado da escola, Melody sentiu como se tivesse acabado de chegar num cenário tragicamente inspirado num filme de terror cheio de clichês. Mesmo assim, não estava com medo. Pelo menos não por si mesma. Na varanda, ela parou para ouvir qualquer ruído úmido de um carro de polícia que podia estar passando por ali. Nada. Era hora. O vento soprou uma rajada. Com um movimento rápido, ela vestiu o gorro do casaco de moletom preto, desceu pulando os degraus, correu pela grama cheia de poças e saiu em disparada pela rua, rapidamente encharcando seu All Star pink. Uma vez atrás do simpático chalé branco de Jackson (que sempre

inspirava

otimismo,

até

mesmo

nos

momentos

mais

sombrios), Melody mergulhou no barranco. — Por que você demorou tanto? — sussurrou ele de algum lugar dentro dos arbustos. — Cadê você? — Siga o coração que brilha no escuro — respondeu ele, nem parando para cumprimentar com um beijo.

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— O qu… — Melody começou a falar. — Oh! — Sorriu, enxergando um adesivo de neon verde em forma de coração colado na parte de trás do boné dele. — Veio numa caixa de cereais — explicou ele, pisando numa colcha de retalhos de galhos caídos e folhas molhadas. — É bem mais discreto que uma lanterna. — Verdade — Melody estava ofegante, tentando manter o ritmo. — Como você conseguiu sair escondido? — Não precisei me esconder. Minha mãe sabe que eu saí. — Ela deixou você sair? — Temos um novo pacto da verdade — sussurrou Jackson. — Chega de segredos. Confiança total. Eu disse a ela que Frankie precisava da minha ajuda e ela concordou. Ela é muito a favor dessa coisa de ajuda comunitária. De repente, Melody refletiu por que não tinha pensado nisso. Seus pais sempre foram muito abertos e honestos com ela. Talvez ela contasse para eles amanhã de manhã… Se os policiais não a prendessem antes. — Ela não ficou preocupada? — perguntou Melody. Finalmente, Jackson virou-se para olhar para ela. Seus óculos geek-chic estavam respingados pela chuva. — Alucinada é a palavra certa. Mas eu disse que o único jeito de perdoá-la por não contar sobre… — Ele parou e olhou em volta, para ver se tinha alguém ouvindo. — … “você sabe o quê” era que tudo fosse colocado às claras de agora em diante. E Melody sabia o quê. Ela sabia tudo. Ele era um IRADO. Um descendente do Dr. Jekyll e Sr. Hyde. Que um elemento químico no seu suor fazia com que Jackson virasse o D.J. Hyde. Que D.J. Hyde 68


era impulsivo. Que ele era um cara que adorava música e era a alegria da festa. E que aquela não era vida para Melody. Então, ela precisava fazer de tudo para que Jackson não esquentasse muito. — Talvez seja bom a gente descansar um pouco — sugeriu ela. Ele ignorou a sugestão e continuou andando. — Minha mãe me disse que há outros IRADOs na nossa escola. Não sou só eu e Frankie, sabe. Não é o máximo? Um pé de vento balançou e derrubou algumas folhas lá de cima. Chuva fria respingou as bochechas de Melody. Mais que o esguicho surpresa, ou mesmo a notícia da existência de outros IRADOs, foi uma pontada de ciúmes que a pegou desprevinida. Será que ele queria andar com garotas IRADAs e não com ela? Elas eram provavelmente mais interessantes e certamente tinham mais coisas em comum com ele. — Será que você pode andar mais devagar?! — protestou rispidamente, dando um tapa num galho para demonstrar a indignação de alguém que tinha acabado de levar um fora. — Qual é a pressa? — A pressa? — Jackson rebateu. — A casa da Frankie é depois do barranco e os policiais estão por toda a parte. Vão prender qualquer um que desobedecer ao toque de recolher e interrogá-lo na delegacia. Um pouquinho de suor nervoso e o calor da lâmpada da sala de interrogatório e OI, CHEGUEI! Melody levantou as sobrancelhas e cruzou os braços sobre o peito. Ela nunca tinha visto ele perder a calma. — Desculpe — disse Jackson, a tremedeira denunciada pelos olhos castanhos deu lugar a um nervosismo contido. — Minha mãe estressou. Acho que está me contagiando. — Ele chegou mais perto. 69


— Além disso, se eu for pego, quem é que vai fazer isso? — Ele insinuou-se e deu um longo e suave beijo em Melody. Sinceridade foi como um bálsamo em seus lábios. “Engulam isso, garotas IRADAs!” Com esperanças renovadas, Melody ofereceu sua mão. — Melhor nos apressarmos. Ele a puxou pelo matagal, o adesivo de neon verde no boné sinalizando o caminho. Esforçar-se para acompanhá-lo não parecia mais uma perseguição. Parecia seguir o caminho do coração. — De, por que você está indo tão rápido? — uma garota sussurrou alto um pouco longe. Jackson e Melody ficaram imóveis como coelhinhos assustados. — Aahhh, acabo de levar um banho de uma árvore — ela choramingou. — Meu cabelo está encharcado! — Shh! É só cabelo — disse um garoto de chapéu. Jackson colou os lábios no ouvido de Melody. — É o Deu… Ela cobriu a boca dele, seus braços tão arrepiados que pareciam um livro em braile. — Quieta! — insistiu o garoto. — Você está tentando nos matar? — Não, você é que está! — chiou a garota. — Vamos, estamos quase lá. Seus passos pesados ficaram mais altos… Mais próximos… Bzzzzzzzzzz! Os olhos de Jackson esbugalharam-se, aterrorizados. — Desculpe! — Melody apenas mexeu os lábios, enfiando a mão no bolso de trás de seus jeans AG para pegar e desligar seu telefone 70


no vibra call. Ela nem precisou checar quem tinha mandado a mensagem. Seu coração, agora acostumado com as mensagens pontuais de Bekka, batia no ritmo da mensagem. Tick… Tick… Tick… Tump… Tump… Tump… Tick… Tick… Tick… Tump… Tump… Tump… Os passos se aproximavam… Melody espiou Jackson bem devagar, imaginando que o som de seu globo ocular fosse denunciá-los. Suas mandíbulas se cerravam mais a cada segundo. Ela apertou a mão dele, tentando transmitir uma segurança de que tudo ficaria bem. Como se ela soubesse. Finalmente, depois de segundos petrificantes, o outro casal se foi. Melody e Jackson correram o resto do caminho num silêncio cheio de adrenalina. Imagens fantasmagóricas passeavam pra lá e pra cá atrás da janela com o vidro congelado do quarto de Frankie. O perfume familiar de âmbar pairava sobre a abertura retangular como um aviso. Melody não sabia exatamente o que, mas algo a deixava desconfortável. — Tem certeza de que isso é seguro? — perguntou, desejando que seus pais soubessem onde ela estava. — Não — suspirou Jackson, examinando o beco sem saída. — Acho melhor eu ir primeiro. Melody não discutiu.

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Pisando num toco de árvore estrategicamente colocado, ele se ergueu até a janela como alguém que se apoia na borda para sair de uma piscina e esgueirou-se para dentro. Suas botinas de couro aterrissaram com um som oco. A chuva apertou de novo. — Venha — disse Jackson, oferecendo a mão. — Rápido! Melody balançou o corpo para passar pela abertura estreita. Jackson agarrou os tornozelos dela e a ajudou como um médico fazendo um parto. Seu All Star encharcado também aterrissou com um oco tum. O laboratório que ela visitara na noite anterior com D.J. estava agora cheio de jovens do Merston High. Apesar da fraca luz das velas, ela conseguiu reconhecer a maioria deles, mas não sabia o nome de ninguém. Alguns estavam de pijama, outros de moletom. Alguns estavam conversando em rodinhas fechadas, outros sentados no chão como passageiros à espera de voos atrasados no aeroporto. Alguns falavam livremente, outros roíam unhas. Mas logo todos teriam uma coisa em comum: assim que notaram a presença de Melody, pararam o que estavam fazendo e se olharam em busca de uma explicação. — O que está acontecendo? — Melody perguntou a Jackson. Ele tirou seu boné e chacoalhou os cabelos castanhos. — Não faço ideia. — Eletrizante! Vocês chegaram! — disse Frankie, com o sorriso gracioso de uma aniversariante. Melody ficou satisfeita pela aprovação da anfitriã. Pelo menos assim todos saberiam que ela tinha sido convidada. Conversas foram interrompidas. Rostos se viraram. O coração de Melody bateu acelerado. 72


— Achei que você queria que viéssemos aqui para bolar um plano — disse ela, surpresa com toda aquela gente. — Porque o tempo está acabando. Bekka vai… — Tá tudo bem. Já pensei em tudo — Frankie assegurou. — Só estava esperando vocês chegarem para falar tudo. — Então, o que é que eles estão fazendo aqui? — perguntou Jackson, olhando para os outros. — Espere aí! Eles não sabem do meu vídeo, sabem? Eu pensei que isso ia ficar só entre a gente! — Eles são a gente — Frankie deu uma piscadinha. — O quê? — perguntou Jackson, confuso. — Eles são IRADOs. — IRADOs? — balbuciou silenciosamente, colocando a mão no ombro verde de Frankie, que estava de fora graças a uma camisola de hospital grande demais que vivia caindo. — Fala sééééérioooo! Melody observava o grupo à luz de velas, sua pele arrepiada de medo e alegria. Ela viu a garota pálida da aula de inglês… A garota bonita de cachos ruivos e gola de pele… A exuberante loira australiana com obsessão por luvas… O elástico da cueca J. Crew que tinha chamado sua atenção desde o dia em que chegara em Salem… Ohmeudeus, DEUCE! Será que eu consegui ficar com dois monstros no mesmo mês? — São todos…? — perguntou Melody. Jackson confirmou, satisfeito. — Isso é incrível! — É! — disse Frankie, orgulhosa, dando um abraço de urso em Jackson. — Você acredita nisso? — perguntou ela. Jackson apenas balançou a cabeça, estupefato demais para falar. 73


A garota com a gola de pele encarou Melody enquanto cochichava com a garota de luvas. Deuce disse alguma coisa para os garotos de J. Crew que fez com que chegassem perto de Melody. Alguém deu um cutucão no ombro dela. Quando ela se virou, não havia ninguém ali. Cleo e alguns amigos um pouco adiante deram uma risadinha. Melody tentou pegar a mão de Jackson, mas ele pareceu não notar. Parecia fria e sem vida ao seu enlace, como se não quisesse mais corresponder ao toque. Ele estava agora nos braços de Frankie. Provavelmente

avaliando

seus

futuros

amigos.

Sem

encontrar

inspiração nos genes previsíveis de Melody. Em busca de algo mais exótico… “Ohmeudeus!” E se todo o seu relacionamento fosse uma fraude, concebida apenas para que ele pudesse controlar a novata intrometida? Talvez ela tivesse sido iludida para ir até lá para que pudesse servir de refém normie… Sua vida em troca do vídeo de Jackson? “Era uma armadilha!” Pânico espalhou-se rapidamente pelo seu sangue. Medo despertou o alarme em seus ouvidos. Adrenalina fez com que ela assumisse a direção do volante. Com uma força trêmula e sem pensar muito, ela empurrou Frankie para longe de Jackson, segurou-a pelos pulsos e encarou-a profundamente. — Eu sei o que você está tentando fazer e não vai funcionar! Cabeças voltaram-se para olhar. Frankie fez um biquinho e deu uma risadinha. — Por favor, não brigue comigo por tentar! D.J. já conhece todo mundo aqui e… 74


— D.J.? — É por isso que você estava me abraçando daquele jeito? — perguntou Jackson, afastando-se e ligando um miniventilador. — Você estava tentando me fazer suar? Frankie confirmou, constrangida. — Queria que o D.J. ouvisse o que tenho a dizer. A roda de adrenalina parou de girar dentro de Melody e inverteu o fluxo, deixando-a envergonhada. — Então, eu não sou uma refém? Jackson olhou para ela estupefato. Frankie caiu na risada. Sua pele verde-menta estava muito macia agora, depois que seus pontos foram refeitos. — Você está cicatrizando tão rápido — disse Melody, numa tentativa esquisita de tentar começar do zero. — Os pacientes do meu pai demoram umas duas semanas para se recuperarem. — Sério? O que ele faz? — perguntou Frankie, genuinamente interessada. — Ele é cirurgião plástico — murmurou Melody, apontando para seu nariz novo e muito mais bonito. — Sério? —Frankie colocou o braço sobre os ombros de Melody e puxou-a para perto. — Temos tanto em comum! “Verdade?” Com as mãos enquadrando o rosto, Frankie piscou os olhos delicadamente. — Rostinho do papai! — exclamou radiante. A habilidade de Frankie aceitar toda a estranheza daquilo fez com que Melody se sentisse confortável.

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— Uff! — Alguém deu um tapa nas costas de Jackson, jogandoo para a frente. — Que bom que você finalmente se juntou à galera, seu monstrinho de duas caras! Melody apertou os olhos, mas não conseguiu ver ninguém no escuro. — Quem disse isso? Jackson tateava para tentar arrumar os óculos. — Este é o Billy — Frankie apontou para o espaço vazio ao lado dela. — Ele é invisível. E o amigo mais eletrizante que uma garota pode ter! — completou, beijando o ar. — Só não o abrace porque ele está peladinho — acrescentou, rindo. — Bem-vindos! — disse Billy. Um rolo de Starburst apareceu no ar. Uma balinha de cereja flutuou brevemente antes de desaparecer na boca de Billy. — Obrigado! — sorriu Jackson ao papelzinho voador. — Venham, vou apresentar vocês para a galera — disse Billy, puxando Jackson até o meio do laboratório. Jackson olhou para Melody com uma expressão de apuro, mas não fez esforço para resistir. Então, ela deixou-o ir. — Isso é demais! — disse Melody para Frankie, tentando mostrar a todos que ela podia ficar muito bem sem Jackson, embora estivesse fingindo. Talvez se ela se apresentasse, mostrasse que seu interesse era genuíno, perguntasse a todos quem eram, o que faziam, de quem descendiam e por que eles… — O que, em nome de Geb, ela está fazendo aqui? — perguntou Cleo, com um sarcasmo cheirando a âmbar.

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Por isso que aquele cheiro a deixava tão desconfortável! Desde o momento em que se conheceram, Cleo tratou Melody como uma colegial babaca. Era um sentimento familiar que lhe feria a alma. — Espere! — Cleo bateu sua sandália de plataforma no chão. — Não me diga que ela é… — Então, por que ela estaria aqui? — Frankie balançou a cabeça. Deuce chegou perto segurando uma vela. — Fala sério! — Ele deu uma risadinha cool. — Você é IRADA. Cleo enlaçou o braço no dele. — Então, por que ela está aqui? — murmurou, enquanto encarava Frankie à espera de uma resposta. — Porque tenho um anúncio a fazer e quero que Melody escute. — Alguma outra toupeira que eu deva conhecer no recinto? — perguntou Cleo, revirando um bracelete iridescente de cobra no braço. — Cleo! — Frankie suplicou. — Ela é minha amiga! Melody sentiu um calor nas entranhas. — Stein! — bufou Cleo. — Não podemos confiar nela! Ela está nos colocando em mais perigo ainda! Frankie faiscou. — Na verdade, estou prestes a fazer o oposto. — Ela deu uma piscadinha para Melody e foi até a mesa de operação. Cleo puxou Deuce até a frente do grupo, deixando Melody sozinha perto da janela. — Posso ter a atenção de vocês, por favor? — Frankie sussurrou alto.

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Ela apoiou as mãos na chapa metálica e colocou seu pequeno esqueleto sentado lá em cima. Seus pés descalços balançavam como os de uma criança, mas a sombria expressão de seus olhos era séria e adulta. — Primeiramente, quero agradecer Billy por trazer todo mundo. Todos começaram a aplaudir. Frankie abanou as mãos, pedindo urgentemente que parassem. — Shh! — Ela lembrou a todos que fizessem silêncio, colocando um dedo sobre os lábios. O vento assobiava pela rachadura na janela, gelando a nuca de Melody. Jackson acenou para que ela chegasse mais perto dele no grupinho amontoado, mas ela se negou. O frio era um lembrete reconfortante de que havia uma via de escape a poucos centímetros. — E obrigada a todos por virem — continuou Frankie. — Eu sei como está perigoso sair agora, então é eletrizante que todos estejam aqui. Eu sinceramente pensei que todos vocês me odiavam — finalizou com uma risadinha. Melody sorriu, tocada pela honestidade generosa de sua nova amiga. Frankie suspirou. — Noite passada — disse ela, ficando séria. — Eu meio que… — Perdeu a cabeça? — brincou um dos J. Crew. Seus irmãos cumprimentaram-no pela brincadeira, batendo as mãos no ar. Frankie passou a mão nos pontos do pescoço, mas pensou melhor e baixou rapidamente a mão. — Eu me sinto terrível por ter feito uma coisa que colocou suas vidas em perigo. Sinto muito mesmo. Quero que as coisas mudem por aqui. Quero parar de me esconder em barrancos durante os apagões. 78


Quero parar de usar maquiagem normie para ir para a escola. Quero que tenhamos orgulho de quem somos e que sejamos aceitos pelos… — Melodiotas? — gritou Cleo, apontando para Melody, cujas bochechas estavam queimando. Os IRADOs deram uma risadinha silenciosa no começo, depois o riso rapidamente se transformou em histeria. Não era por acharem Cleo engraçada, mas porque ela falou exatamente o que todos pensavam. E eles claramente precisavam desabafar. De repente, Jackson apareceu ao lado de Melody e enroscou o passante da calça dela com o dedo, para mostrar que estava ao seu lado. Ela estava aterrorizada demais para agradecê-lo. — Ei, você não é a melhor amiga de Bekka? —disse uma garota com uma cara de zumbi. — Dá uma olhada no telefone dela! — gritou um garoto com um bico na cara. — Aposto que ela tá twittando sobre nosso encontro! — Ela é uma espiã! Melody sentiu a boca seca. — Não! Bekka e eu não somos mais amigas — conseguiu falar, com a voz rouca e instável. — Sou nova por aqui. Quando eu a conheci, não tinha ideia de quem era ela. Acreditem em mim, quero acabar com ela tanto quanto vocês. — Ô se acredito! — disse um garoto com pés grandes e cabelos desgrenhados. — Ela provavelmente está vindo pra cá agora mesmo com uma equipe de TV, graças a você! Melody engoliu em seco. De repente, respirar pareceu tomar pudim de canudinho.

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Cleo deu um sorriso parecido com o gato da Alice no País das Maravilhas. Tudo que teve que fazer foi plantar a semente e observar o ódio crescer. “Não é isso!”, Melody queria gritar. “Bekka também está contra mim! Eu estou como vocês agora! Não olhem para meu rosto simétrico! Olhem para os meus olhos! Eu sei como é se sentir julgada!”. Mas sua voz, a mesma que usava para cantar em recitais e estrelar musicais antes da asma, não saía. Estava enrolada como um feto no fundo da garganta, com medo de sair. Medo de ser provocada ou vitimizada. Com medo de arruimar sua última chance de começar de novo. — Melody está do nosso lado! — declarou Jackson. — Tirem-na daqui! — gritou o Pezão. — Não! — disse um dos J. Crew. — Ela tem que ficar. Temos que ficar de olho nela. — Que tal metermos os dentes nela? — disse outro J. Crew, lambendo as costeletas. Todos os amigos dele uivaram, rindo. Melody agarrou o braço de Jackson para se equilibrar. Ele ligou o ventilador e esfriou o rosto. — Parem! — faiscou Frankie. — Melody não é o inimigo, OK? É Bekka. — Então, estão trabalhando juntas! — Não estamos! — insistiu Melody, com os lábios trêmulos. — Prove! — É! Prove! Frankie bateu palmas uma vez. — Gente, isso não importa, porque… 80


— Eu posso provar! — interrompeu Jackson. — Como? — Porque Bekka também está atrás de mim. Melody prendeu a respiração. “Ele está tentando me salvar ou me matar de vez?” Quando ficassem sabendo que Bekka tinha encontrado o vídeo de Jackson no telefone dela, iriam amarrá-la no carrossel e tocar aquela música assustadora até sua cabeça explodir. — Ká! — exclamou Cleo. — O que você tem a ver com isso? — Bekka encontrou um vídeo meu virando D.J. Ela vai mostrálo na TV se Mel… — Ele fez uma pausa, percebendo de repente onde isso ia dar. — Se eu não disser onde Frankie está se escondendo. — Como ela conseguiu esse vídeo? — pressionou Cleo. — Co-como ela conseguiu? — ele gaguejou. — Hum… “Ohmeudeus.

Ohmeudeus.

Ohmeudeus.

Tenho

que

ser

corajosa e jogar limpo. Não posso ter medo. Tenho que contar a eles. Eu vou…” — Meu celular — despejou Jackson. — Eu deixei cair no baile e Bekka o encontrou. Melody

relaxou

e

reencaixou

os

ombros

no

lugar. “Ele

realmente fez isso por mim?” Ela apertou as mãos de Jackson, agradecendo. Ele apertou de volta, como se dissesse “de nada”. — Certo. Caso encerrado. Próximo! — disse Cleo. — Já é hora de voltarmos às nossas vidas normais. — Como podemos fazer isso? — perguntou Billy. — Tem uma grande caçada aos monstros rolando por aí! Cleo soltou o ar, bufando. Sua franja se mexeu e parou. — Eu não sei. Frankie, seu pai pode desmontar você e depois remontar quando tudo isso acabar? 81


Seus amigos esconderam o riso. — E eu? — perguntou Jackson, com o ventilador na cara. — Quem é que vai me desmontar? “Ótima resposta!”, pensou Melody, apertando a mão dele. — Vou perguntar para os meus servos se você pode ser preservado por alguns anos — sugeriu Cleo, balançando os ombros como se dissesse “o que pode ser mais banal do que isso?”. — Não é à toa que você se esforça tanto pra disfarçar esse cheiro de múmia — zombou Jackson. “É isso aí!”, Melody apertou novamente a mão dele. Todo mundo caiu na risada. Cleo acariciava seus brincos de argolas de ouro com uma indiferença real. — Gente! — Frankie finalmente interrompeu. — Isso não importa! Nada disso importa! Porque eu vou me entregar. Todo mundo fez ooohhh. — Você tá louca! — Seus pais sabem disso? — Posso ficar com a sua maquiagem? — É suicídio! — É a melhor saída. A polícia quer a mim, não vocês — explicou, como uma heroína de verdade. Se não fosse pelas faíscas nos dedos, ninguém teria notado como ela estava nervosa. — Bekka não vai parar até me fazer pagar por ter ficado com Brett, então… — U-hu! — sussurrou comemorando a garota bonita com a gola de pele. — Viva Frankie! Os amigos de Cleo começaram a aplaudir silenciosamente Frankie e seu beijo com a morte. Num momento necessário de bom 82


humor, ela ficou em pé em cima da mesa de operação e fez uma reverência, agradecendo as palmas. — Pare! — gritou Cleo. — Ninguém se mexa! Hissette sumiu! Todos deram as costas para Frankie. — Meu bracelete! A cobra! Ela está solta por aí! Uma busca frenética começou. — Talvez seja a hora certa de sair daqui — murmurou Melody no meio do caos. Jackson concordou e os dois foram até a janela. — Está ali, a traiçoeira! — gritou a australiana, apontando para o aquário e para a cobra que se esgueirava, subindo pela lateral. Frankie pulou da mesa de operação. — Pegue esse bicho antes que ele coma os Glitterati! — Ela é uma menina! — rosnou Cleo, correndo em direção à cobra. Deuce correu até Hissette, juntou as mãos e pegou-a. — Todos fechem os olhos! — anunciou Deuce. Frankie rapidamente pegou os cinco roedores brilhantes da jaula e beijou a cabecinha de cada um. Melody e Jackson esqueceram-se completamente da janela e fizeram o que ele mandou. — Tudo bem. Podem abrir agora — disse Deuce. Ele colocou a cobra novamente no braço de Cleo enquanto suas amigas olhavam, morrendo de inveja. Ela lhe deu um beijinho na bochecha. — Era uma cobra viva? — sussurrou Melody, perguntando a Jackson. — Era… — E agora ela virou pedra? — sussurrou novamente. 83


— Sim. Tenho quase certeza que Deuce fez isso com o olhar — murmurou Jackson, escondendo a boca com a mão. Melody concordou, finalmente entendendo por que Deuce teve um chilique quando ela tirou seus óculos escuros no baile. — Ei, Frankie, agora você entende? — Cleo falou para que todos ouvissem. — O quê? — Convidar uma normie para vir aqui é como querer que minha cobra vá passear com seus camundongos. — São ratos — insistiu Frankie. Cleo bateu o pé e apontou para Melody. — Ela também é! Nesse momento, as luzes se acenderam. Em pânico, todos foram para a janela e pularam, correndo para casa sem falar sequer um tchauzinho. Correndo de mãos dadas com Jackson no chão encharcado do barranco escuro, Melody devia estar pulando os galhos caídos e dançando entre as poças. Afinal, Frankie ia se entregar! Bekka ia destruir o vídeo de Jackson! Chega de tick… tick… tick…!Estava tudo acabado! Mas suas pernas estavam tão pesadas que ela mal conseguia acompanhar o ritmo. Assim como em seus sonhos, onde ela corria mas não saía do lugar, parecia não conseguir seguir em frente. Esquisita demais em Beverly Hills. Normal demais para Salem. Estranha demais para os normies. Normal demais para os IRADOs. Melody queria parar de correr. Queria se jogar numa pilha de folhas úmidas e encarar o céu sem lua. Permitir que as nuvens a cobrissem até que desaparecesse totalmente. Entregar seus sonhos 84


ao vento. Mas todas as vezes que ficava um passo atrรกs, Jackson a puxava, forรงando-a a manter o passo.

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CAPÍTULO 7 UMA JANELA DE OPORTUNIDADE

Frankie acordou com seu rosto apoiado no vidro da gaiola dos Glitterati. Não porque precisavam de carinho. Hissette, a ameaça, tinha acabado no momento em que Deuce a transformou em pedra. E a tempestade cheia de trovões tinha parado momentos depois de a luz voltar. Então, os ratinhos brilhantes dormiam pacificamente, todos grudados como biscoitos confeitados numa caixa transparente. Dessa vez, era Frankie que precisava de carinho. Entregar-se podia significar nunca mais ver seus pais. Ela não teria baile de formatura nem iria para a faculdade. Nunca dirigiria um carro ou pilotaria um avião. Nunca seria a CEO da Sephora nem tiraria férias nas Bahamas. E, pior de tudo, nunca daria um beijo de abrir costuras em D.J. do jeito que tinha dado em Brett. Sim, sua decisão de confessar tudo era um pouco impulsiva. Motivada pela gratidão imensa que sentiu quando seus amigos se 86


arriscaram para ir vê-la e apoiá-la. Se eles podiam arriscar suas vidas por ela, por que ela não podia arriscar a dela por eles? Especialmente porque toda essa caçada aos monstros era mesmo culpa dela. E arriscar-se por essa causa ia tirar a polícia das ruas e devolver a liberdade aos IRADOs. Quer dizer, se consideravam esconder-se dentro de suas próprias peles, franjas, pelos, escamas, cobras, suor e invisibilidade ser “liberdade”. Frankie não pensava assim. — Alguém disse ironia? — murmurou, recolocando a gaiola dos Gitterati na mesinha de metal ao lado da cama. — Eu estava lutando por liberdade. E agora tenho ainda menos liberdade do que tinha antes. E só vai piorar. Os narizinhos cor-de-rosa se contraíram. — Obrigada! — Frankie tentou sorrir. — Eu também amo vocês. — Com quem você está falando? — perguntou seu pai, entrando sem bater. Era como se seu “direito à privacidade” fosse mais um item na lista de coisas que Frankie tinha perdido, além de contato visual, interação social, interação familiar, telefone celular, escola, TV, música, um guarda-roupa eletrizante, internet, decoração para o quarto, velas com perfume de baunilha e ar fresco. Frankie escondeu seu novo iPhone embaixo dos cobertores. — Com os ratos — disse ela. — Está muito solitário por aqui, sabe? Viktor não respondeu. Em vez disso, ele cruzou o laboratório em seus gastos chinelos UGG e jaleco branco e recolheu suas ferramentas. — O que você está fazendo? — perguntou Frankie.

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Será que a sugestão de Cleo de desmontá-la até que toda essa coisa acabasse de alguma forma penetrou as paredes diretamente para o inconsciente dele enquanto estava sendo carregado? — Estou fazendo um cachorro para a nossa família — respondeu, jogando as ferramentas na mesa de operações. Frankie rapidamente enrolou seus cobertores (e o iPhone contrabandeado) e largou tudo no canto mais longe, perto da janela. Estava um dia de sol lá fora. Havia esperança. — Eletrizante! Eu vou te ajudar! — Ela se ofereceu. — Tudo bem — disse ele, encarando a pilha de objetos metálicos sobre a mesa. — Mas eu prefiro trabalhar sozinho hoje. — Ele deu uma batidinha na lâmpada Ciclope, recusando-se a levantar as pesadas pálpebras e olhar para ela. — Eu podia tingir o pelo, ou alguma coisa assim — insistiu ela. — Que tal pink com corações verdes? Não seria maneiro? Viktor suspirou fundo e passou a mão pelo cabelo. — Papai — suplicou Frankie, dando uma puxadinha na barra gasta do jaleco dele. — Olhe para mim. Viveka entrou segurando uma xícara de café quente para o marido. — Seu pai precisa trabalhar sozinho hoje. Descalça e enrolada num robe de chenile preto, ela parecia estar gripada. Sua pele radiante estava apagada. Seus olhos violeta estavam vermelhos. Seus cabelos negros estavam com frizz. Ela colocou a xícara delicadamente ao lado do marido. Ansiosa por um pouquinho da vida que tinha antes, Frankie inclinou-se em direção à Viveka e inspirou, desesperada, por um sopro do óleo perfumado de gardênia que a mãe passava no corpo. Mas não sentiu nada. 88


— Por que ele precisa trabalhar sozinho? — Porque mexer com metais ajudar aliviar o estresse — explicou a mãe, ainda olhando para baixo. — Estresse que eu causei, né? Assim como Viktor, os olhos cansados de Viveka deram a volta pelo laboratório… pela mesa… pelas ferramentas… dispostos a observar qualquer coisa, menos Frankie. — Certo? Ambos baixaram os olhos. — Certo? — Ela soltou faíscas. Sua angústia ecoando nas paredes vazias. Mesmo assim, seus pais continuaram em silêncio. — Falem alguma coisa! Falem que vocês estão bravos! Falem do grande problema que eu causei! Falem que vocês não me amam mais! Só. Falem. Alguma coisa! Medo e frustração se fundiram e se enroscaram dentro dela para formarem um caracol de fúria. Ele espiralou até o mais profundo do seu ser e remexeu sua frustração. Sem conseguir mais se controlar, Frankie passou o braço nas ferramentas de Viktor, derrubando tudo no chão com um trovão de barulhos metálicos. Viktor encarou-a. Viveka passou a mão na testa. Frankie soluçou. Viveka finalmente olhou nos olhos da filha. — Como você pode pensar que nós não a amamos, Frankie? Nós só estamos assim por amamos você. Essa interação tão necessária fez com que Frankie sentisse um fio de energia.

