Observatório 31 - Cultura, saúde mental e bem-estar

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Revista#31Cultura, saúde mental e bem-estar

Memória e Pesquisa / Itaú Cultural Revista Observatório Itaú Cultural - N. 31 (mar./mai.) –São Paulo : Itaú Cultural, 2007-. ISSNTrimestral2447-7036 (versão on-line) 1. Gestão cultural. 2. Impactos da cultura. 3. Cultura e sociedade. 4. Diversidade cultural. Desenvolvimento cultural. 6. Comportamento cultural. I. Itaú Cultural Bibliotecária Ana Luisa Constantino dos Santos CRB-8/10076 ISBN: 978-65-88878-47-7 DOI: contato:https://www.doi.org/10.53343/100521/31observatorio@itaucultural.org.br

imagem: Fichas de ônibus / Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

Expediente O Itaú Cultural integra a Fundação Itaú para Educação e Cultura. Saiba mais em fundacaoitau.org.br Conselho editorial Ana Paula Guljor Ediana Borges Jader MarcelLucianaRosaModéFracassi Editora Ana Paula Guljor Preparação de texto Letícia de Castro (terceirizada) Design digital Guilherme Ferreira Yoshiharu Arakaki Diagramação digital Iara Camargo (terceirizada) Produção editorial Luciana Araripe Captação Vocs (terceirizada) Tradução Carmen Carballal (terceirizada) Interpretação em Libras FFomin Acessibilidade e Libras (terceirizada) Ensaio artístico Bispo do Rosario Revisão Equipe de Comunicação do Itaú Cultural EQUIPE ITAÚ CULTURAL Presidente Alfredo Setubal Diretor Eduardo Saron NÚCLEO OBSERVATÓRIO Gerência Jader Rosa Coordenação Luciana Modé Produção Ediana Borges Marcel Fracassi NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA Gerência Claudiney Ferreira Coordenação Kety Fernandes Nassar Produção audiovisual Amanda Lopes Edição Karina Fogaça NÚCLEO ECOMUNICAÇÃODERELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa Coordenação editorial Carlos Couto Curadoria de imagens André Seiti Produção editorial Luciana Araripe Design digital Guilherme Ferreira Yoshiharu Arakaki Publicação no site Duanne FernandaRibeiroCastello Branco

imagem: Roda da Fortuna / Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

Apresentação Eduardo Saron Revista Observatório #31 Cultura, saúde mental e bem-estar Ana Paula Guljor Saúde mental nas Américas: caminhos, realidades e perspectivas Ana Paula Guljor entrevista Catarina Dahl Estado da arte da saúde mental Silvana Ferreira Nos limites das experiências trágicas do mundo contemporâneo: os campos da saúde mental e da sublimação em questão Joel Birman Do trabalho terapêutico e da arteterapia à cidadania e à transformação do lugar social da loucura Paulo Amarante Arte, saúde mental e neurociências: o impacto da experiência artística como terapia preventiva e de reabilitação Gláucio Aranha e Alfred Sholl-Franco Arte, cultura e saúde mental: experiências internacionais e projetos inovadores na construção de um novo lugar social para a loucura e a diferença Eduardo Torre e Mariana Steffen Benefícios sociais e econômicos das artes e da cultura na promoção da saúde e do bem-estar – em busca do norte da bússola Ana Carla Fonseca Reflexões sobre o uso da arte e da cultura na prática com populações vulnerabilizadas Carmen Santana Ana Paula Guljor entrevista Lula Wanderley Apresentação: Intersecções entre artes, saúde mental e neurociência Tasha Golden Seminário Cultura, saúde mental e bem-estar Ensaio artístico por Bispo do Rosario

20118727364553717988898991 Sumário

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“A arte é uma garantia de sanidade.” Essa frase, usada em obras e entrevistas pela artista Louise Bourgeois (1911-2010), é cada vez mais atual. Durante a pan demia de covid-19, nos últimos dois anos, a expressão artística e a criatividade ajudaram mais uma vez as pessoas a encontrar acolhimento, bem-estar e melho ria da saúde mental.  Foi o que mostrou a pesquisa Hábitos culturais II, realizada em conjunto pelo Itaú Cultural (IC) e pelo Datafolha no primeiro semestre de 2021. Para 44% dos que realizaram ao menos uma atividade cultural ao longo de 12 meses, a iniciativa me lhorou a qualidade de vida; 48% dizem que diminuiu o estresse e a ansiedade; 55% apontaram melhora no relacionamento com outras pessoas da casa em que vivem. E mais: 49% perceberam diminuição da solidão e 51% relataram diminuição da sensação de tristeza. Dessa forma, a Revista Observatório Itaú Cultural visita e amplia a discussão com o tema Arte, cultura e saúde mental em sua 31a edição. Vale lembrar que, entre 2017 e 2018, a psiquiatra Nise da Silveira foi a homenageada do programa Ocupação, com uma exposição, um site (itaucultural.org.br/ocupacao) e uma publicação que contavam sua história singular: uma mulher que costurou com a ciência e a arte um modo de melhorar a vida de pacientes psiquiátricos e ressaltou a importância do afeto nesse conjunto. Arte e cura são companheiras. E esse mote perpassa constantemente por variadas produções, de Lygia Clark a Tunga ou na abordagem artística do povo Huni Kuin. Em 2021, o IC promoveu o seminário Arte como respiro , lançando luz mais uma vez sobre a ideia. O tema é destaque também na exposição que entrou em car taz na organização em maio deste ano, criada a partir do legado e da trajetória de Arthur Bispo do Rosario (1909-1989), que viveu na Colônia Juliano Morei ra, no Rio de Janeiro, e produziu um dos mais importantes conjuntos artísticos da arte contemporânea.  Eduardo Saron diretor do Itaú Cultural

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Apresentação

Revista Observatório #31 Cultura, saúde mental e bem-estar

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ANA PAULA GULJOR No ano em que comemoramos o centenário da Semana de arte moderna de 1922, a Revista Observatório Itaú Cultural lança sua 31a edição, dedicada ao diálogo entre arte, cultura e saúde mental. Partindo do pressuposto de que as artes e as cultu ras são formas de construção de novas subjetividades, de resgate de identidades e publicização das histórias de vida, resistências e lutas dos povos, o diálogo destas com o campo da saúde mental permite compartilhar reflexões sobre sua interação ao longo dos séculos XX e XXI. A questão da saúde mental tem surgido como uma preocupação da sociedade com maior ênfase a partir da pandemia de covid-19, reconhecida pela Organi zação Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. Desde então, as inter venções artístico-culturais assumiram um lugar privilegiado na vida cotidia na como forma de expressão das angústias e de resgate de prazer e alegria. No entanto, a relação do sofrimento psíquico com as artes não começa agora. Ela pode ser identificada ao longo dos séculos em experiências socioculturais que são formas de ruptura de estigmas e reverberação de tradições que reafirmam as riquezas e mazelas sociais. Assim, falar de saúde mental pressupõe a compreensão de seu significado não ape nas como ausência ou cura de doenças, mas como um conceito que se constitui de um arcabouço complexo de inter-relações no qual a diversidade, as dores e sua superação e o devir da existência de cada sujeito em seu ser-estar no mundo se apresentam como uma teia de vida. As culturas e as artes são ferramentas de pro moção de saúde e de cuidado. No Brasil, seu papel estratégico tem em Osório César e Nise da Silveira persona gens pioneiros, que usaram a arte como forma de intervenção para o tratamento de pessoas em sofrimento psíquico. Em uma visada na perspectiva do campo cultu ral, essa concepção ampliada de saúde mental pode ser reportada às antropofagias de 1922, um momento de inauguração libertária da luta pela ruptura com o con servadorismo e com as tradições patriarcais e elitistas não apenas da produção artística, mas também da sociedade da época. Em fins dos anos 1970, a reforma psiquiátrica brasileira e o movimento da luta antimanicomial, com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, iniciam um processo, que se perpetua nos últimos 40 anos, de desconstrução de instituições asilares como lugares de tratamento de pessoas em sofrimento psíquico em prol de uma rede de dispositivos que têm na liberdade o eixo norteador. Considerada um processo social complexo, a busca por um novo lugar social para a “loucura” tem nas artes e nas culturas um de seus pilares estruturantes. Para além de um pa pel terapêutico, essas estratégias vêm se configurando em uma forma de produção

Nos dias atuais, a interação entre arte e saúde tem tido destaque cada vez maior tanto no campo cultural quanto na saúde. Em específico na saúde mental, a pers pectiva de uma incidência significativa das artes na promoção, prevenção e reabi litação cognitiva tem incentivado a abertura de linhas de pesquisa no âmbito das neurociências com resultados que corroboram a hipótese de uma alteração posi tiva no funcionamento cerebral. A observação de aumento das interconexões neu ronais, reflexo de sua influência na neuroplasticidade das células do cérebro, abre possibilidade de invenção de novas formas de pensar terapêuticas para pessoas em sofrimento psíquico. Em diversos países do mundo, disseminadas pelos cinco continentes de modo he terogêneo, experiências de arte e cultura são desenvolvidas como estratégias de promoção da saúde e, em muitos lugares, direcionadas ao cuidado em saúde men tal. Seja no aspecto subjetivo individual, seja no que tange à melhoria da qualidade de vida de comunidades, é crescente o número de programas, projetos e pesquisas avaliativas que consideram a vivência artística como uma potente ferramenta de redução das desigualdades, aumento da resiliência das comunidades e promoção de novos modos de pensar e se relacionar com as adversidades, incluindo as pre sentes no sofrimento psíquico. Agências internacionais como a OMS reconhecem o papel das artes e da cultura na promoção da saúde e do bem-estar das populações, incentivando a criação de redes colaborativas para o desenvolvimento de estudos avaliativos sobre o im pacto dessas intervenções. O incentivo à construção de políticas públicas que permitam o acesso a um cuidado não invasivo cuja incidência reverbera em gru pos populacionais ao mesmo tempo que em sujeitos em sua existência singular se coloca no mundo contemporâneo como uma agenda a ser priorizada. Encon tra-se em pauta a importância de análises também sobre seus impactos sociais e econômicos, reforçando a complexificação necessária para uma compreensão multidimensional dessa inter-relação entre arte, cultura e saúde mental. Essa complexidade se reflete em estratégias que se configuram desde terapêuticas prescritas por serviços de saúde até experiências socioculturais que mobilizam grupos e comunidades, reinventando formas de interação e produzindo protago nismos e inclusão. Esta edição se propõe a resgatar formas de fazer e de pensar o cuidado em saúde mental e a reverberar esperanças de um processo civilizatório. Assim, convida mos todos a um passeio pelos diálogos da saúde mental com a ciência, com as artes e as culturas.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 9 de novas subjetividades, de desconstrução de estigmas e afirmação da diversidade como potência. Artistas nas diversas áreas e manifestações da cultura popular re constroem as histórias de comunidades, raças, credos e anseios individuais.

imagem: Vitrine-fichário XV – Admil Martins / Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

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O que observamos no mundo inteiro, principalmente nos últimos 30 anos, é que, de um lado, existe um crescimento da carga global de doença atribuída às condi ções mentais, neurológicas e por uso de substâncias; de outro lado, existe uma es cassez de serviços e profissionais especializados para atender a essa demanda, o que resulta numa lacuna de cuidado muito significativa. A OMS estima que entre 75% e 90% das pessoas que necessitam de cuidados em saúde mental não têm acesso ao atendimento, embora existam tratamentos e serviços que sejam considerados eficazes. Essa questão da lacuna de cuidado tem sido uma das principais preocupações da OMS e da Organização Pan-Ame

Saúde mental nas Américas: caminhos, realidades e perspectivas

Catarina: Eu diria que, para a gente pensar na saúde mental hoje, é importante ampliar um pouco os nossos horizontes históricos, voltar um pouco no tempo e observar como esse tema tem aparecido no contexto global.

ANA PAULA GULJOR ENTREVISTA CATARINA DAHL A necessidade de isolamento social e os impactos da pandemia na economia (como o aumento do desemprego e da fome) deflagraram na opinião pública um debate acalorado sobre saúde mental. Diversos grupos sociais, como os profissionais de saúde, tiveram quadros de estresse, depressão e ansiedade. No entanto, a covid-19 apenas aprofundou problemas que vêm se agravando nos últimos anos em todo o mundo, conforme mostram relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre esse assunto. Nesta entrevista, a psicóloga sanitarista Catarina Dahl e a psiquiatra Ana Paula Guljor apresentam um amplo panorama sobre os desafios que o mundo enfren ta em relação à saúde mental da população. A dificuldade de acesso a serviços de atendimento especializado, a importância dos determinantes sociais da saúde e a necessidade de criação de políticas públicas intersetoriais para a promoção do bem viver são alguns dos temas abordados. Confira. Ana Paula: Catarina, muito obrigada por ter aceitado conversar conosco sobre a questão da saúde mental, que vem sendo tão amplamente discutida, principal mente nos últimos dois anos. Os mais recentes relatórios da OMS sobre a saúde mental no mundo (o Atlas de saúde mental 20201 e o Policy brief, da ONU, lan çado em 2020 2) apontam a prioridade dos investimentos em saúde mental para a plena condição de saúde das populações. Como você analisaria as motivações desse crescente destaque e, a partir disso, como percebe a preparação dos países para esse cenário? Há um diferencial, um destaque, aqui na América Latina?

E fortalecer o sistema de saúde não é somente fortalecer e criar serviços especia lizados, mas, sobretudo, fortalecer outros serviços vinculados à atenção primária, à prevenção, à promoção da saúde mental, fortalecer as comunidades e, também, integrar esse tema e essas ações a outros setores da sociedade.

Para que os países de fato possam investir e priorizar essa questão, construir respostas potentes, articuladas e abrangentes para não somente diminuir o sofrimento, os trans tornos, mas, sobretudo, para promover a saúde mental, o bem viver.

Américas, o Brasil é um dos países que têm maior prevalência de ansiedade; tem taxas também significativamente altas relacionadas a depressão, uso de álcool e demência. A gente já estava num quadro bastante complexo antes da covid-19, com uma crescente demanda de um lado e certa escassez de disponi bilidade de serviços de outro, apesar de todos os avanços da reforma do sistema de saúde mental e da rede de atenção psicossocial no país. Agora, com a pandemia de covid-19, esse tema, como você falou, ganhou uma re levância maior na opinião pública, nas mais altas esferas de discussão, como as Nações Unidas e os governos nacionais. Então, o que se tem estimado é que a pan demia de covid-19 tende a agravar ainda mais essa lacuna de cuidado.

Uma discussão que tem sido feita amplamente na sociedade e, sobretudo, por pesqui sadores e especialistas na área é que a influência dos determinantes sociais de saúde é muito significativa. A revista The Lancet tem uma comissão sobre a saúde mental e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Eles têm discutido e construído evi dências robustas sobre a influência dos determinantes sociais na saúde mental3 Por determinantes sociais a gente entende aqueles fatores mais amplos, fatores de risco ou condicionantes da saúde mental, como pobreza, insegurança alimentar, fome, desigualdades de gênero, violências, emergências humanitárias, questões migratórias e, também, mais amplas, que estão relacionadas a comunidades, vizi nhanças, violências comunitárias. Enfim, há uma ampla série de fatores que estão em jogo nessa determinação social da saúde mental4 .

