Próximo ato: teatro de grupo

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sustentar que “o país tem menos rumo do que tinha na década de 1950; que a promessa do Brasil era maior; que a gente podia imaginar que o país seria melhor na virada da década de 1950 do que imaginar hoje o que será o país daqui a dez anos”), João Moreira Salles adverte a jornalista de que sim, o horizonte encurtou. “Tornou-se mais medíocre. Não estou dizendo que o Brasil é um país medíocre. Essa é a frase do [presidente] Fernando Henrique3.” Com efeito. Numa reportagem-comentário, “O andarilho”, o cineasta acompanhou durante dez dias as andanças do ex-presidente, recolhendo material rotineiro para uma montagem final nada trivial, justo o contrário, um perfil devastador, no gênero pince-sans-rire – como estava dizendo, enquanto a esquerda liga o ventilador de clichês, o outro lado, de tão à vontade no topo do mundo, oferece a si o prazer especial de entregar de bandeja seus maiorais. Valem para o narrador e seu personagem os benefícios de uma estratégia comum de “autoesculhambação”, devidamente compensada por doses cavalares de autobombo, mas agora no caso exclusivo do retratado, que por sinal se compara a Picasso no quesito “fazer de tudo”, no que estão incluídos a cambalhota e, como diriam nossas avós, fazer fiu-fiu para o distinto público. Com um bom humor saltitante de quem tem uma avenida pela frente, vai fechando janelas, uma depois da outra, para um país que nem mais centro tem; é uma desintegração só, é isto mesmo que aí está, numa palavra, não tem nada, tudo enfim fracassou. Resta por certo a obrigação de ser brasileiro; ofício maçante, para quem já se sente em casa no mundo, esse de não poder deixar de se comprometer por um país que continuará a ser medíocre. Espasmos premonitórios a menos, um verdadeiro personagem de romance russo esparramando-se nalguma estação termal de luxo na Alemanha. Nunca se viram nem se verão expectativas decrescerem tão drasticamente esbanjando tamanha animação. Aliás, já vimos, e a semelhança é tanto mais impressionante porque não foi buscada pelo cineasta-repórter: Brás Cubas, sem tirar nem pôr. Mas o Brás Cubas enfim decifrado por Roberto Schwarz, justamente um Brás Cubas especialista em “desmanchar expectativas no nascedouro”, e no qual chega a ser grandioso “o ânimo vital da mediocridade”. Tempo morto e agitação vertiginosa. Para voltarmos aos termos de nossa equação: horizonte zerado e expansão indefinida. Mas nada disso justificaria um retrato retroverso do Brasil atual, muito menos congelado num Bentinho centenário, como estilizado no livro Leite Derramado: o preço, o epílogo previsível de uma imensa periferia-desmanche, igualmente estilizada até o osso. Outra coisa é lembrar que Roberto Schwarz, segundo ele mesmo conta, só atinou com a atualidade desnorteante de Machado depois do golpe de 1964 e seus desdobramentos inéditos, destoante dos usuais pronunciamentos militares. Pois a ditadura – militar apenas no que concerne ao trabalho sujo encomendado – inaugurou o novo tempo brasileiro regido por essa lógica com a qual estamos nos defrontando agora, a do sinal fechado num presente inesgotável, aliás profeticamente anunciado pela Tropicália, outra comissão de frente a nos levar às cordas.

3  Em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1308200714.htm.

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