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— É que tem muita coisa em jogo e… — Ela colocou sua mão sobre a de Viktor. — Somos cientistas e não há ciência que possa mantê-la a salvo. Está muito além do que podemos fazer e… — Bem, vocês não precisam se preocupar mais — Frankie disse, sorrindo corajosamente. Ela pegou as ferramentas e as colocou empilhadas na frente do pai. — Eu vou me entregar. — De jeito nenhum! — explodiu Viktor, dando um murro na mesa. A pilha chacoalhou. — Frankie, querida, o que você está tentando provar? — perguntou Viveka, seus olhos gélidos derretendo como água. — Não estou tentando provar nada, mamãe — insistiu Frankie, preparando-se para outro discurso sobre sua busca pela liberdade e mudança. Mas ela parou por aí, com medo de soar como Buffy na sétima temporada. A assassina cool tinha entediado os vampiros até a morte com seus dicursos virtuosos. Foi o suficiente para que Frankie transformasse os DVDs em porta-esmaltes. — Eu só quero fazer a coisa certa. — Sua decisão é nobre — disse Viktor, colocando as palmas das mãos sobre a mesa e olhando para Frankie. — Mas se você quiser realmente fazer a coisa certa, vai parar e pensar antes de agir. Não só em você ou no que deve fazer, mas nas pessoas que podem se machucar pelo caminho. — É exatamente isso — insistiu Frankie. — Se eu me entregar, vou ajudar todo mundo. Vou colocar um fim nisso tudo. — Mas não vai ajudar você. Você estará em muito perigo — disse Viktor. — E isso vai nos machucar. Dessa vez, foi Frankie que baixou os olhos. 90


— Eu enchi seu cérebro com 15 anos de conhecimento — continuou Viktor. — Você decide o que fazer. Mas, por favor, faça escolhas seguras. Entregar-se é nobre, mas não é seguro. Viveka balançava a cabeça, concordando. — Que tal darmos um espaço para o seu pai martelar? Aposto que quando o cachorro estiver pronto, ele vai… A janela congelada foi aberta pelo vento e bateu logo em seguida. — Posso interromper? — perguntou uma voz de menino. — Billy? — Sim — respondeu ele, timidamente. — Billy Phaidin? — perguntou Viktor, que obviamente o conhecia dos encontros dos IRADOs. — Sim, hum, oi, Sr. e Sra. Stein — Billy pegou um dos lençóis que Frankie tinha colocado perto da janela e enrolou-se nele. — Estou aqui. —Um burrito gigante arrastou-se até eles. — Eu sei que é errado invadir a casa de alguém. E quero que vocês saibam que eu nunca faria alguma coisa assustadora ou pervertida. Frankie deu uma risadinha. — Eu só não queria chamar a atenção para a casa tocando a campainha e fazendo vocês abrirem a porta para um cara invisível. Mas eu queria falar com vocês — explicou Billy. — Todos vocês. Viktor

levantou

suas

grossas

sobrancelhas

e

observou,

esperando. — Eu sei como evitar que Frankie se entregue — disse ele. “Rá-rá!” — Como você sabia que ela ia se entregar? — perguntou Viveka. 91


— Hum… Eu… — Ele deve ter entrado pela janela assim que eu falei isso para vocês — despejou Frankie. — É verdade — concordou Billy. — Foi difícil entrar, então fiquei ouvindo por um tempo. Eu ganhei uns quilinhos no verão, especialmente nas minhas coxas. Vocês podem não ter notado porque esse lençol é fininho, mas… Viktor coçou a nuca. — Bem, se você acabou de escutar, como é que você já pensou num… — Bem, qual é o plano? — Frankie perguntou rapidamente, acabando com o interrogatório. — Pintem-me de verde e me coloquem uma roupinha bem bonitinha que todos vão pensar que eu sou Frankie. Eu me entrego, lavo a tinta e me livro das roupas. Daí, fico invisível de novo e posso escapar. Frankie ficou radiante. — Você acha que minhas roupas são bonitinhas? — Frankie! — cortou Viveka. — Isso é sério! Viktor cruzou os braços sobre seu jaleco de trabalho. — Se a polícia achar que Frankie escapou, eles não vão procurar de novo por ela? — Não se eu deixar alguns parafusos e remendos para trás. Daí vão pensar que ela desistiu e se rasgou toda — explicou Billy. — Daí, é só Frankie mudar o cabelo, usar maquiagem, vestir-se como homem de novo e voltar para o Merston. Os normiesnunca vão suspeitar que foi ela que ficou com … Quer dizer… De acordo com eles, Frankie é

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apenas outra menina normal. Não o monstro verde misterioso que perdeu a cabeça no baile. — Hum… —Viktor considerou a explicação de Billy. Viveka suspirou. — Eu não sei. O que seus pais acham? Todo mundo já está nos culpando pela exposição perigosa de seus filhos. Não é uma atitude responsável. — Tá tudo bem. Eles concordam. Eu já… Frankie deu uma cotovelada no burrito de lençol. — Quer dizer, tem razão — Billy refez a fala. — Eu tenho que pedir permissão primeiro. Mas, oficialmente, meu pai me deixou entrar na cozinha do KFC para descobrir quais eram os sete ingredientes secretos. E minha mãe me deixou seguir o tesoureiro do PTA para checar se ele não estava roubando nada. Então, eles concordam com esse tipo de coisa quando é por uma boa causa. — Você faria tudo isso por nós? — perguntou Viktor. — Com uma condição — disse Billy. — Qual? — perguntou Viktor. — Deixe Frankie lutar. Frankie sorriu. Ela sabia exatamente o que ele queria dizer. — Como é? Billy chegou mais perto dos pais dela. — Frankie gosta de mudar as coisas. E ela é a única pessoa que eu conheci que é corajosa o suficiente para conseguir isso — disse ele. — Eu esperei por alguém como ela por um longo tempo. Todos nós esperamos. Deixe que ela lute.

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— É uma guerra que não podemos vencer — disse Viktor. — Acredite em mim. Todo mundo já tentou, de um jeito ou de outro. E todos nós perdemos. — Com todo o respeito, senhor. Seus pais perderam. Nós, não — respondeu Billy. — Mas nós crescemos ouvindo a sua geração contar histórias de horror e por isso ficamos com medo de tomar uma atitude. Até agora. Até Frankie. Pelo menos a deixe tentar. Viktor e Viveka suspiraram. Se estivessem segurando uma bandeira branca de rendição, o suspiro teria feito com que ela balançasse. Frankie colocou o braço ao redor dos ombros de Billy e o apertou, valorizando o que ele tinha acabado de fazer. “Quem podia adivinhar que ele era tão musculoso?” Ela estava começando a realmente adorar esse cara. Seus pais que tinham que pensar num jeito de salvá-la. Era trabalho deles, não de Billy. Mas ele continuava a salvá-la, mais uma vez. — Eu poderia remodelar o rosto de Frankie em umas duas horas. Ainda tenho o molde — disse Viktor. — Ui, nojento! — arrepiou-se Frankie. — E você pode pegar emprestada a minha peruca, que uso nos meus dias de bad hair — ofereceu Viveka. — É tão fácil assim me substituir? — perguntou Frankie, ligeiramente ofendida. — Nem um pouco — Viktor deu a volta na mesa e abraçou a filha. Ele cheirava a café e alívio. — É por isso que vamos fazer tudo isso. — Então, está certo? — perguntou Billy.

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— Contanto que nos mantenha informados a cada passo — cedeu Viktor. — E se você vai ‘lutar’, vai precisar ponderar as coisas e ser paciente porque, tenho que te avisar, será uma batalha longa e exaustiva. — Eletrizante! — exclamou Frankie, puxando todos para um grande abraço. — Não vou decepcionar vocês desta vez. Eu prometo! De repente, ela soltou todos e correu até a janela. — Aonde você está indo? — perguntou seu pai. — Pegar meu telefone. Eu tenho que mandar uma mensagem para a Melody e contar sobre o plano. Ela tem que levar o FrankieBilly para Bekka e… — Onde você arranjou um telefone? — perguntou Viveka. Frankie parou e olhou para o burrito de lençol com um sorriso de megawatts. — Caiu do céu. Pela primeira vez no que pareceu milhares de anos, seus pais sorriram também.

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CAPÍTULO 8 TERRITÓRIO ANIMIGO

Deitada na ilha de areia de seu quarto, um joelho para cima, um braço pendendo largado sobre a correnteza suave do Nilo, Cleo estava curtindo seu domingo quase perfeito. Aquecida pelos raios de sol e abanada pelo balanço preguiçoso das palmeiras, deu um suspiro profundo. O único movimento que fizera nas últimas horas tinha sido alisar as águas frias. Todos no palácio estavam tirando uma soneca para se livrar da dor de cabeça provocada por terem sido transformados em pedra por Deuce. Mas a dor de cabeça de Cleo ainda não tinha passado. Causa? Uma normie na reunião dos IRADOs noite passada. Especialmente uma muito bonita que tinha ficado com Deuce e era a melhor amiga de Bekka, a garota que por acaso tinha começado toda aquela caça aos monstros. Uma caça aos monstros que encheu seu grupo de medo, provocou um toque de recolher na noite de seu encontro e fez 96


com que seu pai superprotetor cortasse as comunicações via celular de dentro e para fora do palácio. Fala sério, a Melorreia tinha colocado um feitiço normie em todo mundo? Ela claramente tinha uma influência misteriosa sobre Jackson e Frankie. De que outro jeito ela teria conseguido entrar no círculo bem preservado e muito bem guardado dos IRADOs? Cleo pretendia descobrir… mais tarde. Nesse momento, tinha falafels mais importantes. Levantando a tirinha lateral de seu biquíni cortininha, ela checou o bronzeado. Os dois tons de marrom, escuro e mais escuro, lhe

avisaram

que

estava

pronta.

Depois

de

dias

de

chuva

consumidora de adrenalina, sua pele exótica tinha readquirido seu tom preferido: café com leite, pouco leite. Tinha chegado a hora. Tinha que modelar as joias da tia Nefertiti para suas amigas em uma hora. Um pouco mais tarde, sua cor começaria a desaparecer. Depois de uma rápida mas completa aplicação de seu óleo de âmbar para o corpo, Cleo vestiu um tubinho cor de areia, subiu em sandálias plataforma de couro e enrolou Hissette no braço. Tomando cuidado para não pisar fazendo muito barulho, deu uma corridinha na ponta dos pés pelo palácio e correu para fora na tarde ensolarada. Descendo a rua a passos largos, levantou seu iPhone para os deuses, convocando a volta de sinal. Quando estava na metade da rua,

perto

do

chalé

branco

de

Jackson,

uma

sinfonia

de buuops alertou-a de que estava de volta ao jogo. Tinha sete mensagens de texto. “Graças a Geb!”

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PARA: Cleo set 27, 9:03 AM DEUCE: SEU PAI JAH AMOLECEU? COMO TAH A CABEÇA TAH A CABEÇA DELE? PARA: Cleo set 27, 9:37 AM CLAWDEEN: CHEGOU BEM EM CASA? EU & OS CARAS CHEGAMOS BEM NA HORA QUE PAPAI ACORDOU P/PERAMBULAR. UFA. TANTO A DISCUTIR. MELORREIA, A ENTREGA DE FRANKIE, HISSETTE QUASE COMENDO RATOS. LMAO! QUER SAIR? ALGUM LUGAR ESCURO. PRECISO ME DEPILAR.

ALIAS, NAUM RECEBI SUA

MSG ATÉ ONTEM BEM TARDE. QUE JOIAS? MOSTRE! OH, ADIREI A ASS. ####### PARA: Cleo set 27, 10: 11 AM LALA: ACABEI DE VER SUA MSG DE ONTEM A NOITE. MORRENDO PARA VER O OURO. Q VC TAH FAZENDO AGORA? TIO VLAD DISSE Q ESTOU PALIDA. IMPLOROU PRA EU COMER CARNE. DISSE QUE O V EH DE VAMPIRO NAUM DE VEGETAIS. DEPOIS MORREU DE RIR COM SUA PRÓPRIA PIADA BESTA. SAINDO PARA BUSCAR 4 SUPRIMENTO DE FERRO HEALTH IS WEALTH. QUER VIR? TB PRECISO FALAR DE ONTEM A NOITE. FRANKIE

VAI

CONFESSAR.

TROCADILHO). ::::::::::::::: 98

CHOCOANTE

(FIZ

O


PARA: Cleo set 27, 10:16 AM BLUE: MEU TIO ME PEGOU CHEGANDO EM CASA. PENSOU Q EU ESTAVA APRONTANDO QDO VIU MINHA CAMA VAZIA. ELE ESTAVA FICANDO LOUCO E EU DISSE Q TAVA LAH FORA UMEDECENDO AS ESCAMAS. DISSE Q NAUM

SABIA

O

QUE

SIGNIFICAVA

TOQUE

DE

RECOLHER. Q ISSO DEVE SER UM TERMO AMERICANO. ELE ENGOLIU TUDO COMO COMIDA GRÁTIS. Q VAI FAZER HJ? ACHA Q FRANKIE VAI CONFESSAR MESMO? ACHO Q ELA VAI AMOLECER E FICAR COM MEDO. MAL POSSO ESPERAR PARA VER SEUS BRILHOS. PARECEM DE ARRASAR.@@@@@@@@@@ PARA: Cleo set 27, 11:20 AM LALA: DE VOLTA COM O HIW. QUERIA Q VC TIVESSE VINDO. ESTAVAM DEGUSTANDO SORVETE DE QUINOA. NHAM. INDO PARA A CASA DE FRANKIE SABER AS NOVIDADES. TE VEJO LAH? :::::::::::: “Casa da Frankie?” PARA: Cleo set 27, 11:22 AM BLUE: INDO ENCONTRAR A TURMA NA CASA DA FRANKIE. VC VEM? @@@@@@@@ 99


“Casa da Frankie??” PARA: Cleo set 27, 11:23 AM CLAWDEEN: KD VC, GATINHA? VEJO VC NA CASA DE FRANKIE? ESTAMOS NO FUNDO. ########## “CASA DA FRANKIE?” Cleo não tinha ideia do que estavam falando. Duas vezes menos ideia de como eles ficaram sabendo de alguma coisa antes dela. E três vezes menos ideia do porquê Frankie não ter falado com ela. Mas a cada passo de seus saltos de madeira nas calçadas desertas de Radcliffe Way estava mais perto de descobrir as respostas. Com uma jogada do cabelo preto e uma gingada de seus ombros brilhantes, Cleo marchou pela escotilha e deu a volta no L da fortaleza com toda a confiança que tinha. Um emaranhado de cabos elétricos formava uma barreira entre o mundo exterior e o denso retângulo de cercas vivas lá dentro. Rastejando pelo território gramado, ela escutou vozes sussurrantes, mas o som de uma queda-d’água afogou todo o resto. “O que foi agora?” Outro texto apitou na hora certa.

PARA: Cleo set 27, 12:43 PM CLAWDEEN: ENGATINHE POR BAIXO DOS CABOS E VAH PELOS ARBUSTOS. NAUM SAUM DENSOS COMO PARECEM. ######### 100


Cleo fez o que ela mandou e saiu num primitivo caminho de pedra. O som da cascata ficava mais alto enquanto ela seguia a trilha no labirinto de folhas. — Santa mãe de Ísis! — murmurou quando chegou ao final. Uma despencava

queda-d’água de

um

enorme,

penhasco

de

em

formato

quase

500

de

ferradura,

metros

e

caía

violentamente numa piscina de bolhas e espuma. Um mergulho naquele caldeirão escaldante e Cleo ia sair só ossos. Mesmo assim, Blue estava lá em cima, as pernas esticadas escalando uma das pedras lisas, molhando-se alegremente na névoa que projetava um arco-íris, enquanto as outras garotas estavam deitadas de bruços na grama aparada ao redor da piscina. Cada uma delas tinha uma toalha amarela. Cada uma descansava o queixo nas mãos. Todas sorriam de contentamento. Podiam estar posando para um quadro que se chamaria “Natureza Morta de Como as Pessoas Vivem sem Você”. — E aí? — perguntou Cleo, fingindo não estar nem aí. Pelo menos, estava bronzeada. Isso sempre ajudava sua autoconfiança. Clawdeen sentou-se. — Estamos falando da minha festa de 15 anos. Os convites saem na segunda-feira. — Eu sei — disse Cleo. — Eu te ajudei a escrever os endereços nos envelopes, lembra? — Esse lugar não é o máximo? — Lala perguntou com um nervosismo agitado. — É um gerador elétrico de emergência. Tem turbinas atrás das pedras. Os Stein usam isso para não chamar a atenção com contas altas de luz. Venha se sentar — ela alisou a 101


grama e sorriu sem medo de mostrar os caninos. — É também um lugar perfeito para fofocar, porque ninguém consegue ouvir nada — completou, enrolando seu corpo sempre frio numa toalha. Cleo continuou em pé. — O que você está fazendo aqui? — Frankie fez força para se levantar. Seus cabelos brancos tinham desaparecido e sua pele estava pintada de normie. De repente, Cleo sentiu-se como se ela mesma fosse verde. — Melhor perguntar o que eu não estou fazendo aqui. —Cleo revirou Hissette no braço. — Por que eu não fiquei sabendo sobre essa pequena reunião das minhas amigas? Clawdeen e Lala trocaram um olhar constrangido e se sentaram. Blue acenou inocentemente do topo da colina da cascata, seu rabo de cavalo loiro balançando alegremente. Era óbvio que não conseguia ouvir uma palavra do que estavam dizendo por causa do som das águas caíndo. Frankie alisou seu vestido suavemente pink e olhou para cima, protegendo os olhos do sol. — Eu tinha boas novidades sobre toda aquela minha coisa de confessar, sabe, e eu queria compartilhar — ela levantou os ombros para mostrar que era uma coisa simples. — E…? — esnobou Cleo, com o canto dos olhos ainda deliciosamente tostados pelo sol daquela manhã. — E… Eu achei que você não estaria interessada. — Por que não? — Cleo perguntou com um olhar ainda mais penetrante.

102


— Porque você estava contra todos ontem à noite e eu achei que você não estava nem aí — respondeu Frankie, não parecendo nem um pouco intimidada. — Experimente — chiou Cleo, abaixando-se para se sentar na borda da toalha de Clawdeen. Elas contaram tudo sobre o plano de Billy com uma animação que incomodava. Era um plano inteligente, e ela disse isso. Mas, sinceramente, durante quanto tempo tinha que fingir que estava interessada até poder contar sobre o editorial da Vogue Teen? Trinta segundos? Quarenta e cinco? Sessenta? Qualquer tempo maior do que isso e ela se jogaria nas cataratas e se hidroeletrocutaria… Assumindo que isso era possível. — Vamos apenas esperar que Melody chegue até Bekka antes do prazo final — disse Frankie, checando a hora no seu iPhone. — Melody? — rebateu Cleo. — O que ela tem a ver com isso? — É ela que está levando o FrankieBilly até Bekka —explicou Clawdeen. — Você não estava escutando? — Tava — mentiu Cleo. — Só não entendo por que todo mundo confia nela. Frankie, Clawdeen e Lala encararam Cleo sem entender. Blue fazia splashes felizes lá longe. — Ela é uma normie! — exclamou Cleo, implorando. —Eles espalham o ódio e propagandas com seus filmes sensacionalistas, séries de livros que viram moda, fantasias de Halloween horrorosas e temas de bailes cafonas como “Purê de Monstro”! — Os olhos de Cleo começaram a chorar uma paixão que ela não sabia que tinha. — Melody não é como os outros normies — insistiu Lala. —Ela está tentando nos ajudar. 103


Pare

de

ser

tão

puxa-saco,

La.

Eles

são

todos

iguais. Normies têm explorado meus ancestrias há séculos. Mandando nossas relíquias de família pelo correio para museus para que pretensos amantes da arte possam fazer “ooh” e “aah” para os antigos egípcios e suas incríveis habilidades. Daí, na saída, eles compram um livro do Rei Tut para colocar na mesa de centro e reclamam que ninguém

mais

presta

atenção

nos

detalhes.

E

isso

não

é

nada ka. Eles não querem saber de designs incríveis. Eles querem móveis populares! Porque não importa o que os normies falam no museu, eles não gostam de nada que seja diferente. Sério, hello? Já assistiram ao box The Hills? Frankie, seu pai podia construir uma irmã para você só com os restos deixados por aquele cirurgião plástico. E adivinha quem cresceu em Hills? As garotas continuaram encarando. — Melody! Melody é de Beverly Hills! — continuou Cleo, sua voz falhando diante do peso de sua convicção. — Na verdade, não tenho certeza se Hills é na verdade Beverly Hills — disse Lala, muito respeitosamente. — Acho que o seriado se passa em Hollywood Hills. Mas eu concordo que dá pra confundir. Cleo resistiu à vontade louca de puxar os cabelos pink da vampira até ela chorar. — Bem, não importa o lugar de onde ela veio, ela está fazendo com que Jackson me odeie. Vocês ouviram o que ele me disse ontem à noite? Ele disse que eu fedia! Quer dizer, que idiota! Está aprendendo a discutir como um normie. O iPhone de Frankie apitou. As garotas se inclinaram em direção à tela, claramente gratas pela distração. 104


— Melody e FrankieBilly estão parando na casa de Bekka nesse momento — relatou Frankie. Elas deram gritinhos animados. Cleo revirou os olhos. Aqueles gritinhos tinham que ser pela Teen Vogue e não pelas aventuras de Melody. — Boa sorte — Frankie falou alto enquanto digitava. —Mande notícias. Ela clicou no ENVIAR e as garotas deram mais gritinhos. Minutos depois, veio a respota. — Bekka está no hospital visitando Brett — leu Frankie. — Indo pra lá agora. Ainda falta bastante para acabar o prazo. Vai ficar tudo bem. Aliás, Billy é o máximo. — Vocês não acham que uma de nós devia ir até o hospital? — sugeriu Cleo. — Só para prevenir que ela não acabe nos traindo? — Ela não vai nos trair, OK? — faiscou Frankie. Clawdeen e Lala baixaram os olhos, cutucando nervosamente os fiozinhos das toalhas amarelas. — É mesmo? — Cleo apoiou-se nos braços e voltou o rosto para o sol. — O que será que está fedendo agora?

105


CAPÍTULO 09 CANDI VERSUS CANALHAS

O sol da Califórnia tinha finalmente encontrado o Oregon e seu efeito intoxicante era difícil de ignorar. Tudo que Candace olhava estava cheio de vida: carros molhados pela chuva, pedestres andando de mãos dadas, as pontas prateadas dos pinheiros. Nem mesmo a última mensagem-bomba de Bekka conseguiu pesar o humor leve de Melody. Em alguns minutos, salvaria Jackson e Frankie. Minutos mais tarde, Cleo e os outros IRADOs iam saber que podiam confiar nela. Um minuto, e ela estaria tomando uma atitude. E esse clima glorioso veio coroar tudo isso. Ping! Outra mensagem da mamãe. Era a terceira em uma hora. PARA: Melody set 27, 1:48 PM 106


MAMÃE: BILLY ESTAH VESTIDO? JAH ENCONTROU BEKKA? A política da “verdade absoluta” de Jackson com a mãe dele inspirou Melody a contar a verdade para seus pais sobre seu papel no escândalo local. Levou um tempo para conseguir convencê-los de que toda essa coisa de monstro não era parte dos esforços para estimular economicamente a cidade de Salem. Era, na verdade, muito real. Mas ela não se arrependeu. Como sempre, eles disseram que gostaram muito da honestidade dela e que juravam manter seu segredo contanto que fossem mantidos informados. Mas três mensagens numa hora parecia um pouco exagerado. Então, ela apenas respondeu AINDA DIRIGINDO e deixou por isso. — NECIPs para o resgateeeee! — berrou Billy do teto solar do BMW dos Carver. Um grupo de bicicleteiros virou suas cabeças cobertas com capacetes para encarar o esportivo utilitário verde, aparentemente esperando ver uma nudez frontal. Infelizmente para eles, viram apenas Candace vestida com sua roupa de grife camuflada, morrendo de rir atrás do volante e fazendo um High Five2 com seu novo amigo invisível. Era a quinta vez que Billy tinha sido desafiado a gritar alguma coisa pelo teto. Mas eles riam como se fosse a primeira. Uma curva acentuada em Oak Street projetou Melody de um lado para o outro no banco de trás. Mas ela não ia criticar o jeito que sua irmã dirigia… ou seu senso de humor. Candace era o único

2

Cumprimento no qual duas pessoas batem as palmas das mãos no ar. (N.T.).

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membro NECIP com uma carteira de motorista. E o relógio continuava andando. — Ei! — Candace virou-se para o acento do passageiro vazio e colocou seus óculos escuros enormes com armações brancas no alto de suas ondas loiras. Os olhos carregados de traquinagem. — Posso te chamar de InvisiBilly? — Por que você está olhando pra lá? — Billy falou da terceira fileira. — Eu estou aqui atrás. —Fala sério! — Candace deu um tapa no assento vazio. — Vocês, caras invisíveis, são tão rápidos! Na pista à direita, um cara dirigindo uma picape enferrujada balançou o dedo com aliança e fez biquinho. — Já tenho dona — falou, e balançou os ombros como se a perda fosse dele. Candace virou o rosto. — Ui! Nojento! — Pare de paquerar fazendeiros casados — provocou Billy. — Eu pensei que estava falando com você! — Ela deu uma risadinha, virando-se para trás. — Ei — disse Billy, rapidamente voltando ao assento do passageiro. — Estou aqui. — Eu adoro isso! — gritou Candace, buzinando a toda. Melody inclinou-se para a frente e agarrou o ombro da irmã. — Candi! — exclamou, sem se preocupar mais sobre ofender a motorista. — Pare de buzinar! O hospital é na próxima quadra. Essa é uma área de silêncio! — Então por que você está gritando? — sussurrou Candace.

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Caminhões brancos de notícias, cada um com uma antena no teto e um logo em cada lateral, se amontoavam atrás da faixa da polícia como paparazzi banidos do tapete vermelho. — Tem certeza que esta é a ala psiquiátrica? — perguntou Melody, chocada com a investida de pessoas correndo até a entrada. Poucos pareciam parentes preocupados. A maioria parecia repórteres. Uma impressão com o mapa do hospital flutuava sobre o acento da frente. — Prédio E — confirmou Billy. — Isso mesmo! E de Enlouquecido — disse Candace, indo pra lá e pra cá no estacionamento, tentando achar um lugar para parar. Uma loira usando um blazer azul elétrico e uma saia combinando passou correndo em frente ao BMW com um microfone na boca. Um homem segurando uma câmera veio logo atrás. — Espero que ela esteja correndo para retocar as raízes. — Todas essas pessoas estão aqui por causa do Brett? — perguntou Melody. — Ei, InvisiBilly — Candace baixou o vidro da janela do passageiro. — Você não quer perguntar àquela repórter malvestida o que está acontecendo? — Eu adoraria — respondeu ele, com um sorriso audível. — Com licença, senhorita? Candace parou ao lado dela. Melody afundou no banco de trás. — Você pode me explicar o porquê de tanta comoção? — perguntou Billy. Com os lábios cerrados, Candace encarava a mulher. — Hum… — A repórter, em dúvida para onde olhar, procurou no interior do veículo de onde vinha a voz. — Aquele garoto que 109


salvou o monstro está saindo do choque. Os médicos acham que ele vai falar. — Mil vezes obrigada, querida — disse Billy com uma voz grave. As sobrancelhas da mulher se levantaram, mostrando medo. — O que está acontecendo aqui? —

Você

está

ouvindo

vozes?

Candace

perguntou

amavelmente. A mulher confirmou. Cadance apertou o acelerador. — Acho que você veio ao lugar certo! — gritou, caindo na gargalhada ao se afastar. — Gente! — Melody deu uma risadinha. Ela não podia negar que tinha sido engraçado, mas essas brincadeirinhas não eram exatamente a melhor maneira de melhorar a imagem dos IRADOs. — Eu pensei que NECIP tinha como objetivo mostrar aosnormies que eles não precisavam ter medo. — Tem razão — concordou Billy. — Vamos parar. — Chega de diversão — resmungou Candace. Melody enfiou as mãos dentro das longas mangas de sua camiseta listada e franziu as sobrancelhas. Candace e Billy tinham acabado de obedecê-la? Depois de quase dez minutos quase atropelando repórteres e deslizando por fileiras e fileiras de carros estacionados, Candace deixou a BMW numa vaga reservada para o Dr. Nguyen. Era isso ou estacionar dentro da sala de recepção. — Vamos! — Melody agarrou sua mochila cáqui e levou os NECIP até o prédio E.

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O vídeo de Jackson estava a poucos minutos de ser destruído. Ela praticamente já podia sentir o cheiro do giz de cera nos dedos dele, quando ele segurasse seu rosto e a beijasse, agradecendo-a. A promessa desse beijo fazia seus All Star pinksparecerem acoplados de um motorzinho. Não era difícil duas garotas bonitas passarem paquerando pelos repórteres, pelos estudantes fazendo vigília e pelos paparazzi com câmeras de celular. Os dois seguranças de cada lado das portas deslizantes de vidro, entrentanto, não pareceram tão seduzidos. — Fique atrás de mim. Deixe que eu cuido disso —sussurrou Candace no ouvido de Melody. — Eu sei mentir descaradamente. — Candace, não! — disse Melody, mas já era tarde demais. Sua irmã já se aproximava do homem à esquerda. — Ela é sempre assim? — Billy sussurrou no ouvido de Melody. Ela apenas balançou a cabeça concordando, exasperada. — Passe de imprensa ou visitante? — rosnou o segurança, ajustando o suporte de ouvido de sua escuta. “Isso é sério?”, Melody mordiscou a cutícula. Essa era a área psiquiátrica de um hospital, não uma festa pós-Oscar da Vanity Fair. Embora ela acreditasse que os dois lugares não eram assim tão diferentes. — Na verdade, senhor, eu esperava que você pudesse abrir uma exceção — Candace tirou seus óculos escuros de armação branca e deu um sorriso de corpo todo. Seu macacão de camuflagem lhe dava a silhueta de uma modelo da Victoria’s Secret. — Sabe, eu preciso… O bolo de carne humano levantou a palma da mão para silenciá-la.

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— Espere — latiu, pressionando seu dedo de salsicha na orelha e baixando os olhos enquanto ouvia. Candace virou para o outro segurança, mas sua mão também estava levantada. Melody continuava a mordiscar a cutícula. E se eles não conseguissem entrar? E se Bekka não conseguisse sair? E se ela perdesse o prazo? E se…? — Talvez você deva apenas dar a mochila para o Billy e deixá-lo ir sozinho — sussurrou Candace enquanto o bolo de carne ouvia o… Bem,

o

que

quer

que

fosse

que

ele

estivesse

ouvindo.

Ele é invisível. — É, mas a mochila não! — rebateu Melody. — Como se alguém fosse notar — Candace chamou a atenção. — Afinal, é uma ala psiquiátrica. — Você já usou essa piada com a repórter. Agora, dá pra ser séria, por favor? Isso não é um jogo… — Desculpe — disse o guarda, fixando sua atenção em Candace. Sua expressão dura se desmanchou e de lá saiu um sorriso. Era uma transformação que Melody já tinha visto um milhão de vezes e chamava simplesmente de “Candi versus Canalhas”. Candi sempre ganhava. — Ei, Garreth — disse ele ao guarda à esquerda. — Não é a garota bonitinha que vimos dirigindo pelo estacionamento à procura de uma vaga? — Pode ser — concordou Garreth. — Você estava dirigindo aquela BMW verde? — Eu mesma! — Candace sorriu orgulhosamente. — É a diesel, sabe? É bom para o meio ambiente. — Legal — ele sorriu. — Podemos ver sua identidade? 112


— Com prazer — Candace virou-se e deu uma piscadinha para Melody enquanto procurava em sua bolsa metálica. — Aqui está. Ele observou sua carteira de motorista da Califórnia e a entregou ao parceiro. — Candace Carver? — perguntou o cara à direita. Ela concordou, satisfeita. — A primeira e única. — Então, você não é o Dr. Nguyen? — Ahn? Não! Quem é esse? — Pegamos ela — disse ele, no seu microfone escondido. — Você tem três minutos para se retirar e tirar seu diesel do estacionamento ou vamos chamar o guincho. Melody baixou a cabeça, segurando-a com as mãos. — Dois minutos — insistiu o bolo de carne. — Mas vocês não estão entendendo — implorou Candace. — Precisamos entrar no hospital! — Espere! — o guarda olhou para Melody. — Vocês estão juntas? Melody fulminou a irmã com um olhar de novela que dizia “saia agora ou eu a destruirei”. — Candace batendo em retirada — disse rapidamente e saiu correndo. — Não, não estamos juntas — mentiu Melody. — Eu, ahn, estou aqui para uma entrevista de trabalho. Billy deu uma tossidinha e Melody deu uma cotovelada no ar ao lado dela. Ela ouviu um uff bem baixinho. — Que trabalho? — perguntou ele.