A gente vive numa situação em que é impossível uma pessoa desempregada, ou que esteja vivenciando a fome, estar bem de saúde mental, estar vivendo com qua lidade de vida. Então, a ideia é atacar o problema com políticas intersetoriais. Essa tem sido a grande motivação das Nações Unidas, da Opas e OMS. Os documentos

Isto tem sido discutido no mundo inteiro, no âmbito das Nações Unidas: a importância de construir políticas, programas e serviços que articulem o Estado e outros setores da sociedade em relação aos aspectos socioculturais e socioeconômicos da saúde mental.

No Brasil, a situação não é diferente. Algumas estimativas da Opas apontam que aproximadamente 17% da carga global de doenças no país é atribuída aos trans tornos mentais, quando medida em termos de anos de vida perdidos ajustados por Naincapacidade.regiãodas

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 12 ricana da Saúde (Opas), sobretudo porque há uma necessidade de fortalecer o sistema de saúde para o acesso universal ao cuidado em saúde mental.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 13 que você citou fazem um chamado à ação para que os governos de fato priorizem as ações de saúde mental, e isso precisa estar refletido em investimentos.

Ana Paula: Na sua visão, quais seriam as consequências econômicas, sejam elas mais singulares ou para a sociedade como um todo, desse agravamento dos qua dros de sofrimento psíquico? Catarina: As consequências vêm em múltiplos níveis. A gente estava falando so bre saúde e bem-estar da população, em relação ao aumento de mortes, incapaci dade, sofrimento etc., mas há impactos também significativos no âmbito social e econômico. A economia global perde muito por questões de saúde mental. Para você ter uma noção, a OMS estima que a economia global perca até 1 trilhão de dólares por ano devido à ansiedade e à depressão, a partir de diferentes processos6.

A OMS fez um levantamento rápido sobre os impactos da covid-19 nos serviços essenciais, e um dos componentes de análise desse levantamento foi justamente a saúde mental5. O que se encontrou foi que, embora a maioria dos países falasse da saúde mental como tema prioritário e ele tivesse integrado os planos de resposta à pandemia, uma parte muito pequena dos países, de fato, investiu na área.

Existe um apelo crescente na sociedade, no âmbito das Nações Unidas, pelos gover nos, em relação à gravidade da situação que a gente está vivendo, mas é necessário que, de fato, essa priorização seja também refletida em relação aos investimentos.

Então, são pessoas que poderiam estar produzindo, trabalhando, impulsionando a economia, desenvolvendo, fazendo parte dessa grande engrenagem do processo de desenvolvimento social, mas não estão devido a alguma questão relacionada à saúde mental.

É uma carga bastante grande, não somente em termos de prejuízo da saúde da po pulação – e isso de alguma forma onera o sistema de saúde –, mas também para o setor produtivo. A gente tem observado, a partir da covid-19, que as empresas pas saram a dar uma atenção muito grande à saúde mental dos trabalhadores.

Do ponto de vista social, é fundamental para mensurar as perdas causadas pela exclusão social, pelo estigma, não somente das pessoas que vivenciam esse pro blema, mas de uma forma geral. É importante haver uma profunda transforma ção cultural no âmbito da sociedade para que a gente possa encarar de maneira diferente esse fenômeno e esses problemas, para poder construir respostas efe tivas, que resultem em políticas públicas intersetoriais, entendendo que o Esta do tem uma responsabilidade na construção dessas respostas, mas a sociedade como um todo também.

Por outro lado, para cada dólar investido em saúde mental, o retorno é de até 4 dó lares para o governo que investiu, segundo estimativa também da OMS. Acho que esses números já dão certo termômetro de como, primeiro, a economia global per de com as questões de saúde mental. Em relação à produtividade, perde-se muito também. No ano passado, no Brasil, houve aumento de 26% de pedidos de licença e afastamento no INSS relacionados a problemas de saúde mental.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 14 Ana Paula: Verdade, Catarina; a questão do imaginário social sobre a loucura ge rou anos, séculos, de exclusão, de alijamento do convívio. Eu gostaria de discutir a questão do suicídio. Em 2018, a Opas apontou que na região das Américas existe maior carência de investimento em saúde mental, como você disse há pouco. Mui tos dos quadros de sofrimento psíquico, em especial o suicídio, têm apresentado um aumento de registros nessa região, em contraposição à redução do número de suicídios em âmbito global. O que você poderia nos dizer sobre a diferença no ín dice de suicídios observado no nosso continente e nos demais? Há diferença entre o Brasil e outros países da América Latina? Catarina: Como você bem sinalizou, no contexto global, a redução das taxas acon tece em virtude também do desenvolvimento e aprimoramento das intervenções, políticas de prevenção e planos de prevenção ao suicídio. De uma forma global, a tendência é de diminuição das taxas de suicídio. Porém, na região das Américas, a gente não tem observado essa queda. Pelo contrário, há uma tendência de alta, e no Brasil não é diferente. É importante pensar a problemática do suicídio a partir de uma perspectiva complexa. O suicídio é um fenômeno multifatorial, que está relacionado a todos aqueles outros determinantes sociais de que falei. Uma pessoa que tem trans torno mental não necessariamente vai escolher pôr fim à própria vida. Já há evidências robustas de que fatores como o desemprego, a falta de coesão social, a violência de gênero e a discriminação também estão relacionados à questão do suicídio.

Catarina: Desde o início da pandemia houve muitas estimativas de que iriam aumentar a frequência e a prevalência de transtornos mentais, inclusive de sui cídio. Existem diversos fatores em jogo. A pandemia, na verdade, tende a agravar os fatores sociais, porém acho que é importante não fazer alarde, não ter um dis

A região das Américas também passou por um processo de colonização. Por isso, historicamente muitos países têm problemas relacionados à pobreza, à violência, a desigualdades sociais, a violações de direitos humanos.

Eu diria que a violência é um problema muito específico, também muito característico das Américas. Essa região tem a maior taxa de homicídios do mundo, em comparação até com países que têm conflitos armados, como no Oriente Médio. No Brasil, o nú mero de mortes anuais por homicídio é cerca de três vezes maior que as por suicídio.

Acredito que a questão do suicídio na região das Américas e no Brasil esteja muito relacionada a esses outros fatores sociais mais amplos que mencionei. Ana Paula: Acho que você já respondeu em grande parte à próxima questão. Con siderando o marco da declaração da pandemia pela OMS em março de 2020 e suas consequências na vida econômica, social e política dos povos, como podemos pro blematizar o aumento dos diagnósticos psiquiátricos? Será que estaríamos redu zindo esse fenômeno a uma operação orgânica ou, talvez, individualizando uma questão que envolve aspectos coletivos, sociais e que reverberam no indivíduo, como desamparo, incerteza e vulnerabilização?

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 15 curso sensacionalista, sem analisar os dados, sem que haja evidências, informa ções e estudos representativos, de base populacional.

Foram realizados muitos estudos transversais, epidemiológicos, utilizando escalas de sintomas psiquiátricos. O resultado apontou níveis altíssimos de estresse, de sin tomas de depressão e ansiedade em muitos grupos, como os profissionais de saúde.

A gente não duvida que as pessoas tenham vivido tudo isso ao longo da pandemia. Eu tive insônia, estresse, é difícil dizer quem não passou por alguma experiência como essa ao longo desse período – medo, luto. São experiências muito comuns em con texto de emergência humanitária. Por outro lado, elas tendem a passar, a melhorar com o tempo e, também, desde que as pessoas recebam um suporte adequado.

Há outra questão que é importante sinalizar: é fundamental que haja também in vestimento e fortalecimento do monitoramento, do sistema de vigilância em saú de, para que se possa gerar informações e conclusões que sejam baseadas em evi dências a respeito do possível aumento dos transtornos mentais.

Então, eu tenderia a ser um pouco mais cautelosa em relação aos estudos rea lizados na pandemia. As escalas utilizadas para mensuração de resultados, por exemplo, foram criadas e validadas em contextos diferentes, em que não havia uma crise humanitária em vigor. Por isso é importante certa cautela. Por outro lado, sabemos que alguns estudos de base populacional estão apontando tendên cias que a gente só vai poder entender um pouco mais em médio e longo prazos. Ainda é muito cedo para entendermos quais são as consequências da pandemia na saúde mental. Temos de produzir estudos de base populacional que sejam re presentativos, longitudinais, que possam fazer essa avaliação ao longo do tempo, em relação, sobretudo, aos determinantes sociais de saúde mental. A pandemia aprofundou problemas que já existiam. Por outro lado, emergên cias humanitárias e crises também podem representar uma oportunidade de transformação, de engajamento dos governos e da sociedade como um todo na construção de políticas e respostas mais efetivas. Talvez seja mais importante, em vez de criar serviços especializados para pessoas com depressão, criar polí ticas públicas que facilitem o acesso à renda, ao emprego, à alimentação, à água.

Essas ações são, por si só, protetivas da saúde mental. Então, devemos pensar nas respostas de uma forma complexa, em múltiplos níveis e de acordo com as Entrenecessidades.aspessoas que já têm diagnóstico, cerca de 20% a 25% vão precisar de cui dados em saúde mental, seja em serviços especializados, seja na atenção primária. Os outros 80% vão precisar de políticas sociais, de suporte psicossocial, comuni tário, de ações de prevenção e promoção da saúde – outras estratégias que façam com que a sociedade se conecte e tenha acesso aos direitos e serviços básicos. Ana Paula: Catarina, você já trouxe de forma bastante ampla a sua percepção em relação aos determinantes sociais e às questões do sofrimento psíquico. Em rela ção aos determinantes sociais, como você percebe a questão dos valores de uma sociedade? O olhar que essa sociedade tem sobre o sofrimento influencia – ou como fator protetivo ou como fator agravante – no sofrimento psíquico?

Ana Paula: Caminhando nessa perspectiva dos valores, do imaginário da socie dade, de ações de promoção, a gente tem observado que a cultura e as artes em suas diversas manifestações ocuparam lugar de destaque nas estratégias de pre servação da saúde mental. No caso da pandemia, a cultura teve papel também na minimização do imenso sofrimento gerado. Como você, da Opas/OMS, entende esse fenômeno, especificamente das artes como fator protetivo ou minimizador do sofrimento? Catarina: Todas essas expressões ou manifestações culturais – música, teatro, dança, expressões artísticas, saberes populares, tradições relacionadas às nossas raízes ancestrais –, de alguma forma, nos fazem entrar em contato com aquilo que temos de mais humano. Tudo isso nos faz conectar com uma certa coletividade.

Acho que a cultura nos ajuda também a criar um senso de pertencimento a um grupo, a uma comunidade ou território, um senso de pertencimento ao mundo. E esse é um dos principais fatores de proteção da saúde mental. Promover cultura e todas as suas manifestações pode ser uma estratégia poderosa de promoção da saúde mental, do bem viver, porque nos conecta com o que há de belo, nos ajuda a sublimar o sofrimento, a construir outros sentidos para o sofrimento.

Sabemosmental.deiniciativas

desse tipo no Brasil e no mundo inteiro, mas elas ainda são pouco documentadas. Por isso, é difícil haver estudos de avaliação que compro vem que essas ações melhoram a saúde mental da população. Existe um caminho sendo apontado pela própria OMS e Opas de que é importante ter essa abordagem mais ampliada.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 16 Catarina: Eu poderia ficar falando por horas sobre esse assunto. A nossa socie dade foi historicamente constituída – sobretudo a partir do aprofundamento do capitalismo – com base em valores individualistas. É uma sociedade que valoriza o indivíduo em detrimento do coletivo, da comunidade. Acho que esse é um pri meiro Acreditoponto.que seja importante mudar a perspectiva do individual para o coletivo, que as sociedades possam de fato entender que, enquanto houver uma pessoa com covid-19 no mundo, o mundo ainda não vai estar livre da covid-19. Enquanto uma pessoa estiver passando fome – e a gente vê milhões de pessoas passando fome –, o mundo ainda não vai estar livre da fome, da miséria ou da pobreza. Como valor da sociedade, acredito que a gente precisa ter uma mudança paradig mática de fato, uma mudança de posição – todos nós, cada um fazendo a sua parte, mas sobretudo os governos, setores da sociedade civil organizada e o setor priva do. É importante ter o entendimento de que o coletivo, o bem-estar dessa coletivi dade, é o principal valor. E que a saúde seja compreendida como valor de uso, não como uma mercadoria, um bem material.

Acredito que seja importante ter uma virada dos governos, incluindo as orga nizações de saúde, como a Opas/OMS, sobre a importância das manifestações culturais, das redes de solidariedade comunitárias como fatores de proteção da saúde

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 17 Um relatório da Assembleia Geral das Nações Unidas,7 publicado em 2019, sobre a questão da saúde mental e dos determinantes sociais na saúde mental mostrou que é importante ter uma abordagem da sociedade como um todo, que englobe aspec tos socioculturais e envolva as ações culturais, as tradições. É necessário haver uma sensibilidade cultural em cada país para tratar do tema e potencializar essas inicia tivas como estratégias importantes para a promoção da saúde mental e do bem viver.

ANA PAULA GULJOR é psiquiatra, mestre e doutora em saúde pública (Fiocruz). Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz-RJ; vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme); membro da Comissão Permanente dos Direitos da População em Privação de Liberdade do Conselho Nacional dos Direitos Humanos. CATARINA DAHL é consultora nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS) no Brasil. Psicóloga sanitarista, mestre em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutora em saúde mental pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Há 20 anos atua no campo da saúde mental pública, com experiência em clínica, ensino, pesquisa e gestão.

Ana Paula: Você já teve notícias de experiências específicas que lidassem com a cultura como uma estratégia de cuidado com a saúde mental?