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— Ele está acordando! —gritou alguém (um repórter?) de uma janela do terceiro andar. A multidão que estava fazendo vigília aplaudiu. As luzes das câmeras foram ligadas. Um estouro de repórteres correu até a porta. — Para trás, gente! — gritou o guarda da direita. — Você tem trabalho para fazer, então eu estou indo —disse Melody. E, por alguma estranha razão, ela a deixou passar com um despreocupado aceno de mão. Conseguindo escapar do tsunami da imprensa por poucos segundos, Melody e Billy correram pela escada mal iluminada que levava ao terceiro andar. — Será que isso vai funcionar? — perguntou ela, ofegante, sobre a possibilidade (ou melhor, risco) de o plano funcionar. Se eles tivessem sucesso, essa caçada aos monstros estaria acabada e a vida ia voltar ao normal. Mas, se falhassem, Jackson, Frankie e agora Billy também estariam gravemente arriscados. E Cleo estaria certa: a culpa seria de Melody. — Você não está perdendo a coragem, está? — perguntou Billy. — Não, só o fôlego — mentiu, subindo o último lance pulando a cada dois degraus. Eles saíram no movimentado terceiro andar e correram ao banheiro feminino para preparar FrankieBilly. — Peça ajuda se precisar — disse ela, colocando a mochila por baixo da porta do cubículo. — Entramos ao vivo em cinco — alguém gritou no corredor. — Ao vivo em cinco! — outras vozes ecoaram, espalhando a notícia. 114


Minutos depois, Billy surgiu verde e monstruoso no vestido de noiva de renda da Vovó Stein. Melody nem conseguiu acreditar como ele estava parecido com Frankie no baile. Eles tinham até a mesma altura. Ignorando o pronunciado gogó no pescoço, ele era Frankie. — Vamos esperar até eles estarem transmitindo — sugeriu Melody. — Assim todo mundo vai ver que o misterioso monstro verde foi capturado e tudo isso vai acabar logo. — Boa ideia — concordou ele, checando se os parafusos no pescoço estavam bem colados. — Sério? Você tem certeza disso? Billy balançou a cabeça, reconfirmando. Melody enlaçou seus braços surpreendentemente bem definidos e sorriu ao encarar o reflexo no espelho: um monstro verde e uma gata morena. Era assim que ela e Frankie iam parecer, como amigas normais. Lado a lado, juntas, num banheiro feminino. — Algo pelo qual vale a pena lutar — disse ele, como se estivesse lendo seus pensamentos. Melody concordou e mandou rapidamente uma mensagem de texto. PARA: Frankie set 27, 2:36 PM MELODY: LIGUE A TV. ENTRAMOS AO VIVO EM 5 min. Melody sorriu para si mesma quando abriu a porta do banheiro. Depois de anos de asma e perseguição social, ela estava começando a usar a voz de novo. 115


E as pessoas iam ter que ouvir.

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CAPÍTULO 10 NÃO ME ODEIE POR SER BU-NITA

Uma tomada em alta definição de um garoto sonolento numa cama de hospital apareceu na tela dos Stein. O texto passando em baixo dizia: “Brett está retomando a consciência depois de um encontro chocante com um monstro… Família e Amigos estão aguardando suas primeiras palavras”. — Aaaaaahhh! Um grito penetrante, quase poderoso o suficiente para girar as lâminas de aço do ventilador do teto, saiu do sofá em L acinzentado e tomou a sala de estar. — Ai, que horror! — Blue fechou a tampa de seu hidratante de chá verde e descansou as pernas no colo de Lala. — Ele parece um carro alegórico com todas essas flores ao redor. — Normies são tão dramáticos — disse Cleo, admirando seu pedicure sentada confortavelmente no assento lateral. 117


— Nham! Olhe só esses cortes — disse Clawdeen. — Ai, que nojo! — Lala estremeceu. — Tá falando sério? — provocou Clawdeen. — Que despercídio de presas na sua boca! Sabe o que você deveria estar fazendo com seus dentes? — Ela virou-se para Blue e fingiu morder o ombro da amiga. — Levá-los para passear na churrascaria. — Para trás, garota! — a australiana jogou a embalagem do hidratante de chá verde em Clawdeen, que uivou, rindo. — Quer falar de desperdício? — arrepiou-se Lala, enrolando-se num xale de cashmere preto. — O que você depila em um dia poderia me aquecer por um ano inteiro. — Chocante! — Rindo, Clawdeen jogou a garrafa em Lala. — E que tal aquela solda ambulante ali? — Lala jogou a garrafa no bumbum de Frankie, que bateu nela e caiu no tapete com um baque. — Ela gasta tanta energia quanto Vegas! — Ótima! — Cleo cumprimentou a amiga. — Os vampiros contra-atacam! Todo mundo caiu na risada, menos Frankie. Ela continuava em frente à TV, transtornada pela imagem de Brett coberto por um ededron xadrez azul e marrom. A pele de Neutrogena limpinha dele era o fundo ideal para seus lábios vermelho-sangue, seus olhos azulanil e os cabelos negros espetados: uma tela branca para as cores vibrantes de seu rosto. Os lábios de Frankie tremeram. Seu espaço do coração inchou. Era a primeira vez que via Brett desde o malfadado beijo: um beijo que tinha arrancado a cabeça dela, colocado o garoto na ala psiquiátrica e ameaçado o futuro dos IRADOs de Salem. A imagem

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dele deveria ter provocado medo. Vergonha. Raiva. Mas, em vez disso, suas entranhas zumbiram de saudades. “D.J. quem?” — Nós perdemos? — perguntou Viktor, correndo com a esposa. Seu jaleco exalava um cheiro picante de suor e metal. O jaleco dela estava com um perfume de cera e gardênia. — Onde está Billy? — perguntou Viveka. — Ssshh! — fez Frankie, parecendo um zumbi na frente da TV. — Brett está saindo do coma. Ele vai falar. A câmera afastou-se para mostrar todo o quarto do hospital. As paredes amarelo-limão estavam cobertas de cartões desejando uma boa recuperação. Uma janela oferecia a vista do estacionamento. E Bekka, que estava ao lado da mãe de Brett, estava com uma cara de esperança, usando uma camiseta onde se lia “branco é o novo verde”. Frankie ficou passada. — Que camiseta ofensiva! — Ofensiva é a cara dela! — disse Cleo. — Com certeza — concordou Clawdeen. — Estou contente que a vovó Stein não esteja aqui para ver esses cabelos falsos nojentos — disse Viveka para o marido. — Ssshhh! — insistiu Frankie, enquanto a câmera voltava a focalizar Brett. Seus lindos lábios estavam começando a se mexer. Um repórter circulava na lateral da cama de Brett com um microfone na mão e um olhar vesgo e preocupado. — Parece que Brett está tentando falar — disse o homem numa voz grave que contrastava com suas feições jovens. Seu nome, Ross Healy, aparecia na parte de baixo da imagem. — B-boy, você consegue me escutar? — perguntou ele. 119


— Mushi — murmurou Brett. Bekka e a mãe de Brett se aproximaram. — B-boy, você está me escutando? É o Ross. Ross Healy, do Canal 2 News, conhece? É tudo verdade no Canal 2! —cantarolou ele. — Mushi — murmurou Brett novamente. — Ele disse “mamãe”! — A Sra. Redding soluçou de felicidade, seus cachos negros na altura do queixo balançando alegremente. — Você disse “mamãe”, querido? — Acho que ele disse múmia, e ela está bem aqui! —exclamou Clawdeen, levantando a mão de Cleo. As garotas riram. — Mushi! — Acho que ele quer saber onde eu estou — explicou Bekka, dando uma cotovelada e empurrando a mãe de Brett para o lado. — Ele quer me ver. Ele está procurando por mim —ela acariciou o cabelo dele, deixando-o ainda mais espetado. —Você está procurando por mim, Brett? — Saia daí, sua louca! — Blue gritou com a TV. — Ele quer Frankie! Não você, sua desmiolada! — Bekka? — Brett conseguiu falar, e depois tossiu fraco. Uma enfermeira se apressou em trazer uma tigela cheia de lascas de gelo. Brett encheu a boca e pegou a mão da namorada. No momento em que suas mãos se tocaram, seu rosto se iluminou. O dela também. Frankie sentiu-se apagada. — Você está bem? — perguntou ele, seus olhos azuis reparando em cada detalhe de Bekka. Bekka balançou a cabeça. — Estou agora. 120


O sofá em L foi tomado por uma sinfonia de sons de vômito. Frankie escondeu o riso. — Estava tão preocupada com você — disse Bekka, enxugando os lábios molhados dele com um lencinho. — Você está brincando? — Brett sentou-se. — Eu que estava preocupado com você! — Isso não é fantástico? — disse Ross com uma voz abafada, como alguém narrando um documentário sobre a vida selvagem testemunhando o nascimento de uma girafa. Frankie queria rasgar a sutura de seu pescoço e usar a linha para estrangular aquele homem. Opa, isso sim ia ser impressionante! — Bekka, eu pensei que tinha matado você — Brett soluçou. Uma bolha gigante de meleca formou-se no nariz dele. — Ai, que nojento! — gritou Blue. — Vocês viram o tamanho daquela bolha? O sorriso de Bekka desapareceu mais rapidamente do que um crepúsculo acelerado. — Como assim, você achou que tinha me matado? — Todo mundo para trás! — ordenou um jovem médico com a palavra “residente” escrita na testa. Ele correu até a lateral da maca de Brett com uma seringa cheia. — Ele está tendo uma alucinação pós-traumática. — O quê? — Brett empurrou o residente para longe. —Não estou alucinando! — Sim, ele está — insistiu Bekka. O residente se reaproximou. — Não estou! O residente se afastou. 121


— Está sim. O residente se reaproximou. — Deixem ele falar! — gritou a Sra. Redding. Todos se afastaram. Brett colocou outra lasca de gelo na boca e virou-se para a mãe. — Você se lembra da minha festa de aniversário de 10 anos? Ela confirmou, cheia de lágrimas. — Nós fizemos uma mansão mal-assombrada no porão. Você queria um bolo assustador então eu cozinhei um boneco que depois espetamos com facas de plástico e cobrimos com respingos de geleia de cereja. — É… Bem… — Brett raspou um pedacinho de esmalte preto da unha do polegar. — Quando eu assoprei as velas, desejei que… — ele tirou outro pedacinho. — Eu desejei que eu… Raspa. Raspa. Raspa. — Tudo bem, B-boy — sussurrou Ross. — Ninguém aqui vai julgar você. Brett suspirou fundo. — Eu desejei virar um monstro — ele expirou. — E eu virei, mamãe! Eu virei! O residente deu um passo à frente. A Sra. Redding o empurrou para o lado. — Meu deus, Brett! Nem brinque com isso! — exclamou sua mãe. — Você não é um monstro! — Como você pode dizer isso se eu arranquei a cabeça da minha própria namorada? — O quê? — Viktor e Viveka gritaram ao mesmo tempo.

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— Brilhante! — Cleo riu. — Ele pensou que Frankie fosse Bekka! —Elas estavam com a mesma fantasia — relembrou Clawdeen. — Isso é ótimo! — disse Lala. — Acabaram nossos problemas! Frankie

conseguiu

dar

um

sorriso

convincente,

porque,

tecnicamente, Lala estava certa. Isso era ótimo. Se Brett não tivesse ideia da existência dela, como ela podia ser culpada de alguma coisa? A ignorância dele era a salvação! Uma benção! Um passe de liberdade! “Então por que dói mais do que quando arracaram minha cabeça?” Sentimentos diversos subiram e desceram dentro de Frankie, como cavalinhos pintados de carrossel: alívio, vergonha, vingança, gratidão, melancolia, liberdade, perda… Mas um sentimento que permanecia

constante,

como

o

único

assento

da

carruagem

aparafusado na madeira que não se mexia, era insignificância. — Você acha que aquela era a minha cabeça? —perguntou Bekka. Brett confirmou. — Minha cabeça? — Sim! — Brett gritou olhando para as mãos. — Sou a própria escuridão! — Brett! — sua mãe se espantou. — Nunca mais… — É verdade, mamãe! Só alguém muito pirado ia tentar matar uma garota durante o melhor beijo de sua vida. “Ele disse que foi o melhor…” — Aaaahhh!

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As garotas pularam do sofá e correram até Frankie. Elas a abraçaram e gritaram como se ela tivesse acabado de ganhar o American Idol. — Sosseguem! — explodiu Viktor. — É da minha garotinha que ele está falando. Viveka o confortou com um abraço amoroso. — Aquele foi o melhor beijo da sua vida? — perguntou Bekka, seus olhos verdes entristecidos. — Claro! — Brett deu uma risadinha. — Vamos, admita! Você também sentiu o mesmo. — Desliguem as câmeras! — Bekka deu um grito tão alto que suas sardas tremeram. — Certamente — disse Ross, piscando para o operador de câmera. — OK, estão desligadas. Continue. — Brett, não era eu! — Claro que era! Eu não estou louco, sabe? —insistiu ele. — Eu era Frankenstein e você era minha noiva. Eu me lembro de tudo. Frankie chegou mais perto da TV. Suas amigas também. — Brett, não era eu! Era um monstro! Um monstro de verdade! Ele deu risada. — E agora, quem é o louco? — Era eu! — disse FrankieBilly, entrando triunfante no quarto vestido de noiva Vovó Stein. Toda a cidade de Salem prendeu a respiração. O rosto de Brett se iluminou. Frankie ficou radiante. Bekka ficou apagada. — ELETRIZANTE! — Frankie pulou pra cima e pra baixo, aplaudindo. Aplausos e gritos roucos encheram a sala dos Stein. 124


— Fantástico! — Lala riu. — Ele se parece tanto com você, Frankie! — O que é isso? — Bekka perguntou, gaguejando, metade suspeita, metade com medo. — O que está acontecendo? — Brett, sou eu — disse FrankieBilly, andando vagarosamente até ele. — Fui eu que você beijou. Um monte de seguranças entrou correndo no quarto. — Esperem! Não toquem nela! — Todos ouviram Melody gritar ao fundo. — Ela é inofensiva. Para a surpresa de todos, os guardas se afastaram. — Quem é você? — perguntou Brett. — Sou a responsável por tudo isso — FrankieBilly apontou para a cama de hospital de Brett e depois para a multidão de repórteres e para as pessoas embaixo da janela. —E eu quero que você saiba que eu sinto muito. Nunca mais vou chegar perto de você ou de qualquer outra pessoa, nunca. Eu não queria assustar… — Assustar? — Brett chutou seu cobertor e sentou-se na cama. Ele estava usando a camiseta de Frankenstein, a mesma que tinha usado em seu primeiro dia de aula. — Eu estava com medo, mas não de você. Estava com medo de mim! Estava com medo de ter matado você. Eu matei? Quero dizer, eu machuquei você? Porque eu não queria. Num minuto, estava dando o melhor beijo da minha vida e no outro eu… — Socorro! — berrou Bekka. — Alguém o ajude! Essa coisa está dominando a mente dele! — Não me odeie por ser bu-nita! — FrankieBilly disse para Bekka.

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— Oh, não! Ele não disse isso! — Lala morreu de rir enquanto comemorava com as amigas. Os seguranças se mexeram. Dessa vez, Ross e sua equipe ficaram no caminho. —

ELETRIZANTE!

gritou

Frankie.

Isso

é

como

assistir Gossip Girls. Só que é real! E é sobre mim! — Melody conseguiu! — Lala jogou seu xale preto no ar. Cleo revirou os olhos. — Vamos ver. Ainda não acabou. Brett andou até FrankieBilly. — Ninguém está dominando minha mente, Bekka. Apenas o meu coração. — Está dominando o coração dele! — berrou Bekka. Mas ninguém ligou para o que ela estava dizendo. Nem quando Brett pegou a mão de FrankieBilly, que não ofereceu resistência. — Eles vão se beijar? — Clawdeen prendeu a respiração. Bekka investiu contra Billy. — Afaste-se dele! Dois seguranças correram até ela. — Me larguem! — Ela se debateu enquanto eles a seguravam. — Aquela coisa é um monstro! Essa cidade está cheia de monstros! Eles estão roubando nossos homens! — Os guardas a ergueram pelos braços e a carregaram até a saída. —Espere! — Bekka segurou-se colocando um pé de cada lado da porta. — Eu tenho provas! Eu posso provar! Eu posso provar agora mesmo! — Ponham a menina no chão — disse Ross. — Chamem minha amiga Haylee — insistiu Bekka.

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Segundos depois, sua amiga tímida entrou marchando no quarto, com a determinação implacável de um boneco com a corda toda. Ela vestia um blazer de lã justo, calças baggy, um bonezinho de entregador de jornal e seus óculos gatinho bege, que já eram sua assinatura. A única coisa que não parecia ser de cinco décadas atrás era o iPad no bolso externo de sua pasta executiva verde de pele de crocodilo falsa. Bekka remexia os dedos impacientemente. — Dá aqui! Haylee jogou o iPad na mão aberta de Bekka. Frankie cutucou a sutura do pescoço. — O que ela está fazendo? Bekka tocou a tela algumas vezes, levantou para as câmeras e pressionou PLAY. — Não! — gritou Frankie para a TV. — Você não pode fazer isso! Melody chegou antes de acabar o prazo! Você prometeu! Viktor e Viveka prenderam a respiração. Blue se coçou. Lala ficou arrepiada. Clawdeen rosnou. — Viram? — Cleo sorriu quando o vídeo de Jackson Jekyll virando D.J. Hyde começou a rodar. — Eu disse que não se pode confiar em normies.

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CAPÍTULO 11 VALE TUDO NO AMOR E NA BEREBA

Um enxame de repórteres entrou zumbindo pela porta aberta. Microfones e cabos suspensos visavam Bekka, ansiosos para pegar uma fala da garota no centro da história que já estava sendo chamada de Denúncia e Julgamento em Salem. Mas se dependesse de Melody, tudo aquilo teria um nome muito mais adequado àquela cadela sardenta. — Deixe-me passar! — gritou Melody, empurrando todos. Surpreendentemente, eles abriram caminho. Mas era tarde demais. O vídeo que condenava Jackson acabara de passar no Canal 2 e estava sendo distribuído para os canais afiliados em rede nacional. Próxima parada: YouTube. Destino final? O mundo. — O que você está fazendo? — Melody agarrou o iPad e tirou-o das mãos pegajosas de Bekka. — Nós tínhamos um trato! Eu te dei o que você queria! 128


— Ah, verdade? Porque aquilo… — Ela apontou Brett e FrankieBilly agora sentados na cama conversando calmamente — … não fazia parte do acordo! Haylee disparou o golpe de misericórdia. — Eu tenho toda a documentação para provar. — Então, agora é o Jackson que vai ter que pagar pelo que Brett está fazendo? — Melody cerrou os punhos. — Isso não faz sentido… — Com licença, srta. Madden? — chamou um dos repórteres. — Você pode falar alguma coisa sobre o garoto do vídeo? Ansiosos pelo furo, a mídia desceu sobre Bekka como pombos numa casquinha de pizza. — Sim — respondeu ela, feliz em ajudar. — Há outros? — Tenho certeza que sim. Essas aberrações devem ter família. — Você recebeu alguma ameaça? — Se roubar o amor da minha vida não é ameaça, eu não sei o que é. — Voltando ao garoto do vídeo. Esse ser mutante é capaz de matar? Melody afastou-se da agitação, massacrada, abatida, derrotada. Ficou imediatamente evidente que tinha falhado. Jackson tinha se tornado a nova Frankie mais rápido do que ela pudesse enviar uma mensagem dizendo “sinto muito”. “A Garota que Tinha Perdido a Cabeça” era a notícia de ontem. Todo mundo queria o “mutante” agora. Não que eles pudessem encontrá-lo. Jackson provavelmente estava a bordo de um voo para Londres, sentindo a brisa de seu ventiladorzinho e amaldiçoando o dia que tinha conhecido Melody 129


Carver no carrossel perto do rio. Nunca saberia quanto ela sentiria sua falta. Lamentaria as experiências que poderiam ter tido. Lamentaria tudo de bom que poderiam ter feito. Lamentaria a voz que podia ter tido. Morrer pelas mãos da mídia era rápido e doloroso. Se Candace estivesse ali! Ela teria feito alguma coisa para distrair os repórteres. Alguma coisa para desviar a atenção de Jackson e colocá-la… Espere! O coração de Melody disparou. Sua isca estava sentada ao lado de Brett vestida de noiva. — Desculpe interromper — disse ela, puxando Billy para deixálo em pé. — Você pintou o corpo inteiro ou só as partes que podemos ver? — sussurrou ela dentro da peruca. Tinha o cheiro doce de plástico do cabelo da Barbie. — Só as partes que vocês podem ver — ele respondeu baixinho. — Por quê? — Tire a roupa. Deixe que eles pensem que os membros estão flutuando. Vamos dar a eles algo novo. — Adorei! — Billy riu em silêncio. Um minuto depois, o vestido de noiva da Vovó Stein tinha virado uma pilha de renda no chão do hospital. Dois braços verdementa, a cabeça falsa de Frankie e a nuca de Billy era tudo que podia ser visto. — Gostosuras ou travessuras! — gritou ele, sacolejando o esqueleto frouxo. Gritos e soluços tomaram o quarto lotado. A equipe médica disparou rumo à saída.

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— Pegue-me se for capaz! — gritou Billy, levando a multidão de repórteres sedentos por notícias até o hall de entrada da ala psiquiátrica do Hospital de Salem. — Espere! Qual é o seu nome? — perguntou Brett. —Aonde você está indo? Ele também saiu atrás de FrankieBilly mas a Sra. Redding insistiu em correr no lugar dele para que o filho pudesse descansar. Bekka agarrou a Sra. Redding pelo casaco cor-de-rosa. — Você está pensando sinceramente em trazer aquela coisa de volta para ele? — Mãe, rápido! — gritou Brett. — Eles podem machucá-la. A Sra. Redding saiu em disparada. Bekka foi atrás, gritando alguma coisa sobre ter netos com cor de alga. Assim que todos saíram, Melody pegou o vestido de renda e começou a desamassá-lo. As laterais estavam cobertas de maquiagem verde. — Ela vai ficar bem? — perguntou Brett, seus olhos azuis mareados com genuína preocupação. Melody gesticulou que sim, com uma convicção silenciosa. Brett levantou-se mesmo assim. Ele cambaleou um pouco e agarrou a guarda da cama para se equilibrar. — Vou checar mesmo assim. Melody apressou-se em ficar ao lado dele e acomodá-lo novamente na cama. — Acho que você deveria deitar aqui até ficar um pouco mais forte. Ele esforçou-se para ver o que estava acontecendo no corredor. — Mas e se eles a machucarem? 131


— Confie em mim — Melody sorriu. — Ele vai ficar bem. — Ele? — perguntou Brett, parecendo chocado de novo. — Quer dizer… — Melody examinou o rosto dele e suspirou. “Será que o coitado já não sofreu o bastante? Não é a hora de saber a verdade?” — Aquela não era a garota que você beijou — sussurrou no ouvido dele. — Ah, peraí! — ele disparou. — Tá todo mundo zoando comigo? — Ninguém está zoando com você, Brett. Juro. Estamos apenas tetando deixar todo mundo a salvo. Aquilo foi uma isca. Para impedir que Bekka revelasse a verdadeira garota. — Quem é a verdadeira garota? — Não posso te contar sem a permissão dela. Mas eu vou perguntar se ela quer te conhecer. — Sério? Ela vai à nossa escola? Melody zipou os lábios. — Apenas me diga isso: ela é um monstro de verdade? Melody hesitou. E agora, como ia responder isso? Ela analisou os olhos dele em busca de uma pista. Estavam esbugalhados e esperançosos. Umedecidos de ternura. Famintos pela verdade. Finalmente, ela confirmou. As feições contraídas de Brett se abriram para deixá-la entrar. O sorriso dele se abriu para logo depois terminar numa careta. — Qual é o problema? Ele suspirou, baixando os olhos e encarando o esmalte preto em suas unhas. — Acho que isso quer dizer que eu não sou um monstro. Melody sorriu. Em alguns aspectos, eles eram bem parecidos. A escuridão reinava embaixo daquele exterior brilhante. Eles não 132


queriam a mesma coisa que as outras pessoas brilhantes. Eles estavam ligados à escuridão. Eram como equivalentes humanos à cidade de São Francisco: havia um risco imprevisível debaixo daquela beleza. Suas vidas eram uma busca sem fim de um lugar seguro para se colocar em pé. — Por que você não se torna um NECIP? — Um o quê? —

É

minha

organização

pró-monstro. Normies Engajados

Contra Idiotices Preconceituosas. Brett sorriu. — Onde eu assino? — Você acaba de assinar. — Sinto muito, Melody — disse ele, tristemente. — Pelo quê? — Por Bekka. Eu sabia que vocês eram amigas. E Jackson é um cara legal. Ela não devia ter feito aquilo. — Obrigada — disse Melody, descansando a testa na janela de vidro à prova de som. — Ohmeudeus, olhe! — disse ela, pressionando o dedo no vidro. Lá embaixo, os câmeras estavam praticamente se trombando como num show de rock enquanto lutavam por uma tomada de alguma coisa na rua. Melody podia ver Haylee, e a amiga de Brett, Heath, afastadas num canto, mas a multidão estava tão aglomerada que ela não conseguia ver o que estava chamando a atenção dos repórteres. Brett pegou o controle remoto e apontou para a pequena TV suspensa na parede do quarto. A TV mostrava um close da cara falsa de Frankie jogada numa curva do estacionamento. Ali perto, a peruca 133


de fiapos preta e branca e um monte de toalhas de papel cobertas de maquiagem

verde.

Ross,

parcialmente

aliviado

mas

muito

desapontado, reportava que todo aquele episódio dos monstros tinha sido uma brincadeira de um grupo de alunos do Merston High. Daí, ele passou a bola para o estúdio, onde um especialista em efeitos especiais estava a postos, pronto para elaborar especulações sobre como as habilidosas crianças conseguiram armar a pegadinha. Brett colocou a TV no mudo. — Mas não era uma pegadinha, certo? — Eu juro que ela é real. Posso apresentá-la amanhã. Ele sorriu docemente. A sinceridade dele fez com que Melody sentisse a falta de Jackson. Minutos mais tarde, Ross Healy e seu time voltaram para empacotar os equipamentos. — Você me pegou — disse ele, dando uns soquinhos de brincadeira no estômago de Brett. — Eu não tive nada a ver com isso — assegurou Brett. —Eu fui a piada. — Brilhante, B-boy! — Ross deu um cartão a ele. — Me liga se alguma outra coisa estranha aparecer na sua escola. Eu consigo uns ingressos para a Lady Gaga ou qualquer outra coisa. Brett levantou as sobrancelhas. — Você acha que eu posso trabalhar com você qualquer dia? Eu gosto de fazer filmes. — Quais são suas influências? — perguntou Ross. Confiante que Brett não ia espalhar nenhum segredo, Melody aproveitou o momento de saiu de fininho para encontrar Billy e Candace. 134


Do lado de fora do quarto do hospital, um policial estava pressionando Bekka para obter informações sobre seu envolvimento na pegadinha. — Senhorita — dizia ele, batendo uma caderneta de couro na palma da mão. — Quanto mais você cooperar, mais leve será sua sentença. — Sentença? Ele confirmou, balançando a cabeça. — Eu estou falando, não foi uma pegadinha! — ela fungou. — Esses monstros são reais. Onde está Haylee? Alguém pode encontrar a Haylee? — Eu a vi lá fora, conversando com Heath — disse Melody, feliz por dar as más notícias. Bekka bufou. — Tá! Pergunta para ela! Ela vai dizer tudo! Eu não estou mentindo! O policial lançou um olhar suspeito em direção a Melody. — Você conhece essa menina? — Conheço — respondeu Melody, respeitosamente. Depois de dar seu nome e endereço ao policial, Melody disse que ficaria feliz em ajudar no que fosse preciso. — Oh, graças a Deus! — Bekka começou a soluçar. — Até onde você sabe, consegue pensar num motivo pelo qual Bekka… — ele checou sua caderneta. — … Bekka Madden pudesse ter achado que tinha visto um monstro? Bekka arregalou seus olhos verdes numa súplica desesperada por misericórdia. Seu olhar parecia dizer “sinto muito por tudo”: pela

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amizade dissolvida, pela chantagem, pelas ameaças pelo telefone, pela promessa não cumprida, pelo vídeo de Jackson… Melody apertou os lábios e considerou as desculpas. Agora que a caçada tinha terminado e a vida dos IRADOs iria voltar ao normal, Melody sentiu pena de Bekka. Brett estava apaixonado por Frankie. Bekka tinha feito papel de boba na frente de todo mundo. E Haylee era sua única amiga. Será que tudo isso não era punição suficiente? Será que ela também precisava ser presa? — Bekka é uma garota incrível. Ela nunca mentiria — declarou Melody. Bekka parou de soluçar imeditamente. — Viu? Eu te disse! — Mas uma pegadinha não é exatamente uma mentira, não é? Quer dizer, na minha opinião, não deveria ser a mesma coisa. O que Bekka fez foi uma obra de arte — Melody lhe deu um tapinha de brincadeira nas costas. — Pense em quanto trabalho para filmar aquele vídeo. Isso sem mencionar toda a fantasia de Frankenstein, organizar os efeitos especiais, envolver a polícia e os repórteres. É impressionante se você parar para pensar. Se tivesse um prêmio para as melhores pegadinhas, Bekka, minha amiga, você ganharia disparado. — O quê? Você está mentindo! — Bekka virou para o policial. — Ela está mentindo! —

O

que

vai

acontecer

com

ela,

oficial?

Espero

que

nada muito sério. Ela só estava tentando ser engraçada. Ele ajustou o quepe. — Uma dose saudável de serviços comunitários, para começar.

136


Melody

balançou

a

cabeça,

aprovando,

e

depois

saiu

alegremente com um sorriso satisfeito. Ela também tinha acabado de cumprir seu serviço comunitário. E se sentia ótima.

137


CAPÍTULO 12 COMA, BEBA E TENHA CUIDADO

Nada contra as Olimpíadas. São sempre inspiradoras e vêm da Grécia, assim como Deuce. Mas todas as vezes que aconteciam, os programas de TV favoritos de Cleo eram tirados do ar e substituídos por, vamos ser honestos, duas semanas de atividades físicas esquisitas e obscuras. Durante esse tempo, Cleo sempre se punha a vagar sem rumo pelo palácio como um camelo perdido no deserto, em busca de algo familiar para distraí-la. Era desorientador e enervante e a única cura eram as cerimônias fechadas e o subsequente retorno de seu programa de atividades. Depois de a programação voltar ao normal, ela celebraria comendo um cupcake de chocolate em forma de pirâmide, de Hasina, para compensar a inevitável perda de calorias que sofrera durante seus quatorze dias de perambulação. E agora, sentada na zona livre de alergias na cafeteria de Merston High com suas três melhores amigas, Cleo mordia a 138


pontinha da pirâmide de chocolate para celebrar outra conquista: a volta de sua vida regularmente programada. Nessa vida, Clawdeen, Lala e Blue a focavam com uma lente de alta performance. Nessa vida,

novatas

(Frankie!)

e normies (Melody!)

não

estavam

nas

manchetes. A vida onde celulares tinham sinal dentro do palácio. E encontros com De nas noites de sábado. Aquela que ela podia anunciar seu editorial para a Teen Vogue e suas amigas iam babar de inveja por dias. Aquela vida que seria sua volta por cima. Até agora, nada apontava para o contrário. A cafeteria estava cheia de normies famintos em rota para suas mesas de sempre nas zonas sem amendoim, sem glúten, sem lactose e sem gordura. Como sempre, as garotas passavam por Cleo e suas amigas com um olhar disfarçado para checar suas roupas fashion. Se Deuce não estava por perto, e ele não estava porque segunda-feira era dia de seu treino de basquete, os caras fariam a mesma coisa. Eles balançaram a cabeça quando a lista do intervalo começou a tocar. Hoje, começava com “I Made It (Cash Money Heroes)” de Kevin Rudolf. A letra não poderia ser mais apropriada. Eu sempre soube, a vida toda Eu consegui, eu consegui! Cleo mastigava o rico bolo-pirâmide no ritmo triunfante que marcava seu retorno. E, com calculada paciência, ela olhava as fotos em seu iPhone, esperando que alguém fizesse a pergunta inevitável. — Os convites para minha festa de 15 anos foram enviados hoje — anunciou Clawdeen, mordendo seu hambúrguer com bacon duplo. — Eu beijei cada envelope com o Girl About Town, da M.A.C, antes de 139


jogar na caixa do correio. Por isso cheguei tão atrasada na aula de matemática hoje de manhã. Ela fez uma pausa, obviamente esperando por uma reação. Cleo se recusou: há dias ela não era o centro das atenções e isso estava começando a apagar o brilho do seu cabelo. Finalmente, Lala chegou mais perto e espiou a tela com seus profundos olhos castanhos. — Ei! — Ela deu uma batidinha no creme de chocolate da pirâmide com seu dedo gelado. O creme bateu no casaco transparente de Cleo e aterrissou em sua legging tie-dyed pink e cinza. — O que você está olhando? — Hum, minhas calças sujas! — Sério, Sheila, o que quer que esteja nesse telefone deve ser demais porque você nem notou o delineador borrado da Lala — disse Blue, batendo de brincadeira os dedos dentro de luvas cinza nas bochechas. — Ótimo! Vai zoando com a garota cega! — Lala jogou um pouco de sal na pele seca de Blue. — Você não é cega — explicou Blue. — Você apenas não consegue ver seu reflexo. — E isso é bom — Clawdeen revirou um cachinho dourado com o longo dedo. — Não — Lala limpou as pálpebras com um guardanapo molhado. — Seria bom se eu não conseguisse sentir seu bafo de hambúrguer — disse, apertando os lábios para evitar sorrir em público. Cleo, entretando, riu alto. Tudo tinha voltado ao normal. Era a hora. 140


— Estou tentando decidir o que usar para o editorial da Teen Vogue — disse ela, como se tivessem falado disso a manhã inteira. — Eu adoro o colar de falcão e os brincos pendentes, mas usar os dois juntos parece matador demais, sabe? As garotas juntaram as sobrancelhas, confusas. A cena não poderia ter sido melhor nem se tivesse sido dirigida por ela. E, na verdade, tinha sido um pouco. Cleo passeava pelo seu portfólio de looks fotografados naquela manhã. Na aurora, mais especificamente, quando a luz era mais rica. O brilho alaranjado acordava o ouro do mesmo jeito que seus olhos azuis eram acordados pelo kajal preto. Ela fotografou as peças inestimáveis na ilha de areia de seu quarto e cercou-as de arbustos e grama.

Esqueça

a

alta-costura

do

Cairo!

Sua

coleção

era

faraonicamente fabulosa! — O que vocês acham? — Ela mostrou as fotos dos brincos e do colar. — Demais? — Acho melhor você pausar e voltar — Blue torcia seus cachos loiros para longe do rosto e prendeu-os com um par de palitos chineses laqueados. — Fala sério — disse Clawdeen. — Esses brincos pendentes são ainda mais bonitos que… — As esmeraldas de Angelina Jolie no Oscar. Eu sei. Lala reclinou-se por cima da mesa, as pontas de seus cabelos pink e preto roçando a ponta do cupcake pirâmide de Cleo. — Tem mais? — Toneladas. Cleo mostrou as abotoaduras, a coroa cheia de pedras, o anel que brilhava no escuro, o colar de penas e o bracelete de serpente 141


com olhos de rubi, além de uma foto lindamente iluminada do cartão de Anna Wintour. — É legítimo? — perguntou Lala, tocando a tela. — Claro! Meu pai encontrou tudo na tumba da tia Nefertiti. — Não! — disse Lala. — O cartão! Cleo gesticulou para que chegassem mais perto. Uma vez dentro de seu círculo de perfume, ela contou sobre o encontro de seu pai com Anna na primeira classe, o editorial da Teen Vogue, as dunas de areia, os camelos, seu debut como modelo e o potencial para um networking ilimitado. Seus olhos se esbugalhavam a cada detalhe. — Cai fora, Sheila! É sério? — Eu comeria carne para sair na Teen Vogue. — Eu viraria vegetariana! A trama as envolveu como suas finas tiras de linho. — Você vai estar mesmo sobre o camelo? — Quem são as outras modelos? — Eles precisam de loiras? E amarrou todas juntas com a força de um Herve Leger. — Podemos ver a coleção depois da aula? — Vamos ajudá-la a escolher as melhores peças! — Ei, amiga, podemos experimentar algumas? Pela graça de Geb, a imagem de Cleo como rainha, a rainha delas, tinha sido preservada por pelo menos um ou dois dias. Crise controlada. Ela podia continuar por horas e elas continuariam escutando. Mas a pirâmide de chocolate, que estava bem no centro do amontoado, flutuou sobre o prato e começou a desaparecer em pedaços do tamanho de mordidas. 142


— Billy! O último pedaço caiu no prato. — Desculpe! O riso abriu de vez o círculo perfumado e revelou Frankie, Melody e Jackson. Eles deslizaram as bandejas brancas pela mesa retangular e se sentaram como se tivessem sido convidados. Mas não tinham sido… Pelo menos, não por Cleo. — Olá! Frankie estava radiante embaixo de uma grossa camada de maquiagem normie. Seu pequeno corpo estava envolvido num xale e num macacão de cetim negro (que mais parecia um macacão para pular de paraquedas). Apertar a cintura com um grosso cinto trançado parecia um admirável esforço para colocar algumas curvas naquele disfarce. Mas não estava funcionando. O macacão tinha sido confeccionado para outro tipo de corpo. — É tão eletrizante estar de volta! — disse ela, apreciando os barulhos e a agitação da multidão na hora do intervalo, balançando a cabeça ao ritmo de “Alejandro” de Lady Gaga, que tinha acabado de começar a tocar. Cleo revirou os olhos, indecisa sobre o que mais a incomodava: o termo “eletrizante” ou Frankie constantemente tentando ser o centro das atenções ou ambos. — O baile foi sábado à noite — salientou. — Hoje é segundafeira. Você não perdeu nenhum dia. — Eu sei — Frankie sorriu. — Graças a esses dois! — Ela aplaudiu Melody e o espaço vazio ao lado dela. Jackson, Lala, Clawdeen e Blue juntaram-se aos aplausos. Cleo empurrou seu cupcake. A comemoração tinha acabado. 143


— Não acredito que Bekka mostrou aquele vídeo — Lala comentou com Jackson. —Você não teve um treco? — Tive — Jackson tirou seus óculos escuros e limpou as lentes com a camisa amassada de xadrez amarelo e marrom. —Eu estava correndo para pegar meu passaporte quando Melody mandou uma mensagem com a notícia. — Ele deu um puxão de brincadeira nos cordões do capuz da normie. Cleo examinou o novo casal, tentando imaginar o que Jackson via em Melody. Rosto por rosto, ela era indiscutivelmente atraente, talvez até superbonita. Longos cabelos negros, pequenos olhos acinzentados, um nariz perfeito, uma pele sem espinhas. Mas em termos de estilo, ela era igual a Kristen Stewart: “prefiro estar confortável a ser bonitinha”. Ela parecia uma garota que sempre vestia as roupas de domingo. — Billy foi um verdadeiro herói — anunciou Melody. — A tática da distração foi ideia sua — disse ele, devorando o cupcake descartado. — E você devia ter ouvido como Melody deu o troco em Bekka depois de tudo. Ela vai ter que fazer umas duzentas horas de serviços comunitários. — Eu ouvi falar disso — Clawdeen riu. — Nada mal! Mas, se dependesse de mim, ela iria para a cadeira elétrica. — O que tem de ruim nisso? — brincou Frankie. Melody caiu na risada. — Por que você está aqui? — disparou Cleo, sem conseguir se segurar mais. Melody empalideceu. — Cleo! — censurou Jackson.

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— Quer dizer, ahn, você não tem alergia? — retrocedeu. — Você não devia estar sentada em outra zona? — Eu tenho asma, mas está bem melhor desde que eu me mudei para cá — disse ela. — Hoje de manhã eu cantei no chuveiro pela primeira vez em anos e minha voz estava… — Você canta? — perguntou Blue. — Você toma banho? — murmurou Cleo. — Sim, as duas coisas — respondeu Cleo, ignorando a provocação. — Eu já me apresentei quando era pequena. Por quê? Você canta? — Eu toco guitarra — respondeu Blue. — E um pouco de piano. — Ainda tenta aquelas escalas? — Lala deu uma risadinha com o guardanapo na boca. — Ainda tenta essas piadas? — rebateu Blue. Cleo continuou olhando as fotos no seu telefone, esperando reconquistar a atenção de todos para o que realmente importava. — Bekka foi expulsa da aula de matemática hoje de manhã e foi parar na sala do diretor Week — anunciou Frankie, fechando a tampa azul-elétrico de seu espelhinho compacto coberto de pedrinhas negras. — Por quê? — perguntaram todos, virando-se para olhar para ela. — Foi na primeira aula. O Sr. Cantor estava atrasado, então começamos a falar de tudo o que aconteceu. Quando Bekka entrou, todo mundo começou a aplaudir e dizer como tinha sido legal a pegadinha que ela conseguiu fazer. Ela tentou dizer que era real, mas ninguém acreditou nela. Acho que ela ficou tão frustrada que começou a atirar giz em todo mundo. E foi aí que Cantor entrou e 145


levou um pedaço de giz azul bem no meio da testa. E ela foi direto para o Weeks. — Legal — exclamou Clawdeen, roubando um pedaço de frango do prato de Jackson. — E a amiguinha dela também — continuou Frankie. — Haylee — disseram todos juntos. — Isso, Haylee. Ela tentou defender Bekka. Ela disse que Bekka está chateada porque Brett quer desmanchar com ela mas… — Sabe por que ele quer desmanchar com ela? —interrompeu Melody. Todos deram uma risadinha e olharam para Frankie. Frankie baixou os olhos e encarou a mesa. — É is-so mes-mo! — cantarolou Melody. — Ele quer conhecer você! A zona sem alergias foi tomada por gritinhos femininos. Frankie sentou-se sobre as mãos. Jackson protegeu-se dos hormônios femininos

escondendo-se

embaixo

de

seus

cabelos

castanhos

desgrenhados. Cleo queria jogar seu telefone na cara intrometida de Melody. — É verdade. Ele me implorou para conhecer você. — Isso não é nada seguro! — rebateu Cleo. — E se for uma armadilha? — Você vai? — Lala mastigava uma cenoura. — Ele é uma gracinha para um normie… Sem ofensas, Melody. Ela sorriu para mostrar que não tinha se ofendido. — Num sei — suspirou Frankie. — E o D.J.? —perguntou ao Jackson. — Acho que ele gosta de mim.

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— Acho que posso falar com ele por você — ele ofereceu, envergonhado, por baixo do cabelo. — Então, isso é um sim? Devo ir procurar o Brett? — Não! — disse Frankie. — Aqui, não. Não na frente de todo mundo. E se Cleo estiver certa? E se não for seguro? — Que tal depois da escola, então? — sugeriu Melody. —No Riverfront. Jackson e eu vamos junto com você, para prevenir qualquer coisa. Frankie suspirou de novo. — Apenas diga que sim — insistiu Melody. — Ele realmente gosta de você. — Tá. Sim. Todas as garotas vibraram, encantadas. — Podemos ir também? — perguntou Lala. — Claro! Vamos todos andar no carrossel e fingir que não conhecemos você — acrescentou Blue. — Vamos sair de fininho bem cedo ou meus irmãos vão seguir a gente — disse Clawdeen. — Eles não acham que seja seguro andar por aí. — Esperem aí! Pensei que a gente ia olhar as joias! —exclamou Cleo, incapaz de esconder seu desapontamento. — Já sei! — Blue, a pacificadora, levantou o dedo. — Por que a gente não vai ao Riverfront hoje e na Cleo amanhã? — De jeito nenhum! — respondeu Cleo. — Por que não? — perguntou Lala. Ela não era do tipo que recebia ordens para fazer ou não fazer alguma coisa. — Por causa… — disse Cleo, hesitando. — Por causa da surpresa. 147


— Que surpresa? — Hum… Eu ia falar na minha casa mas… Clawdeen e Blue também vão modelar comigo — disparou. — E Lala, eu ia combinar de você ajudar os stylists porque você não sai muito bem nas fotos, mas… Uma nova leva de gritinhos encheu o ar com cheiro de comida. Como sempre, os outros estudantes da zona viraram para ver o que estavam perdendo. E, como sempre, Cleo sorriu, adorando toda aquela atenção. — Mas se vocês querem ser damas de companhia lá em Riverfront, tudo bem. Eu só preciso saber por que teria que achar substitutas. Vocês decidem. As

garotas

asseguraram

que

substitutas

não

seriam

necessárias e estavam completamente comprometidas com o editorial. — Brilhante! — exclamou Cleo, esperando em Geb que os editores

da Teen

Vogue recebessem

entusiasmo.

148

a

notícia

com

o

mesmo


149


CAPÍTULO 14 DESAPARECENDO

Era o tópico das conversas na hora do intervalo e nas festas, especialmente para os irmãos Wolf. — Então, Billy, fala sério! Quantas vezes você já entrou no vestiário feminino? — Seria difícil colocar uma câmera ali? — Já foi a uma festa do pijama? — E o vestiário no Holy Oak High? Já foi lá? — A escola dos garotos? — É, para ouvir as táticas de basquete deles. O que você acha que eu quis dizer? — Sei lá, cara. Ele está ocupado demais visitando os provadores da Victoria’s Secret. Billy fingia rir. Mas, sinceramente? Ele não queria ser esse tipo de cara. O garoto pentelho invisível que seguia as garotas mais gatas 150


e ficava ouvindo suas conversas. Era tão previsível. Sem dizer que era nojento. Além disso, ele estava interessado em apenas uma garota. Olhos

cativantes.

Determinação

implacável.

Honestidade.

Inocência. Mesmo com as roupas terríveis que tinha que usar para ir para a escola, continuava sorrindo. O jeito como suas mãos conseguiam iluminar uma sala inteira. Ele tinha dado um telefone para ela. Arranjado um encontro na casa dela. E colocado sua vida em risco para salvar a dela. Agora ela estava a caminho de Riverfront para encontrar um normie chamado Brett. Andando entre Melody e Jackson. Raios de sol aquecendo seu rosto. Sua sombra logo atrás, saltitante com a promessa de um novo amor. Billy estava seguindo a sombra. Estava sendo aquele cara. O cara que ele não queria ser. Cada passo indetectável o levava mais próximo de saber se jamais teria ou não uma chance com ela. Mas alguma coisa sobre seus dedos agitados, seus passos saltitantes e seu riso nervoso diziam que mesmo que ela soubesse que ele estava lá, mesmo que ele colocasse roupas ou pintasse o rosto, mesmo que ele declarasse seus sentimentos de joelhos… Ele ainda seria invisível. Então, ele parou de andar e deixou-a ir.

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CAPÍTULO 15 AMA-ME POR SER NORMIE

Os raios solares cor de mel saturavam Riverfront, esvaziando os últimos pedacinhos do calor preguiçoso do gramado e dos caminhos. O homem do tempo tinha prometido um lindo dia, mas não tinha dito nada sobre os grossos raios dourados que seguiam o rosto de Frankie como holofotes. Aquilo a carregava de fora para dentro. Aquilo aquecia seus cabelos negros e fazia com que o cheiro de seu xampu de amêndoa com cereja acordasse. Não, ele não tinha dito nada sobre o tempo perfeito para se apaixonar. Talvez ele não quisesse estragar a surpresa. — Então, esse é o abominável banco da sorte? —perguntou ela aos acompanhantes que sinalizavam para que ela se sentasse. — Isso! — Melody sorriu. — Foi aqui que conheci Jackson. — Aposto que você não estava usando um macacão, dez toneladas de maquiagem e um xale — disse Frankie, desejando estar vestida com alguma coisa mais ela mesma. 152


— Não, mas eu estava — brincou Jackson, oferecendo um pouco de pipoca. — Não, obrigada — Frankie alisou sua barriga cheia de borboletas. A música do órgão começou e o carrossel se pôs a girar. Subindo e descendo nos seus cavalos, as crianças normies riam e acenavam para os pais, que acenavam de volta, com os olhos molhados da ternura dos simples prazeres da vida. O riso das crianças, uma tarde quente, o cheiro de pipoca no ar… Se apenas eles soubessem que aquele lugar era a fachada usada pelos IRADOs para seu esconderijo subterrâneo, construído pelos monstros para os monstros, porque esse mundo, o mundo dosnormies, era perigoso demais para eles! Frankie suspirou, cendendo à própria confusão. “O que eu estou fazendo?” Sua meta era educar e esclarecer o inimigo, não paquerá-lo. Não que Brett fosse o inimigo, mas ele namorou o inimigo. Então, seu gosto era inquestionável. — Por que estou aqui mesmo? Melody sorriu, acenando para alguém distante. — Eis o porquê — murmurou ela. Frankie se virou. Brett estava indo ao encontro deles com suas botas de trilha. Seu andar era determinado, mas não ansioso. — Certo. Agora eu me lembro. Seus jeans eram do mesmo azul do rio Willamette, e sua camiseta preta estava desbotada para ser perfeitamente confortável. Ray-Bans verdes escondiam seus olhos, mas não seu sorriso de megawatts. “Inimigo? Quem?” 153


Longe das luzes fluorescentes da escola, ele parecia diferente. Mais refrescado. Mais menino. Livre. Fora de sua fantasia de Frankenstein. Fora da TV. Sem Bekka. Ele levava um punhado de margaridas numa mão e o coração acelerado de Frankie na outra. — São para mim? — Jackson provocou. Frankie

escondeu

uma

risadinha

silenciosa,

ainda

não

exatamente pronta para ser descoberta. — E aí? — Brett cumprimentou Jackson batendo as palmas da mão com um risinho desconfortável. — Tudo bem? — perguntou à Melody, com um sorriso que dizia “que bom ver você de novo”. Todos trocaram olhares, sem saber quem ia fazer o quê a seguir,

enquanto

Frankie

ficava

de

ladinho

esperando

ser

apresentada… E esperou… E esperou… Por esperando

alguma alguma

razão,

Melody

e

como

se

coisa,

Jackson o

encaravam

próximo

passo

Brett fosse

inquestionavelmente dele. Sem aguentar mais todo aquele suspense, Frankie enfiou as mãos que faiscavam dentro dos bolsos do macacão e deu um passo à frente. — Então — disse Brett, os olhos passando por ela. — Ela está aqui? — Oi! — sorriu Frankie. Brett olhou para ela, confuso. — Sou eu — Frankie tirou o xale e um dos parafusos ficou à mostra, brilhando. — Está vendo? Brett, de repente, voltou a si. — Oh, sim, claro — gaguejou. — Você não pode andar por aí mostrando… Eu não tinha percebido… É você! — Brett finalmente fez 154


a ligação entre a garota da aula de geografia com os piercings irados no pescoço e a gatinha de pele verde que detonou seus lábios. Ele ficou atordoado, boquiaberto e em silêncio. — Vamos nos afastar desse monte de gente? — sugeriu Frankie, temendo que ele pudesse desmaiar e causar uma cena. Ela havia prometido aos pais que não faria nada que pudesse atrair atenção negativa e, dessa vez, pretendia manter a palavra. — Claro — concordou ele, mexendo os ombros enquanto tentava se recuperar. Eles começaram a andar em direção à agua. — Ah! — Ele entregou-lhe as margaridas. — São para você. — Por quê? — É como pedir desculpas por ter arrancado a sua cabeça. Frankie tirou as mãos dos bolsos e aceitou as flores com um riso genuíno, liberando à brisa toda a tensão, frustração e vergonha do final de semana. Daquele momento em diante, suas mãos balançaram livremente. Seu medo de soltar faíscas desaparecia cada vez que as pontas de seus dedos se tocavam acidentalmente. Melody e Jackson seguiram os dois até um caminho de grama ensolarado perto do rio. — Cara, eu não acredito que estou dando uma passeada com alguns… — Brett deu uma pausa e sentou-se. — Espere, o que vocês são exatamente? — Gostamos de ser chamados de IRADOs — explicou Jackson, colhendo um dente-de-leão do chão e puxando as sementes como se estivesse arrancando lascas de queijo. —Indivíduos Refratários a Atributos e Designativos Oridinários.

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— Legal — Brett deitou-se e apoiou a cabeça sobre os braços cruzados. — Então, vocês são todos IRADOs? — Eu não sou — disse Melody. — É verdade — disse Brett, lembrando. — Você é uma NECIP. — Uma o quê? — Frankie deu uma risadinha, mexendo o cabelo para que ele pudesse sentir o cheirinho de seu xampu de amêndoas e cereja. — Normies Engajados Contra Idiotices Preconceituosas

recitou, orgulhoso. — Boa memória! — aplaudiu Melody. — Então, Jackson, aquele vídeo era real? — Infelizmente — Jackson colheu outro dente-de-leão. — Alguma coisa no meu suor faz com que eu me transforme. Frankie sentou-se. — Falando nisso, aqui está quente demais pra você? — perguntou ela, subitamente receosa que D.J. pudesse aparecer e acabar com seu encontro. — Fica fria. Eu também estou — disse ele dando uma batidinha no bolso da jaqueta para sinalizar que o ventilador estava ali. — Entendeu? Frankie riu daquela piadinha boba, mas a risada saiu porque ela estava realmente feliz. Ela se deitou e encarou as riscas brancas no céu. — Eu me lembro muito bem da primeira vez que vi você — disse ela a Brett. Brett virou-se de lado e apoiou a cabeça numa das mãos. — Você se lembra? Frankie fez que sim com a cabeça. 156


— Foi no primeiro dia de aula. Você e Bekka estavam conversando atrás de mim na fila da lanchonete e ela disse alguma coisa sobre usar uma bunda de monstro como porta-lápis. As bochechas dele ficaram vermelhas. — Ai, cara, eu me lembro desse comentário. Foi tão ofensivo. Brett tirou os Ray-Bans verdes e começou a limpar as lentes na camisa. — Por que você não disse nada a ela? Ele estudou a expressão dela com seus olhos azul-anil enquanto pensava na resposta. Ela soltou uma faisquinha. Ele recolocou os óculos. — Bekka é um pouco frágil. — Há! Se você acha que ela é frágil, como você me descreveria? — brincou, apontando para a sutura no pescoço. Ele riu. — Acho que eu estava com medo de discutir com ela. Frankie apoiou a cabeça na mão também e depois olhou para o rio. — Medo é chato. Ele riu. — O quê? — É engraçado, só isso. — O que é engraçado? — Quando eu era criança, queria ser um monstro pra todo mundo ter medo de mim e eu não ter medo de nada. E eu estava certo. Quer dizer, é meio assim que funciona, né? Você não tem medo de nada, tem? Frankie pensou um pouquinho e confirmou. 157


— Uau! — Mas não é porque eu posso assustar os normies. Por favor! Eles são muito mais perigosos do que eu. Eu não tenho medo porque, bem, eu estou viva há apenas alguns meses e eu tive que me esconder no laboratório do meu pai a maior parte do tempo. — E daí? — Daí que eu sou muito mais curiosa que medrosa. Frankie chegou mais perto do rosto dele e correu os dedos sobre as lentes. — O que você está fazendo? — É como essa sujeira — explicou ela. — O quê? — Medo. Ele nos impede de ver as coisas claramente. Brett tirou os óculos e contemplou Frankie como se estivessem num filme romântico, especificamente naquela parte em que o cara percebe que está se apaixonando. — Queria que você não precissase usar toda essa maquiagem — disse ele, finalmente. — Sua pele verde é tão… — Menta? — Ela deu uma risadinha. — É, menta. Ela suspirou. — Eu queria que os normies soubessem quem nós realmente somos. Brett pegou a mão dela. Ela deu a mão a ele. Ela passou o polegar sobre o esmalte preto dele, desejando secretamente que tivesse tido tempo de ter pintado as unhas. — Ohmeudeus, escondam-se! — gritou Melody. Mas era tarde demais. 158


— Aberrações! — gritou uma garota lá longe. Frankie

e

Brett

sentaram-se

assustados;

depois

foram

empurrados por Melody para se deitarem de novo e se esconderem na grama. — Bekka? — Brett murmurou ao ver a ex-namorada. Ela estava usando um avental cor de laranja e arrastando um grande saco de lixo pelo parque. — Ajudantes zumbis de ladra de namorado! — gritou para Melody e Jackson, espetando uma caixinha de suco com seu arpão de madeira. — Isso está muito longe de acabar! Um homem com um avental igual correu até ela e levou-a para o outro lado do parque. Melody continuou em pé. — Acho que ela não conseguiu ver você. Vamos sair daqui antes que ela veja quem são vocês. Ninguém discutiu. Eles se apressaram a sair dali em silêncio. Quando chegaram à Front Street, Brett finalmente falou. — Acho que posso ajudar. — Acho que ela precisa de um tempo — sugeriu Melody, educadamente. — Não Bekka. Os IRADOs — Ele tirou um cartão de visita de sua carteira de couro preto. — Lembra daquele Ross Healy, do Canal 2 da TV? Melody confirmou. — Ele me pediu para ficar de olho se acontecesse alguma coisa na escola. Talvez ele possa fazer alguma coisa por vocês. — Como o quê? — perguntou Frankie secretamente, se perguntando sobre a motivação dele. 159


— Um reality show? — disse Jackson. — Como “A Vida Secreta dos Monstros Adolescentes”? — Não — respondeu Brett, com uma risada. — Alguma coisa séria. Uma reportagem jornalística, para mostrar às pessoas quem vocês realmente são. Frankie parou para pensar. Uma reportagem atingiria muitas pessoas. Mas era seguro? — Você deve dirigir tudo — disse Melody, dando uma cotovelada no braço dele como os caras fazem. — Você estava querendo fazer um filme de monstro. Por que não revelar tudo em vez disso? — Não sei se estou pronto para fazer algo tão grande —disse Brett, humildemente. — Além disso, não é costume do Canal 2 deixar que um adolescente no colegial dirija um programa inteiro. Eu ficaria feliz se eles me contratassem para limpar as lentes das câmeras. — É mais seguro que trazer um cara de fora pra dentro — disse Jackson. — É verdade — admitiu Brett, limpando as marcas de dedo das lentes dos óculos e recolocando-os. — Num sei, gente — disse Frankie, encarando os carros que passavam. Carros cheios de normies que estavam alheios à verdade: a verdade que libertaria os IRADOs. Mas e se ela estragasse tudo de novo? E se essa reportagem-verdade tornasse as coisas piores em vez de melhores? E se alguém saísse machucado? E se ela não tentasse? O que será que seus pais queriam que ela fizesse? — Com uma condição — disse ela, finalmente. Eles concordaram e esperaram. 160


— A cara de todo mundo vai ter que ficar oculta. Nossas identidades nunca poderão ser reveladas. — Eu concordo — disse Brett. — Você pode me entrevistar primeiro — disse Jackson. — Eu posso ser a segunda — disse Frankie. — Acho melhor eu ligar para o Ross antes de todo mundo ficar tão animado — alertou Brett. — Tarde demais! — Frankie ficou radiante. — Eu realmente acredito que isso é exatamente o que precisamos. — Eu também — Brett sorriu concordando como se ele estivesse se referindo a outra coisa. Frankie retribuiu o sorriso, olhando para si mesma no reflexo das lentes. Ela podia estar uma pateta com aquele macacão, mas ela se sentia linda dentro da própria pele.

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CAPÍTULO 16 LÁGRIMAS DE UMA COROA

A luz das velas tremulava nas paredes de pedra do quarto de Cleo, dando uma aura de tumba à sua bem montada exibição de joias. Ou melhor, à exibição que ela pedira aos empregados para montar. Tinha conseguido enviar uma mensagem de texto para Beb e Hasina durante uma palestra sobre fornecimento e demanda na última aula de economia. Mas o Sr. Virga ficaria orgulhoso. Seu texto era fornecimento e demanda na mais pura forma. Ela havia pedido que fornecessem: 1. Cem velas perfumadas de âmbar 2. Três tiras de linho secas do lado de fora do banheiro 3. Chão de pedra polido 4. Areia varrida na ilha 163


5. Lírios-d’água egípcios azuis flutuando no Nilo 6. Três

sarcófagos

abertos

equipados

com

três

espelhos de corpo inteiro 7. Playlist da Teen Vogue: a) Poppin’ —Utada b) Lisztomania —Phoenix c) Far From Home —Basshunter d) Your Love Is My Drug —Ke$ha e) Nobody —Wonder Girls f) Rude Boy —Rihanna 8. Um prato vegan de hummus para Lala 9. Hidratante sem corantes e não comedogênico para Blue 10. Beef Jerky3 orgânico para Clawdeen 11. Joias penduradas num suporte coberto de linho 12. Uma vasilha para se lavar com toalhas de algodão egípcio … e a demanda teria que ser entregue assim que ela chegasse em casa da escola. Agora, no meio do forte perfume de âmbar e das palmas ritmadas na canção Poppin’, de Utada, Cleo guiava suas amigas vendadas até sua câmara bruxuleante. Ela as posicionou em frente ao quadro encapado que expunha seus tesouros reluzentes. Estava lá, orgulhosamente erguido perante os três sarcófagos, como uma rainha toda adornada diante de suas aias. — Pron-tas? — perguntou ela, cantarolando. 3

Tipo de carne-seca. (N.T.) 164


Elas balançaram as cabeças, ansiosas. — OK, tirem as vendas! As garotas puxaram as tiras de linho e as jogaram no chão de pedra. Miu-Miu e Bastet andavam com suas patas macias para pegar seus brinquedos novos e correram antes que os passarinhos pudessem roubá-los. — Cleo! — Clawdeen engasgou. — Elas são ainda mais fantásticas ao vivo! — Foi o que ele disse — Cleo deu uma risadinha. — Posso pôr a mão? — perguntou Blue, tirando suas luvas de bolinhas e chegando perto do anel de pedra da lua que brilhava no escuro. — Foi o que ele disse — disse Lala, abruptamente. Todas caíram na risada. Mas ninguém riu mais que Lala, agora livre para mostrar seus caninos anormais. Chorar de tanto rir era uma velha rotina desde os tempos de primário. E continuava rendendo. Essa familiaridade deixava Cleo à vontade. Suas garotas estavam de volta. Depois de lavar as mãos na bacia com sabonete, elas foram até suas peças favoritas e começaram a experimentá-las. Lala mordia talos de aipo enquanto colocava e tirava as relíquias de ouro com a paciência de um stylist profissional. Sem hesitar, Cleo levantou a coroa incrustada de pedras preciosas e colocou-a sobre a cabeça. O peso fixou seus pés descalços no chão de pedra. Prendeu sua franja de cabelos negros sobre seus cílios. Indicou sua posição hierárquica social.

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— Fantástico! — disse Lala, anotando o look em seu caderno de papiro. — Nada de brincos. Apenas esse longo bracelete de serpente e você está pronta! Ela ficava tão segura atrás das portas: animada, participativa e forte. Uma Lala totalmente diferente da garota tímida e malhumorada da escola. Por uma fração de segundo, Cleo deu valor em poder viver abertamente. Liberdade era o limpa-vidros da alma: fazia com que sua luz brilhasse sem embaçamentos. Mas por que alimentar essa esperança? Nada nunca ia mudar. — Eu concordo — disse Cleo, admirando seu primeiro look acabado nos sarcófagos espelhados. — Eu estou muito a fim desses — disse Clawdeen, segurando os brincos pendentes de jade perto de seus cachos ruivos. — Acrescente esses e você está pronta — disse Lala, dando-lhe os braceletes martelados. — Ah, e não se esqueça de passar cera nos seus braços antes das fotos. — Vou marcar um horário com a Anya agora mesmo. Qual é a data?

perguntou

Clawdeen,

colocando

um

pedaço

de beef

jerky orgânico na boca. Cleo sentiu um desconforto no estômago. A Teen Vogue ainda nem sabia que elas existiam. — Ahn, 14 de outubro — balbuciou e depois pegou sua taça de chá de romã gelado. — Manhã ou tarde? — Noite. — Eles vão providenciar cabelo e maquiagem? — Claro. — Figurino? 166


— Sim. — Jantar? — Claro! — Eles podem nos dar atestados para faltarmos na escola? — Certamente que sim. — E quanto ao transporte? — O que tem? — Como vamos e como voltamos? — Pelo amor de Ísis, parem de falar para eu poder pensar! — rebateu Cleo, tentando entender como tinha conseguido se esquecer de confirmar as garotas. — Pensar o quê? — perguntou Clawdeen. — Nada. Desculpe, tá tudo bem — Cleo sacou o telefone, rapidamente deletando outra mensagem chata da Frankie querendo chamar a atenção e disparou uma mensagem de emergência para Manu. PARA: Manu set 28, 7:40 PM CLEO:

POR

FAVOR

CONTATE

TEEN

VOGUE

URGENTE. FORA MODELOS NORMIE. ELES PRECISAM CONTRATAR CLAWDEEN E BLUE. LALA SERAH A STYLIST ASSISTENTE. PRECISO CONF. AGORA.^^^^^^^^^^ — Que maravilha! — Blue gritou de algum lugar no quarto, sua voz abafada. — Onde ela está? — Cleo perguntou para Lala e Clawdeen. Elas levantaram os ombros, encolhendo o pescoço. 167


De repente, o sarcófago no canto mais afastado do quarto se abre com um lento rangido. Blue sai de lá admirando o anel de pedra da lua. — O que você está fazendo no meu armário? — perguntou Cleo com um sorriso charmoso. — Eu queria ver se a pedra realmente brilhava no escuro — explicou Blue. — E brilha. E como brilha! Como um amontoado gigante de tobiko pink perolado! — disse ela, referindo-se aos ovos de peixe-voador que eclodiram seus irmãos. — Eu vou usar este aqui com certeza! Ping! Cleo checou o telefone. Vaidartudocertovaidartudocerto... PARA: Cleo set 28, 7:44 PM MANU: EDITORA

PRECISA

VER

BOOK

E

COMPOSITE ANTES DE CONFIRMAR. —Ugh! —Cleo pressionou ainda mais sua coroa e convocou a energia dos ancestrais antes de responder. “O que Cleopatra VIII faria?” PARA: Manu set 28, 7:44 PM CLEO: SEM

CONVERSA.