Catarina: Sim, a Opas tem desenvolvido algumas iniciativas no âmbito da coo peração técnica em uma perspectiva mais ampla de municípios saudáveis, que pensam nas questões de violência, da mobilidade urbana, integradas à questão de saúde mental. É uma perspectiva de planejar as cidades. Essa é uma agenda prioritária do escritório da Opas no Brasil. Temos abordado a saúde mental sob essa perspectiva, com algumas iniciativas ou projetos específi cos. Por exemplo, criamos campanhas de saúde em que tentamos engajar a própria comunidade na produção de peças de comunicação. Recentemente também im plementamos um projeto de saúde mental e apoio psicossocial em Roraima, que integrou a resposta humanitária à imigração venezuelana. É uma região que reúne pessoas de origens e referências culturais diferentes, onde há muitos indígenas, muitos venezuelanos. O projeto também abordou os temas da valorização cultu ral, da valorização das tradições, dos saberes populares, de práticas como artesa natos – ou “manualidades”, como eles chamam. Existem ações de cooperação técnica com o Ministério da Saúde, estados e muni cípios. Há também projetos especiais com foco mais específico na saúde mental, mas dentro dessa visão mais comunitária e social.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 18 NOTAS 1. Disponível em: item/9789240036703who.int/publications/i/https://www..Acesso em: 6 jan. 2022. 2. Disponível em: healthcovid-19-and-need-action-mental-un.org/resources/policy-brief-https://unsdg..Acessoem:25jan.2022. 3. LUND, C. et al. Social determinants of mental disorders and the Sustainable Development Goals: a systematic review of reviews. Disponível em: Acessoncbi.nlm.nih.gov/29580610/https://pubmed..em:25jan.2022. 4. Para mais informações sobre esse assunto, consultar a publicação da OMS disponível em: https://bit. ly/3yCyAXo. Acesso em: 6 jan. 2022. 5. Disponível em: item/978924012455who.int/publications/i/https://www..Acesso em: 25 jan. 2022. 6. Disponível em: globalpor-ano-us-1-trilhao-economia-depressao-e-ansiedade-custam-un.org/pt/story/2016/04/1547361-https://news..Acessoem:6jan.2022. 7. Disponível em: item/978924012455who.int/publications/i/https://www..Acesso em: 25 jan. 2022.

imagem: Cama Romeu e Julieta / Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

SILVANA FERREIRA Saúde mental são duas palavrinhas muito prezadas e utilizadas hoje em dia. No entanto, não foi sempre assim: esse campo tem uma longa história de estigma tização baseada em uma visão da loucura que fez com que aqueles que pade ciam de transtornos mentais fossem excluídos e silenciados. Em razão disso, ao longo do século XX, em especial após a Segunda Guerra Mundial, pôde-se observar em vários países iniciativas que visavam garantir a inclusão social e os direitos dos pacientes portadores de transtornos mentais, movimentos es tes chamados de reforma psiquiátrica. No Brasil, a reforma psiquiátrica resul tou em uma importante reestruturação da rede de cuidados da saúde mental e na Lei Federal n o 10.216/2001 , que garante os direitos dos pacientes com trans tornos mentais. Saúde mental é um tema que voltou a ganhar destaque a partir do início do século XXI, dando prestígio a um campo do conhecimento antes silencioso e silenciado. E isso se deu especialmente porque, nos últimos 20 anos do século XX, o mun do assistiu a um aumento expressivo na frequência dos transtornos mentais e de suicídios; esses últimos, além de aumentarem em número, apresentaram uma modificação de comportamento epidemiológico – evento tradicionalmente mais frequente na população idosa e de meia-idade, o suicídio passou a ocorrer cada vez mais em faixas etárias mais jovens. Em 2001, em seu Relatório Mundial da Saúde1, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a saúde mental já havia sido negligenciada por tempo dema siado e que as consequências podiam ser mensuradas nos dados epidemiológicos relativos a esse campo. A OMS indicou que a saúde mental deveria ter destaque nos esforços no cuidado à saúde, por ser essencial para o bem-estar geral das pes soas, das sociedades e dos países. O relatório apontou que a carga social e econô mica causada pelos transtornos mentais era enorme e crescente, e que a depressão se configurava como a primeira causa de incapacidade e a quarta doença mais pre valente no mundo, sendo previsto que nos 20 anos subsequentes ela subiria para o segundo lugar nesse triste ranking.

Estado da arte da saúde mental

O relatório ressaltou as relações da saúde mental com a saúde física e da primei ra com as condições sociais e econômicas. Propôs que os países-membros de senvolvessem ações para prevenção, promoção e restauração da saúde mental e que as consolidassem em políticas públicas, pois não haveria saúde na ausência de saúde mental. Apesar disso, apenas resultados modestos foram alcançados nestes 20 anos. O mapa abaixo mostra o panorama da frequência de transtornos mentais no mundo.

Esse mapa dá a ideia da frequência de transtornos mentais ao redor do mundo. No entanto, devido ao subdiagnóstico, que é mais frequente nos países subdesenvol

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024681012 2000

vidos e em desenvolvimento, em razão da escassez de serviços especializados, o mapa dá uma estimativa tanto da parcela da população acometida por transtornos mentais como da presença de serviços de saúde mental. Nos países em desenvolvimento essa situação é ainda pior. Quando, por exemplo, consideramos as taxas de suicídio como indicador de saúde mental, observamos que, enquanto as taxas mundiais de suicídio diminuíram a partir dos anos 2000, provavelmente em decorrência da ampliação e da instalação de medidas de pre venção, nos de baixa renda ou com significativa desigualdade social, como o Brasil, essas taxas, pelo contrário, subiram. 2005 2010 2015 2019 Brasil Mundo 6% 6% 4%5% Brasil Mundo Gráfico 2: Taxa de suicídio de 2000 a 2019 (mortes por suicídio/100 mil habitantes/ano)2 Fonte: Organização Mundial da Saúde (via Banco Mundial) Fonte: IHME, Global Burden of Disease Gráfico 1: Parcela da população com transtornos mentais e abuso de substâncias psicoativas, 2017 20%17,5%7,5%SD 12,5%10% 15%

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 22 O exposto está ilustrado no gráfico acima, no qual se observa uma tendência mun dial de queda do número de mortes por suicídio ao longo dos primeiros 20 anos do século XXI, ao passo que no Brasil a tendência ainda se mostra ascendente. En quanto o índice mundial caiu 9,8% entre 2010 e 2016, no Brasil houve um aumen to de 7% no mesmo período: em 2010 registravam-se 5,7 suicídios a cada 100 mil habitantes e, em 2016, esse número havia subido para 6,13. Houve, em especial, um aumento no número de suicídios entre homens. Em relação à frequência e à gravidade dos transtornos mentais, pode-se analisar sua evolução acompanhando sua cota de participação no fardo causado pelos agra vos à saúde como um todo. A cota de incapacidade causada pelos transtornos men tais em relação àquela causada por todas as outras doenças aumentou no mundo inteiro, e, nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil, esse aumento foi mais acentuado. Gráfico 3: Participação dos transtornos mentais e relacionados ao uso de substâncias psicoativas na carga global de doenças4 024681012 2000 2005 2010 2015 2019

Fonte: Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde, Carga Global de Doenças O gráfico acima expressa a relação entre os transtornos mentais e abuso de substâncias e a carga global de doenças, e é calculado com base nos anos de vida perdidos ou vividos com incapacidade. Observa-se que desde 1990 os transtornos mentais vêm se tornando causa cada vez mais importante de in capacidade e morte quando comparados aos outros problemas de saúde da po pulação mundial. Esse crescimento é constante no mundo todo e chega a 50% entre 1990 e 2017. A situação hoje é dramática. Em 2020, a OMS relatou em documento 5 que, pouco antes da pandemia de covid-19, a depressão atingia 264 milhões de pes soas no mundo, com reflexos importantes na economia global, mortalidade e perda de qualidade de vida, em especial na população mais jovem. Ansiedade e depressão foram consideradas responsáveis por um prejuízo de 1 trilhão de dólares ao ano, tanto pela incapacidade laborativa como pela necessidade de investimentos em saúde cada vez maiores. Além do aumento na frequência, o início dos casos de transtornos mentais se tornou mais precoce (por volta dos

Brasil Mundo

Brasil Mundo 1990 1995 2000 2005 2010 2017 6% 6%

0%1%2%3%4%5%

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 23 14 anos), e isso se relaciona à mortalidade por suicídio, que se configura como a segunda causa de morte para jovens entre 15 e 29 anos, precedida apenas por Maisviolência/acidentes.amplamente,em

A OMS define saúde mental como um “estado de bem-estar no qual o indivíduo de senvolve suas habilidades pessoais, consegue lidar com os estresses da vida, traba lha de forma produtiva e encontra-se apto a dar sua contribuição para sua comuni dade”8. Nesse contexto, a concepção de saúde mental ultrapassa a ideia da ausência de transtornos mentais9, e o ambiente social, econômico e físico ao qual pertence o indivíduo passa a ser considerado responsável pelos agravos à sua saúde mental e pela eclosão de grande parte dos transtornos mentais comuns, com especial par ticipação da desigualdade social10. É aí que se inserem a pandemia e a previsão de deterioração das condições mundiais de saúde mental: como fonte de estresse e sofrimento e, ainda, como fator agravante das desigualdades sociais e econômicas entre as diferentes regiões do mundo. A presença de saúde mental se torna condi ção necessária não apenas para a saúde como um todo, mas também para a plena expressão das habilidades individuais e coletivas relacionadas ao pensamento, às emoções, à interação social, à capacidade de prover o próprio sustento, garantindo a sobrevivência, e à possibilidade de aproveitar a vida.

Considerando que, desde 2020, com a pandemia, a humanidade experimenta uma si tuação traumática e os indivíduos vivem situações até então inimagináveis, com qua rentenas, internações, escassez de insumos, trabalho remoto e solidão, entre outras, pode-se imaginar que a saúde mental mundial está em um momento de fragilidade.

todas as faixas etárias, encontramos uma expectativa me nor de vida para os portadores de transtornos mentais, que vivem de 10 a 20 anos menos que a população em geral. Quando pensamos nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, o supracitado relatório traz a triste realidade: de 76% a 85% das pessoas com transtornos mentais não têm acesso a tratamento, apesar das evidências de que intervenções eficazes podem ser desenvolvidas em contex tos com poucos recursos. Os países gastam uma média de apenas 2% de seu orça mento de saúde na saúde mental. Em áreas de conflito e em países subdesenvol vidos, onde o investimento e a organização dos serviços de saúde são ainda mais precários, estima-se que um em cada cinco habitantes vão ter um diagnóstico de transtorno mental ao longo da vida. Em relação ao estigma e à qualidade de vida, menos da metade dos países-mem bros da OMS tem políticas públicas de saúde mental em conformidade com as convenções internacionais de direitos humanos e, independentemente da faixa de desenvolvimento econômico do país, a violação desses é uma constante na rea lidade das pessoas com transtornos mentais. Enquanto no imaginário social são vistos como um risco, os “loucos” são, na realidade, vítimas de uma estrutura so cial estigmatizante, o que inclui os serviços de saúde. Para finalizar o cenário, há escassez absoluta e relativa de profissionais especializados para o manejo dessas condições, havendo hoje, globalmente, aproximadamente 1 a 1,3 profissional de saúde mental para cada 10 mil pessoas. No Brasil, a proporção é de 0,5 profissional para 10 mil habitantes, situação complicada ainda mais pela concentração destes nas áreas urbanas das regiões mais desenvolvidas do país. 6 7

É impossível definir uma noção única de “saúde mental”11, ou seja, a ideia ou sensação de “bem-estar” pode variar de indi víduo para indivíduo e, mais ainda, ser diferente nas diversas culturas, com formas singulares de ver e entender o mundo.

A promoção, a proteção e a recuperação da saúde mental, por sua vez, além de serem consideradas preocupações funda mentais para o bem-estar dos indivíduos, das comunidades e sociedades, devem passar a incluir estratégias intersetoriais, pois apenas estas contemplam ações nos determinantes so ciais dos transtornos mentais e agravos à saúde mental da população por todo o mundo. As ações devem incluir todas as etapas de vida dos indivíduos, desde o nas cimento, garantindo cuidadores afetivos, segurança social, acesso a alimentação, educação e arte, entre outros, e precisam ser universais, ou seja, em toda a socieda de, transcendendo a área da saúde. Aspectos comunitários, culturais e psicológicos devem ser levados em conta nos âmbitos local, estrutural, ambiental e político12 Falando em arte, cultura e saúde mental e em suas inter-relações: (a) a arte é ex pressão cultural e favorece a expressão subjetiva daqueles que padecem de trans tornos mentais (expressão artística como forma de terapêutica); (b) a conexão interpessoal provocada pela arte pelo reconhecimento comum de signos daquela cultura reforça a sensação de pertencimento dos indivíduos, combatendo o estig ma e servindo de instrumento de inclusão social (não há uma “arte dos pacientes psiquiátricos”, a arte é de todos); e (c) a arte é potência atávica de todas as culturas e representa a dimensão da experiência humana que vai além do funcionamento dos nossos corpos e mentes. Para terminar, se não há saúde sem saúde mental (“no health without mental health”) e não há saúde mental sem uma sociedade mais igualitária, é nesse sentido que os esforços devem se concentrar. Como diziam os Titãs (1987) em verso da letra da mú sica “Comida”13: “A gente não quer só comida / A gente quer comida, diversão e arte / A gente não quer só comida / A gente quer saída para qualquer parte”. Saúde mental é um conceito complexo, que inclui as mais diferentes dimensões da experiência hu mana. A gente quer a garantia dos direitos de todos, equidade e uma sociedade mais justa. A gente quer saúde mental. Acesse aqui a facilitação visual do Estado da Arte da Saúde Mental a partir das reflexões de Silvana Ferreira: https://bit.ly/3P1wabI.

Assim como a arte, a saúde mental pode ser considerada úni ca, uma expressão do sujeito em sua cultura, um fenômeno complexo, rico e multideterminado.

COMO CITAR ESTE ARTIGO FERREIRA, Silvana. Estado da arte da saúde mental. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022.

SILVANA FERREIRA é médica psiquiatra, mestre em psicanálise, psiquiatria e saúde mental e doutora em saúde coletiva. É professora adjunta do Departamento de Especialidades Médicas/Psiquiatria e professora titular da disciplina de saúde mental da Estácio/Idomed. É membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da American Psychiatric Association (APA).

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1. WORLD HEALTH ORGANIZATION. The world health report 2001: mental health – new understanding, new hope. Geneva: World Health Organization, 2001. Disponível em: Acessoint/whr/2001/en/whr01_en.pdfhttps://www.who.em:21fev.2022.

4. OUR WORLD IN DATA. “Mental disorders as a share of total disease burden, 1990 to 2019”. Our World in Data. Disponível em: Acessoart&country=BRA~OWID_WRLuse-as-share-of-disease?tab=chgrapher/mental-and-substance-<https://ourworldindata.org/>.em:29mar.2022.

13. COMIDA. Intérprete: Titãs. Rio de Janeiro: BMG-Ariola: 1987.

2. OUR WORLD IN DATA. “Suicide Rate, 2000 to 2019 (World x Brazil)”. Our World in Data. Disponível em: WRLsuicide-rate?country=BRA~OWID_ourworldindata.org/grapher/https://.Acessoem:29mar.2022.

11. GALDERISI, S. et al. Toward a new definition of mental health. World Psychiatry, Naples, v. 14(2), p. 231233, 2015. Disponível em: 21PMC4471980/www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/https://.Acessoem:fev.2022.

7. SCHEFFER, M. et al Demografia médica no Brasil 2018. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; Conselho Federal de Medicina, 2018. Disponível em: Acessopublications/i/item/9789240036703https://www.who.int/em:21fev.2022.

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8. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Mental health: strengthening our response. Geneva: World Health Organization, 2018. Disponível em:strengthening-our-responsefact-sheets/detail/mental-health-https://www.who.int/news-room/em:.Acesso21fev.2022.

12. WORLD HEALTH ORGANIZATION; CALOUSTE FOUNDATION,GULBENKIAN op. cit.

10. WORLD HEALTH ORGANIZATION; CALOUSTE FOUNDATION.GULBENKIAN Social determinants of mental health. Geneva: World Health Organization, 2014. Disponível em: Acessoeng.pdf?sequence=1le/10665/112828/9789241506809_who.int/iris/bitstream/handhttps://apps..em:21fev.2022.

5. WORLD HEALTH ORGANIZATION. United Nations policy brief: covid-19 and the need for action on mental health. Geneva: World Health Organization, 2020. 6. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Mental health atlas 2020. Geneva: World Health Organization, 2021. Disponível em: item/9789240036703www.who.int/publications/i/https://.Acesso em: 21 fev. 2022.

3. DEL-BEN, C. M. et al. Emergências psiquiátricas: manejo de agitação psicomotora e avaliação de risco suicida. Medicina (Ribeirão Preto), Ribeirão Preto, v. 50, n. supl. 1, p. 98-112, jan.-fev. 2017. Disponível em: Acessormrp/article/view/127543/124637https://www.revistas.usp.br/em:21fev.2022.

9. GAINO, Loraine Vivian et al. O conceito de saúde mental para profissionais de saúde: um estudo transversal e qualitativo. SMAD, Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 14, n. 2, p. 108-116, 2018. Disponível em:article/view/149449/151279https://www.revistas.usp.br/smad/em:.Acesso21fev.2022.

imagem: Sirenio de Jesus escrevente / Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

Nos limites das experiências trágicas do mundo contemporâneo: os campos da saúde mental e da sublimação em questão

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JOEL BIRMAN RESUMO A intenção deste ensaio é problematizar inicialmente as relações entre o cam po da saúde mental e as catástrofes promovidas pelo mundo contemporâneo nas escalas brasileira e internacional, destacando, ao mesmo tempo, a produ ção de traumas psíquicos intensos provocados por tais catástrofes, os quais se manifestam clinicamente de formas diversificadas. Em seguida, pretendemos indicar como as produções artísticas e cinematográficas contemporâneas se inscrevem na economia psíquica das singularidades como práticas sublima tórias, de forma a ser as condições concretas de possibilidade para a elabora ção psíquica pelos sujeitos desses impasses existenciais cruciais. Portanto, o conceito psicanalítico de sublimação, enunciado por Freud no início de seu percurso teórico para pensar na economia psíquica das produções culturais, foi o caminho que escolhemos para problematizar como as produções artísti cas e culturais coletivas possibilitam aos sujeitos a elaboração de tais acon tecimentos desastrosos nas suas existências singulares. Essas são, enfim, as coordenadas e linhas de força fundamentais que me nortearam na elaboração deste ensaio.

I. CATÁSTROFE E TRAUMA É preciso destacar que a contemporaneidade é diretamente afetada pela questão da saúde mental, em decorrência das múltiplas catástrofes a que estamos expostos na nossa existência cotidiana. Essas catástrofes incidem sobre nós de forma emi nentemente traumática, promovendo, assim, a constituição, na atualidade, de uma cultura da catástrofe e do trauma. Como se sabe, a psicanálise, desde os tempos em que se constituiu como saber, enunciou o conceito de trauma para pensar nas perturbações psíquicas. Porém, tal conceito recebeu uma versão e feição definitivas na segunda década do século passado, quando Freud pensou nas relações existentes entre o trauma e as catástrofes promovidas pela Primeira Guerra Mundial e passou a descrever as neuroses de guerra como primeira versão clínica do que em seguida a psicanálise passou a denominar de neuroses traumáticas, nas quais o dito trauma seria engen drado por diversos acontecimentos diferentes da guerra. No contexto histórico dos anos 1920, o trauma passou a ser definido pela impos sibilidade experimentada pelo sujeito em antecipar um acontecimento catastrófi co. Tal questão foi problematizada em textos como “Além do princípio do prazer”

Nesse contexto, famílias inteiras foram destroçadas e crianças foram lançadas tragicamente na orfandade, em países sem casas e sem possibilidades de trabalho, de forma que o que restou aos sobreviventes foi a possibilidade de emigrar.

Contudo, mantidos nas fronteiras de diferentes países europeus – com exceção da Alemanha, que os acolheu –, os refugiados vivem nos limites do humano, como animais, destituídos das condições de cidadania de seus países de origem e sem nova condição de cidadania na Europa. Eles vivem como párias, em campos de re fugiados, nos limites entre a vida e a morte. A contemporaneidade é diretamente afetada pela questão da saúde mental, em decorrência das múltiplas catástrofes a que estamos expostos na nossa existência cotidiana

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 28 e “Inibição, sintoma e angústia”. Na medida em que o sujeito não pode antecipar certos acontecimentos catastróficos, não poderia, assim, se defender do pior do ponto de vista psíquico e evitar o impacto traumático, que assume, então, a forma -limite da ameaça à ordem da vida pelo sujeito. Mesmo que as ditas catástrofes não incidam diretamente sobre nós especifica mente de forma imediata e danosa, podemos acompanhá-las ao vivo e em cores nos noticiários de jornais e de televisão. A mídia nos informa, nos menores de talhes, sobre as mortes e expõe corpos dilacerados, que invadem a nossa roti na de forma frontal e fulminante. Nesse contexto, não se trata mais apenas do sofrimento e da dor a distância, pelos en quadres escolhidos pelos cinegrafistas e pelas agências de notícias. Essas imagens nos atingem bem de perto, pois indicam o que pode nos acontecer a qualquer momento ou num imprevisível tempo futuro, de forma que nós não ficamos incólumes a essas agressões e violências. As guerras do Iraque, do Afeganistão e, mais recentemente, da Síria, promovidas pelos Estados Unidos e por seus aliados, em nome da difusão de um “ideário da democracia e de oposição ao fundamentalismo islâmico”, delineiam os cenários catastróficos a que foram submetidas tais populações diante de um agressor alta mente equipado com armas de última geração tecnológica, em um jogo de forças completamente desigual. Porém, como se sabe, a principal vítima dessas guerras foi a população civil, prin cipalmente as mulheres e as crianças, abandonadas à própria sorte, quando não foram mortas pelos ataques aéreos dos invasores ocidentais. Contabilizou-se pos teriormente por diferentes agências internacionais que, apenas na Guerra do Ira que, foram mortas 100 mil pessoas de forma indiscriminada, presumindo-se que o mesmo tenha ocorrido com as guerras da Síria e do Afeganistão, de maneira que a catástrofe humanitária foi ampla, geral e irrestrita.

Iniciou-se, assim, a saga dos refugiados oriundos do Oriente Médio em direção à Europa, em busca de melhores condições de vida, norteados pelo imperativo da sobrevivência. Ao mesmo tempo, as populações oriundas da África seguiram rota semelhante, engrossando as fileiras dos refugiados em direção à Europa. A desarticulação promovida pela nova ordem neoliberal globalizada é o imperati vo que reúne essas duas populações de refugiados em suas rotas de fuga.

Com efeito, o Brasil se transformou, assim, numa terra sem lei. Paradoxalmente, as forças do Estado se tornaram uma ameaça direta, seja individualmente, para as nossas vidas e existências singulares, seja coletivamente, para a democracia bra sileira. Isso significa que o Estado brasileiro deixou de existir como tal, uma vez que trata a sua população de forma diferenciada, com dois pesos e duas medidas.

Existem na sociedade brasileira duas modalidades opostas de população: aquela cujas vidas são valorizadas e aquela cujas vidas são eminentemente desvaloriza das. A desigualdade é a maior axial que caracteriza de maneira eloquente a socie dade brasileira na sua totalidade. Como enunciou de forma contundente a filósofa norte-americana Judith Butler, na obra intitulada Quadros de guerra – quando a vida é passível de luto? (Civili zação Brasileira, 2015), existe uma fenda radical entre as populações cujas vi das são passíveis de luto e as constituídas por pessoas que não são passíveis de luto. Se as primeiras são reconhecidas como cidadãos do Estado Democrático de Direito, com efeito, as segundas não gozam do estatuto de cidadania. Esse seg mento da população não tem seus direitos humanos reconhecidos pelo Estado propriamente dito.

É preciso evocar, ainda, que o sistema prisional brasileiro é o terceiro no mundo em população carcerária, perdendo apenas para os sistemas carcerários norte-americano e chinês. Além disso, tal população prisional é constituída, na sua grande maioria, por pobres e negros, de forma a repetir, assim, de maneira carica ta, a desigualdade, a pobreza e a miséria presentes no espaço social brasileiro.

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Assistimos a tudo isso nas nossas televisões, de forma que tais catástrofes têm efeitos traumáticos sobre os refugiados e sobre nós, que, impotentes, não sabemos bem o que fazer em face dessa realidade. A esse grupo de refugiados somam-se populações da América Central e da Amé rica do Sul que migraram para os Estados Unidos em decorrência do desmantela mento social e econômico de seus países promovido pela nova ordem social neo liberal. Mantidas nas fronteiras, tais populações são tratadas como animais pelos norte-americanos, vivendo igualmente em campos de refugiados, sem nenhuma perspectiva de futuro, entre a vida e a morte. Novamente, assistimos a isso tudo igualmente impotentes.

Comparados aos campos de concentração nazista, os campos de refugiados pro movem a morte social dessas populações, que funciona como ácido corrosivo de sua saúde mental, promovendo depressão, melancolia, medo e angústia, pela au sência de qualquer perspectiva de futuro.

Nas grandes cidades brasileiras, como o Rio de Janeiro, a mesma situação se repe te: comunidades e favelas são atacadas cotidianamente pela violência policial, ge rando notícias e imagens que incidem sobre nós de maneira eminentemente trau mática, pois sabemos que a violência policial que hoje atinge as classes populares também pode nos atingir futuramente, uma vez que a impunidade marca as forças da segurança pública pelas instâncias jurídicas e políticas instituídas no país, de forma ampla, geral e irrestrita.

Essas normas se enunciaram em prin cípio como resposta ao medo e à angús tia que se disseminaram como rastilho de pólvora nas populações em escala planetária, criando, assim, uma epide mia no campo da saúde mental. Con tudo, não obstante isso, é preciso destacar que existe uma evidente seletividade do sistema político na escolha de quem é passível de punição e quem não é, numa reprodução do sistema de desigualdade social promovido pelo neoliberalismo. É preciso reconhecer que o medo e a angústia assumem regularmente um caráter eloquentemente persecutório nas subjetividades, pelas ameaças diretas e reais à vida das pessoas. Assim, ao lado da depressão, a ansiedade e o medo são certamente os grandes pro motores do campo das perturbações mentais produzidas pela ordem neoliberal, em decorrência do desamparo e do desalento A pobreza, a miséria e a precariedade social passaram a ser ostensivamente judicializadas, na medida em que novas tipificações do direito penal passaram a enunciar como crime e delito o que não era assim considerado anteriormente

É preciso evocar, ainda, que as populações carcerárias aumentaram imensamen te no mundo inteiro desde os anos 1970, em decorrência da precarização social e econômica das populações e dos seus laços sociais respectivos. Teóricos e espe cialistas dos sistemas prisionais são unânimes em relação a esse aspecto. Portan to, o crescimento gigantesco das populações carcerárias foi uma consequência da ordem neoliberal, que disseminou a precariedade social, afetando diretamente as classes populares e as classes médias em todo o mundo.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 30 O mesmo acontece nos Estados Unidos, onde a população carcerária é constituída principalmente por negros e pobres, reproduzindo o apartheid racial e o racismo estrutural presentes na sociedade norte-americana.

Existe até mesmo na legislação brasileira uma cláusula segundo a qual o indivíduo que tiver um diploma universitário é alocado numa prisão especial. Assim, o siste ma de dois pesos e duas medidas perpassa todo o sistema penal brasileiro, no qual as elites e as classes médias recebem uma proteção especial e diferenciada que não é outorgada às classes populares. Além disso, as prisões brasileiras se inscrevem num regime penal pré-moderno, como Foucault nos mostrou em História da loucura na Idade Clássica com a consti tuição dos Hospitais Gerais na Idade Clássica. A superlotação dos presídios deixa essa população sujeita à morte por doenças infecciosas regulares. O sistema pri sional brasileiro é, portanto, regulado pela lógica estrita do genocídio das popula ções pobres.

O que implica dizer que a pobreza, a miséria e a precariedade social passaram a ser ostensivamente judicializadas, na medida em que novas tipificações do direito penal passaram a enunciar como crime e delito o que não era assim considerado anteriormente. O incremento exponencial da moral punitiva em escala global, de nominada inicialmente de “política de tolerância zero” pelo prefeito conservador Rudolph Giuliani, de Nova York, foi certamente o desdobramento inequívoco das novas normas duras e inapeláveis de segurança pública.

A crise dos refugiados passou a ser objeto de filmes e seriados, nos quais se eviden ciou o desalento das subjetividades que vivem tais situações extremas, marcadas pela fome e por condições indignas de existência, procurando despertar no públi co consumidor desses filmes a solidariedade.

A produção cinematográfica internacional procurou figurar de forma frequente e eloquente esses acontecimentos catastróficos com desdobramentos traumáticos sobre os sujeitos.

II. CULTURA E SUBLIMAÇÃO EM QUESTÃO

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 31 Não é um acaso, portanto, que a depressão tenha sido alçada à condição de en fermidade mais comum do ponto de vista epidemiológico no mundo desde 2018 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ocupando a posição que anterior mente era ocupada pelas doenças car díacas, as doenças degenerativas do sistema nervoso central e outras en fermidades somáticas. Essa mudança é uma consequência da crise econômica global de 2008, que promoveu grande quantidade de desemprego no campo social internacional, incrementando bas tante a precarização econômica e social dos trabalhadores e das classes médias.

Portanto, as catástrofes internacionais e brasileiras tiveram efeitos traumáticos in sofismáveis nas subjetividades. Esses efeitos foram a matéria-prima inequívoca da produção artística e cinematográfica, que possibilitaram, assim, canais de elabora ção psíquica e simbólica, como veremos no que se segue de forma esquemática.

As guerras do Iraque, do Afeganistão e da Síria também foram tema de realiza ções artísticas audiovisuais com muita pujança dramática. Os milhares de mortes de civis e crianças pelo exército norte-americano invasor promoveram também a solidariedade dos espectadores pela exibição nua e crua desse desrespeito aos direitos humanos. As condições indignas da prisão de Guantánamo também foram alvo da cinema tografia internacional, sobretudo a europeia, que procurou mostrar prisioneiros internados sem nenhum julgamento. Ao lado da depressão, a ansiedade e o medo são certamente os grandes promotores do campo das perturbações mentais produzidas pela ordem neoliberal

Com isso, a depressão se alastrou nas subjetividades. A pandemia do coronavírus, que em fevereiro de 2022 completou dois anos, pa ralisou e colocou em estado de suspensão a economia internacional, promovendo também um grande estrago na economia psíquica em todo o mundo, com produ ção de medo persecutório, angústia, incremento do uso de álcool e outras drogas, assim como de depressão e melancolia. Esse quadro psíquico é consequência tan to do terror de mortes quanto dos efeitos danosos do esvaziamento e da redução de laços sociais. Com isso, houve aumento da violência doméstica, o que conduziu ao aumento de divórcios no âmbito internacional. Enfim, a melancolia que se dis seminou com a pandemia provocou, ainda, o aumento do suicídio, principalmente entre adolescentes, adultos jovens e idosos.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 32 A cinematografia sobre crimes e sobre o sistema carcerário, com as iniquidades praticadas pela polícia e pelas forças de segurança carcerária, é uma das mais vastas atualmente, com a produção de inúmeros filmes. Pelo suspense e pela vio lência, assim como pelas injustiças provocadas pelos policiais com as populações carcerárias, sobretudo as de etnia negra, a cinematografia dita carcerária é uma das que mais se expandiram para procurar despertar a solidariedade do público consumidor com as múltiplas iniquidades promovidas pelas autoridades policiais e Enfim,carcerárias.oque

essas produções artísticas exibem com pujança é como o sistema carcerário é uma escola requintada de produção de criminosos, na medida em que pequenos delinquentes são transformados em grandes criminosos, tendo que fazer parte de facções criminosas pelo imperativo da sobrevivência em tais condições adversas.