MINHAS JOIAS, MINHAS REGRAS.

168

PEGAR

OU

LARGAR.


Um casal de corujas cinzentas egípcias voou do loft dormitório de Cleo até as águas barrentas do Nilo. Se eles conseguissem valorizar como não tinham nenhum tipo de estresse na vida! — Você disse que as fotos serão à noite, certo? — perguntou Clawdeen, tirando um Motorola Karma de uma bolsa-carteiro de couro vermelho. Cleo confirmou sem tirar os olhos da tela de seu iPhone, esperando que Manu se apressasse e mandasse logo notícias boas. — Oi, Anya, é a Clawdeen. Vou fazer umas fotos como modelo para a Teen Vogue e preciso de uma depilação com cera completa na manhã do dia 14 de outubro. — Ela checou as longas unhas listadas. — E uma manicure artística também. Alguma coisa egípcia. Por favor, me ligue confirmando no… — Veja se eles conseguem me encaixar num tratamento hidratante — disse Blue. — Eu quero uma sauna — disse Lala. Clawdeen entendeu e continuou digitando a mensagem. Ping! PARA: Cleo set 28, 7:53 PM MANU: OK INSISTEM

Q

AS

MAS

TEM

GAROTAS

Q

USAR

SEJAM

PHOTOSHOP.

PROFISSIONAIS.

QQUER TROPEÇO E O EDITORIAL ESTAH CANCELADO. — Yes! — gritou Cleo. As corujas egípcias voaram de volta para o dormitório.

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— Você também acabou de ler a mensagem de Frankie? — Blue acenou com o telefone. — Ahn? Que mensagem? — Sobre aparecer na TV e mudar o mundo. Lala e Clawdeen checaram suas telas. — Estamos arrasando! — anunciou Lala. — Primeiro, as revistas! Agora, a TV! — Acho que deveríamos contratar agentes — disse Blue. Clawdeen colocou a bolsa no ombro. — Acho que devíamos ir. A reunião é em três minutos. Blue calçou as luvas. — Esperem! — disse Cleo. — Vocês não estão indo embora agora, estão? — Por que não? — perguntou Lala, puxando uma blusa de cashmere roxo sobre a cabeça. — Porque… — Cleo juntou os braços. — Estamos no meio de uma coisa aqui. — Já acabamos — Lala acenou com o caderno como prova. — Eu já tenho os looks de todo mundo. Não temos mais nada a fazer. — E o ensaio das poses? E os exercícios para não sair vesga? — Você está brincando, né? — disse Clawdeen, secamente. — Não. As chamas oscilantes iluminaram seus rostos pasmados. — Caso vocês tenham se esquecido, nunca fizemos isso antes. E se as fotos não ficarem boas, eles vão cancelar todo o editorial. A alta-costura do Cairo vai sair de moda por mais 5 mil anos e minha carreira como designer de joias nunca vai decolar. Essa é minha grande chance. 170


Só de falar essas palavras, seu estômago se retorceu. — Eu entendo plenamente, Cleo — disse Blue, odiando ter que discutir. — Mas e quanto a minha grande chance? — Ela pendurou o anel de pedra da lua de volta no suporte. —Você tem grandes contatos. Mas o que eu tenho? Eu quero ser uma surfista profissional. Quem é que vai bancar uma garota escamosa de luvas? Lala bufou. — As coisas precisam mudar para nós, Cleo — continuou Blue, pegando um pouco da água do Nilo e esfregando a mão molhada na nuca. — Normies precisam começar a nos aceitar ou nunca teremos nossos trabalhos dos sonhos. Cleo revirou os olhos. — Você não está cansada de se esconder? Você não quer ser normal? — perguntou Lala, enfiando as presas num par de tomatescereja. Clawdeen riu. — La, você não conseguiria ser normal nem se quisesse. — Não tem nada de especial em ser normal — insistiu Cleo, levantando sutilmente o queixo. — Não foi bom ir ao baile como nós mesmas? —perguntou Blue, gentilmente. — Não valeu o preço que pagamos, se é isso que você está perguntando. — E se não tivéssemos que pagar nenhum preço? —tentou Clawdeen. — Sempre tem um preço — disse Cleo, chocada com seu próprio cinismo. Ela se opunha à mudança geral ou à mudança de amigas? 171


— Eu quis fazer intercâmbio porque meus pais falaram que ia ser diferente aqui — disse Blue, repentinamente muito séria. — Eles disseram que aqui tinha uma comunidade IRADO da hora e que os IRADOs iam mudar as coisas. Eles queriam que eu crescesse melhor que eles. E desde que eu cheguei aqui, não tive coragem de abrir o jogo com eles. Meus e-mails e cartões-postais estão cheios de mentiras deslavadas — Blue andou até a porta. — Então acho que devemos ouvir o que ela tem a dizer. Seu charmoso andar de patinho de repente perturbou Cleo. — Depois de toda a confusão que ela nos colocou da última vez? — Nós só vamos ouvir — disse Lala, seguindo Blue. —Vamos. Clawdeen ficou entre elas, impaciente com o zíper da bolsa, obviamente estragado. — Nós deveríamos ensaiar nossas poses. Cleo sorriu, aprovando. Ela sempre podia contar com Claw como apoio. — Não quero parecer uma estraga-prazeres, mas temos duas semanas para isso — Blue apoiou a mão sobre a maçaneta de escaravelho. — E essa reunião parece importante. — Mais importante que a Teen Vogue? — Cleo bateu o pé, se perguntando quando Blue tinha se tornado tão assertiva. Lala caiu na risada. Mas ninguém mais viu onde estava a graça. — Oh! — Ela se arrepiou. — Eu pensei que você estava brincando. — Pensou errado — Cleo cruzou os braços sobre o suéter preto transparente e fez biquinho. 172


Esse movimento repentino fez com que a coroa na sua cabeça fosse para a frente, mas ela conseguiu pegá-la antes que caísse. Infelizmente, não se podia dizer o mesmo sobre seu status social. — Tudo bem — disse, com um suspiro derrotado. — Eu vou ouvir. Ela pendurou suas joias reais e seguiu as amigas até a casa de Frankie, ao mesmo tempo que jurava silenciosamente que seria a última vez.

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CAPÍTULO 17 O MONSTRO MORA AO LADO

IRADOs emergiram do labirinto de árvores iluminado e se maravilharam com a visão da queda-d’água secreta dos Stein. Frankie recebeu cada um com um abraço de boas-vindas e ofereceu àqueles com cobertores um assento na grama orvalhada. Aqueles que estavam sem o cobertor juntaram-se a Melody na borda de pedra da piscina borbulhante. O cheiro marcante do jantar ainda podia ser sentido em suas roupas, mas seus olhos estavam famintos. O que desejavam? Mudança? Vingança? Seu próprio programa na MTV? Melody cobriu a cabeça com o capuz de seu blusão de moletom e enfiou as mãos dentro das mangas. Logo ela saberia. — Olá! — disse ela carinhosamente para uma garota com óculos gatinho, brinco de zíper vermelho e um descabelado cabelo azul. — Sou a Melody.

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A garota grunhiu alguma coisa que soava como Júliaaaa. Depois, tirou uma grossa agenda de sua sacola e, devagar, como se estivesse em transe, fez um X sobre “Reunião 8 PM” na lista de três páginas das coisas que tinha que fazer. Outros foram chegando e cochichando cautelosamente entre si. — Nada mal para uma reunião às pressas, hein? — disse Jackson, cumprimentando Melody. Seus dedos estavam manchados de amarelo e verde. — E foi tudo ideia sua! — gritou ele mais alto que o barulho da água caindo. Várias cabeças se viraram quando ele disse isso. Quando viram que ele estava se referindo a Melody, viraram novamente e começaram a cochichar. — Não foi — insistiu ela, falando bem alto. Se aquela ideia fosse um fracasso, ela com certeza não ia querer que os IRADOs colocassem a culpa nela. — Claro que foi — Ele jogou a franjona de lado. — O que você tomou hoje? Chá de humildade? Melody revirou os olhos diante da piada boba que só seu avô faria. — Rá-rá! — Ela pegou a mão dele e rapidamente mudou de assunto. — Parece que você andou desenhando. — Só um pouquinho. — Ele inclinou-se e mergulhou os dedos na água corrente, depois os secou na calça jeans. —Enquanto você e Frankie estavam organizando tudo, eu e Brett estávamos trabalhando em ideias para os logotipos e a arte. —Ele chegou bem perto e sussurrou: — Estamos pensando em chamar de “O Monstro Mora ao Lado”. O que você acha?

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“Acho que fico com arrepios em formato de coração quando você fala no meu ouvido.” — Adorei — Melody deu uma risadinha. — Ross também — Jackson ficou radiante. Melody sentiu uma grande alegria por dentro. — Yesssssss! — Ela queria gritar, mas pareceu que estava cantando. Um canto claro, puro e lindo. Era um som que não ouvia há anos. Sua alegria era tão grande que ela precisou apoiar-se e abraçar Jackson para não sair flutuando. — Peguem uma tumba! — alguém rosnou. Cleo! Emoldurada pelas amigas, a abelha-rainha procurava um lugar para se sentar com um balanço relutante. Júlia se levantou e ofereceu a Cleo seu lugar na borda da piscina. Sem hesitar, Cleo se sentou. Um após o outro, três espaços se abriram e suas amigas se sentaram também. Será que elas tinham pagado aquelas garotas para esquentarem as pedras? Ou elas tinham apenas uma grande força para intimidar? Como se Melody tivesse que perguntar. Tinha passado a vida toda esquentando as pedras para as garotas populares de Beverly Hills. Mas um lugar para se sentar não parecia ser uma causa pela qual valesse a pena lutar. Nada parecia… até agora. De repente, as águas pararam de cair e um restinho borbulhou como uma banheira de hidromassagem superacelerada. Um silêncio agudo e cortante pegou o grupo de surpresa. — Bem melhor — Frankie fez sinal de positivo com os dois polegares para seus pais, que estavam lá no fundo do gramado coberto de cobertores e com um controle remoto. Eles queriam confiar nela. Eles disseram que sim. Mas era óbvio pelos seus sorrisos 176


apertados e expressão de dor que eles ainda não tinham chegado ao nível de confiança que queriam. E eles iam ficar por perto para ver o que ia acontecer. — Não posso gritar o que tenho a dizer — disse Frankie suavemente. Todos chegaram mais perto dela. — Primeiramente, obrigada a todos por terem vindo tão prontamente. Ela se sentou e começou a balançar as pernas penduradas no penhasco molhado. Ainda estava vestida com seu macacão para voar e maquiada, mas o xale tinha desaparecido. A cada chute, a lua encontrava seus delicados parafusos no pescoço e os beijava com sua branca luz fria. — Semana passada, eu tentei mostrar aos normies na escola como nós somos eletrizantes e, bem, todos sabemos no que deu. Alguns risinhos foram ouvidos e depois silenciados. — Mas, agora, graças à Melody, nós temos outra chance. “Oh, não!” — A normie? — gargarejou um garoto com cara de lagartixa sentado num tapetinho de bambu. — De novo, não! — Ela não é uma normie — rebateu Jackson. “Hã?” — Ela é uma NECIP. — Oh, eu sou contra isso — continuou o cara de lagartixa. Ele cumprimentou os amigos e depois torceu a mão para poder separar as palmas grudentas. Mais risinhos. Viktor e Viveka trocaram olhares.

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Significa

Normies

Engajados

Contra

Idiotices

Preconceituosas — disse Billy de algum lugar. — Aliás, você está agindo como um idiota preconceituoso se não quer dar uma chance a ela. Melody irradiou um sorriso de agradecimento para todos os lados do gramado, para que Billy pudesse ver, onde quer que estivesse. — Ka — disse Cleo, tossindo rapidamente. Depois de anos sentada, Melody finalmente se levantou. Dúzias de olhos se fixaram nela. Brilhando no escuro como lâmpadas numa árvore de natal, alguns verdes, outros vermelhos, a maioria amarelos. Eles observavam, na expectativa, esperando que ela os colocasse num lugar onde nunca tinham estado antes. Assim como as plateias que costumavam esperar que ela cantasse. Só que agora, em vez de recorrer àquela voz que vinha tão facilmente, Melody foi forçada a usar uma que nunca tinha tido. Ela estava se posicionando sob os holofotes para se defender: um papel que nunca imaginou escolher. E, mesmo assim, ali estava ela, na frente e no centro. — Eu entendo por que vocês não confiam em mim —começou ela, tremendo. — E eu acho que se fosse um de vocês, também teria dificuldades em confiar em alguém como eu. Mas eu estou do lado de vocês. Pensei que tinha provado isso quando levei Billy para o hospital, mas acho que não foi o suficiente. Então, vou continuar tentando. Quanto mais ela falava, mais leves ficavam seus pulmões. Sua voz ficou mais clara, mais macia e sedosa. Como óleo num motor 0 km, que só precisava ligar e funcionar. 178


— Por que você se importa tanto? — perguntou Cleo, soando entediada. — Porque eu sei como é ceder um lugar para alguém que se acha melhor que todo mundo. Eu sei como é querer tanto ser “normal” que você acaba escondendo o que te torna especial. Principalmente, eu sei o que é mudar essas coisas. E isso é um sentimento de humilhação. Júlia, obviamente comovida com a confissão de Melody, balançou

a

cabeça,

concordando,

mas

baixou

a

cabeça

tão

sonolentamente que seus óculos escorregaram e caíram no chão. Envergonhada, ela se abaixou, uma vértebra de cada vez, pegou os óculos e vagarosamente se escondeu na escuridão. — Então, por favor, confiem em mim — continuou Melody. — E quando vocês se levantarem para lutar, deixem-me ficar junto. Juntos, nós podemos… Todos começaram a aplaudir. Seus olhos brilhantes estavam mareados de compaixão. Os de Melody, de alívio. “Será que era tão fácil assim?” Sorrindo para Jackson, ela se sentou e jogou para o céu estrelado uma angústia que já durava 15 anos. Depois que os aplausos cessaram, Frankie apresentou o “cara eletrizante” que ia ajudar os IRADOs a dar o primeiro passo para a liberdade. Brett Redding revelou-se no alto das árvores e foi recebido com um espanto geral. Espantado, porém, ficou ele diante dos olhos iluminados de sua plateia. Paralisado de admiração, ele se dirigiu a todos lá do fundo do gramado. — Cara, isso é demais — murmurou. 179


Todos se viraram para olhar para ele. — Então… — Ele esfregou as mãos, nervoso. — Hum, eu tenho ótimas notícias… Espere, eu acho que devo me apresentar. Meu nome é Brett Redding. Ah, vocês já devem saber disso, já que estudamos na mesma escola. Eu sou o cara que acidentalmente arrancou a cabeça da Frankie e entrou em pânico. Isso vocês também já devem saber porque saiu em todos os jornais — disse, com um riso sem graça. Ninguém riu. — Então, enquanto eu estava no hospital, um dos repórteres me deu um cartão e, bem, para encurtar a história, Melody, Jackson e Frankie pensaram que seria uma boa ideia fazer um documentário sobre vocês para que as pessoas vejam como vocês são maneiros e Ross, o repórter, concordou. Então, ele vai me deixar dirigir e vai colocar

no

ar

no

Canal

2

durante

a

semana De

Olho

no

Oregon. Alguma pergunta? As mãos se levantaram. Parecia um grande teste para comercial de desodorante. — Hum, sim, você de óculos escuros. — Tudo bem, Brett? — Oh, oi, Deuce! Eu não vi você no escuro. Tudo bem, cara? — Eu estava pensando no porquê de você querer fazer isso. Afinal, você não tem que provar nada. — Esse filme junta as minhas duas coisas favoritas no mundo: cinema e mons…, quer dizer, IRADOs — ele fez uma pausa e olhou para Frankie. — E agora que estou começando a conhecer vocês, eu quero ajudar. — Maneiro — disse Deuce, satisfeito.

180


— Só isso? — Cleo parecia horrorizada. — Você está satisfeito com isso? — Tô — Deuce respondeu secamente. — O que precisamos fazer para participar? — outra pessoa perguntou. —

Concordar

em

ser

entrevistados.

Compartilhar

fotos,

histórias, esperanças, sonhos… — explicou Brett. — Parece perigoso — alguém sussurrou. — Todas as faces serão embaçadas, então ninguém saberá quem são vocês. Suas identidades serão completamente ocultas. É um primeiro passo para mostrar às pessoas que vocês são inofensivos. — Ei, cara, nossos parentes no resto do mundo vão conseguir ver isso? — perguntou Blue. — Será uma transmissão local por enquanto. Mas eu posso queimar umas cópias para você. — Legal! As perguntas continuavam vindo. — Onde vamos filmar? — No meu barracão. É completamente seguro. — Qual vai ser o nome? — O Monstro Mora ao Lado. Uma explosão de risadas mostrou que o título estava aprovado. — Você vai fazer algumas entrevistas só com som? Sabe, para quem não consegue sair no filme… — perguntou Lala. — Claro! Eu vou mostrar outras imagens enquanto você está falando. — Fantástico! 181


— Quando vai ao ar? — No dia 14 de outubro — respondeu Brett. — Oh, e se vocês querem participar do programa, têm que estar no estúdio quando for ao

ar.

Eles

querem

que

vocês

respondam

perguntas

dos

telespectadores ao vivo. — Daí todo mundo vai saber quem eles são — Viktor salientou com sua voz grave. — Tenho certeza que conseguiremos embaçar essas tomadas também. E… teremos alguns seguranças para manter o estúdio só para nós. Então, ninguém vai ver vocês entrarem ou saírem. Cleo ficou em pé. — Vamos — disse ela às amigas. Ninguém se mexeu. — Vocês ouviram o que ele falou — Cleo colocou a bolsa no ombro. — Vocês têm que estar livres no dia 14 de outubro e vocês não estão. Então, vamos. As três garotas se entreolharam. — Eu disse: “vamos”! — Cleo bateu o pé. — Esse… sei lá o nome é no mesmo dia das fotos da Ti-in Vo-ogue — disse ela, declamando o nome da revista caso alguém em Portland não conseguisse ouvi-la. — E eu prometi aos editores da revista que seríamos profissionais, então, temos que desistir disso. As garotas continuavam relutantes. — Espere! — chamou Melody, sem querer que as garotas mais dinâmicas do grupo fossem embora. — Vocês não podem mudar a data das suas fotos? — Por que vocês não mudam o dia do programa?

182


— Não podemos. Vai ao ar durante a semana De Olho no Oregon. E já que o negócio de vocês é só moda, vocês não podem… — Não é só moda — rebateu Cleo. — É sobre moda e história. Minha história. — Bem, esse documentário é sobre seu futuro — Melody contraatacou. Os IRADOs aplaudiram de novo. Cleo virou-se para olhar suas desertoras. — Não vai haver futuro nenhum se vocês colocarem tudo nas mãos de normies! Ela virou-se rapidamente para encontrar as amigas ainda sentadas, com os braços entrelaçados para mostrar solidariedade umas com as outras. Melody até se sentiu um pouco mal por Cleo, mas estava vibrando por ver que as garotas iam participar do documentário. — Sério? — disse Cleo, sarcástica. Daí, sem dizer mais nenhuma palavra, ela passou marchando por Brett e desapareceu atrás das árvores, deixando um rastro de âmbar perfumado de raiva. Novamente,

Melody

inalou

aquele

cheiro

agridoce

e

se

perguntou se suas tentativas de fazer parte daquilo estava unindo ou despedaçando o grupo.

183


CAPÍTULO 18 A RAINHA SE REBELA

O sinal da última aula tocou. Acabou. Ela sobrevivera. O terceiro dia de aula sem amigas tinha sido idêntico ao segundo, que tinha sido igual ao primeiro. “Inconcebível!” Extinção social não era algo que Cleo tinha previsto. E depois? Clawdeen ia usar fones de ouvido? Lala ia comprar faca de carne? Blue ia tomar sol no Saara? Agora, de cara com o inimaginável, ela foi forçada a tirar o melhor proveito da situação e abraçar a vida futura… Ou pelo menos fazer todo mundo pensar que tinha feito isso. Graças a Geb por Deuce. Ele grudou nela como resina líquida. Mas depois de 72 horas conversando sobre basquete, comprando óculos escuros, tomando lanche sem fofocar e sentindo cheiros esquisitos de menino, Cleo estava começando a se desfiar.

184


— Meu jogo começa em quarenta minutos — disse ele, abrindo as portas vai e vem com a sola de seus Varvatos de cano alto. — Quer comer alguma coisa antes? Cleo se viu nas lentes escuras dos aviadores Carrera dele. Um sombrio céu de outubro atrás dele… Uma gola alta sem brilho… Olhos sem expressão. Ela suspirou. Esportes e comida: era tudo o que sua vida tinha se tornado? Ao seu redor, Merstonitos escorriam do prédio amarelomostarda.

Amigos

se

ligavam

como

magnetos,

ansiosos

para

compartilhar os detalhes da tarde que tiveram antes de correr para casa para passar mensagens. Era a parte mais solitária de seu exílio. A parte que ela mais temia. — Eu não entendo — resmungou Cleo, assim como tinha resmungado nas últimas 72 horas. — Por que alguém escolheria um documentário a um editorial da Teen Vogue? — Elas que saíram perdendo — falou Deuce sem se importar muito, cumprimentando um colega de time e prometendo encontrá-lo na quadra em cinco minutos. Cleo, fingindo não estar irritada pelas interrupções, agarrou o cotovelo de Deuce. Pronta para começar uma descida arriscada pelos degraus da frente da escola com seus tamancos de píton com salto 8, ela perguntou: — Você acha que elas vão mudar de ideia? — Elas podem? — perguntou ele, enquanto falava oi para outro colega de basquete. — É melhor se apressarem. As fotos serão daqui a treze dias. — Peraí, eu achei que elas vazaram. — Eu ainda não disse aos editores que elas “vazaram”. 185


— Legal — Deuce levantou a mão para cumprimentá-la. — Quem disse que múmias são enroladas? Cleo baixou a mão dele. — Eu achei que elas já teriam vindo rastejando depois de todo esse tempo. Nesse exato momento, Clawdeen, Blue e Lala passaram correndo, dando risadinhas e balançando as bolsas como se fosse o último dia de aula. Elas podiam arremessá-las bem no coração de Cleo. Isso nem ia fazer diferença num coração já estraçalhado. — Talvez seja melhor conversar com elas — Deuce falou depois de andarem todo o campus em silêncio. — E dizer o quê? — Cleo baixou os ombros. — Desculpe por ter oferecido uma oportunidade única de usar a inestimável coleção da tia Nefertiti? Ou “será que um dia você vai me perdoar por fazer você sair numa revista top”? E que tal “culpa minha ter achado que vocês eram profissionais”! — ela gritou, sem se importar que a audição potente de Clawdeen estava pegando cada palavra encharcada de sarcasmo. — Tá — Deuce ajustou seu chapéu com abas cobrindo as orelhas. — Esqueça delas. Vamos comer alguma coisa. Passos apressados se aproximaram atrás deles. — Acho que perdemos — disse uma garota, desapontada. — Eu sabia que devíamos ter nos separado — censurou sua amiga. — E se Simona e Maddie encontram com ele? —E

daí? Fomos fós que

estamos facendo teatro. Famos conseguir! Ah, ha, haaaaaa! Cleo virou-se e viu duas meninas da nona série vestidas com macacões pretos e capas. Seus rostos estavam exageradamente 186


brancos e seus lábios vermelhos como cereja. Se não fosse pelos caninos de cera, qualquer um diria que elas bateram com a cara numa bandeira do Canadá com tinta fresca. Em vez de seguir Deuce pela calçada, Cleo parou. — Com licença. Por que vocês estão vestidas assim? A loira, que tinha obviamente passado um spray preto no cabelo porque tinha esquecido um pedaço amarelo atrás, tirou os caninos e chegou perto para sussurrar. — Você não está sabendo? — Ela cheirava a spray e batom de cereja. Cleo levantou uma sobrancelha e balançou a cabeça, negando. — Brett Redding está fazendo testes para um reality show sobre monstros. Vai passar na TV! — Eu ouvi dizer que vai ser na Fox — disse a vampira naturalmente morena. — Mas vocês não são monstros — disse Cleo, olhando em volta do pequeno campus, procurando uma possível explicação. — Claro que fomos! —A vampira fanhosa deu uma piscadinha e removeu os caninos. — Parece outra pegadinha — disse Cleo, fingindo não notar Deuce acenando para outra pessoa. — Como vocês ficaram sabendo disso? — Por quê? Você também quer entrar? — a Loira Remendada perguntou, suspeita. — Só não queira ser uma vampira — declarou a morena. — Que tal uma bruxinha bem bonita? — sugeriu a Loira Remendada. — Vimos um monte de fantasias de bruxa no armáro de

187


fantasias. A sala de teatro ainda deve estar destrancada se você quiser dar uma olhada. — Ou uma Barbie do mal? — sugeriu a naturalmente morena. — Ou o Bicho-Papão? — riu a Loira Remendada. — Ohmeudeus, isso mesmo! — A amiga caiu na risada. — Você pode pendurar acelga chinesa no nariz! — Acelga chinesa? Por que acelga chinesa? Que escolha aleatória! —

Eu

adoro

dizer

a-cel-ga-chi-ne-sa.

Acelgachinesa!

Acelgachinesa! Acelgachinesa! As duas caíram na risada. Cleo observou a cena fixamente. Se sua cabeça virasse mais rápido do que estava virando, ela teria decolado como um helicóptero. — Como vocês ficaram sabendo do programa? A Loira Remendada procurou dentro de sua mochila de couro e deu um folheto amassado para Cleo. — Você sabe aquela garota na sua sala… Óculos de vó e calças psicoticamente justas… Sempre atrás da ex do Brett, mandando mensagens? Cleo confirmou. “Haylee!” — Ela me deu isso no intervalo.

188


Cleo amassou o folheto. — É outra pegadinha. Podem acreditar em mim. — Pode até sher — disse a Loira Remendada, recolocando seus caninos. — Mas quem fica de fora é voshê. 189


As garotas saíram correndo em busca da fama enquanto Cleo jogava o folheto no lixo com um arremesso que teria impressionado Deuce, se ele tivesse visto. Ele, em vez disso, estava se apoiando num hidrante, de costas para ela, batucando ao ritmo de sei lá que música estava tocando no seu iPod. Cleo arrancou o fone do ouvido direito. — Pronto! — O que foi aquilo? — perguntou Deuce, ficando em pé. — Algumas normies esquisitas que querem aparecer no filme do Brett — bufou Cleo. — Eu não acredito que uma pessoa queira participar daquilo. — Você quer dizer uma pessoa normie, certo? —perguntou, impacientemente apertando o botão do semáforo. — Não, quero dizer, qualquer pessoa — explicou Cleo. —É suicídio. O sinal de pedestres abriu para eles. — Eu vou participar — disse Deuce ao saírem da calçada. Cleo puxou-o pela gola da jaqueta de couro. — O quê? Por que você não me contou? — Achei que estava implícito. — Implícito? — A insegurança subiu pela sua barriga e se enrolou em seu coração. — Por que eu ia achar que está implícito que você está participando de um filme que está acabando com a minha vida? A única coisa implícita que eu podia achar era que você estaria comigo no dia das minhas fotos, me apoiando. Não que você ia ajudar o inimigo! Uma senhora de idade passou perto. Seu olhar de desprezo mostrou a Cleo que ela provavelmente estava se perguntando por que 190


uma garota tão refinada estava fazendo uma cena daquelas no meio da rua. Cleo empinou o nariz e mostrou a lingua para a velha abelhuda. A mulher afastou-se horrorizada. Aquilo não resolvia nada, mas ela se sentiu ótima. Deuce pegou a mão dela. — Cleo, eu não sou o inimigo, lembra? — Agora você é! — gritou ela, livrando-se da mão dele e correndo o mais rápido que conseguia com seus tamancos de salto 8. Seu coração se despedaçava a cada passo cambaleante. Ela estava totalmente sozinha. Mas a festa da autocomiseração ia ter que esperar. Ela precisava de um plano. Rápido. Ela olhou de volta para a escola. O campus, agora cinzento com a brisa que vinha com a promessa de chuva, estava vazio, exceto pelas duas figuras curvadas sentadas com as pernas cruzadas perto do mastro. Ahá! “Perrrr-feito!” — Me encontre lá atrás da arquibancada na frente da máquina de salgadinho se tiver alguém lá me ignore — sussurrou Cleo para as garotas enquanto passava. Ela martelava o chão de cimento sem olhar para trás. Ela deu um show abrindo o armário e enfiando o livro de história na sua sacola dourada, só para o caso de que Billy, o fofoqueiro, estivesse por perto. Ela ouviu o som da respiração dele e olhou para ver se tinha papéis de bala pelo chão. Nada. Cleo saiu correndo pela porta lateral. A parte de trás da escola Merston era um lugar onde Cleo raramente ia. Até onde ela sabia, campos serviam para passear de camelo e bolha no pé era o resultado de andar com uma sandália 191


muito apertada. Mas era uma questão de vida ou morte. Exceções tinham que ser abertas. Bekka e Haylee já estavam lá quando ela chegou. Depois de se certificar que não havia nenhum atleta atrasado por lá, Cleo subiu as arquibancadas e sentou-se bem em cima do alvo. Ela abriu o livro, fingindo ler sobre o governo autônomo na América do Norte britânica. Depois de outra olhada rápida, ela bateu seu salto de madeira no encaixe de alumínio. — Vocês conseguem me escutar? — murmurou ela. —Batam uma vez para sim. Toc! — Vocês estão trabalhando sozinhas? Toc! — Quem falou sobre esse filme? — sussurrou, imaginando se os IRADOs tinham um traidor. — Ross Healy. Canal 2 — Bekka respondeu sussurrando. — Meu nome constava como referência no currículo de Brett. Eu disse que ele era um grande diretor, mas isso foi antes de Ross me falar sobre o filme-propaganda zumbi. Meu Deus, por que eu não perguntei antes de falar bem dele? Eu me sinto tão… Cleo bateu o salto. — Não há tempo de sentir nada. Apenas responda as perguntas. — Ela virou uma página de seu livro. — Qual é o objetivo de vocês? — Primeiro, parar a propaganda pró-monstro, impedindo a realização do filme. Segundo, provar que monstros vivem em Salem e levá-los à justiça. Terceiro, fazer com que Brett… Toc! 192


— Nada de sentimentos. — Desculpe. Cleo parou para pensar nesse plano em três passos. Objetivo um era o mesmo que o dela: acabar com o filme ia fazer com que as garotas suplicassem por perdão e, mais importante ainda, ia fazer com que voltassem a se comprometer com a Teen Vogue. Daí, ela teria que abater Bekka antes que ela tivesse tempo de dizer “objetivo dois”. — Vocês têm um plano? Toc! — Me contem. — Como eu sei que posso confiar em você? — perguntou Bekka, colocando a mão para cima e dando um tapa em Cleo. — Estou aqui, não estou? — rebateu Cleo. —Isso não é suficiente — retrucou Bekka. Cleo mostrou a língua no assento de alumínio, bem em cima da cabeça de Bekka. “Será que essa normie babaca tem alguma ideia de com quem ela está lidando?” — Você pode ser uma espiã — explicou Bekka. — Eu sou — disparou Cleo, pensando rápido. — Mas não estou trabalhando para eles. Estou trabalhando contra eles. Eu estou de olho neles há anos. Bekka e Haylee trocaram sussurros. — Por quê? — Porque odeio zumbis. Longa história — disse Cleo, sentindose momentaneamente culpada por trair Júlia. Mas isso era guerra. E se continuar viva significasse caluniar os mortos-vivos, então seria assim. Ela estava fazendo isso para protegê-los.