Na cinematografia brasileira e em algumas novelas de televisão, realizadas prin cipalmente pela TV Globo, os roteiros tentam valorar a face humana dos morado res de comunidades, na contramão da constante tentativa de criminalização dessas populações pela mídia conser vadora, pelas classes médias e pela polí cia. Nessas produções, a inferiorização dos pobres e negros ganha, pois, uma dimensão crítica, em uma tentativa de promover uma reparação simbólica com esses segmentos da população. O narcotráfico, nos seus efeitos sobre a sociedade contemporânea, é um as sunto bastante explorado pelo cinema internacional, brasileiro e pelas novelas desde os anos 1970, quando a expansão e a disseminação do uso e do mercado de drogas se incrementaram em proporções geométricas. A catástrofe dos usuários de drogas, com as suas misérias existen ciais e suas lacerações subjetivas lancinantes, é descrita com muita riqueza, numa enunciação simbólica de humanização dos adictos, a qual tenta quebrar o tabu e o clichê de que os usuários de drogas seriam “bandidos” e “monstros” como os trafi cantes, percepções bastante comuns na população em geral. Enfim, a dependência de drogas não é um crime, como foi considerado erroneamente pelos grupos so ciais conservadores desde os anos 1970, mas uma questão médica e sanitária, que incide sobre o campo específico da saúde mental dos usuários, de forma que estes devem ser cuidados, e não punidos por isso. Contudo, excluídas da condição de cidadania pelo pacto social brasileiro na sua existência comunitária, com efeitos traumáticos evidentes, as classes popula res buscam dar sentido à sua história pelo relançamento de pautas artísticas, em que a operação psíquica da sublimação se evidencia de maneira eloquen te. Da mesma forma, é pelo mesmo mecanismo da sublimação que nós todos, como consumidores de cultura, usufruímos das produções cinematográficas acima destacadas. A pandemia do coronavírus, que em fevereiro de 2022 completou dois anos, paralisou e colocou em estado de suspensão a economia internacional, promovendo também um grande estrago na economia psíquica em todo o mundo, com produção de medo persecutório, angústia, incremento do uso de álcool e outras drogas, assim como de depressão e melancolia. Esse quadro psíquico é consequência tanto do terror de mortes quanto dos efeitos danosos do esvaziamento e da redução de laços sociais

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 33 Com efeito, seja pela música, seja pela dança de forma privilegiada, as classes po pulares brasileiras e norte-americanas ensaiam se enunciar como sujeitos pelo ato de criação e pela afirmação da alegria de viver, para se contrapor, assim, de ma neira decisiva à melancolização psíquica dos efeitos catastróficos e traumáticos de suas vidas inseridas nos limites do impossível, pelo Estado e pelas ditas forças maléficas de segurança pública. Constituiu-se, assim, uma forma de pertencimen to a um mundo para não chafurdar no que há de imundo e no que há de aniquilante em suas vidas aprisionadas. Deve-se destacar a importância, neste particular, da cultura hip-hop, uma modali dade de pertencimento coletivo, na qual os negros se enunciam e podem reconsti tuir a plasticidade de seus corpos de forma rítmica. Ao lado disso, as artes plásticas nas comunidades periféricas se expandem igual mente com a mesma perspectiva ética, política e estética, com a utilização do lixo como matéria-prima da criação pictórica, na mesma linha de trabalho ex pressivo e criativo que foi inaugurado nos hospícios brasileiros com a obra de Artur Bispo do Rosario, que é hoje reconhecido como artista pleno nos cenários nacional e internacional. Não se pode esquecer como o trabalho artístico e as práticas ditas de terapia ocu pacional foram vetores cruciais na terapêutica das perturbações mentais em todo o mundo e que tiveram no Brasil um desenvolvimento excepcional, graças ao tra balho sistemático de Nise da Silveira no Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro. Nes se contexto, Nise da Silveira enunciava que, se a arte teve um papel fundamental na constituição do espírito humano desde as origens da humanidade, tais práticas artísticas seriam também cruciais na reconstituição do espírito humano atingido pela catástrofe da loucura. Enfim, o que está em pauta é a operação psíquica da sublimação nas subjetividades.

III. CONCLUSÃO No mundo contemporâneo, os efeitos catastróficos e traumáticos sobre os diferen tes segmentos das populações marcados pela precarização foram objeto de produ ções significativas nas áreas cultural e artística. Essas produções problematizam e sublimam os efeitos deletérios da morte e do aniquilamento dos sujeitos e das coletividades, que se evidenciam no nível clínico pela dor, pelo sofrimento, pela angústia e pela melancolia como marcas inconfundíveis do traumatismo psíquico.

Sem esquecer, é claro, para concluir, como as categorias de catástrofes e do trau ma se transformaram também, na contemporaneidade, em questões teóricas fun dantes nos discursos das ciências humanas, das ciências sociais e da filosofia.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 34 COMO CITAR ESTE ARTIGO BIRMAN, Joel. Nos limites das experiências trágicas do mundo contemporâneo: os campos da saúde mental e da sublimação em questão. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022.

JOEL BIRMAN É psicanalista, membro efetivo do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e do Espace Analytique (França); professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ; diretor de estudos em letras e ciências humanas, Universidade Paris VII; pesquisador associado do laboratório Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade Paris VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. BIRMAN, Joel. O sujeito na contempo raneidade. Rio de Janeiro: Civiliza ção Brasileira, 2013. BIRMAN, Joel. O trauma na pandemia do coronavírus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. BUTLER, Judith. Quadros de guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei ra, FOUCAULT,2016. Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Pers pectiva, 2019. FREUD, Sigmund. Le moi et le ça (1923). In: FREUD, S. Essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1981.

imagem: Merendeira cor-de-rosa / Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

PAULO AMARANTE RESUMO O autor desenvolve um percurso histórico das propostas de utilização do trabalho e da arte no campo da saúde mental, partindo das perspectivas do trabalho tera pêutico ou laborterapia e da arteterapia, concepções dominantes nos momentos iniciais, até o momento atual do processo conhecido como reforma psiquiátrica, no qual as iniciativas baseadas nas atividades de trabalho e de arte têm como obje tivo a produção de novas possibilidades de relacionamento social com a diferença e a diversidade, cujo resultado almejado não é reduzido ao ideal terapêutico, mas à produção de cidadania, autonomia, solidariedade e reconhecimento do outro como sujeito. A trajetória adotada pelo artigo é iniciada com o trabalho terapêu tico como eixo fundamental do tratamento moral preconizado por Philippe Pinel e repassa as principais experiências de transformação da psiquiatria, tais como a comunidade terapêutica, a psicoterapia institucional, a psiquiatria de setor, a psi quiatria preventiva, a antipsiquiatria e a psiquiatria democrática italiana, e chega aos dias atuais, com destaque para a internacionalmente reconhecida experiência brasileira na qual a dimensão sociocultural alcança um papel inovador.

O francês Philippe Pinel (1745-1826) garantiu que seu nome entrasse para a his tória como o “pai da psiquiatria”. De fato, o nome Pinel ficou tão relacionado a essa área que se tornou expressão genérica para se referir à loucura (“Fulano ficou ‘pinel’...”) e às instituições psiquiátricas (“... e foi internado no ‘pinel’”). Não seria de estranhar essa imediata relação, uma vez que, em vários países, inúmeras insti tuições psiquiátricas levam o seu nome. Pinel foi um grande médico, por sua contribuição pioneira não apenas no campo da psiquiatria, mas também na medicina em geral. É considerado um dos funda dores da clínica médica moderna. Além de médico, filósofo e naturalista, foi depu tado nacional constituinte, reconhecido como político progressista, dedicado às causas da liberdade, igualdade e direitos de cidadania. Se não foi o primeiro livro escrito na psiquiatria, o certo é que o seu Tratado mé dico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania (UFRGS, 2007) delimitou os princípios, os conceitos e as bases terapêuticas dessa ciência incipiente deno minada de alienismo. E não é por outro motivo que Machado de Assis criou uma pérola da literatura universal, O alienista, que, com perspicácia e espírito crítico, revelou os impasses culturais, políticos e epistemológicos com os quais a nova ciência iria se deparar.

Do trabalho terapêutico e da arteterapia à cidadania e à transformação do lugar social da loucura

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 36

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 37 Alienação mental foi o conceito que Pinel adotou para, pela primeira vez, repre sentar o processo de apropriação teórica da medicina sobre uma experiência tão complexa e polissêmica como a loucura. Antes identificada como possessão, demoníaca ou divina, possuidora de inúmeros significados e representações no imaginário social, passaria a ser, a partir de então, acontecimento de natureza ex clusivamente médica. É o que pretendia e reivindicava a medicina. Mas o tratado era médico (e) filosófico, no qual Pinel reconhecia não se tratar de um fenômeno exclusivamente corporal, tão somente médico, no sentido restrito do orgânico. Assim, alienação seria um distúrbio das paixões; um distúrbio da razão. Não a ausência absoluta da razão, como opor tunamente observou Hegel comentando o texto de Pinel, mas uma alteração na razão que ainda existe! O alienado seria aquele que se deixava dominar por paixões artificiais, distantes da realidade objetiva; seus impulsos subjetivos dominavam sua determinação, e ele seria assediado pela fantasia, pelas ilusões. Ora agressivo e perigoso, ora indiferente e irresponsável, estaria invariavelmente alheio aos que o cercam e aos princípios e regras da ordem e da moral. Em que pese a profunda e consistente argumentação de Pinel sobre a aliena ção, esse termo sugeria determinada perda de autocontrole; uma perda da ca pacidade de juízo e discernimento, ou impossibilidade de distinguir o falso do real! Ser alienado, no senso comum, é estar fora da realidade, estar em “outro mundo”. Não é ocasional que muitos hospitais psiquiátricos fossem assim de nominados [como o Asilo de Lunáticos de Blackwell’s Island, em Nova York, onde esteve internada a jornalista Nellie Bly (1864-1922), que produziu con tundente relato de sua experiência nessa instituição]. Fundamentalmente, a noção de alienação passou a significar periculosidade, já que se supõe que uma pessoa com distúrbio da razão seja considerada irracional – despossuída, por tanto, do bem maior que caracteriza a raça humana, que a diferencia dos ani mais irracionais . Entre as contribuições originais de Pinel estava a consolidação de uma proposta terapêutica denominada de tratamento moral, prática adotada por muitos de seus antecessores ou contemporâneos. Foi o caso do reverendo e médico Francis Willis (1718-1807), que tratou a loucura do Rei George III, da Inglaterra. O tratamento moral viria a ser bastante desenvolvido por Pinel ao longo de sua obra e consistia, grosso modo, na imposição de um regime moral, de uma relação de autoridade, com regras e regimes “invariáveis de polícia interior” (em suas pa lavras) a partir de um adequado funcionamento institucional. O asilo de alienados deveria ser uma máquina de cura e uma espécie de instituição pedagógica. Teixeira Brandão (1854-1921), primeiro alienista diretor do Hospício Nacional de Alienados e da Assistência Médico-Legal a Alienados, discípulo de Pinel, con siderava que o diretor do asilo poderia “tirar partido” de todas as circunstâncias existentes como forma de tratamento moral. Entre as possibilidades mais desta cadas do tratamento moral estaria o trabalho terapêutico. Waldemar de Almeida, outro discípulo de Pinel, observava ser o trabalho “um meio terapêutico precio Alienação seria um distúrbio das paixões; um distúrbio da razão. Não a ausência absoluta da razão

A introdução da arte na psiquiatria passou a ter forte significado com Hans Prinzhorn (1886-1933), psiquiatra e crítico de arte alemão, personagem pouco conhecido no Brasil, mas que influenciou fortemente os trabalhos de Osório César e Nise da Silveira. Prinzhorn se tornou um marco porque considerou que a obra de arte dos alienados não era uma arte inferior, primitiva, inacabada ou imperfeita, mas era arte. Osório César (1895-1979) notabilizou-se pela criação da Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, pelo reconhecimento da importância da arte dos alienados e pela dimensão que conseguiu dar a essa questão. Casado com Tarsila do Amaral, convivia com artistas e intelectuais importantes, que participaram da Semana de arte moderna de 22 e da elite intelectual paulista.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 38 so, que, ativando a vida, estimulando a vontade e a energia, consolida a resistên cia cerebral e tende a fazer desaparecer os vestígios do delírio”.

O trabalho terapêutico passou a ter enorme importância na psiquiatria, especial mente a partir da experiência da aldeia de Geel, na Bélgica. A localidade ficou mar cada pela história de Santa Dimpna, uma princesa irlandesa que teria deixado sua terra natal rumo ao interior da Bélgica, fugindo das tentativas de seu pai de casar -se com ela. Quando seu pai, o Rei Damon, descobriu seu paradeiro, ele a perseguiu e a decapitou em plena praça pública. Um alienado que teria assistido à terrível cena de filicídio e à resistência heroica da jovem teria sido imediatamente curado, milagre este que justificou a santificação da princesa pelo Vaticano. A partir dessa história, a aldeia virou ponto de peregrinação em busca da cura milagrosa. Como muitos não eram curados, passavam a viver na aldeia, eram acolhidos por morado res locais e começavam a trabalhar com os aldeãos, fundamentalmente nas ativi dades agrícolas. Quando os alienistas descobriram que os alienados viviam livres com pás e enxadas, ancinhos e machados nas mãos, sem representar nenhum pe rigo para a sociedade, entenderam que se tratava do valor terapêutico do trabalho, especialmente o trabalho agrícola, que reuniria condições particulares, em espaço aberto, em contato com a natureza e outras qualidades. Dessa forma, a experiência viria a ser reorganizada em um modelo que passaria a ser conhecido como “colônias de alienados”. Não é por outra razão que no Brasil existiram, e ainda existem, tantas colônias de alienados, das quais algumas fica ram célebres, como a do Juqueri, que chegou a ter quase 30 mil internos e cujo fundador, o médico psiquiatra Francisco Franco da Rocha, posteriormente passou a dar nome a uma cidade na região metropolitana de São Paulo. Outro exemplo é a colônia de Barbacena1 (aberta à sociedade a partir da visita de Franco Basaglia), eternizada no curta Em nome da razão, de Helvécio Ratton, no livro Nos porões da loucura, de Hiram Firmino, e no livro (Colônia): uma tragédia silenciosa, que seria fonte de referência de outros livros e filmes. A ideia do trabalho terapêutico abriu também a perspectiva da importância do tra balho com arte. Entre nós, o psiquiatra Juliano Moreira (1873-1933) preconizou a introdução da arte nos manicômios brasileiros, observando que desde o início do hospício existiam uma rabeca, uma flauta, uma clarineta e uma requinta “como meio de distração ou talvez de cura” (MOREIRA, 1955, p. 73).

A psicoterapia institucional tinha como prioridade, por assim dizer, o “tratamen to” do hospital, pois entendia-se ser impossível tratar um indivíduo no interior de uma estrutura doentia. Dessa forma, passou-se a considerar que todos os inte grantes do hospital possuíam uma função terapêutica e, logo, todos deveriam par Prinzhorn se tornou um marco porque considerou que a obra de arte dos alienados não era uma arte inferior, primitiva, inacabada ou imperfeita, mas era arte

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 39 Nise da Silveira2 (1905-1999) se tornou conhecida por sua militância política e social e, entre outras ações, notabili zou-se por recusar-se a aplicar eletro choque em um paciente e por rediscutir todos os princípios organicistas e arcaicos da psiquiatria. Entre suas maiores con tribuições está o fato de ter criado o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, em 1952. O museu reúne milhares de obras de ex-internos do antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, sobre as quais são desenvolvidos estudos e pesquisas – portanto, esta se tornou uma iniciativa conhecida e admirada em todo o mundo. Em que pese a inovação de Prinzhorn, a relação da arte com o campo da psiquiatria permaneceu sendo, prioritariamente, aquela oriunda da forma como o trabalho foi introduzido no campo: como atividade de cunho terapêutico. Dessa forma, o prin cípio da arteterapia dominou as iniciativas, mesmo no contexto das experiências de crítica à psiquiatria, como as chamadas reformas psiquiátricas. Alguns exem plos são as comunidades terapêuticas da Inglaterra (que não têm nenhuma relação com as instituições de mesmo nome hoje existentes no Brasil) e a psicoterapia ins titucional francesa. A proposta do coletivo terapêutico, que passou a ser conhecida pela denomina ção psicoterapia institucional, foi elaborada e conduzida fundamentalmente por François Tosquelles (1912-1994), um enfermeiro catalão que posteriormente se formou em medicina. Ao fugir da ditadura de Francisco Franco na Espanha, Tos quelles mudou-se para Saint-Alban, no sul da França, levando consigo seus ideais democráticos e libertários, que seriam aplicados na psiquiatria e se tornariam um dos marcos inovadores desse campo. Entre algumas de suas principais referên cias estavam a “terapêutica ativa” de Hermann Simon (1867-1947) e a psicanáli se. Ele considerava que as instituições, especialmente as asilares, tinham meca nismos interpessoais patológicos e, por isso, deveriam ser tratadas. A introdução de atividades laborais e artísticas seria estratégica nesse sentido, por possibilitar condições de participação e construção coletiva. Dessa forma, surgiu o Clube Te rapêutico Paul Balvet, iniciativa pioneira no campo da reforma psiquiátrica, uma instituição totalmente autônoma, gerida pelos internos com base no trabalho e na criação artística. A ideia de um clube terapêutico dessa natureza representava um enfrentamento ao modelo vertical e totalitário do hospital psiquiátrico. Com o clube, passariam a existir práticas de solidariedade, companheirismo, coparticipação, passeios, ate liês de trabalho e muitas outras formas de troca social. Os ateliês do clube desen volviam atividades de artesanato, pintura, costura, música e teatro, entre outras. Mas o importante, no entanto, não era o aprendizado de uma profissão, e sim o estímulo à organização do espaço interno, da auto-organização psíquica, a partir do exercício de relações com o mundo externo.

Essa experiência contribuiu vigorosamente para o processo atual vivenciado no Brasil e em outros países que apostam e investem em uma transformação dos saberes e das práticas em saúde mental, valorizando a voz de todos os sujeitos envolvidos, reconhecendo e potencializando suas possibilidades e seus protagonismos, e consolidando a importância do trabalho e da arte como estratégias de construção coletiva e social

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 40 ticipar de todos os momentos da vida institucional. Essa experiência contribuiu vigorosamente para o processo atual vivenciado no Brasil e em outros países que apostam e investem em uma transformação dos saberes e das práticas em saúde mental, valorizando a voz de todos os sujeitos envolvidos, reconhecendo e poten cializando suas possibilidades e seus protagonismos, e consolidando a importân cia do trabalho e da arte como estratégias de construção coletiva e social.

Contudo, será na Itália que ocorrerá a proposta mais inovadora com arte no campo da saúde mental e que vai se tornar a maior referência não apenas para nós, bra sileiros, mas também para muitos países europeus e de outras partes do mundo.

Além de Tosquelles, cujo nome entrou para a história como um dos grandes pensa dores da área da saúde mental, vários personagens ilustres tiveram, de uma forma ou de outra, suas trajetórias marcadas por Saint-Alban, como Frantz Fanon, Sal vador Dalí, Jacques Lacan, Jean Oury, Lucien Bonnafè e Felix Gattari.

Logo após chegar a Trieste, no norte da Itália, o psiquiatra Franco Basaglia deu iní cio a um amplo processo de superação do modelo manicomial psiquiátrico, que –além de uma rede de serviços territoriais, como centros de saúde mental 24 horas, espaços de convivência diurna, espaços variados de acolhimento e sociabilidade, residências assistidas ou mesmo totalmente autônomas, associações de usuários e familiares, e associações de voluntários em geral – consistia de cooperativas de trabalho de “usuários” de serviços de saúde mental. Iniciada em 1973, a “La voratori Uniti” (Trabalhadores Unidos) foi a primeira cooperativa de “loucos” da história, que serviria para disparar muitas outras mundo afora. Apesar de ter um estatuto semelhante às demais, com as mesmas regras e objetivos, apre sentava um propósito inovador, que era o de promover a inclusão de pessoas em “desvantagem social” e que, portanto, não teriam as mesmas condições para con correr a uma vaga de trabalho no mercado formal. Posteriormente, tais iniciativas passaram a ser denominadas de “cooperativas sociais”, que gozavam de determi nadas prerrogativas para seu objetivo de inclusão de pessoas em situação de vul nerabilidade social. Em 1987, o Fundo Social da Comunidade Econômica Europeia reconheceu tais cooperativas como “empresas sociais”, tornando-as referências e preconizando-as em todos os países-membros. A transformação da concepção do trabalho a partir daí sofreu uma reviravolta, ao superar a concepção de “trabalho terapêutico” para se tornar trabalho produtor de vidas, de valores e de trocas sociais. Tal transformação vai repercutir no campo da arte-cultura em saúde mental, inicialmente, pela proposição de cooperativas sociais com produções de vídeos, rádios, companhias de teatro e outras iniciativas artísticas. Posteriormente, o investimento específico nas atividades de arte-cul tura como estratégias de diálogo com a sociedade e de provocação de respostas sociais permite a reflexão sobre as práticas de violência e exclusão produzidas pela psiquiatria e suas instituições, inclusive reconhecendo o diagnóstico como

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 41 categoria de acusação, estigma e preconceito. Projetos de natureza social, política e cultural, baseados na intersetorialidade e na intervenção cultural realizadas na cidade, nos espaços culturais, políticos e sociais comuns a todos, passam a fazer parte da agenda do campo da reforma psiquiátrica.

Muitos dos projetos de arte-cultura passaram a se inscrever nessa concepção de economia solidária criativa, na medida em que se configuram como trabalhos cul turais que geram recursos para os participantes, produzem reconhecimento, no sen tido proposto por Axel Honneth3, e promovem direitos, cidadania e emancipação. Forte e explicitamente inspirado na experiência italiana, o processo da reforma psiquiátrica brasileira assumiu os princípios relacionados à defesa dos direitos das pessoas com diagnósticos psiquiátricos, por entender que elas vivenciam ex periências de desvantagem social e que, por tal motivo, necessitam de ações afir mativas, de estratégias de discriminação positiva. E não é por coincidência que o movimento de reforma psiquiátrica e luta antimanicomial se aproxima de outros movimentos sociais de defesa dos segmentos vulnerabilizados; movimentos de defesa dos direitos de grupos étnicos, da sexualidade, do gênero, entre outros. Com o advento do Sistema Único de Saúde (SUS), o conceito de saúde foi ampliado para a concepção de defesa e produção de vida. Não apenas políticas setoriais do campo da saúde, mas muitas outras políticas públicas e sociais passa ram a ser consideradas importantes e fundamentais no estado de saúde da coleti vidade. Uma dessas políticas intersetoriais diz respeito ao campo da cultura e da diversidade cultural, de relevância singular para a área da saúde mental pelo po tencial estratégico de inclusão social, de diálogo, reconhecimento e possibilidade de trocas sociais. A arte-cultura é fundamentalmente uma forma de intercâmbio entre pessoas, entre subjetividades e entre culturas diversas. A dimensão sociocultural da reforma psiquiátrica é fundamental por pretender transformar as relações com a sociedade e, assim, transformar o “lugar social” da loucura, isto é, articular um conjunto de ações que visam transformar a con cepção da loucura no imaginário social, transformando as relações entre socie dade e Participarloucura.deum

coral, de uma companhia de teatro ou dança, um festival de mú sica e tantas outras atividades é uma iniciativa que produz alegria e bem-estar, sentimento de participação, de coletivismo, de integração. São atividades que pro duzem, revelam e transmitem habilidades e aptidões diversas, aumentam a auto estima, a dignidade e a autonomia, mas também contribuem para o conhecimento do outro, com o reconhecimento da alteridade e da diversidade. Como consequência, surge a necessidade também de podermos refletir e recons truir todas as concepções de saúde, não mais como ausência de doença nem abs tratamente como bem-estar físico, psíquico e social, mas como o direito a exercer a diferença e a diversidade, de trabalhar de forma diferente, de relacionar-se com A transformação da concepção do trabalho a partir daí sofreu uma reviravolta, ao superar a concepção de “trabalho terapêutico” para se tornar trabalho produtor de vidas, de valores e de trocas sociais

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 42 a natureza, a terra, de bem viver! A diversidade cultural é uma dimensão do diá logo com a diferença: a aceitação do outro não como prática de tolerância, mas de reciprocidade, de solidariedade, de compreensão da diversidade das identidades individuais e coletivas.

PAULO AMARANTE É pesquisador sênior da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); líder do grupo de pesquisas Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Laps/ CNPq). Especialista em psiquiatria, mestre, doutor e pós-doutor em saúde mental, além de professor de universidades nacionais e estrangeiras. Foi coordenador do projeto Loucos pela diversidade, convênio entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Saúde. É autor dos livros Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil (Fiocruz, 1998), O homem e a serpente – outras histórias para a loucura e a psiquiatria (Fiocruz, 1996), Saúde mental e atenção psicossocial (Fiocruz, 2007), Teoria e crítica em saúde mental – textos selecionados (Zagodoni, 2017) e Loucura e transformação social (Zagodoni, 2021), entre outros. É presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme); membro do Comitê Executivo Brasileiro da International School Franca & Franco Basaglia (OMS/Centro de Studi e Ricerche per la Salute Menta/Trieste/ Itália). Membro do International Institute for Psychiatric Drugs Withdrawal (IIPDW). NOTAS 1. Nota da edição: fundado na cidade mineira em 1903, o Hospital Colônia de Barbacena ficou famoso pelas condições degradantes em que viviam seus internos, muitos dos quais sequer tinham diagnóstico de problemas mentais. Após uma visita à instituição em 1979, o

COMO CITAR ESTE ARTIGO AMARANTE, Paulo. Do trabalho terapêutico e da arteterapia à cidadania e à transformação do lugar social da loucura. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022.

Outro aspecto importante que aprendemos nesse processo é relacionado à concep ção de arte, não apenas como restrita à terapia, mas como arte-cultura estratégica para a vivência estética e cultural do significado da vida. Em outras palavras, como expressão dos sujeitos individuais e coletivos, como conjunto de valores da socie dade. Enfim, as iniciativas de arte-cultura produzidas pelos sujeitos que viveram ou que ainda vivem a experiência do sofrimento, da medicalização, da discrimina ção, do estigma na transformação da sociedade são o instrumento estratégico de produção de novos significados, novos sentidos, ou de um novo imaginário social sobre a loucura, propiciando novas práticas sociais de solidariedade, autonomia e cidadania. Para além de um objetivo terapêutico em si, a arte tem uma potência que transcende seu uso instrumental, que abre perspectivas para a produção de novas subjetividades e sentidos, para novas sociabilidades e significados, para no vas formas de pertencimento social.

HONNETH, A. Luta por reconhecimen to. A gramática moral dos conflitos sociais. 2. ed. São Paulo: Editora 34, MACHADO2009.DE ASSIS, J. M. O alienista 8. ed. São Paulo: Ática, 1981.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 43 psiquiatra italiano Franco Basaglia a comparou a um “campo de concentração nazista” e exigiu seu fechamento imediato, o que só aconteceu alguns anos depois.

2. Para saber mais sobre a vida e a obra da psiquiatra alagoana, visite o site da Ocupação Nise da Silveira Disponível em: da-silveira/itaucultural.org.br/ocupacao/nise-https://www..Acessoem:5jan.2022.

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MOREIRA, J. Notícia histórica sobre a evolução da assistência a aliena dos no Brasil. Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria, edição especial, Rio de Janeiro, p. 65-101, 1955 (publicado originalmente pela Imprensa em 1905, 34 p.).

3. No livro Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais, o filósofo Axel Honneth observa que o nexo existente entre a experiência do reconhecimento e a relação consigo mesmo advém da estrutura intersubjetiva da identidade pessoal, e que, para que as demandas por reconhecimento sejam contempladas, demandas essas que são novasatualizadas,permanentementesãonecessáriaspossibilidadessociais e institucionais (HONNETH, 2009). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, W. Diagnóstico, as remis sões e o tratamento dos dementes precoces. Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, Rio de Janeiro, ano XIII, p. 66-71, 1917. BLY, N. Dez dias num hospício. Editora Fósforo: São Paulo, 2021.

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imagem: Cinco Cetros / Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

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Uma pergunta recorrente quando nos deparamos com a interface entre os cam pos das artes e das neurociências diz respeito às possíveis contribuições das práticas e dos conhecimentos artísticos na prevenção e/ou na reabilitação de quadros neurológicos, principalmente aqueles nos quais se observam a dege neração ou a perda de células neuronais e da capacidade cognitiva. É de grande importância ter em mente que o campo das neurociências é transdisciplinar e relativamente novo em relação a outras ciências e, por isso, muito ainda está sendo descoberto e muitas interfaces com outras áreas, como as artes, ainda estão sendo desbravadas. Se pensarmos especificamente nas ligações entre artes e saúde mental, vemos um cenário pleno de potencialidades para a incor poração da arteterapia nas práticas da medicina, da psicologia e das terapias de prevenção e reabilitação. Ao longo de toda a história, a experiência artística, também denominada experiên cia estética, tem sido vista como capaz de evocar emoções, sensações e pensamen tos que, apesar de causar impactos diferentes em cada pessoa, possuem algumas bases neurobiológicas comuns, como fenômeno neurológico. Portanto, indepen dentemente da experiência subjetiva individual, há um impacto, um efeito comum que se dá no processamento dessa experiência pelo cérebro e que caminha lado a lado com a evolução humana. Uma pesquisa realizada em 2019 pelo grupo da pro fessora e pesquisadora Christianne Strang, da Universidade do Alabama, destaca que, ao falar do uso das artes para a prevenção ou a reabilitação da saúde mental, estamos tratando da construção de um campo de conhecimento rico em possi bilidades1. Hoje, muitos estudos experimentais, com resultados cientificamente

GLÁUCIO ARANHA E ALFRED SHOLL-FRANCO RESUMO A interseção entre as artes e as neurociências aponta para novos e desafiadores horizontes, mas uma questão tem atraído cada vez mais estudiosos e se refere às possíveis contribuições das artes para a prevenção ou a reabilitação de quadros neurológicos. Vemos hoje um cenário pleno de potencialidades para o uso da arte terapia nas práticas da medicina, da psicologia e nas terapias de prevenção e rea bilitação. A relação entre arte e cérebro desperta, ainda, o interesse tanto de cien tistas quanto de artistas na busca de uma convergência que tenha impacto sobre os dois campos. Neste artigo, são apresentados estudos que têm revelado formas de pensar essa convergência para a promoção da melhora na qualidade de vida e na saúde mental. Trata-se de evidências de que tanto a criação quanto a contempla ção artística são benéficas para a saúde mental.