193


— Quem é o líder? O que eles querem? Quais são os pontos fracos? Cleo pressionou os lábios. Ela queria sabotar o filme, não destruir seus amigos. Os reais eram leais. — Queremos nos juntar a você — pressionou Bekka. — Negativo. Eu trabalho sozinha. — Então, pra que você serve? — Pra que você serve? — rebateu Cleo. — Eu sei todas as senhas de Brett. Vou entrar no computador dele e apagar o filme antes de ir ao ar. “Nada mal!” — Como você vai entrar na casa dele? — Ele trabalha na escola. Sala de Audiovisual. “Nada mal mesmo!” — Mas o que você pode oferecer? — perguntou Bekka. — Posso descobrir quando o filme estiver pronto para que você saiba quando deverá apagá-lo — tentou Cleo. Mais sussurros. — Tá bom — concordou Bekka, como se estivesse fazendo um grande favor para Cleo. — Isso significa que você quer se juntar a nós? — Duas condições — Cleo virou outra página do libro de história. — Primeira: ninguém pode saber que eu sou um membro da HUNT. Concordam? — Por que não? — Concordam? Toc!

194


— E, segunda: você e Haylee têm que parar de escrever aquele romance de celular estúpido sobre mim. — Você sabe disso? — perguntou Haylee, com sua voz aguda. Cleo bateu o pé. — Você quer dizer a novela de celular “Bek voltou e está melhor do que nunca: a verdadeira história do retorno de uma garota à popularidade depois que outra garota, cujo nome não vou mencionar (CLEO!), se engraçou com Brett, levou uma da Bekka e depois foi dizer à escola inteira que a Bekka era violenta e que deveria ser evitada de todo jeito?”. Sim, eu sei disso. Sussurros subiram como fumaça através dos espaços dos assentos da arquibancada. — Temos um acordo? — perguntou Cleo, impacientemente. Toc! — Legal — Cleo ficou em pé e desceu a arquibancada. — Manterei contato.

195


CAPÍTULO 19 QUEIMADURAS DE 3º GRAU

Do lado de fora, o barracão no quintal de Brett parecia menos atraente que uma corda de bungee jump gasta. Renegado a um canto no fundo do gramado quadrado, depois da casa na árvore, da churrasqueira e do poste com a bola, era como o garoto tímido que vai pra festa e fica observando todo mundo se divertir na pista de dança. O tapume de cedro estava coberto por teias de aranha, folhas secas, raízes crescidas e cocô de passarinho. As janelas estavam sujas de lama. Não era nem de longe o tipo de lugar que um cavalheiro levaria uma dama num primeiro encontro. Mas Frankie não era uma dama qualquer. E esse não era um encontro qualquer. — Aqui está — disse Brett, abrindo a porta.

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Um par de olhos vermelhos voou até eles do fundo do barracão e parou bem na frente do rosto de Frankie. Se ela não tivesse visto o morcego de borracha preta indo pra cima e pra baixo pendurado na corda, ela teria soltado fasícas por mais de um mês. — Bonitinho — disse ela, cutucando a barriga inchada do bicho. Ela viu as palavras MADE IN CHINA impressas embaixo das asas. Brett sorriu, aliviado. — Bekka detestava o Radar — disse ele, chacoalhando a cabeça como se aquilo fosse muito improvável. — Ela odiava tudo nesse lugar. Ele esticou o braço para puxar a cordinha pendurada na lâmpada

vermelha

pendurada

no

teto.

Frankie

respirou

seu

desodorante com cheiro de pinho até que o perfume enchesse sua barriga. — O que você acha? — perguntou ele, no meio da iluminação infernal. Se tivesse uma palavra mais apropriada que eletrizante, Frankie teria usado. Em vez disso, ela recostou-se no futon preto e olhou em volta num silêncio perplexo, permitindo que seus olhos esbugalhados observassem tudo. Pilhas na altura dos ombros de clássicos filmes de terror em fitas VHS tinham sido enroladas com fita adesiva para formar pedestais, sobre os quais ficavam as figuras dos monstros favoritos dele: Frankenstein, Drácula, Godzilla, Sasquatch, um zumbi, um lobisomem, o Monstro do lago Ness e um cavaleiro sem cabeça com um recorte de revista de Spencer Pratt colado no pescoço. As paredes estavam cobertas de cima a baixo com cartazes antigos de filmes de 197


Frankenstein. Arrumados cronologicamente e protegidos com verniz brilhante, as representações artísticas do vovô Stein fizeram com que se sentisse observando um álbum de família. Mais importante ainda, isso tudo mostrava que Brett não apenas aceitava quem era ela. Ele havia esperado por ela. — Isso é como um minimuseu — disse ela, finalmente. — Eu coleciono isso desde os sete anos — disse ele, sentandose ao lado dela. — É estranho, mas se você pensar um pouco, vai ver que eu conhecia sua família antes de você. — Sabe o que ia ficar ótimo aqui? Brett balançou a cabeça. — O vestido de noiva da vovó Stein. — Aquele que você usou no baile? Era… Frankie confirmou. — Isso aí. A verdadeira noiva de Frankenstein! — disse ela, sentindo-se cheia de energia só de pensar no entusiasmo dele. Ela segurou o sorriso, esperando que ele se surpreendesse. Estudou

os

olhos

reconhecimento.

azuis

Checou

dele,

seus

esperando

lábios

aquela

vermelhos

faísca

como

de

sangue

esperando que se abrissem de emoção. Mas Brett quase não se mexeu. Ele apenas olhou para ela através de seus cabelos bagunçados de depois da escola como se estivesse olhando um lindo pôr do sol, com uma expressão congelada entre admiração e gratidão. Brett inclinou-se na direção dela. Frankie levantou o rosto para encontrar o dele. Se apenas ela estivesse usando aquele lindo vestido de noiva de renda branca em vez daquele vestido branco e preto de algodão… Ou talvez aquele minivestido de seda super pink do Bluefly.com. Ou uma blusa camponesa com shorts jeans, ou uma 198


camiseta amarela com ombro caído e calças jeans mais curtas… Mas tudo aquilo teria que esperar até os IRADOs ganharem a revolução. Não que Brett se importasse. Seus lábios se aproximavam dos dela com apenas uma coisa em mente… Frankie rapidamente checou as suturas do pulso enquanto todos os watts de eletricidade dentro de seu corpo a empurravam para a frente, mais perto dele. Como se ela precisasse de um empurrão. Os olhos fechados, os lábios entreabertos, as mãos gentilmente apoiadas nos braços dele. — Oi — disse Heath Burns, entrando com tudo pela porta entreaberta. Frankie e Brett se separaram, correntes de desejo disperso ondulando entre eles, sem saber para onde ir. — Desculpe o atraso — disse ele, arrastando duas luzes de 60 centímetros. “Não está atrasado o suficiente!” — Sem encanação — disse Brett, levantando-se com a ajuda de seu melhor amigo/assistente de produção. — Nosso primeiro entrevistado ainda não está aqui, então… — Legal — Limpando a testa com a manga de seu casaco com capuz roxo-escuro, o ruivo magrinho suspirou. — Onde você quer que eu ponha isso? Os

garotos

passaram

os

próximos

quinze

minutos

transformando o barracão num estúdio de filmagem. Eles cobriram as janelas com falsas manchas de sangue com feltro preto. O futon preto saiu de perto da parede para dar profundidade. Radar, o morcego de plástico, voltou para a posição inicial. E as oito pilhas de fitas VHS ficaram atrás das câmeras. 199


Depois que estava tudo pronto, Heath ligou as luzes. O cenário ganhou vida. — Cara, isso vai ser irado! — exclamou, admirando seu trabalho. — Você sabe que isso é supersecreto, né? — perguntou Frankie, mesmo depois de Brett ter garantido inúmeras vezes que seu amigo normie era de confiança. — Ninguém pode saber que estamos filmando quem estamos filmando. Nunca! — Por que você acha que eu me atrasei tanto? —perguntou Heath. — Eu estava sendo seguido por metade da turma do teatro — contou. — Parecia que eu estava sendo perseguido pelas ruas por uma turma de vampiros de um filme B. — Cara, como eu queria ter visto isso! — Brett riu. —Como você despistou todo mundo? — Pulei num ônibus. Brett deu risada. — Pra onde você tava indo? — Para o outro lado do rio. Tive que pegar um táxi para voltar ou teria chegado ainda mais tarde. — Cara, isso é demais — Brett cumprimentou o amigo e virouse para Frankie. — Confia nele agora? Frankie estava quase se desculpando quando alguém bateu na porta. — Quem é? — perguntou Brett. — Jackson. Heath empurrou a porta e deu boas-vindas ao primeiro entrevistado. Vendo ele, Frankie sentiu-se carregando uma grande culpa. Em algum lugar embaixo daqueles grossos óculos escuros e 200


daquela franjona, D.J. estava esperando para sair. E, quando saísse, ele ia esperar encontrar Frankie e não Frankie e Brett. Mas o que ela podia fazer? Compartilhar seu namorado com Melody? Ficar a favor do aquecimento global? Negar seus sentimentos para poupar os dele? Ainda bem que Jackson não tinha suado uma gota por quase uma semana e isso ainda não tinha se tornado um problemão. Mas o verão chegaria em nove meses. Um dia, ela teria que dizer a verdade para D.J. — Lugar maneiro! — exclamou Jackson, sentando-se no futon. — Onde está Melody? — perguntou Frankie. — Os pais dela a forçaram a participar da noite do jogo em família. Ela dormiu na última vez ou sei lá — respondeu Jackson, pegando o telefone para mandar uma mensagem rápida. — Ela disse que vai tentar vir mais tarde. Bom, como funciona isso? — perguntou ele, encarando o brilho das fortes lâmpadas brancas. — Frankie vai fazer as perguntas por trás da câmera, eu vou filmar e Heath vai cuidar do áudio — explicou Brett, de repente soando muito profissional. — Concentre-se em olhar para ela, não diretamente para a câmera. Não se preocupe: seu nome não será mencionado e seu rosto ficará embaçado. — Pronto? — perguntou Frankie, segurando a lista com dez perguntas. Jackson arregaçou as mangas da jaqueta bege e cruzou as pernas. A ponta branca de seu All Star preto estava decorada com um grande “M” escrito com caneta vermelha. — Pronto. — O que faz você especial? — começou Frankie.

201


— Pode-se dizer que tenho dupla personalidade: há duas pessoas vivendo dentro de mim. — Como você ficou assim? — Meu avô era o Dr. Jekyll. Ele ficou viciado numa poção que lhe dava coragem para realizar suas fantasias mais obscuras. Seu código genético foi alterado e isso passou para seu filho, meu pai. Há traços disso em meu sangue. Quando eu suo, aparece. A química no meu suor dispara alguma coisa em meu cérebro. Esse gatilho ativa o D.J. Ele é minha outra metade. — Há quanto tempo que você sabe disso? — Há uma semana. — Quando você percebeu pela primeira vez que estava diferente? — Eu sempre tive uns apagões, mas nunca tinha virado um baladeiro chamado D.J. Hyde até minha namorada me mostrar um vídeo da transformação acontecendo. Eu fiquei passado! — Jackson começou a mexer o pé ansiosamente. Brett abriu o quadro para capturar seu stress. — Qual é a melhor parte de ser um IRADO? — É fazer parte de uma comunidade que cuida uns dos outros. — Qual é a pior parte de ser um IRADO? — Viver escondido. — Você acha que você ou o D.J. são perigosos? — Só entre si. Minha mãe ainda não contou a ele sobre mim mas ela não tem certeza de como ele vai receber a notícia. Ele pode ficar ciumento e tentar me evitar ou coisa assim. Além disso, acho que D.J. não é tão estudioso quanto eu. Então, ele pode manchar pra valer meu histórico escolar. E eu não gosto tanto de festas, então 202


posso ser uma furada na vida social dele. Mas além desse tipo de coisa… Não há perigo. — O que mudaria na sua vida se você não precisasse esconder sua identidade? — Eu praticaria esportes porque não teria que me preocupar com não suar. Iria para a praia. Minha mãe conseguiria ligar o aquecimento no inverno. Ah! — Jackson colocou a mão no bolso da jaqueta e tirou o miniventilador. — Ia jogar isso fora — Ele ligou e segurou as pás que rodavam perto do rosto. Frankie sorriu e fez sinal de positivo com as duas mãos. Ela adorou a exposição da verdade pura e simples. — Por que você concordou em fazer parte desse filme? — Eu quero que os normies… hã… as pessoas normais vejam que sou uma boa pessoa que está cansada de se esconder e cansada de ter vergonha pelo que é. — Obrigada, Jackson. Já acabamos. — Pensei que você tinha dito que eram dez perguntas — disse Jackson. — Foram apenas nove. Brett baixou a câmera. — Você tem que fazer a última pergunta. Vai ser a melhor parte do show. — Acho que já temos o suficiente — disse Frankie, dobrando e redobrando o papel com as perguntas até que não pudesse mais ser dobrado. — Temos mais seis entrevistas hoje à noite. Temos que nos manter no cronograma. — Qual era a última pergunta? — perguntou Jackson. Frankie baixou os olhos.

203


— Nós estávamos esperando que talvez a gente pudesse, sabe… se você deixasse a gente conversar com o D.J. — disse Brett. O pé de Jackson parou de balançar. — Fala sério? Frankie queria pular pelas janelas cobertas de feltro e sair correndo. Terminar com D.J. já seria difícil o suficiente. Teria que ser feito naquela noite? Na frente de todo mundo? — Cara, a transformação vai ser a parte mais irada do filme — acrescentou Heath. —

Seria irado

mesmo

concordou

Brett.

Os normies poderiam ver que mesmo no seu pior, não teriam o que temer. Frankie contorceu-se. Ela estava desconfortável com isso, mas Heath tinha razão. Seria ótimo para o filme. E bom para o filme significava bom para os IRADOs. Jackson recostou-se e parou para pensar. Frankie, Brett e Heath esperaram silenciosamente. — Com uma condição — disse Jackson, finalmente. Frankie fechou os punhos. Ela sabia o que vinha a seguir. — Termine com o D.J. — Terminar? — perguntou Brett, chocado. — Do que você está falando? — Por favor — Frankie revirou os olhos. — Eu não estava com a cabeça no lugar naquela época. Estava na retranca. — Bem, então eu concordo com o Jackson — disse Brett. — Você tem que terminar com ele mesmo. — Por quê? — Frankie deu uma risadinha.

204


As bochechas pálidas de Brett queimaram, vermelhas. Estava ali a resposta. — Tá bom — concordou ela. — Aumente as luzes.

Dez minutos depois, o barracão estava ardendo com o calor. Frankie e os garotos observavam Jackson como se fosse uma chaleira, mas ele se recusava a ferver. — Tente fazer polichinelos — sugeriu Brett. A câmera estava apoiada num tripé, de frente para Jackson e pronta para a ação. Brett estava apoiado na parede, suas bochechas vermelhas e o cabelo molhado de suor. Jackson começou a pular. O barracão balançou. Brett fez com que ele parasse. — Que tal flexões? — sugeriu Frankie. Jackson obedientemente deitou no chão e começou a fazer flexões de braço. — Como é que você está seco? — perguntou Heath, apoiando-se na janela escura enquanto abanava o rosto com um itinerário de ônibus. — Eu mal consigo respirar. Ele começou a abanar mais rápido, liberando a poeira do parapeito da janela. Suas pálpebras flutuaram, suas narinas tremeram e… Ah… Ah… ATCHIM! Ele espirrou com a força de um tufão, liberando uma labareda de fogo. Antes que pudesse fazer qualquer estrago, a língua de fogo encolheu-se para dentro da boca como espaguete. Ninguém se mexeu. Gotas cor de pele pingavam dos dedos de Frankie como cera de vela derretida. Sua base Fierce & Flawless tinha se liquefeito. 205


Brett levantou os olhos do visor da câmera e encarou o amigo. — O que… — sussurrou. — Num sei! — Heath deu de ombros. — Isso começou a acontecer perto do meu anivesário de quinze anos. Mas acontece mais quando eu arroto, ou, sabe… — Ele apontou para o bumbum. — Nunca quando eu espirro. E as chamas não são tão grandes. — Por que você nunca me contou? — perguntou Brett, ligeiramente ofendido. — Cara, eu tenho vergonha. Eles fizeram uma pausa e olharam uns para os outros. Os cantos das bocas começaram a subir devagar, no ritmo que a realidade pavimentava o caminho até seus cérebros. — Você é um IRADO! — gritou Brett, feliz. — Sou um IRADO! — Heath gritou também, suas sobrancelhas vermelhas levantadas, quase sem acreditar. — Vejam! — Frankie apontou para o futon. Jackson, encharcado e atordoado, olhou em frente enquanto seus olhos mudavam de castanho para preto, preto para castanho, castanho para preto e, finalmente, para azul. O castanho do cabelo clareou até chegar num loiro areia e uma leve barba por fazer cobriu suas mandíbulas. “Essa é nova”, pensou Frankie. D.J. tinha chegado. — Tá cheirando torrada queimada aqui —disse ele, repartindo o cabelo da direita para a esquerda. Ele tirou a jaqueta bege de Jackson, embolou-a e atirou-a do outro lado do barracão. — Foguetinha! — Ela ficou em pé. — Por onde você andou?

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Impressionada pela transformação do novo físico, Frankie confundiu-se para responder. — Ahn, onde é que você estava? — rebateu. D.J. coçou a nuca. — Alguém está carente — disse ele, sorrindo maliciosamente. — A gente se viu ontem à noite. Antes de eu desmaiar… — Na verdade, isso aconteceu faz uma semana. — Tudo bem. Você não precisa inventar histórias. Acho bonitinho que você tenha sentido a minha falta. Eu também senti a sua. — Ele fez uma pausa. — Espere aí, o que o namorado da Bekka está fazendo aqui? E essa câmera? — Estamos fazendo um filme sobre pessoas especiais, e você é especial, então a gente queria te fazer umas perguntas. — Tudo bem, se eu puder te perguntar uma coisa depois que acabarmos — disse ele, arregançando as mangas da camisa azulmarinho de Jackson e acomodando-se no futon. Diferentemente de sua outra metade, D.J. abriu os braços e apoiou-os na parte de trás do sofá, como um rock star entre duas supermodelos invisíveis. — OK — concordou Frankie, fechando o acordo com um aperto de mão. — Vamos lá — ela tateou nervosamente entre suas notas, manchando os papéis de maquiagem. — Então, hum, o que faz você especial? — Eu sou divertido, descontraído e consigo boas notas sem estudar. — Como você ficou assim? — Uma parte é genética, o resto é charme. — Genes? Genes de quem? — pressionou ela. 207


— Do velho Hyde. O cara era o maior baladeiro. Eu li os diários dele e, acredite em mim, ele era demais. Frankie considerou contar a D.J. sobre Jackson aqui e agora. Imagine a cena! Oprah teria feito isso. Mas não cabia a Frankie. Cabia à mãe dele. A mãe deles. Tudo que Frankie podia fazer era pular algumas questões e rezar para que D.J. não visse a entrevista de Jackson quando o filme fosse ao ar. — Por que você concordou em fazer parte desse filme? — Porque você me deixou fazer uma pergunta. Frankie deu uma risadinha. Ele era mesmo charmoso. — OK, qual é a sua pergunta? — Ela gesticulou para Brett desligar a câmera. Ele desligou imediatamente. Ela se preparou para o inevitável, lembrando sua consciência culpada que machucá-lo sugnificava ajudar Jackson, Melody, Brett e ela mesma. Os benefícios eram megamaiores que os danos. Além disso, ele não estava por perto tão frequentemente, então… — Eu estava pensando — perguntou D.J., tirando os óculos de Jackson. Seus olhos azuis brilhavam com sinceridade. De repente, não importava quão lógico seria terminar com ele. Ela não ia conseguir fazer aquilo. Ele não merecia. — Foguetinha? — Sim — respondeu Frankie encarando o bico redondo de suas botas cinza. Seus parafusos estavam começando a coçar. — Você se importa se a gente começar a ver outras pessoas? — O quê? — Frankie caiu na risada. — Eu sei que você não estava esperando por isso — disse ele, pegando a mão dela. — Sinto muito. É que minha vida está meio 208


confusa agora e eu nunca sei onde vou estar de um minuto para o outro. E isso não é justo com você. Brett e Heath esconderam o riso. — Eu entendo perfeitamente — sorriu Frankie. Ela abriu a porta do barracão, desesperada por uma lufada de ar frio e pelo retorno de Jackson. Mas antes da transformação acontecer, ela levantou o dedo e deu um choquinho na bochecha direita de D.J. Ele esfregou o pequeno ponto vermelho, feliz. — Para que isso? — É para você se lembrar de mim. — Eu sempre vou me lembrar de você, Foguetinha. — Ele piscou. Frankie sentiu o espaço do coração inflar. Pequenos sorrisos elétricos choviam dentro dela como fogos de artifício. Logo depois, os olhos dele ficavam pretos. Depois azuis. Depois de volta a castanhos. A mudança estava definitivamente no ar.

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CAPÍTULO 20 E A DESCARGA LEVOU…

Melody apoiou o ombro na porta do banheiro, grata por ter três minutos para fazer xixi antes da aula de linguagem começar. Mais uma aula antes do final de semana. Não que isso realmente importasse. Não haveria tempo para dormir. Não haveria tempo para a busca de um café com leite decente com Candace ou o aluguel de uma comédia romântica para assistir com Jackson. Não, pois ela teria que editar todas as entrevistas dos IRADOs que tinham filmado nos últimos oito dias. Muito menos enquanto Ross estivesse à espera da primeira edição na segunda-feira para dar uns toques. Não quando o filme fosse ao ar na quinta-feira. O dever NECIP chamava. Em vez do típico cheiro de banheiro do terceiro andar, o cheiro de âmbar encontrou-se com Melody assim que ela entrou no banheiro das meninas. A Melody de Beverly Hills teria corrido para o segundo andar. Mas a Melody de Salem se recusava a correr. 210


Cleo saiu do cubículo do meio e martelou o chão com suas plataformas de madeira até a pia. Triângulos dourados balançavam das suas orelhas no mesmo ritmo do balanço de seu minivestido verde e preto. Seu estilo patinadora, com ênfase em estilo, era tão exclusivo dela, tão incrivelmente lindo, que Melody não conseguiu evitar pensar na camiseta branca larga, na calça cáqui amarrada na cintura e nos tênis de cano baixo azul-marinho. De repente, sentiu que não tinha poder, como um camponês na presença do rei. — Oi — disse Melody, mais alto que o zumbido do secador de mãos. — Bonito vestido. Cleo pressionou o botão para outra lufada de ar. Ela obviamente culpava Melody por estragar o editorial da Teen Vogue,

pelo

abandono

das

amigas

e

por

simplesmente

ter

nascido normie. Mas era muito mais fácil atrair abelhas-rainhas com mel do que com vinegre, então Melody se forçou a ser doce. — Sabe, eu sabia que você estava aqui porque senti seu perfume de âmbar, que é muito maneiro. Eu li que garotas com um perfume que é sua marca registrada são mais ambiciosas que garotas que não usam perfume. Cleo respondeu com uma terceira lufada de ar. “Continue doce… Continue doce… Continue doce…” — No almoço, hoje, suas amigas estavam dizendo como sentem a sua falta — mentiu Melody, ignorando a pressão que crescia sobre sua bexiga. Na verdade, Clawdeen tinha visto Cleo andar para a sala com Bekka e Haylee e praticamente desistido de vez daquela amizade. — Elas querem que você volte. Cleo finalmente fez contato visual. 211


— Ah, agora você está sentando com elas também? —rebateu ela, fixando Melody com um olhar paralisador. Obviamente, Cleo sentiu-se ameaçada. Se havia um momento para uma doçura pacificadora, era agora. Mas tudo que Melody podia sentir era vinagre. — Qual é o seu problema? — Ela praticamente deu um tapa. — Eu só estou tentando ajudar e você age como se eu fosse o Império Romano ou coisa pior. Cleo arregalou os olhos, como se estivesse enviando um aviso. Mas Melody não conseguia parar. Assertividade, combinada com sua habilidade de trabalhar metáforas históricas, lhe dava mais confiança que um vestido charmoso. — Não estou tentando destronar você — continuou ela. —Eu só… — Shh! — fez Cleo, apontando para o primeiro cubículo, onde um par de UGGs coloridas pendia sobre o chão brilhante. — Olhe aqui — sussurrou Melody, recusando-se a desistir. — Eu nunca quis ficar entre vocês. Só queria tomar uma atitude em relação ao que eu acredito. — Eu também — insistiu Cleo, seus triângulos dourados balançando em concordância. — Como? Escolhendo um editorial de moda? É tudo isso que importa pra você? E sobre os direitos iguais… Cleo bateu o pé. — Do que você está falando? Você está ficando louca? Os zumbis pegaram você? — O quê?

212


Melody procurou uma explicação nos olhos azuis de Cleo: uma piscada, uma lágrima, um sinal, uma dica que pudesse salvá-la de se afogar num mar de confusão. Mas Cleo não ofereceu nada. Seu olhar era duro e frio, assim como o de Bekka quando descobriu o vídeo de Jackson. — Espere — Melody sorriu sarcasticamente. — Eu sei o que está acontecendo. Você está andando com Bekka e… Biiip! Biiip! As últimas aulas iam começar. Mesmo assim, Melody não conseguia parar. Cleo era uma rainha dos infernos, mas merecia saber a verdade. — Não podemos confiar em Bekka. Você precisa tomar cuidado. Alguém deu uma descarga. Bekka saiu do cubículo. Melody correu até o último cubículo e bateu a porta. Mas a vergonha, a raiva e o arrependimento a encontraram ali mesmo assim. Como ela podia ter sido tão estúpida? As UGGs coloridas, o comentário repentino sobre zumbis, os olhos arregalados, avisando? Cleo tentou dizer a ela, mas Melody estava seduzida demais pela própria voz para perceber as dicas. — Ei, Melorreia — chamou Cleo mais alto que a torneira aberta. — Obrigada pelo aviso! Bekka caiu na risada e elas saíram, deixando Melody para se afogar sozinha.

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CAPÍTULO 21 E ACABOU!

Merston High estava pouco iluminada e deserta. Qualquer pessoa com vida própria não iria para a escola aos domingos. Mas eram os jovens sem vida que preocupavam Cleo: os CDFs que ficavam na sala de audiovisual até o faxineiro dos fins de semana mandar todo mundo pra casa. Porque eles ficariam sabendo da visita oculta de Cleo ao seu templo de tecnologia. Estranho não seria apenas o contraste de sua beleza exótica com a normalidade deles, como um lírio entre repolhos, mas entrar naquele abrigo subterrâneo, coisa que ela nunca tinha considerado antes. Especialmente na hora que deveria estar se bronzeando. Se eles não suspeitassem de crime do colarinho branco, assumiriam que Cleo não tinha condições de ter seu próprio computador. Mas nenhuma suposição ajudaria manter sua boa reputação.

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Então, ali estava ela, passando o domingo no banheiro do porão em vez de estar fazendo os 3 Ss (sol, spa e shopping). Cleo estava aguardando a mensagem de Bekka dizendo “TUDO LIMPO”. Assim que os CDFs saíssem, Bekka entraria no computador de Brett e apagaria “O Monstro Mora ao Lado”. Graças ao acesso de Cleo à pagina dos seus amigos no Facebook, ficara sabendo que Ross esperava o filme na noite de segunda-feira. Cleo exalou suas semanas de angústia social no ar impregnado de cloro. Finalmente, o fim estava próximo. Ela checou o iPhone. Nenhuma mensagem. Ptah! Era difícil de acreditar que Deuce não tinha vindo. Ele mandara uma mensagem de texto, na noite em que brigaram, pedindo que “reconsiderasse”. Ela mandou outra: “O FILME OU EU”. Ele respondeu “OS DOIS”. Ela rebateu “RESPOSTA ERRADA” e chorou sobre um amontoado de gatos por horas. Teve que juntar todas as suas forças para bancar a difícil e não pressioná-lo a mudar de ideia, especialmente porque seu espaço vazio em forma de coração estava precisando desesperadamente de reafirmação. Mas se ela não ensinasse a ele a importância de colocar a namorada acima de tudo, com quem ele aprenderia? Mas suas amigas? Ela pensou que, definitivamente, elas já estariam de volta. E essa era a razão pela qual não tinha dito à Teen Vogue que estavam com duas modelos e uma assistente de estilo faltando. A quatro dias do editorial, sua necessidade de confessar tudo estava ficando mais urgente. As conexões profissionais de Cleo estavam em jogo, sem mencionar a confiança de seu pai. Se ela

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contasse a verdade agora, a revista poderia encontrar substitutas. Mas e no dia? Será que elas iam querer? Cleo checou o telefone de novo. Ainda nenhuma mensagem. Será que suas amigas estavam realmente se divertindo sem ela? Isso era realmente possível? Mesmo assim, Cleo agarrava-se às esperança. Ping! Se não fosse pelas notícias constantes do HUNT de Bekka, o celular de Cleo ia morrer de solidão. PARA: Cleo Out 10, 4:03 PM BEKKA: TUDO LIMPO!

Uma luva pink de borracha entrou e puxou Cleo para a sala cheia de computadores. — Depressa! — insistiu Haylee, fechando a porta atrás delas e a cortina na janela. Seu disfarce detetivesco, um casaco largo e colorido sobre leggings listadas de roxo e cinza, não poderia ser mais chamativo se estivesse iluminado por neons e tocando death metal no último volume. — Oi — disse Bekka da terceira fileira de computadores. Ela já estava digitando a toda, mas fez uma pausa para acenar com sua luva de borracha azul. — Isso é mais fácil do que eu pensei. Vou acabar num minuto. 216


Cleo estremeceu, abanando o cheiro de mofo no ar. Era como se estivesse numa poltrona de avião ao lado de alguém comendo Doritos de queijo. Latas de refrigerante e papéis de fast-food amassados amontoavam-se na lata de lixo perto da porta, como se quisessem escapar do ruído enlouquecedor das máquinas e das terríveis luzes fluorescentes. — Aqui — disse Haylee, colocando a mão na pasta que trazia e tirando um par de luvinhas de lã vermelhas, daquele tipo que parece uma luva de cozinha. — Coloque isso antes de tocar em qualquer coisa. Cleo pegou as luvinhas piniquentas como se estivessem cobertas de cocô. — Ah, e aqui está um bracelete do HUNT — disse ela, deslizando um desfigurado bracelete amarelo pelo pulso. — Eu derreti meu antigo bracelete LIVE STRONG e voilà! — Sério? Haylee baixou seus óculos de grau com armação de tartaruga e olhou para Cleo como se perguntasse: “Por que eu não estaria falando sério?”. — Parece chiclete mascado. — Perfeito — Haylee sorriu. — É para simbolizar que estamos tentando aderir a uma causa. “Por Geb! Todos os normies são assustadores assim?” Cleo queria dizer a Haylee onde deveria grudar aquelas luvas piniquentas e aquele bracelete zoado, mas era melhor não entrar numa disputa de poder agora. Por que arruinar ainda mais um domingo que já estava arruinado? Além disso, HUNT era apenas um meio para um fim. E o fim estava próximo. 217


— O que posso fazer? — perguntou Cleo, tentando não respirar fundo. — ESCONDA-SE! — Haylee sussurrou, quase gritando. — O quê? — Cleo se virou. — Abaixe-se e desligue a campainha do telefone! Haylee saiu de seu posto e abateu Cleo, que caiu no chão. Juntas, rastejaram pelo carpete cheio de migalhas até o final da terceira fileira. Com os joelhos esfolados, Cleo arrependeu-se da escolha da minissaia quase tanto como a de ter se juntado a essa operação ralé. Conhecendo Haylee, isso era provavelmente um ensaio. Elas

passaram

embaixo

da

longa

mesa

retangular

e

encontraram-se com Bekka. — Quem era? — sussurrou Cleo, arrumando sua sainha preta e pink de seda bandage para que ninguém visse sua calcinha. — Brett! — Haylee mexeu a boca sem produzir nenhum som. — E… A porta se abriu, rangendo. Um par de botas de caminhada e outro de plataformas de cano altíssimo entraram. “Frankie!” Os pés correram para dentro e o casal sentou-se num computador na primeira fileira. — O que eles estão fazendo aqui? — perguntou Cleo, levantando as sobrancelhas. Bekka respondeu levantando os ombros. “Você que me diga. Esse não é o seu trabalho?”, sua expressão parecia dizer. “Estamos acabadas!”, sinalizou Haylee, cortando o pescoço com o dedo.

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Cleo levantou o olhar, em reverência a Hathor. Ela estava a ponto de pedir orientação e proteção, mas quando viu uma constelação de cascas, migalhas e Skittles esmagados na lateral embaixo da mesa, decidiu não envolver a deusa desta vez. — Pronto? — perguntou Frankie. Alguém começou a digitar, mas depois de alguns segundos parou e suspirou. — Pronto — disse Brett. — Boa sorte. — Não conseguiria ter feito isso sem você. Quero dizer, eu não teria feito nada sem você — disse ele. Depois, ouviu-se o som de um beijo. Bekka revirou os olhos verdes, que estavam começando a lacrimejar.

Ela

baixou

a

cabeça

e

se

escondeu,

fungando

silenciosamente, atrás do balanço de seus cachos. Cleo começou a sentir pena dela. Ver o beijo de vingança entre Melody e Deuce a fez suar âmbar por uma semana inteirinha. E Deuce tinha sido atacado. Ela nem conseguia imaginar como Bekka se sentia sabendo que Brett gostava mesmo de Frankie. E Cleo nem queria saber. Não podia! Bekka era o inimigo. Era perigosa. Não importava quão patética ela parecia naquele momento. Bup… Alguém começou a discar no viva-voz. Bup…bup. Bup…bup….bup…bup. — Ross Healy — atendeu o homem depois do primeiro toque. — E aí? É o Brett. — E Frankie! — Ela deu uma risadinha. Bekka revirou os olhos. 219


— Acabamos de enviar — disse Brett. Cleo prendeu a respiração e depois cobriu a boca. “Acabou de mandar? Hoje? Mas não era pra amanhã?” Bekka a fulminou com um olhar que dizia “não acredito que você estragou tudo!”. Cleo cutucou uma bolinha de lã no carpete perto de seus sapatos, fingindo não ver. — Puxa, B-Boy, muito obrigado por ter conseguido entregar um dia antes. A emissora está louca pra ver. — Contanto que saibam que é a primeira edição — Brett fez questão de lembrar. —Mas posso mudar o que você quiser. Apenas me avise. — Pode deixar! Obrigado de novo, B-Boy! Vamos nos falando! A linha caiu. — Espero que isso funcione — disse Brett, soando sério. — Vai funcionar — Frankie garantiu. — Você vai ver. Se alguém precisava de garantias, esse alguém era Cleo. Alguém tinha que dizer que ela não tinha jogado fora e maior oportunidade da sua vida. Alguém para dizer que encontraria um jeito de ter suas amigas de volta. Alguém para garantir que esse filme não ia mudar a vida que conhecia, mesmo que já tivesse mudado. Porque a vida era boa. Coisas entraram no seu caminho. Pessoas a escutavam. E ninguém… Um celular tocou. — Oi — Brett atendeu no viva-voz. — Tudo bem? — Está tudo bem, Brett — respondeu Ross. — Se você me disser que isso é uma piada e que você vai me enviar o filme certo em menos de dois segundos. Bekka levantou a cabeça. 220


“Existe um Geb!” — Como assim? — perguntou Brett. — Como assim? Como assim, as caras embaçadas? —gritou Ross. — Nossos expectadores vão pensar que estão com catarata. Não podemos transmitir isso. Quero o filme limpo. Bekka

e

cumprimentaram

Haylee

trocaram

silenciosamente.

um Era

sorriso

radiante

exatamente

isso

e

se que

queriam: provas! E exatamente o que os IRADOs temiam. Outro trabalho sujo de Frankie Stein. Chocante! “E agora?”, perguntou-se Cleo. O filme limpo seria o fim dos IRADOs. Suas identidades ficariam expostas. Suas imagens seriam carregadas pelo mundo todo. Eles se tornariam alvos. Cobaias médicas. Bodes expiatórios. Mesmo que as entrevistas fossem doces e charmosas, os normies encontrariam um motivo para ter medo. Alguma razão para discriminar. Alguma razão para odiar. Eles sempre encontravam. Cleo queria mergulhar numa banheira perfumada com lavanda. Queria abraçar os gatos e rir com suas amigas. Queria um domingo cheio de Ss e mensagens de texto de Deuce. Mas essa vida parecia ter acabado há séculos. — Então, você vai mandar? — perguntou Ross. — Ahn — gemeu Brett. “Não deixe, Frankie!” — Brett? “Frankie, não deixe! Não deixe ele mandar!” — Tá legal? — Sim, aqui tá tudo legal — respondeu Frankie. — Quem não é legal é você! 221


Cleo mordeu o lábio. Nada mal para uma cabeça de parafuso. — B-Boy? — perguntou Ross, ignorando Frankie. — Desculpe. Não posso. — Você está brincando, né? Essa é uma grande oportunidade! — pressionou Ross. — Eu sei — suspirou Brett. — Mas eu prometi. — Prometeu a quem? — Aos meus amigos — confessou Brett. Ross deu risada. — Essas aberações são seus amigos? — Sim, e precisam ser protegidos. — Ele tem integridade, sabe? — acrescentou Frankie. — Você realmente acha que vai dar certo nesse negócio com integridade? — Não — respondeu Brett. — Vai dar certo com meu talento. — Sai dessa, garoto. Talento não tem nada a ver com sucesso. — Tem razão, cara — Brett deu uma risadinha. — Eu soube disso na hora que te conheci. A linha caiu. Frankie e Brett ficaram em silêncio. Estava acabado. “Brilhante!” Cleo tentou espelhar a frustração estampada no rosto de Bekka e Haylee, mas parou com medo de parecer constipada. Tudo que ela queria era aparecer de repente por baixo da mesa e deixar marcas de batom de cereja em todos os computadores da sala. Geb a salvou mais uma vez. “O Monstro Mora ao Lado” já era história! Ela não precisava mais trair ninguém! Sem crime. Sem tempo! Ela tirou as luvas vermelhas e deixou que caíssem sobre o tapete. Estava livre! 222


— Sinto muito — disse Frankie. — Você teve tanto trabalho. — Tudo bem — disse Brett, conformado. — Não, não está! — fungou Frankie. — Eu estraguei tudo de novo! — Como? Você prometeu que todos ficariam seguros e eles ficaram. Houve uma curta pausa e outra fungada. — Eles vão ficar tão frustrados. Como vamos contar a eles? — Juntos. Aaaah! Um calor líquido encheu Cleo como o chocolate derretido dentro do bolo vulcão de chocolate de Hasina. Brett era bem legal para um normie. A porta do laboratório fechou depois de um clique derrotado. Cleo surgiu de debaixo da mesa e alisou a saia. Ou as luzes fluorescentes estavam fazendo com que parecesse cinza ou o todo aquele stress tinha conseguido apagá-la muito. — Vocês acham que ainda tem sol lá fora? Bekka deu de ombros, enxugou as bochechas e se levantou. — E agora? — Haylee perguntou à lider dos HUNT quando saía de debaixo da mesa. — Vamos começar do zero. — Concordo plenamente — Cleo colocou a sacola jeans no ombro. — Vejo vocês do outro lado. Sem mais nenhuma palavra, ela cruzou o tapete encardido e saiu. Cada passo ecoado no corredor vazio a levava mais perto de começar do zero. E provar, de uma vez por todas, que existia vida após a morte.

223


224


CAPÍTULO 22 O RETORNO DA MÚMIA

Cleo foi a primeira a chegar. Como sempre, seguiu o som da água caindo através dos arbustos densos e saiu no quintal secreto dos Stein. As paredes de pedra da grande queda-d’água ainda acabavam lá embaixo, na piscina borbulhante. A grama que cercava tudo ainda estava úmida e aparada. Uma névoa dançava sobre as bordas

da

piscina

de

pedra.

Mas

desta

vez

tudo

parecia

completamente diferente. Porque, desta vez, Cleo tinha acabado de passar um spray bronzeador e estava felicíssima de estar ali. Uma brisa de fim de tarde levantou sua franja. Estava frio demais para seu vestidinho bronze e as botas de cetim com laços atrás, mas Cleo sentia-se festiva demais para qualquer outro look. — Oi! — cantarolou.

225


Frankie estava sentada sozinha na borda, cutucando as suturas dos pulsos como um gato brincando com um novelo de lã. — Oi — murmurou, com a cabeça ainda baixa. Até seu blusão de moletom cinza parecia triste. — Dia de lavar roupa? Frankie levantou os olhos. Normalmente violeta, o tom estava alterado para um azul comum, em contraste com sua maquiagem com cor de massinha de modelar. — O que aconteceu? Você está com olheiras mais negras que Mary-Kate Olsen! — reparou Cleo. — Que seja. Cleo pensou em recomendar fatias de pepino frias, uma xícara quente do elixir do Nilo para o brilho da pele de Hasina e uma recuperação mais digna. Afinal, Frankie tinha provado ser uma nobre guerreira rejeitando Ross e merecia alguma compaixão. Mas isso não iria acontecer até Cleo ter absoluta certeza de que “O Monstro Mora ao Lado” tinha virado “O Monstro se Mudou”. — O que você está fazendo aqui? — perguntou Frankie, mais chocada do que entediada. — Eu recebi sua mensagem sobre o filme — disse Cleo. — E, se não for tarde demais, eu quero participar. — Rá! — exclamou Frankie, com a boca fechada. Depois disso, ela não queria compartilhar mais nada. Pelo menos até que os outros chegassem. Então, as duas esperaram em silêncio. Em pouco tempo, o quintal estava zunindo com IRADOs. Eles se cumprimentavam alegremente, com abraços e batidas de mão. Não eram mais um grupo passivo, unido apenas pelo segredo que 226


compartilhavam. Agora se viam como uma força: uma facção próativa numa missão de vida ou morte para mudar o mundo. E o orgulho era palpável. Ao redor de Cleo, conversas começavam animadas, espalhando entusiasmo pelo gramado. — A HBO vai se interessar por isso. Eles adoram dramas incomuns. — Sério? Eu acho que tá mais para comédia. — Ou um musical da Broadway. — Oh, e eu sei que algum autor vai transformar isso numa série de livros. — Você acha que Oprah vai recomendar a leitura? — Claro que vai! Ela baba nessas histórias de discriminados! — Engraçado, eu achei que você fosse o babão. — Engraçado, eu achei que você fosse engraçado. — Você viu os desenhos do Jackson? Ele fez bonecos de cada um de nós. — Imaginou se virarmos brindes do McDonald’s? — Hum. Imagino o tempo todo. Sou eu ou alguém está grelhando um bife? Mesmo sendo ignorada por suas amigas mais próximas, Cleo sentia-se

surpreendentemente

bem.

Na

verdade,

sentia-se

magnificente. Como uma rainha impassível poupada da perdição a que seu povo estava condenado, ela aceitava sua solidão como um produto de sua sabedoria, como se provasse que lá no topo só cabia mesmo uma pessoa. Mas não seria assim por muito tempo. Frankie estava chamando a atenção de todos e, em questão de minutos, aquelas bolhas de conversa iam estourar. E o editorial da Teen Vogue entraria bem na hora para limpar a bagunça. 227


— Obrigada a todos por virem — disse Frankie. Os aplausos fizeram um grande barulho. No meio do tumulto, Lala, Blue e Clawdeen lançavam olhares de lado para Cleo, provavelmente se perguntando por que ela estava ali. Deuce deu uma piscadinha para ela, mas preferiu continuar com seus colegas de elenco. Júlia encarou Frankie na espera em ritmo de zumbi. Melody e Jackson

estavam

bem

na

frente

da

multidão,

sorrindo

tão

abertamente que os cantos de suas bocas quase se fundiam. Eles não tinham ideia do que estava por vir. Frankie subiu na borda de pedra, como já tinha feito antes. Mas desta vez ela não tentou silenciar as estrondosas águas. Viveka e Viktor estavam no fundo da multidão, com os olhos baixos. Eles já sabiam. — Vou ser breve porque a maioria de nós tem um teste de biologia amanhã… — É. Muito obrigado, Jackson! — Claude gritou rispidamente do fundo da multidão. — O que isso tem a ver comigo? — Jackson sentiu as bochechas corarem. — A Sra. J é a sua mãe. — Bem, ela é a sua professora. E vai ser sua professora de novo ano que vem se você não passar nesse teste. Todo mundo riu da resposta de Jackson como se ele fosse o Chris Rock. Parecia mais uma noite de calouros do que uma segundafeira depois da aula. — Ei! — Frankie soltou faíscas. Brett estava solenemente ao seu lado. — Só parem de falar por um segundo e escutem, OK? A multidão aquietou. 228


— Nós trabalhamos muito no “O Monstro Mora ao Lado” e… Claude escondeu o riso. — Cara! — repreendeu Brett. — Isso é sério. O filme não vai acontecer. O Canal 2 não vai passar. Frankie fez um beicinho grande o suficiente para os dois. Um coro de gritos emergiu dos IRADOs. — O quê? — Verdade? — Você está brincando, cara. Sério? — Claro que ele está brincando. Por que não passariam? Cleo cruzou suas pernas bronzeadas por spray e fechou os olhos. Ela se sentia mergulhando numa banheira quente, mas, em vez de água, era a justiça que a lavava. E no lugar da lavanda, a água do banho tinha o perfume de “vocês deviam ter ficado comigo”. — As pessoas da emissora disseram que só passariam se nós mostrássemos seus rostos — explicou Brett. — Eles não podem fazer isso! — Seremos destruídos! — Nós não aceitamos — respondeu Frankie. O quintal ficou em silêncio completo a não ser pelo barulho das águas. Por um segundo, Cleo sentiu pena dos amigos. Não pela perda da oportunidade de ficarem famosos, mas pela tentativa em vão de conquistarem a liberdade. — É isso aí, Frank-ei! — gritou alguém. Billy começou a aplaudir. O aplauso começou fraco, mas logo foi crescendo até que todos no pátio aplaudissem Frankie e seu parceiro NECIP. O apoio continuou, mas o entusiasmo animado tinha desaparecido. Seus 229


olhares estavam apagados. O fogo tinha virado uma fina fita de fumaça. Cleo

ficou

em pé

graciosamente.

Colocando

os

ombros

dourados para trás, ela cruzou o gramado. Costurando por entre a multidão de corpos, ela se sentia como um fantasma na jornada em busca de sua alma perdida. Clawdeen a viu primeiro. Seus olhos castanho-amarelados, como duas pedras de olho de tigre, desnudaram Cleo. Aqueles olhos já tinham sido a inspiração para a primeira coleção de joias de Cleo. Agora, pareciam duros e frios. — Oi — gaguejou Cleo. Clawdeen cotovelou Lala e Blue. As três garotas estavam olhando agora. — O que você está fazendo aqui? — perguntou Lala. O batom vermelho tinha manchado o queixo dela, mas Cleo não ousou falar nada. — Eu vim ver se podia ajudar com o filme, mas daí… — E a sua preciosa carreira de modelo? — latiu Clawdeen. — Eu cancelei o editorial. Vocês tinham razão. Isso é mais importante. As garotas trocaram sorrisos cúmplices. Cleo ia continuar elaborando sobre “o sermão de Anna Wintour, que tinha grandes expectativas sobre a colega designer/modelo” quando uma morna brisa incômoda passou pelo seu ombro. E cheirava a bala de limão. — Billy, pare de espiar! — Oh, desculpe. Não sabia que essa conversa era particular.

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— Se você não sair daqui, vou passar spray bronzeador em você. Daí você vai saber exatamente o que é privado! — Cleo balançou o dedinho. — Todas nós saberemos. As garotas não conseguiram segurar o riso. — Até mais, mané — rosnou Billy. A brisa cheirando a limão foi embora. — Então — disse Blue, seus olhos azuis voltando a brilhar. — Você acha que consegue marcar o editorial de novo? Você sabe, agora que o filme zoou. — Num sei. Eu não pensei a respeito — suspirou Cleo. —Acho que posso tentar. Clawdeen enrolou um cachinho ruivo no dedo. Suas longas unhas estavam pintadas com listas amarelas a marrons. — Você acha que vão nos aceitar de volta também? Ou você já prometeu o trabalho para suas novas melhores amigas? Cleo juntou suas sobrancelhas profissionalmente arqueadas demonstrando confusão. — Bekka e Haylee — explicou Lala. — Imagina! Nunca pediria a elas que modelassem. Vocês viram os ossos delas? É tão… normal. As outras garotas balançaram a cabeça, concordando. — Então, ainda temos uma chance de fazer? — perguntou Clawdeen. — Você sabe, se ensaiarmos nossas poses e praticarmos os exercícios antivesguice? — Acho que sim — disse Cleo, despreocupadamente. —Se vocês realmente quiserem. Elas balançaram a cabeça e deram gritinhos, reafirmando que queriam muito, muito, muito mesmo. 231


— Clawdeen, eu andei pensando — disse Cleo, chegando mais perto para tocar o cabelo encaracolado da amiga. — Você pode usar os brincos no seu aniversário, se você quiser. Quem sabe pra uma foto glamorosa da festa de 15 anos! — Sério? — gritou Clawdeen. — Isso seria incrível! —Isso quer dizer que estou perdoada por ser tão egoísta? — perguntou Cleo. — Você nos perdoa por termos te julgado mal? — rebateu Lala. — Só se você me perdoar por dizer que você está com batom no queixo. — Muito obrigada! — Lala deu um tapinha em Blue e Clawdeen. — Por que vocês não me disseram? — Estávamos ocupadas demais reparando no seu delineador torto — riu Blue. Todas caíram na risada. Deuce deu uma olhada e levantou os polegares, como se estivesse apoiando a retomada da amigas. Cleo piscou no momento que suas amigas a puxavam para um abraço. Ela teria que lidar com Deuce mais tarde. — A múmia voltou! — exclamou Lala. — A múmia voltou! — sorriu Cleo.

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233


CAPÍTULO 23 A IRA DOS IRADOS

Biiip! Biip! Hoje, o sinal deveria significar mais do que o fim da última aula do dia. Deveria ser uma chamada para a guerra. Uma contagem regressiva para a milenar inauguração dos IRADOs na TV. Um convite para uma festa pós-exibição no barracão de Brett para celebrar a primeira saída oficial desde os anos de 1930. Mas, nos ouvidos de Frankie, poderia ser aquele toque de corneta que tocam em funerais militares. Pois seus sonhos estavam mortos. Os normies nunca saberiam como Claude Wolf estava se esforçando para conseguir uma bolsa para praticar esportes. Nunca veriam a impressionante coleção de 381 óculos escuros de Deuce ou ouviriam Blue falando de suas esperanças de ser uma surfista profissional. Nunca chorariam com Clawdeen enquanto ela narrava o terror de ser manchada com spray vermelho por ativistas do PETA ou tendo que tomar banho dentro do armário depois da aula de 234


ginástica. Nunca se identificariam com a vergonha de Jackson lutando contra o suor ou teriam simpatia pela falta de controle de D.J. sobre sua própria vida. A recusa de Lala em sorrir iria continuar a abastecer sua reputação de tímida e o olhar parado de zumbi de Júlia sempre seria considerado um sinal de estupidez. Heath teria que ficar dentro de casa durante crises de alergia. Pobre Billy, nunca conseguiria namorar uma garota que não gostaria de ser acusada de falar sozinha. Frankie continuaria escondida embaixo de toneladas de maquiagem que lhe entupia os poros e roupas esquisitas. E Brett e Melody teriam que suportar o peso de carregar o segredo de seus amigos IRADOs. Mesmo que suas faces continuassem embaçadas e o filme não resolvesse seus problemas, teria sido um primeiro passo: um que todos estavam finalmente dispostos a dar juntos. Um passo que não tinha sido dado há oitenta anos. Um que não tinha ido a lugar nenhum. Claro, Frankie poderia tentar de novo. Mas estava completamente sem ideias. Além disso, quem confiaria nela agora? Tudo que ela tocava virava lama. Era óbvio pelo silêncio dos outros que eles também estavam ouvindo a mesma musiquinha de funeral militar. Clawdeen, Blue e Lala eram as únicas que pareciam não ter sido afetadas pela causa perdida dos IRADOs. Como poderiam estar tristes quando estavam prontas para serem pegas por uma limusine preta e brilhante com um cartaz no vidro onde se podia ler Teen Vogue? De mãos dadas, elas correram pelos corredores com a sutileza de um cordão de latas sendo arrastado pelo asfalto com uma fita de “recém-casados”. Mas em vez das marcas no pavimento, elas deixavam um cheiro doce e enjoativo de loção frutal, perfume floral e amigos sendo deixados para trás. 235


De repente, Melody apareceu no armário de Frankie, ofegante. — Você não vai acreditar! Suas bochechas estavam vermelhas, seus olhos acinzentados esbugalhados, o cabelo preto totalmente bagunçado. Sua beleza era inegável e ela não precisava usar um pingo de maquiagem. Um beliscão de inveja impediu Frankie de perguntar o que estava errado. Afinal, o que poderia ser tão mal? A vida de Melody era perfeita. — Candace está doente em casa — continuou Melody. — Que chato — disse Frankie, percebendo o vazio em sua voz. — Espero que ela melhore logo. Ela fechou o armário e colocou a mochila prateada cheia de tachinhas no ombro. — Por favor, ela está fingindo! — continuou Melody. —Mas ela estava assistindo TV e viu uma propaganda do “O Monstro Mora ao Lado”. O Canal 2 vai passar! Frankie começou a andar até a saída. Melody correu ao lado dela como um cachorrinho. — Deve ser um erro — concluiu Frankie, recusando-se a ter esperança. — Tenho certeza que alguém deveria ter ligado para nós. — Não é erro nenhum! Candace ligou para a emissora! Eles vão passar! — Tem certeza? Melody confirmou. ELETRIZANTE! Frankie parou no meio do corredor, ignorando os encontrões dos outros estudantes que passavam e passou uma mensagem para Brett. Ele apareceu atrás dela segundos depois. 236


— Tem certeza? — perguntou ele. Melody contou a ele sobre Candace. — Por que Ross não me ligou? As garotas levantaram os ombros. — O que fez com que ele mudasse de ideia sobre as caras embaçadas de todo mundo? — Talvez ele tenha se sentido culpado — sugeriu Melody. — Mas eu pensei que eles iam querer mostrar todo mundo assistindo a transmissão no estúdio. — Ligue para ele — insistiu Frankie. Brett tentou ligar quatro vezes para Ross, suas unhas pintadas de preto digitando o número com uma animação incontida. Mas todas as vezes caía direto na caixa postal. — Bem — disse ele, empolgado demais para desanimar. — Vamos fazer uma festa para assistirmos juntos. Vocês podem juntar todo mundo no barracão às cinco e meia? Eu vou arrumar tudo e pedir pizza. Eles se separaram com objetivos renovados. Frankie levantou sua saia camponesa brecholenta que se arrastava pelo chão enquanto descia correndo os degraus da escola para espalhar as chocantes boas-novas. Um pouco mais de uma hora mais tarde, Brett tinha transformado seu museu de monstros numa sala de projeção cheia de almofadas. Havia uma TV pendurada em frente a quatro fileiras de assentos descoor-denados, além de uma mesa com uma pilha de caixas de pizza, refrigerantes e tigelas cheias de doces. A porta tinha ficado aberta para que Jackson não suasse. Brett também se 237


lembrara de colocar um extintor de incêncio perto de Heath, escrever “CARNE” em três das caixas de pizza Domino’s para os lobisomens e até arrumar um aquecedor caso Lala aparecesse depois do editorial. O vaso com tulipas verdes era para Frankie. O lugar rapidamente se encheu de pessoas conversando sobre a reviravolta do destino. Pelo menos cinco deles comentaram com Frankie como ela era uma menina de sorte por estar com Brett. Não Brett, o normie. Brett, o NECIP. Não o Brett, ex de Bekka. Todos os outros adjetivos sumiram. As linhas que os separavam foram apagadas. Ele era apenas Brett. E isso era um bom sinal. Se esse grupo podia mudar de ideia, qualquer um podia. — Vamos lá — Brett chamou a atenção, levantando o volume. A mastigação e as conversas pararam. Todos se acomodaram nas cadeiras com uma ansiedade agitada. Brett ficou perto da tela, sem conseguir conter seu entusiasmo. Vendo isso, Frankie lembrouse de si mesma há apenas duas semanas, praticamente colando o nariz na TV enquanto assistia às imagens dele no hospital. A imprevisibilidade da vida a fez sorrir. Em um minuto, sua cabeça estava saindo e no outro seu coração estava na boca. Frankie Stein estava finalmente vivendo a vida! Todos aplaudiram quando Ross apareceu na tela. Ele estava em frente ao quadro de avisos da Merston High. Sua aparência infantil era o complemento perfeito para uma história sobre julgar pelas aparências. Com a pele macia, grandes olhos castanhos e sorriso com covinhas, ele parecia estar prestes a tomar um sorvete e não apresentar um programa. — Ele deveria mostrar nossa escola? — perguntou Deuce.

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Ninguém respondeu. Estavam todos sem respirar aguardando para ver onde isso ia dar. Júlia arrumou nervosamente os óculos sobre o nariz. — É a semana De Olho no Oregon aqui no Canal 2 e nosso slogan,

“é

tudo

verdade

no

Canal

2”,

nunca

foi

tão,

bem, verdadeiro. — Ele deu um sorriso cínico. — Há duas semanas, eu

recebi

uma

dica

quente

que

havia

monstros,

sim, monstros, vivendo aqui mesmo em Salem. — Ele andou até o outro lado do quadro onde as letras tinham sido arranjadas para dizer “Monster High”. — É o pior pesadelo de todos virando realidade… Será? — Ele disse “pesadelo”? — perguntou Claude, rangendo os dentes. — Shhh! — Todo mundo pediu silêncio. — O que vocês verão a seguir são entrevistas que consegui fazer com esses monstros. Vocês vão rir de algumas e chorar com outras. Mas tudo isso servirá para mostrar tudo o que precisam saber pois “O Monstro Mora ao Lado”! O título do filme, que sangrava vermelho, explodiu na tela e pulsou no ritmo da trilha sonora do filme Psicose. — O que aconteceu com meus desenhos? — perguntou Jackson. Buuuurp! — Desculpe — disse Heath enquanto uma pequena chama era disparada atrás de sua cadeira. — Essa pizza de pepperoni está supertemperada. De repente, o barracão ficou tão quente quanto uma sauna. Mas ninguém pareceu notar, porque Bekka apareceu na tela. Usando 239


um vestidinho branco de babados e blush demais, estava sentada no que parecia ser um banco de igreja. Todos ficaram chocados. — O que ela está fazendo aí? — Brett perguntou para a TV. Melody inclinou-se e sussurrou: — O que está acontecendo? Frankie cutucou as suturas do pescoço. — Não tenho ideia. A câmera deu um close no rosto sardento de Bekka quando ela começou a falar. — Olá, sou Bekka Madden. Meu namorado, Brett, fez o filme que veremos a seguir. Mas ele fez isso sob coerção. As criaturas que vocês irão ver o possuíram. Eles o transformaram num zumbipropaganda, forçando-o a fazer essas cenas para ganhar a confiança de todos. Assim que confiarem neles, eles irão roubar a suas almas e sugar suas mentes. Mas não é hora de entrar em pânico. É hora de entrar em ação. Acabe com eles antes que eles acabem com você. E Brett, se você estiver assistindo, eu te amo. Você pode voltar agora. Eu protegerei você. “Como isso aconteceu? Por que isso aconteceu? Quem deixou isso acontecer?” O filme começou imediatamente com a entrevista de Jackson, com o rosto completamente ‘desembaçado’. Melody engasgou. — Brett, o que eles estão fazendo? — gritou Jackson. — Eu não tenho ideia! — Fomos enganados! — uivou Claude, arremessando um pedaço de pizza de carne na tela da TV, que grudou e deslizou, caindo espatifada no chão. 240


— Todo mundo vai saber onde a gente vive! — Nunca vão nos deixar voltar para a escola! — E a minha bolsa de estudos? — Aonde vamos nos esconder agora? — Como nós fomos parar ali? — Meus pais vão me matar! — Eu já estou morto e meus pais vão me matar mesmo assim! — Eu nunca vou fazer o papel de Julieta agora! — Eu ia fazer meu exame de motorista amanhã! — Tem um CDF vivendo dentro de mim! — gritou D.J., o rosto coberto de suor. — Por que minha mãe não me contou? Por que nenhum de vocês me contou? Ele abriu caminho entre as fileiras de cadeiras aglomeradas e correu para fora do barracão. — D.J., espere! — gritou Deuce. Mas era tarde demais. Ele tinha ido embora. — Culpa minha — assumiu Heath, ficando vermelho. — D.J. está certo. Temos que sair daqui! — Oh meu deus, como podemos parar isso? — perguntou Melody no meio do crescente caos. — Não tenho a menor ideia! — respondeu Frankie, tremendo. O celular dela tocou. Ela atendeu no viva-voz para evitar um curto-circuito pois sua cabeça estava faiscando. — Isso é verdade? — latiu Clawdeen. Frankie abriu a boca, mas não saiu nenhum som. — Cleo já devia saber disso — continuou Clawdeen. — Ela estava dando uma de melhor amiga da Bekka nas últimas duas semanas. Ela tem que estar envolvida. 241


— Por que ela faria isso com a gente? — gritou Lala ao fundo. — Por que você está tão preocupada? — gritou Blue. —Pelo menos ninguém vai ver a sua cara. Frankie sentiu seus interiores revirarem. — Vocês estão na sessão de fotos? — perguntou ela, sem saber mais o que dizer. — Estamos na limusine. Estávamos a caminho da sessão, mas vimos tudo na TV do carro. Não quero ver Cleo nem outra câmera na minha frente pelo resto da minha vida! Estamos fazendo o retorno e voltando para casa. Quer dizer, isso se o motorista não nos matar primeiro. Ele fica olhando para o espelho retrovisor e perguntando por que não consegue ver a Lala. Ele acha que a gente está aplicando golpes de monstro nele. Eu juro que ele está a 140 km por hora agora! Nós fomos loucas de confiar na Cleo. Espero que um camelo tenha uma bela dor de barriga e ela seja coberta de… DEVAGAR! — ela gritou. — Nós não vamos machucar você, OK? Frankie, você tem que tomar cuidado com Brett e Melody. Eles provavelmente arquitetaram tudo com Bekka. Melody ficou chocada. — Isso não é verdade! — gritou ela perto do telefone. — É mesmo? Porque tava tudo bem com a gente antes de você chegar. — Clawdeen, eu nunca… — Não ligue pra ela, Frankie. Só saia daí o mais rápido que puder. Nós chegaremos logo em casa. A não ser que esse maníaco mate a gente. Eu disse DEVAGAR! A linha caiu.

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Frankie não sabia para onde ir. Será que Clawdeen estava aprontando alguma? Sua teoria fazia sentido. Brett e Bekka… namorados para sempre. Ele é um aspirante a cineasta querendo uma chance… e esbarra na história do século. Eles arquitetaram um plano… Brett e Melody se infiltraram… para ganhar sua confiança e conquistar seu coração. O barracão era um cenário… os cartazes do vovô Stein eram falsos… um esquema complexo com apenas um objetivo em mente… espalhar… globalizar… Hollywood. — Como pôde fazer isso com a gente? — gritou Frankie para Melody. — Sério, Frankie, não sei do que você está falando. Aquela resposta fraca não merecia nem mais um minuto de atenção. Melody não era nada além de um rosto bonito que tinha sido usado (como todo o resto) para promover a busca de Brett e Bekka pela imortalidade. Ironicamente, imortalidade era algo muito natural para muitos IRADOs. Mas Brett e Bekka tinham que usar o jeito normie de conseguir isso: vendendo a alma para a fama. — Você mentiu para mim! — gritou Frankie. Mas suas palavras se perderam na avalanche de insultos, ameaças e comidas sendo atiradas em Brett. Mesmo assim, ela continuou gritando. Brett apenas ficou parado perto da TV, sem se mexer, silenciosamente aceitando sua derrota. — Corram! — gritou Deuce. — Ele não vai ficar pedra para sempre! Em massa, os IRADOs dispararam pela porta e correram pela rua cada um numa direção, no melhor estilo cada um por si. Todo senso de unidade estava perdido. Eles estavam correndo para salvar suas vidas mais uma vez. Frankie não sabia se corria atrás deles, se 243


derrubava Brett ou ligava para seus pais e os alertava para prepararem as malas. Então, ela correu. Ela correu e correu e correu sem um destino em mente. Faiscando e soluçando por Baker Street, Frankie não conseguia evitar pensar que Cleo poderia ter estado certa o tempo todo. Talvez Viktor tivesse que desmontá-la. Porque se ele não fizesse isso, alguma outra pessoa faria.