Arte, saúde mental e neurociências: o impacto da experiência artística como terapia preventiva e de reabilitação

Antonio Federico, da Universidade de Siena, e Francesca Federico, da Universida de Sapienza (Roma), dividem os impactos neurofuncionais das artes em três gru pos principais12 O primeiro grupo estaria relacionado com a ativação de regiões ligadas ao julgamento avaliativo, ao processamento da atenção e à recuperação da memória (áreas corticais pré-frontal, parietal e temporal). O segundo grupo estaria

Lukasz Konopka8 destaca que muitos esforços vêm sendo feitos, há décadas9 10, no sentido de localizar áreas cerebrais específicas ou padrões de atividade que pos sam ser dedicados exclusivamente ao fazer artístico. No entanto, esses estudos da virada do ano 2000 apresentaram um problema: a falta de análise sobre a existên cia ou não de uma distinção entre os processos usados para fazer ciência (método científico) e para criar uma obra de arte. Hoje é sabido que a vivência artística (vi sitar um museu ou espaço cultural, assistir a uma peça de teatro ou apresentação de dança, ouvir música etc.) promove a ativação de muitos processos avançados do cérebro humano. Isto é, o processo criativo é resultado da atuação de múlti plas áreas corticais, e não uma ação isolada de alguma área. A experiência artís tica emerge da interação de múltiplos processos cognitivos e afetivos. Pesquisas integrativas por estudos neuropsicológicos e de neuroimagem mostram as redes cerebrais ligadas impactadas por ela11 .

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 46 testados, revelam o imenso potencial da associação entre as práticas artísticas e quadros como o estresse, a ansiedade e a depressão.2 3 4 Em 2018, a pesquisadora Melissa Walter e sua equipe observaram, por meio de exames de ressonância magnética funcional (fMRI, na sigla em inglês), que o uso de imagens visuais com referências positivas a comunidades, propósitos e per tencimentos promoveu a melhora da atividade talâmica de indivíduos com lesão cerebral e estresse pós-traumático5. Esse e outros achados científicos fortalecem a ideia de que o impacto do tratamento por meio de experiências artísticas (estéti cas) pode contribuir significativamente para a promoção de mudanças biológicas na reabilitação psicológica e cognitiva. Nesse sentido, crianças que vivem quadros severos de asma tendem a apresentar graus de estresse que, em alguns casos, po dem afetar a sua saúde mental. Diante disso, os pesquisadores Beebe, Gelfand e Bender6, da National Jewish Health, testaram o efeito de sete sessões semanais de arteterapia, controladas e randomizadas, em 22 crianças com quadro grave de asma. Nesse estudo, descobriram que aquelas que recebiam a intervenção artísti ca tinham um quadro de melhora maior do que o grupo de controle. Foram quan tificados os níveis de ansiedade e qualidade de vida e, mesmo seis meses após o tratamento, o quadro de melhora ainda se mantinha. Os benefícios da convergência entre arte e neurociências são encontrados em ní veis ainda mais específicos. O pesquisador de neuroestética Semir Zeki, da Uni versity College London e expoente nos estudos de neuroestética, conduziu um estudo no qual os participantes foram submetidos a exames cerebrais enquanto viam uma série de imagens de pinturas de grandes artistas7. Os resultados indica ram que, quando as pessoas viam as obras de arte que achavam mais bonitas, o flu xo sanguíneo apresentava um aumento de até 10% nas áreas cerebrais associadas à sensação de prazer e que essa experiência visual equivalia, em termos neurais, à atividade de quando viam um ente querido.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 47 relacionado com uma maior atividade do circuito de recompensa, que está envolvi do com a sensação de geração de prazer e emoções, e na valorização e antecipação da recompensa (regiões corticais, subcorticais e alguns de seus reguladores). Por fim, o terceiro grupo diz respeito à modulação de atenção da atividade cerebral, im pactando sobre o aumento da percepção de certas características, relações, locali zações ou objetos (regiões sensoriais corticais de nível baixo, médio e alto).

Publicações internacionais têm apresentado evidências crescentes na medicina de reabilitação e também no campo das neurociências que sinalizam a melhora de funções cerebrais a partir da intervenção através da arte. Sabe-se, hoje, que a experiência artística produz ondas cerebrais com impactos em ambos os hemis férios cerebrais13. Juliet King e sua equipe da Universidade de Indiana fizeram leituras de eletroencefalograma com dez participantes saudáveis depois que eles desenvolveram atividades com giz pastel, uma moeda e um lápis14. Comparando as atividades (gestos, movimentos) envolvidas com uma intenção criativa e uma sem intenção criativa, descobriram que a atividade cerebral para os gestos de mão me ramente mecânicos apresentava um padrão diferente em relação aos gestos cria tivos feitos com giz pastel, revelando que um movimento com finalidade estética tem, para nosso cérebro, um valor único que o diferencia das ações cotidianas.

Em um estudo-piloto desenvolvido por Kaimal e colegas, foi descoberto que atos criativos aumentaram o fluxo san guíneo no córtex pré-frontal medial, que está relacionado com uma parte do circuito de recompensa no cérebro15. O estudo contou com a participação de 26 indivíduos e fez uso de uma ferramenta de neuroimagem, a espectroscopia funcional no infravermelho próximo (fNIRS na sigla em inglês), enquanto esses participantes coloriam, rabiscavam e desenha vam. A ideia era entender melhor como essas práticas afetam a atividade cerebral. Os resultados mostraram a ativação da área cortical do circuito de recompensa e permitem concluir que a experiência artística pode ser identificada como uma atividade relacionada com o bem-estar e, possivelmente, com a produção de se rotonina, um importante mediador sináptico central ligado à sensação de prazer e satisfação. Vale destacar que tais benefícios não vêm da arte como um conceito abstrato, mas da experiência artística em si, ou seja, da vivência de fruição estéti ca. Trata-se de um tipo de observação diferenciada, que pode estimular a criação de novos caminhos neurais e novas formas de pensar. Na Alemanha, uma equipe de pesquisa liderada pelos neurologistas Anne Bolwerk e Christian Maihofner concluiu que a produção de arte visual impacta sobre a inte ração efetiva entre certas regiões do cérebro promovendo melhorias16. Essa melho ra na função cerebral foi acompanhada por autorrelatos de resiliência psicológica reforçada. O estudo contou com a participação de 28 pessoas aposentadas havia mais de três meses e menos de três anos, que participaram de uma aula na qual criavam pinturas e desenhos. No artigo, publicado na revista PLoS One, os autores revelam que os resultados contribuem para a criação de intervenções preventivas e terapêuticas. Segundo os resultados, o envelhecimento normal parece impactar a atividade intrínseca e a conectividade da rede neural de modo padrão (RMP, ou

Publicações internacionais têm apresentado evidências crescentes na medicina de reabilitação e também no campo das neurociências que sinalizam a melhora de funções cerebrais a partir da intervenção através da arte

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 48 DMN, do inglês default mode network), o que levanta e respalda a possibilidade de que a criação artística contribua para o atraso do declínio das funções cerebrais re lacionado à idade dos participantes. Por fim, perceberam na vivência da experiên cia artística uma melhora significativa na resiliência psicológica e níveis aumenta dos de conectividade funcional no cérebro. Foi possível observar, portanto, nesse estudo de Bolwerk e Maihofner, que o ato de produzir arte contribui para revigorar o cérebro de um modo diferente da experiência de quem apenas contempla um ob jeto artístico. No ato da produção de arte visual, observaram-se tanto o aumento na conectividade funcional no cérebro quanto uma maior ativação do córtex visual. Os pesquisadores concluíram, assim, que a atividade de criação artística pode ajudar a manter a saúde mental na velhice, do mesmo modo que o exercício físico ajuda na manutenção da saúde do corpo. Dessa forma, a prática artística pode atuar como um componente de prevenção, o que colabora para a manutenção da saúde mental. Um estudo publicado em 2014 na revista Neuroimage, por Rebecca Chamberlain e sua equipe, revelou diferenças relevantes na estrutura geral do cérebro de ar tistas e não artistas17. Os autores afirmam que os artistas podem ter um aumento na quantidade de matéria neural nas regiões cerebrais que lidam com percepção visual, navegação espacial e habilidades motoras finas. A pesquisa baseou-se em um estudo comparativo de exames cerebrais e performances de desenho de 21 es tudantes de arte e 23 não artistas. Os resultados mostraram que aqueles que se identificaram como artistas – assim como aqueles que tiveram melhor desempe nho nos testes de desenho – tendiam a ter mais massa cinzenta no lobo parietal, uma região envolvida com orientação espacial e cognição. Segundo os auto res, isso parece indicar que as pessoas que se destacam em uma atividade ar tística, como o desenho, têm estruturas mais desenvolvidas em certas regiões do cérebro que controlam o desempe nho motor fino (memória processual). Contudo, isso não indica que o talento artístico seja uma habilidade inata, mas que foi mais treinado e, por causa disso, torna-se importante constatar que deve ser desenvolvido. Isso nos leva a crer que o treinamento pode ser igualmente usa do para promover a reabilitação em caso de degeneração ou perda de massa, como observado naturalmente durante o envelhecimento e em alguns quadros neuroló gicos degenerativos (por exemplo, na doença de Alzheimer).

Atividades como pintura, escultura, desenho e fotografia podem ser vistas como hobbies relaxantes e gratificantes tanto para quem cria quanto para quem con templa18, além de auxiliar na diminuição dos níveis de estresse, dando ao cérebro uma importante variação nos padrões de atividades habituais e na melhora da cognição19 20 21. A exposição a uma atividade nova ou complexa também promove a formação de novas conexões e a remodelagem daquelas previamente existen tes entre as células cerebrais. Ao desenvolver novas conexões, está sendo posto em ação o processo de plasticidade cerebral ou neuroplasticidade, que é essencial para a recuperação de funções neurais após lesões cerebrais22. Ao criar ou contem plar um objeto artístico, o indivíduo estimula a comunicação entre várias áreas A experiência artística pode ser identificada como uma atividade relacionada com o bem-estar e, possivelmente, com a produção de serotonina, um importante mediador sináptico central ligado à sensação de prazer e satisfação. Vale destacar que tais benefícios não vêm da arte como um conceito abstrato, mas da experiência artística em si, ou seja, da vivência de fruição estética

COMO CITAR ESTE ARTIGO ARANHA, Gláucio; SHOLL-FRANCO, Alfred. Arte, saúde mental e neurociências: o impacto da experiência artística como terapia preventiva e de reabilitação. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022.

GLÁUCIO ARANHA É professor adjunto do Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde (Nutes), coordenador da Rede de Estudos em Neuroeducação (Redeneuro) e membro do Laboratório de Vídeo Educativo (LVE), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Líder do Grupo de Pesquisa em Neurociências Aplicadas à Educação/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Neuroeduc/CNPq) e fundador da Organização Ciências e Cognição, no Rio de Janeiro, além de pesquisador associado do Núcleo de Divulgação Científica e Ensino de Neurociências/Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (NuDCEN/ IBCCF), da UFRJ. É bacharel em direito, mestre em comunicação, imagem e informação e doutor em letras. É membro permanente da Society for Neuroscience (SfN) e da Brazilian Studies Association (Brasa).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 49 do cérebro, aumentando a resiliência psicológica e os padrões de conexão dos circuitos neurais (rede neural). Aliás, já se sabe que o número e a eficiência das conexões sinápticas, que formam essas redes, são aspectos extremamente im portantes para a “inteligência” e para nossas habilidades cognitivas23 .

ALFRED SHOLL-FRANCO É professor associado do IBCCF e coordenador do NuDCEN, ambos da UFRJ, vice-coordenador da Redeneuro e pesquisador associado ao Laboratório de Neurogênese (LN). Líder do Neuroeduc/CNPq e do Grupo de Pesquisa em Neuroimunologia (Neuroimuno)/ CNPq e fundador da Organização Ciências e Cognição, no Rio de Janeiro. É biólogo, neurocientista, mestre e doutor em ciências biológicas (modalidade biofísica). É membro permanente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), da Society for Neuroscience (SfN), da Mind, Brain and Education Society (MBES) e da Brasa.

Concluindo, a relação entre arte e cérebro desperta cada vez mais o interesse tanto de cientistas como de artistas, sendo uma ótima maneira de pensar a convergência entre ambos como uma forma de promoção da melhora na qualidade de vida. Já está comprovado que tanto a criação artística quanto a contemplação artística são benéficas para a saúde mental. Assim, ir a um museu ou espaço cultural, iniciar uma atividade artística ou quaisquer outras formas de produzir ou apreciar arte são atividades que podem colaborar para estimular a saúde mental e promover a reabilitação em quadros que afetem o sistema nervoso.

No ato da produção de arte visual, observaram-se tanto o aumento na conectividade funcional no cérebro quanto uma maior ativação do córtex visual. Os pesquisadores concluíram, assim, que a atividade de criação artística pode ajudar a manter a saúde mental na velhice, do mesmo modo que o exercício físico ajuda na manutenção da saúde do corpo

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12. Idem, ibidem 13. KING, J. L. Cortical activity changes after art making and rote motor movement as measured by EEG. Biomed J Sci&Tech Res., 1, 1-21, 2017.

14. Idem, ibidem 15. KAIMAL, G. et. al., 2016, op. cit

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 51 20. BONINI-ROCHA, A. et al Observação das evidências cognitivas de aprendizagem motora no desempenho de jovens violonistas monitoradas por EEG. Ciências & Cognição, v. 14, n. 1, p. 103-120, mar. 2009. Disponível em: 14view/37revista/index.php/cec/article/http://cienciasecognicao.org/.Acessoem:fev.2022.

21. ARANHA, G. Narrativas transmídia e novos esquemas cognitivos. Ciências & Cognição, v. 20(2), p. 368-376, set. 2015. Disponível em: 14view/1484revista/index.php/cec/article/http://cienciasecognicao.org/.Acessoem:fev.2022.

23. PIETSCHNIG, J. et al. Meta-analysis of associations between human brain volume and intelligence differences: how strong are they and what do they mean? Neurosci Biobehav Rev., 57, p. 411-432, 2015.

22. RIBEIRO SOBRINHO, J. B. Neuroplasticidade e a recuperação da função após lesões cerebrais. Acta Fisiatr, 2(3), p. 27-30, 1995.

imagem: Miss Afeganistão / coleção Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

Arte, cultura e saúde mental: experiências internacionais e projetos inovadores na construção de um novo lugar social para a loucura e a diferença

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Finalmente, apresentamos um panorama internacional de iniciativas e projetos em artes e saúde mental, recorrendo a todos os continentes e destacando algumas experiências, de forma a tratar da multiplicidade e da diversidade desse campo.