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CAPÍTULO 24 O CANTO DA SEREIA

— D.J? — chamou Melody virando a esquina da Piper Lane. Jack-soonn? Ninguém respondeu. Ela continuou correndo e gritando. Rua arborizada depois de rua arborizada, ela chamava e corria, evitando os carros e interrompendo jogos de futebol de rua. — D.J.? Jackson? — ela gritou na Dewey Crescent. — D.J.? Jackson? — ela gritou na Willow Way. — D.J.? Jackson? — ela gritou na narrow Pine Road. Ainda sem resposta. Trinta minutos depois da fuga em massa do barracão, ela ainda estava correndo e chamando. Não tinha parado para usar o inalador nenhuma vez. Na verdade, ela poderia continuar correndo se achasse que ia adiantar alguma coisa. Mas a cortina estava se fechando sobre essa terrível tarde nublada. 245


Ela achou que ia vomitar quando pensou no plano de Brett e Bekka. O quanto isso tinha atrapalhado os IRADOs, sem mencionar seu lugar entre eles, e para quê? Pelo orgulho de Bekka? Pela carreira de Brett? Por vingança? Melody parou de correr e começou a andar. Toda essa correria não estava levando a lugar nenhum. A maior pergunta era: e agora? Continuar procurando por D.J. e Jackson? Convencer Frankie que ela não tinha nada a ver com o que passou na TV? Esconder os IRADOs dentro da sua casa? Fazer com que seu pai os operasse para ficarem normais? Encontrar Bekka e Brett, fatiá-los em salsichas e deixá-los na porta dos Wolf? Sim, sim, sim, sim e sim! Ou ela podia confrontar a única pessoa com quem ninguém queria falar. Aquela que provavelmente tinha as respostas. Aquela que precisava tanto de Melody quanto Melody dela, quer ela já soubesse disso ou não. Sentada na sarjeta, ela ligou para Candace. O J vermelho que Jackson tinha escrito na ponta branca de seu All Star preto já tinha borrado e estava começando a desaparecer. “Era um sinal? Será que ele precisa de mim? Estou fazendo a escolha correta? E se eu…” — Atchim! — Fungando. — Alô? Mel? — atendeu Candace. — Ôláemcasa, você viu o filme? Isso não pode ser bom, pode? Atchim! Melody revirou os olhos. —

Eu

sei

que

você

está

fingindo,

Candi.

Pode

falar

normalmente. — Tá, o que você quer? — Você tem que se apresentar para servir os NECIPs. Eu preciso de uma carona.

246


Melody mordeu os lábios, temendo o som da risada sarcástica de Candace. — Onde? Quando? Que roupa? — Sério? — perguntou Melody, chocada com a facilidade com que Candace tinha concordado. — Hum, na esquina da Forest com a Cliff. Agora. Roupas chiques. Oh, e traga alguma coisa pra eu me trocar. Eu estou um pouco suada. Depressa! — Candace a caminho! Enquanto esperava, Melody ligou para Jackson, mas suas ligações iam direto para a caixa postal todas as vezes. A mesma coisa aconteceu quando ela tentou falar com Frankie. Melody levantou-se, esticou as pernas enquanto se apoiava na lateral de uma árvore e ligou de novo. E de novo. E de novo. “E se seus telefones foram confiscados? E se eles estiverem dentro de um camburão a caminho de Alcatraz? E se…” Iiiiiiióóóóóó Iiiiiiióóóóóó Iiiiiiióóóóóó O som da uma sirene de polícia se aproximando congelou os pensamentos de Melody como picolés. A batida policial tinha começado. Iiiiiiióóóóóó Iiiiiiióóóóóó Iiiiiiióóóóóó Ela continuou parada. Iiiiiiióóóóóó Iiiiiiióóóóóó Iiiiiiióóóóóó Seu estômago estava agora na garganta. Seus braços tremiam de medo, suas pernas estavam prontas para fugir. Um utilitário BMW verde cantou pneu na esquina da Cliff. As sirenes estavam ainda mais altas. mas nada de viatura. — Oi — gritou Candace mais alto que a sirene estourando dentro do carro. Tranças fininhas apareciam randomicamente entre a 247


bagunça de seus cachos loiros. Ela usava um minivestido de seda amarelo tomara que caia, um colar de pena de pavão e sandálias abotinadas turquesa. Seu corpo estava coberto de pó bronzeador dourado brilhante e o cheiro do perfume Black Orchid era tão forte que poderia abrir um novo buraco na camada de ozônio. — Entre! — O que é isso? — gritou Melody, cobrindo os ouvidos. — Eu baixei um som de sirene de polícia. Como uma motorista NECIP, pensei que poderia precisar disso um dia. Não se preocupe com os 99 centavos. É livre de impostos. — Tá, mas dá pra abaixar o volume? — perguntou Melody, sentando-se no lugar do passageiro. — Já tem barulho demais na minha cabeça nesse momento. — Tá — Candace deu de ombros. — Fora com a sirene. E lá foram elas.

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CAPÍTULO 25 SALVA PELO GOGÓ

Sentada num trono desmontável feito de pano preto e madeira, Cleo olhava para fora da tenda branca, sentindo-se completamente rainha

egípcia. Frenéticas

abelhinhas

operárias

zuniam ao redor dela, esticando cabos, limpando as lentes das câmeras e tentando fazer com que as rodinhas dos guarda-roupas andassem pela areia. Como as mulheres majestosas que tinham vindo antes dela, ela observava

as

dunas

douradas,

maravilhando-se

com

a

brisa

perfumada de âmbar que moldava e mudava o terreno como as pinceladas delicadas de um artista. Era como se Rá tivesse incumbido o vento de criar essa beleza só para ela. Em

outros

tempos,

momentos

como

esse

teriam

sido

preservados em paredes empoeiradas, retratados por desenhos rústicos de abutres, pernas arrancadas de corpos e ziguezagues. 249


Ainda bem que os tempos mudaram. Assim que suas amigas chegassem, Cleo seria fotografada por Kolin vanVerbeentengarden, iluminada por Tumas e eternizada nas páginas da Teen Vogue. Se a revista pudesse viajar para o depois da vida! Tia Nefertiti ficaria deslumbrada. Depois de três horas de prova de roupas e de joias, duas horas de cabelo e maquiagem, uma luxuosa exfoliação de sal do Mar Morto nos pés e manicure e pedicure, Cleo estava pronta para o close. Também estava pronta para a foto de meio corpo, a foto no sol escaldante, a foto de ação, a foto real, a foto “sou sexy demais para este camelo” e a foto que faria sua fama no mundo altamente competitivo

do design de

joalheria.

Seus

desenhos

e

amostras

estavam trancados no cofre do Bentley de Manu, esperando pacientemente a hora de brilhar sobre os holofotes. E essa hora chegaria, assim que ela impressionasse os editores com seu profissionalismo e seu bem ensaiado repertório de poses. Uma estagiária fraquinha estacionou perto da tenda com um quadriciclo motorizado. — Alguma notícia? — ela perguntou. O cabelo dela estava amarrado com um lenço Pucci e reforçado por óculos escuros com armação branca da Gucci. Uma camisetinha verde meio transparente balançava sobre seus jeans justérrimos. “Hum, quem é a modelo aqui?” — Jaydra não quer esperar mais. Ele está perdendo a luz. “Onde estão elas?” Cleo abaixou a cabeça e checou seu telefone novamente. Tinha sinal e muita bateria. Mas nenhuma mensagem de texto. As contas

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no seu adorno de cabeça dourado tiniram diante do que seria a última vez que Clawdeen, Blue e Lala não apareceriam. — Elas deviam ter chegado há duas horas. Eu não entendo! — conseguiu resmungar, mesmo com a grande bola que parecia entupir sua garganta. — E se aconteceu um acidente? — Então, você tem três minutos para desgrudá-las do asfalto ou essa sessão de fotos está cancelada — rebateu a estagiária, pisando fundo com suas plataformas de cortiça YSL no acelerador e indo embora com o motor roncando. Cleo podia enviar outra mensagem, mas pra quê? Já tinha enviado onze, de vários jeitos, e não tinha recebido nenhuma resposta. Normalmente, Cleo teria pensado que suas amigas tinham ficado loucas. Mas hoje, não. Tinham trocado mensagens durante as últimas aulas e contado os segundos até a hora que se encontrariam no set. Cleo checou o filme plástico enrolado em seus pés para preservar o pedicure. Depois, foi andando com os calcanhares até seu salvador careca. — Manu — choramingou, engasgando com as lágrimas que a mandariam rapidinho de volta ao trailer de maquiagem. — Você já encontrou minhas amigas? Ele estava no fundo da tenda com quatro oficiais que tinham recebido a missão de tomar conta das joias. Manu checou três telefones celulares de uma vez. Ele levantou os olhos escuros e sorriu. — Elas estão chegando agora. — Graças a Geb! — Cleo levantou os braços num abraço virtual, evitando contato para não estragar seu top de penas. — Graças a Geb mesmo! — disse ele, imitando o gesto. — Reunião! — anunciou Jaydra, a temida editora de acessórios. 251


Ela pulou do assento traseiro do quadriciclo da estagiária e reuniu seu time A. Seu curto cabelo oxigenado, pele branca como iogurte e os dedos cobertos por espalhafatosos aneis deram o consolo que Cleo precisava naquele momento. O negócio de desenhar joias não era tão competitivo quanto ela tinha imaginado. — As garotas chegaram e elas são lindas! Só precisam de um tapinha de make e figurino. Qualquer coisa que não enxergarmos, consertaremos na hora. Ação, gente! O céu está caindo. A escuridão está sobre nós! “Ela disse ‘lindas’?” Cleo sempre soube que Blue e Clawdeen tinham “estilo”. Elegante? Sim. Intrigante? Sem dúvida. Exótico? 100%. Mas lindo? Pelos padrões normies? Hum, talvez o mundo estivesse pronto para uma mudança, no fim das contas. — Cleo! Ela se virou rapidamente. Era a primeira vez que tinha sido chamada pelo nome e não de “a egípcia” naquele dia. Era Melody Carver. Num vestido de seda de oncinha. “O mundo está completamente louco?” — O que você está fazendo aqui? — perguntou, olhando por cima do ombro dela, esperando que outras aparecessem por trás. Mas tudo que ela viu foi uma loira com um vestido amarelo e saltos altos tropeçando na areia. — Onde estão as garotas? — Você realmente achava que elas iam aparecer depois de tudo o que você fez? — perguntou Melody. Seus olhos pequenos e acinzentados estavam vesgos e acusatórios. — O quê? — perguntou Cleo, seu adorno de cabeça tilintou novamente. — Me disseram que elas estavam aqui. 252


— Disseram bobagem — Melody ergueu uma das alcinhas que tinha caído e recolocou-a novamente no ombro. — Será que você pode me fazer o favor de me contar o que está acontecendo? E pode começar falando por que você está usando um Roberto Cavalli de brechó. A loira chegou perto. — Primeiro, esse vestido não é de brechó. É vintage, 1989. Segundo, você vai ter que se explicar muito. — Quem é você? — rebateu Cleo, tomando cuidado para não estragar os cabelos. — Barbie Boba de Botas? — Essa é Candace, minha irmã — disse Melody. — E estamos aqui representando os NECIPs para descobrir por que você, intencionalmente, tramou para destruir seus amigos. Eu esperaria isso de Bekka, mas… você? Você tem alguma ideia do que você fez? Todo mundo está… — Uau, Jaydra estava certa! — exclamou efusivamente um cara magro

como

um

palito,

usando

jeans skinny vermelhos,

uma

camiseta branca estampada com o Rei Tut e três echarpes palestinas. — Sou Joffree. Sem sobrenome. E vocês, garotas, são lindas! Vocês devem ser de L.A. As duas usam 36, certo? — Sou P em cima e G embaixo — piscou Candace. — Vou pegar umas coisinhas. Volto antes de vocês conseguirem falar snuffleupagus. —

É sarcófago —

corrigiu

Cleo

pelo

que

parecia

bilionésima vez. — Aimeudeus, me poupe — cantarolou ele ao se afastar.

253

ser a


— Melly, você não me contou que viemos trabalhar como modelos! — Candace ficou radiante, sorrindo e acenando para o fotógrafo sarado. — Não viemos! — rebateu Melody. — Viemos aqui atrás da verdade. — Sobre o quê? — insistiu Cleo. Tudo ao redor dela estava se mexendo tão rapidamente! Assistentes zunindo. Amigas perdidas. Lindas normies. Acusações falsas. — Eu juro por Geb! Não tenho ideia do que você está falando! — “O Monstro Mora ao Lado?” As entrevistas desembaçadas? Não finja que não sabe! —

Não

estou

fingindo!

gritou

Cleo.

Ela

precisava

desesperadamente de mais gloss. — Elas foram ao ar. As entrevistas desembaçadas foram ao ar. — Espera aí… O quê? — Ela ficou complemente imóvel. — Como isso é possível? — Cleo perguntou, freneticamente. —Eu estava bem ali quando… — Ará! — Melody bateu palmas. — Então, você sabe de alguma coisa. — Eu nunca quis que aquele filme estúpido fosse ao ar mesmo com os rostos ainda embaçados. Eu sabia que era perigoso. Então por que ia querer que fosse pro ar desembaçado? — Cleo esfregou as têmporas palpitantes. Sua mente estava tentando alcançá-la. Ainda tentando entender por que suas amigas não tinham aparecido. Imaginando que motivo nesse mundo tinha permitido que essa catástrofe acontecesse. Todos os seus amigos seriam expostos! A estagiária encostou com seu quadriciclo, colocou as mãos em concha sobre a boca e gritou: 254


— Joffree! Jaydra quer as meninas vestidas e em cima dos camelos oito minutos atrás! — Então alguém devia ter me dito isso há oito minutos! — bufou ele, deslizando cabides num cabideiro. — Tudo bem, garotas novas, aqui atrás, comigo! — chamou. — Tô indo! — Candace começou seu andar desengonçado até os cabideiros. — Pare! — ordenou Melody. Sua irmã parou imediatamente. — Não viemos aqui modelar! — Sim, vocês vieram — Cleo implorou num sussurro. —Por favor, façam isso. Por favor! Eu falo tudo que quiserem saber. Juro por Rá — disse, erguendo o rosto para o sol poente. — Temos que fazer isso. Não vai demorar muito. Até empresto algumas amostras da minha nova coleção de joias assim que saírem. — Promete? — perguntou Melody. — Claro! Você é mais o tipo olho de tigre ou prefere ouro puro? — Não! Você promete que vai me contar tudo sobre o filme? — Por todas as sete vidas dos meus gatos. Enquanto as irmãs Carver estavam se trocando, Cleo tentou juntar

as

peças

do

quebra-cabeça.

O

show

indo

ao

ar…

desembaçado… e agora? Ela não conseguia imaginar Brett fazendo isso pelas costas de Frankie. Ele parecia sincero demais para um golpe desses. Mesmo tendo namorado Bekka, o que Cleo ainda achava difícil de acreditar. O que será que alguém como ele via em… Ohmeudeus! Bekka! Melody apareceu primeiro. Usando a típica peruca preta com franjas, ela parecia a própria Cleo no Dia das Bruxas, sem a insolência. O vestido, sem mangas e com um profundo decote em V, 255


feito com camadas de seda branca levíssima entrelaçada com lurex dourado, ondulava como a vela de um navio na brisa da noitinha. Os olhos acinzentados dela estavam adornados com um traço grosso de delineador turquesa e cílios postiços dourados. Mesmo sem as joias, que seriam colocadas no último minuto por questão de segurança, ela era a própria soma de alta-costura do Cairo com a gatinha da Babilônia. — Oi — disse Cleo, com um meio sorriso. — Você está bonita… para você. Melody sorriu. “Finalmente!” — Marco Antônio, Marco Antônio, onde estás, Marco Antônio? — gritou Candace, olhando ao redor da tenda com a mão em seu coração desamparado. A peruca dela era igual à da irmã, mas o vestido de Candace era dourado, o delineador era preto e os cílios postiços, um tom mais escuro de jade. Jaydra estava certa: as irmãs Carver eram inegavelmente lindas. Mas Cleo estava grata demais para sentir ciúmes. Além disso, seu cabelo era de verdade! E isso devia contar alguma coisa. — Sigam-me! — A estagiária as apressou através da tenda, sob os olhares admirados dos membros da equipe. Mesmo que não tivessem olhado, Cleo sabia que o trio era digno da Vogue. — É melhor você me contar o que sabe — disse Melody com o canto da boca encharcada de gloss. — Porque pra mim não é problema nenhum arrancar essa peruca e voltar pra casa. — Tá bom — suspirou Cleo e revelou todo o seu plano de apagar o filme. Agora que estava ali, o que tinha feito parecia insano. 256


Era difícil de acreditar que ela quase tinha feito algo tão desprezível só para estar ali, com um bando de normies entupidos de cafeína e mal alimentados, que passaram o dia todo se referindo a ela como “a egípcia”. — Então, você está falando que não fez nada? —perguntou Melody. — Eu não precisei. A transmissão foi cancelada. — Então, como… — Bekka — disse Cleo. — Ela deve ter entrado no computador de Brett depois que eu saí. — Eu disse para não confiar nela — disse Melody. — Eu não confiei — disse Cleo. — Mas eu precisava dela. Melody concordou, balançando a cabeça vagarosamente. Em vez de julgar, ela compreendeu Cleo. — Então, o que faremos agora? — Sei lá. Sorrir? — respondeu sarcasticamente, enquanto entravam no cenário. — Uau! — exclamou Candace. — Eu me sinto dentro de um daqueles vidrinhos de areia colorida que vendem nas lojas de lembranças de aeroportos. Cleo deu uma risadinha. Candace estava certa. A areia tinha sido tingida de pink, amarelo e cor de laranja, e estava mais alta do lado esquerdo do que do direito, como se alguém tivesse despejado manualmente. Três camelos estavam sentados ao fundo, as pernas encolhidas sob seus corpos, mascando e suspirando bem devagar. — Inacreditável. Isso era exatamente o que eu esperava! — disse um homem musculoso, usando uma camiseta preta, calças cargo com estampa de camuflagem e os cabelos loiros presos num 257


rabo. — Eu sou Kolin VanVerbeentengarden — ele estendeu a mão bronzeada

para

Candace.

Mas

as

pessoas

me

chamam

simplesmente de VanVerbeentengarden. — Candace. Mas as pessoas me chamam simplesmente de incrível. Cleo e Melody deram uma risadinha. — Vou acrescentar a garrafa e a rolha na pós-produção — explicou VanVerbeentengarden. — O conceito é que vocês são três rainhas egípcias antigas dentro da garrafa, que o mar varreu para esta praia… — E chegamos aqui, hoje, numa missão de compartilhar essas gemas com os adolescentes modernos? — completou Candace. — Exatamente! — exclamou VanVerbeentengarden. — É — concordou Candace. — Eu consigo perceber isso claramente. — E eu consigo ver claramente que sairemos juntos depois das fotos — ele piscou. — Isso depende — provocou Candace. — Do quê? — De como vou sair nas fotos. “Ela era boa!” — A menor das minhas preocupações —VanVerbeentengarden piscou novamente enquanto um assistente colocava uma máquina em seu ombro como se fosse uma AK-47. Em seguida, o fotógrafo voltou suas atenções para uma caixa cheia de lentes. Sobre o cenário, uma cobertura com luzes em forma de estrelas era acesa, jogando um brilho mágico sobre a areia cintilante. Era perfeito. As joias da tia Nefertiti iam adorar. 258


— Eu nunca teria adivinhado que isso era para parecer uma coisa engarrafada — admitiu Cleo. — Nem eu — disse Melody. — Nem eu — ecoou Candace. — Eu li a prancheta do Joffree. Cleo caiu na risada. Melody apenas revirou os olhos, como se dissesse: “Bem, esta é a Candace!”. — Muito bem, garotas, vamos colocar vocês sobre os camelos — disse o estagiário. As irmãs trocaram olhares nervosos. Mas Cleo, não. Ela já tinha montado num camelo numa fazendinha em Zanzibar, aos sete anos. E, pelo que podia se lembrar, não era diferente de andar num cavalo lento e manco, assim como também tinha em Zanzibar. — Fiquem na trilha para não estragar a areia. Cada animal tem um adesivo na corcova com seu nome e o nome dele. Por favor, encontrem seus animais e esperem pela cuidadora que vai ajudar vocês a subirem. — Foi o que ele disse — riu Cleo. — Boa — Candace cumprimentou Cleo. Quanto mais perto chegavam dos camelos, mais forte ficava o cheiro de feno molhado e cocô de gato. — Argh, o que é isso? — Candace arrepiou-se. — É um bumbum de camelo — respondeu Melody com uma risadinha. — Acho que o meu está doente — disse Cleo. Ela apertou as narinas e chegou mais perto para ler o nome na corcova. —Não se preocupe, Niles — murmurou, tirando um pequeno frasco de dentro do decote. — Isso vai te ajudar. — Ela andou ao redor do camelo 259


borrifando perfume de âmbar pelo ar fedido. Ele espirrou. Ela borrifou. Ele espirrou. Ela borrifou. — Posso usar um pouco disso? — perguntou Candace. Cleo jogou o perfume para ela. — Ei, Humphrey, você não está mais sozinho com os garotos — borrifou Candace. — As modelos chegaram. Você tem que estar bem cheiroso. Ela jogou a garrafa para Melody. Depois da primeira borrifada, Luxor espirrou, colocou-se de pé e partiu. Niles e Humphrey o seguiram. As garotas saíram da frente. — Ohmeudeus, cadê a cuidadora? — gritou Jaydra, enquanto os camelos espirravam e trotavam, espalhando e dessarumando a areia colorida. — Cadê ela? — Ela está bem aqui! — gritou uma morena forte e atarracada, numa roupa de caubói e luvas negras. — O que está acontecendo? — Meu cenário! — gritou VanVerbeentengarden. — Faça alguma coisa, vaqueira! — Meu nome é Kora! — disse ela, preparando o laço que estava afivelado em sua jardineira. — Ih, pensar que alguém que se chama VanVerbeentengarden consegue se lembrar de Kora. — Só pegue os bichos. Nós estamos perdendo… — Eu sei, já entendemos — disse ela, montando num quadriciclo. — Estamos perdendo a luz. — Ela apertou o acelerador e disparou em direção ao seu rebanho. Mas o ronco do motor apenas assustou ainda mais os camelos. Cleo

e

Candace

enlaçaram

os

braços

e

se

juntaram,

protegendo-se mutuamente da areia que chicoteava. Mas elas se 260


recusaram a buscar refúgio dentro da tenda, assim como o resto da equipe em pânico. O caos era muito mais divertido. — Comece a fotografar, VanVerbeentengarden! — Jaydra gritou. — Não estou te pagando pra ficar olhando! — E eu vou fotografar o quê? — gritou VanVerbeentengarden. — Não tenho modelos, nem joias, nem visibilidade! — Eu! Dispare! — berrou Jaydra, colocando o dedo na boca como se estivesse disparando um revólver. — É o que eu queria fazer o dia todo — bufou ele. — Aveia? — disse Kora, jogando comida enquanto passava. — Quem quer aveia? — continuou chamando, arrumando o laço e preparando o arremesso. Mas os camelos não eram tão facilmente subornados com comida. Qualquer cuidador de camelos deveria saber disso. — Niles, Humphrey, Luxor? — Chamou alguém no topo da colina colorida. — Niles, Humphrey, Luxor? — A voz tinha um tom musical: era pura, cristalina, angelical. — Melly? — Candace espantou-se ao ver a irmã, iluminada com uma perfeição dourada pelo sol poente, a seda branca revoando ao redor. Era a presença de uma deusa. — Niles, Humphrey, Luxor? — cantou. Jaydra e VanVerbeentengarden pararam de gritar. O som não era parecido com nada que Cleo conhecia, mas ela imaginava que aquilo seria comum na vida após a morte. — Nilessss, Humphreyyyy, Luxorrrr? — trinou Melody. Toda a equipe parou de se agitar. Até Candace ficou em silêncio.

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— Nilessss, Humphreyyyy, Luxorrrr? — Seu canto irresistível era como uma seda melodiosa, passeando pelas dunas escuras. Se Clawdeen estivesse ali, teria rolado pelo chão como um cachorrinho carente. Kora ligou o quadriciclo. — Nilessss, Humphreyyyy, Luxorrrr, vocês estão bem. — Nilessss, Humphreyyyy, Luxorrrr, vocês estão bem. Volteeeeemmm! Os camelos pararam de correr. Pararam de espirrar, de grunhir e de trotar. — Nilessss, Humphreyyyy, Luxorrrr, volteeeemm! Um por um, eles voltaram. Kora correu até eles e os laçou, encaminhando-os até os trailers. — Acabamos! — berrou Jaydra, chutando um pacote de aveia. Com passos pesados, ela se afastou e seu olhar parecia dizer que nunca olharia os esboços das joias de Cleo. E Cleo não podia culpá-la. As fotos tinham sido uma catástrofe. Mas muito longe de terem sido frustrantes. Melody desceu da duna e correu até elas, aparentemente inconsciente de seu show espetacular. — Como você fez aquilo? — perguntou Cleo, passada. Membros da equipe correram até ela, tentando ver de perto a garota com a voz mágica. Mas quando se aproximaram, pareceram nervosos e inseguros, como se não soubessem se agradeciam ou adoravam. Então, a maioria simplesmente seguiu andando. — Acho que sua voz está de volta! — Candace abraçou fortemente a irmã. Quando se separaram, as perucas estavam viradas e bagunçadas. 262


— Que louco, né? — Melody franziu as sobrancelhas. —Eu só chamei os camelos. Eu não tinha ideia do que ia sair. Mas foi meio musical. — Tenho que chamar a mamãe e o papai. Eles vão ter um chilique! — disse Candace, correndo até uma mesa cheia de acessórios fotográficos. — Por que você está indo até aí para chamá-los? —perguntou Melody. —

Porque

depois

que

eu

ligar,

vou

pedir

que

VanVerbeentengarden tire nossas fotos pro álbum da escola — confessou Candace, com um sorriso culpado. Melody deu risada. — Podemos nos trocar? Estou tendo uma crise de abstinência de moletom. Cleo fez que sim. Ela concordaria com tudo que Melody pedisse depois do que tinha testemunhado. Melorreia era uma encantadora de camelos! Cleo não podia esperar para perdoar Deuce e contar tudo para ele. — Impressionante — disse Manu quando as garotas entraram na tenda. Os olhos dele estavam mareados. — Isso foi absolutamente incrível. — Obrigada — agradeceu Melody timidamente. — Sua mãe está aqui? — perguntou ele. — Não, eu vim com a minha irmã. — Bem — ele suspirou, como alguém recordando alguma coisa boa. — Diga à Marina que Manu mandou um alô. Faz tanto tempo! — Depois de um sorriso longo e meigo, ele virou-se para Cleo. — Vou pegar as joias. Encontro você no carro. 263


— Acho que você me confundiu com outra pessoa — disse Melody. — Oh, não — negou ele, com um sorriso irônico. — Sua voz é inconfundível. Assim como a de sua mãe. Marina conseguia que qualquer um fizesse qualquer coisa. Era intoxicante. — Desculpe, mas o nome da minha mãe é Glory. Glory Carver. Da Califórnia. — Tem certeza? — Manu, claro que ela tem certeza! — rebateu Cleo. —Acho que ela sabe quem é a própria mãe! Ele estava encarando Melody de um jeito que teria assustado Cleo majestosamente se ela não o conhecesse. — Manu! Ele balançou a cabeça. — Você tem razão. Estou mesmo pensando em outra pessoa. Melody deu um sorriso de perdão. — Eu me lembrei que fiquei sabendo que a filha de Marina tinha um nariz inesquecível. Parecia até uma corcova de camelo — ele deu uma risadinha. — E o seu é perfeito. Erro meu. Sinto muito. Ele se virou e saiu. — Eu também sinto muito — disse Cleo para Melody. —Ele geralmente não é tão esquisito. Melody não disse nada. — Oh, e também sinto muito por não ter confiado em você — ela deu um sorriso sem graça. — Você me perdoa? Melody encarava o vazio à sua frente.

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— Vou parar de chamar você de Melorreia — Cleo piscou, marota. — Ei! — ela fez um estalo com os dedos. — Você está ouvindo? Mas Melody não respondeu. Ela apenas ficou parada ali, apertando o nariz e encarando os camelos que passavam. Se Cleo não estivesse tão ansiosa para fazer as pazes com suas amigas e colocar toda essa confusão no passado, ela poderia perguntar à sua nova recruta o que estava errado. Em vez disso, pulou dentro da sua limusine e voltou correndo para Salem. Fazia apenas algumas horas que ela estava fora, mas parecia que não colocava os pés em casa há séculos.

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CAPÍTULO 26 GENES MATERNOS

NECIP!

Dever

cumprido!

do estacionamento

escuro

e

ergueu

— a

Candace mão,

disparou

esperando

um

cumprimento triunfante da irmã. — Mãos no volante — insistiu Melody. Candace obedeceu. — OK, o que aconteceu foi simplesmente incrível em todos os níveis! Ping! PARA: Melody Out 14, 8:19 PM MAMÃE: CANDACE ME DISSE QUE SUA VOZ ESTAH

VOLTANDO!!!

MAL

OUVIR. AMO VC! 266

POSSO

ESPERAR

PARA


Sem responder, Melody enfiou o telefone no bolso de seu casaco de moletom. — Candi? Você acha que meu antigo nariz parecia uma corcova de camelo? — perguntou ela, encarando seu reflexo no espelho lateral. — Sim! — respondeu Cleo, rindo. — Parecia um pouco. Ei, você sabia que camelos conseguiam correr tanto? Eu não tinha ideia. Imagina se estivéssemos montadas neles? Aquela vaqueira não ia conseguir salvar a gente, com certeza! Ela ficou tão apavorada que eu acho que o cheiro de cocô era dela e não de Humphrey. Foi uma pena que o VanVerbeentengarden não conseguiu fazer nenhuma foto. Ele disse que não queria sujar as lentes de areia, mas acho que foi melhor assim, porque ele vai fazer minhas fotos na primavera. Ei, talvez ele possa ser o fotógrafo oficial NECIP! Ele pode nos acompanhar nas missões e documentar nossas batalhas. Foi uma pena que ele não pegou você arrancando a verdade de Cleo. Eu adoro a garota, coisa e tal, adoro mesmo, mas ela ia mesmo apagar o filme? Só para fazer com que as amigas a acompanhassem nessa sessão de fotos? Ohmeudeus, nem eu faria uma coisa dessas. E o Joffree? Você acha mesmo que ele não tem sobrenome? — Ela fez uma pausa de um nanosegundo. — Que pena que o VanVerbeentengarden não… Melody tentava balançar a cabeça nas horas certas. Tentava concordar quando Candace dava uma opinião. Tentava sorrir quando era legal. Mas o que quer que fizesse parecia um suave grunhido. Ela pensou em perguntar para Candace se ela já tinha ouvido falar de Marina, uma mulher com uma voz tão intoxicante que conseguia que “qualquer um fizesse qualquer coisa”. Talvez Manu tivesse se enganado. Talvez Marina fosse uma tia distante, ou uma antiga babá, 267


ou a mãe de alguma outra garota com um nariz de corcova de camelo e uma voz mágica. Porque sua mãe era Glory Carver, disso tinha certeza… até agora. — OK, então aqui está minha teoria sobre Jaydra. Pra começar, seu nome é provavelmente Jane Drake, ou alguma coisa entediante parecida com isso. E Jane Drake tinha um estilo terrível até o dia em que aterrissou numa loja de roupas, que pertencia, provavelmente, a um parente. Mas não era uma loja maneira como a Intermix ou a Coop. Era maneira para os padrões dela, como bebe ou Betsy Johnson. Depois de alguns meses, ela começou a receber o desconto de funcionária e comprou algumas roupas. Ela copiava as outras vendedoras que se vestiam melhor que ela até que um dia, durante o almoço, alguém na praça de alimentação elogiou sua roupa. E isso sacudiu seu mundo. Naquela noite, Jane Drake virou Jaydra e… Melody suspirou, desejando nunca ter conhecido Manu. Tinha conquistado o respeito de Cleo. Não haveria mais uma divisão. IRADOs e NECIPs finalmente poderiam unir forças. E isso seria necessário agora, mais do que nunca. Tinha conseguido tudo pelo que lutara. Tudo, menos a verdade.

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