EDUARDO TORRE E MARIANA STEFFEN RESUMO

Neste artigo, propomos um olhar explorador para o cenário contemporâneo de ex periências artísticas e socioculturais encontradas nos diversos atravessamentos possíveis entre as artes, a cultura e a saúde mental. Tal como Picasso nos estudos que antecederam a Guernica, fazemos aqui um convite ao leitor para que explore a “obra principal” após este rascunho preliminar – o mundo lá fora. Para tanto, este nosso breve estudo inicia com uma recuperação histórica que situa a aproxima ção entre as artes e a psiquiatria, tendo como fio condutor as transformações dos entendimentos de loucura e normalidade em ambos os campos. Depois, relatamos rapidamente episódios recentes no cenário internacional que consolidam arte e saúde mental como área profícua para pesquisa e proposição de políticas públicas.

Valemo-nos dos recursos digitais para, esperamos, proporcionar uma experiência imersiva por meio de links e vídeos que aproximam o leitor dessas experiências.

INTRODUÇÃO: DAS EXPERIÊNCIAS HISTÓRICAS DA ARTE NA PSIQUIATRIA AO CAMPO ARTÍSTICO-CULTURAL DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO CONTEMPORÂNEO As relações entre arte, cultura e saúde mental vêm se consolidando como vasto campo de estudos e de produções socioculturais ao redor do globo. O cenário con temporâneo é marcado por experiências e projetos inovadores e multifacetados que compõem novas formas de participação social e de produção de subjetivida des em diferentes contextos e linguagens artísticas. Com sua inventividade e ori ginalidade, tais experiências e projetos promovem uma reinvenção do campo da saúde mental e dos modos de cuidado do sofrimento psíquico, ao mesmo tempo que promovem uma ampliação do campo das artes e da cultura. As raízes do movimento de aproximação entre esses dois campos remontam a ex periências pioneiras com arte na psiquiatria na primeira metade do século XX. Por sua vez, com os movimentos de reforma psiquiátrica internacionais no pós-guer ra, surgiu um novo panorama de entendimento sobre as possibilidades expressi vas e criativas das linguagens artístico-culturais em sua relação com o sofrimento psíquico, com o campo da saúde mental e com os direitos humanos de forma mais

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 54 ampla. Esse novo entendimento, que aponta para uma reinvenção do horizonte social sobre loucura e normalidade e para a construção de um novo lugar social para a loucura e a diferença, tem uma função política de resistência ao poder, rom pendo com a visão manicomial excludente em relação ao diferente na sociedade.

Do ponto de vista das artes, esse processo histórico também tem a ver com uma reinvenção das concepções sobre criação estética e cultural, desde o diálogo entre os movimentos artísticos de vanguarda com o campo psiquiátrico, revolucionan do a visão sobre loucura e sobre arte (processo que se desdobrou primeiro com o modernismo e depois na arte contemporânea), até as produções artísticas atuais nas quais o diálogo se expandiu para uma compreensão da arte e da cultura como multiplicidade de produções da sociedade, na defesa da diversidade cultural e na crítica e combate a visões excludentes e colonizatórias.

Entre as experiências pioneiras de arte e cultura na história da psiquiatria, um dos autores mais importantes no início do século XX foi o psiquiatra Hanz Prinzhorn, autor de Expressões da loucura (PRINZHORN, 1984), obra que reúne vasta cole ção europeia de obras de arte de internos de instituições psiquiátricas. Do mesmo modo, a obra de Marcel Réja L’art chez les fous: le dessin, la prose, la poésie (RÉJA, 2013 [1907]) é considerada a primeira com abordagem exclusivamente estética de trabalhos de pacientes psiquiátricos. São autores que trazem uma nova reflexão e um questionamento da compreensão vigente na psiquiatria sobre os limites da arte e da loucura – questão que ronda o século XX, mesmo antes de Jean Dubuffet criar a noção de “arte bruta”1, que transformou as concepções no campo das artes. Na primeira metade do século XX, o surgimento dos movimentos internacionais de vanguarda, como o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo e o surrealismo, produziu um enorme abalo nas concepções de arte, o que influenciou a possibili dade desse entrelaçamento entre a arte e a psiquiatria. Com base nessa nova visão na arte (que por sua vez também culminaria, no Brasil, no modernismo e no movi mento antropofágico), surge um enfoque inovador de estudos sobre as produções artísticas dos pacientes psiquiátricos, que traçam paralelos entre a expressivida de dos loucos, a arte primitiva2 e a arte moderna. Os artistas modernos no início

EXPERIÊNCIAS PIONEIRAS DE ARTE E CULTURA NA HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA A história da loucura na sociedade ocidental é plena de contradições e profun damente reveladora de nossa relação com o desvario e o diferente. Em uma genealogia da história da loucura, a partir de Michel Foucault (FOUCAULT, 1978), é possível compreender como se deu a constituição histórica da noção de loucura como doença mental e seu lugar estratégico na sociedade moderna (AMARANTE et al., 1995 e 2021; AMARANTE; TORRE, 2018). Apesar da hegemonia do paradigma psiquiátrico centrado na noção de doença mental, e com toda a opressão nos manicômios, a história da psiquiatria mostra diversas obras e personagens insólitos e revolucionários, especialmente no século XX, que desafiaram a visão dominante em seu tempo e se tornaram fundamentais para a constituição de um novo olhar para a loucura e as artes em nossa sociedade, o qual rompe com a visão manicomial. E, nesse encontro entre arte e loucura, uma nova possibilidade de compreensão guarda sementes para o futuro.

Tais experiências pioneiras têm profunda relação com a desconstrução de dois dos maiores manicômios da América Latina: o Hospital Psiquiátrico de Juquery e o Hospício do Engenho de Dentro (antigo CPP2 – Centro Psiquiátrico Pedro II, hoje chamado Instituto Nise da Silveira). Elas são marcos históricos da introdu ção dos ateliês de arte no campo psiquiátrico no Brasil, deixando um legado de constituição de acervos museológicos de valor histórico inestimável e inspirando a criação de formas de cuidado e acolhimento da loucura através de múltiplas ex perimentações artísticas.

Ainda no Brasil, muitas obras literárias contam a história da psiquiatria sob ou tro prisma que não o da codificação psiquiátrica, como: O alienista, de Machado de Assis; Cemitério dos vivos e Diário do hospício, de Lima Barreto; e um dos mais contundentes relatos de uma internação psiquiátrica, chamado Hospício é Deus: diário I, da jornalista Maura Lopes Cançado (CANÇADO, 2015 [1965]). Além das obras singulares de Arthur Bispo do Rosario (DANTAS, 2009; HIDALGO, 1996; MORAIS, 2013), Qorpo-Santo (FRAGA, 1988) e Profeta Gentileza (GUELMAN, 2000). Também vale destacar o livro Canto dos malditos (CARRANO BUENO, 2000), de Austregésilo Carrano Bueno, que se tornou um ícone da luta antima nicomial e deu origem ao longa-metragem Bicho de sete cabeças (2001), entre

No Brasil, há diversas experiências históricas da arte na psiquiatria. Uma das mais conhecidas é a da criação da Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery (Elap), pelo psiquiatra e crítico de arte Osório Cesar, que também organizou a primeira exposição de arte de pacientes psiquiátricos fora de um hospício no país e deixou um acervo no hospital do Juquery que deu origem ao Museu de Arte Osório Cesar (CESAR, 1929; ANDRIOLO, 2003; CARVALHO; REILY, 2010; TOMMASI, 2005).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 55 do século XX tinham um “fascínio pelo germe criador emergente, bruto, selvagem” (CARVALHO; REILY, 2010, p. 169). Daí o interesse de artistas como Paul Klee, Joan Miró e W. Kandinsky em colecionar desenhos de crianças; de Pablo Picasso e Henri Matisse em adquirir peças de arte africana; e de André Breton e Max Ernst em conhecer pinturas dos manicômios. Podemos ainda mencionar diversos outros artistas e pensadores que tiveram in fluência no diálogo entre arte e loucura, como Van Gogh, Gustav Klimt, Salvador Dalí, Antonin Artaud e Roberto Sambonet, e, no Brasil, artistas e pensadores como Mário Pedrosa, Lasar Segall, Abraham Palatnik, Flávio de Carvalho, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Em 1948, Dubuffet funda com Breton, em Paris, a Companhia de Arte Bruta e, em 1949, organiza com Michel Thévoz, na famosa Galerie Drouin, uma exposição com obras selecionadas de 60 artistas autodidatas, a qual se torna um marco histórico (DUBUFFET, 1949).

Também é fundamental mencionar a experiência da psiquiatra revolucionária Nise da Silveira e seu trabalho com os pacientes do Centro Psiquiátrico Pedro II, no bairro carioca Engenho de Dentro, que resultou na fundação do Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952. Com a colaboração do crítico Mário Pedrosa e de outros artistas, os “Artistas do Engenho de Dentro”, como ficaram conheci dos Carlos Pertuis, Octávio Ignácio, Fernando Diniz, Adelina Gomes e Emygdio de Barros, entre outros, ganharam reconhecimento internacional (SILVEIRA, 1981 e 1986; MELO, 2005; DIONISIO, 2012; MELLO, 2015; PEDROSA, 1980).

MOVIMENTOS INTER E TRANSNACIONAIS QUE CONSOLIDAM O CAMPO DAS ARTES E SAÚDE MENTAL

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 56 muitas outras obras e experiências (CUNHA, 1986; LIMA, 2009; FERRAZ, 1998; THOMAZONI; FONSECA, 2011; FRAYZE-PEREIRA, 1995; CABAÑAS, 2018).

Todas essas produções, essencialmente pioneiras na desestabilização do olhar social sobre a loucura, são exemplos do cruzamento do campo artístico e do cam po psiquiátrico no Brasil no século XX.

Na Europa, com os processos de reforma psiquiátrica do pós-guerra, diversas experiências também promoveram o diálogo do campo da saúde mental e da psi quiatria com as artes, como o trabalho pioneiro do psiquiatra François Tosquelles no hospital de Saint Alban nos anos 1940 e a Clínica La Borde, fundada em 1953, na qual pacientes e médicos participavam ativamente da gestão (PASSOS, 2009; GUATTARI, 2012), ambos na França. Na Itália, destaca-se o trabalho do psiquia tra Franco Basaglia e de seus colaboradores (DIAS BARROS, 1994; GOULART, 2007; DELL’ACQUA, 2014; AMARANTE, 1996), apenas para citar alguns casos muito conhecidos. O cenário atual tem inúmeras experiências e projetos, em todas as linguagens artísticas e nos mais diversos locais, culturas e contextos, criando uma frente de inovação de grande envergadura, que representa uma nova inflexão histórica, para além das “narrativas da loucura” na história da psiquiatria. Essas experiências artístico-culturais têm, em sua maioria, origem nas histórias e nos processos de reformas psiquiátricas mundo afora, mas não se restringem a isso: ressoam com novas possibilidades criativas e inventivas da arte contemporânea. Atualmente, em todos os continentes existem experiências importantes de arte e cultura em articulação com a saúde mental e os direitos humanos. Apresentaremos algumas delas a seguir.

NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO No campo internacional, o movimento realizado por organismos internacionais para a reunião de evidências e a promoção de novas frentes de pesquisa e finan ciamentos sobre artes e saúde mental indica a posição de destaque que o assunto passou a ocupar na agenda pública global. Em resposta aos efeitos da pandemia e a suas consequentes medidas restritivas, por um lado, e dando andamento a uma trajetória crescente de pesquisas e estímulos à área3, por outro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recentemente estabeleceu importantes parcerias aca dêmicas para aprofundar suas pesquisas no campo das artes e saúde. Menciona remos duas delas. Junto com a NYU Steinhardt4 e o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), a OMS lançou, em 2021, uma iniciativa visando reunir artis tas, pesquisadores e formuladores de políticas públicas trabalhando nas frontei ras entre artes, saúde e cuidado. Em outra frente, a OMS anunciou o primeiro WHO Collaborating Centre for Arts & Health, em colaboração com o Grupo de Psicobiologia do Departamento de Ciência e Saúde Comportamental da University College London. O centro terá como objetivo a realização de pesquisas internacionais sobre como as artes, a cultura e o patrimônio afetam a saúde mental e física e são capazes de construir comunidades mais fortes e de reduzir as desigualdades. Precedente dessas ini

ÁFRICA Na atualidade, as produções no campo das artes e saúde mental no continente africano dividem-se sobretudo em experiências de arteterapia, que tangenciam a temática deste artigo, e em uma perspectiva mais ampla de artes e saúde. Nas possibilidades de encontros entre saberes e expressões artísticas, o campo vem tomando forma na região, com um número crescente de artistas, movimentos e or ganizações que buscam, por meio da arte, expressar questionamentos e reflexões sobre loucura, trauma e sofrimento psíquico, e propor uma nova visão sobre saúde mental. Nesse sentido, em Ruanda destaca-se o Festival Hamwe, lançado em 2019 pela Universidade de Equidade em Saúde Global (Ughe, na sigla em inglês) e que busca reunir artistas de diferentes disciplinas, profissionais da saúde e pesquisa dores para discutir o poder transformador da arte no bem-estar das pessoas. Nas artes visuais, a Organização Afyakili incentiva a autoexpressão por meio da arte para conscientização sobre saúde mental. A saúde mental também está presente no trabalho de artistas como Kelechin Waneri, cujo trabalho perpassa pela intera ção subconsciente entre o homem e seu ambiente, e Teta Chel, que recentemente inaugurou a exposição Crônicas de uma sonhadora sem esperança, na qual aborda e transmite dores, emoções, solidão e outras reflexões. Por fim, cabe mencionar o trabalho de Kunle Adewale, que lidera a principal rede de artes em saúde no conti

Atualmente é possível encontrar experiências inovadoras de arte e cultura em diálogo com o campo da saúde mental e com a loucura em todos os continentes. É interessante demarcar já de partida as diferenças entre as experiências do mode lo ocidental, em larga medida relacionadas à luta e reformas antimanicomiais e a processos de desinstitucionalização5, e o modelo predominante em países orien tais e naqueles de renda mais baixa do Sul Global, cujos entendimentos acerca de loucura e saúde mental são bastante distintos e onde o processo de fechamento de instituições psiquiátricas ou está em gestação ou nem sequer existiu, por ve zes consequência da própria escassez de atendimento psiquiátrico (FAKHOURY; PRIEBE, 2007). Da “prescrição social” no Reino Unido, passando por festivais na Europa e na África e chegando a grupos de Teatro do Oprimido na Índia e no Pa quistão, o que apresentamos a seguir é um mapeamento exploratório de iniciati vas no horizonte das artes e saúde mental6 .

PANORAMA INTERNACIONAL DE EXPERIÊNCIAS E PROJETOS EM ARTES E SAÚDE MENTAL

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 57 ciativas foi o Fórum internacional “Arte, ponte para saúde e o desenvolvimento”, realizado em 2007 pela Organização Pan-Americana de Saúde (Paho, na sigla em inglês) junto com a Rede Latino-Americana de Artes para a Transformação So cial e organizações comunitárias socioculturais. Dentro do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), destaca-se a comu nidade digital de jovens e para jovens organizada no âmbito da Unicef, chamada Vozes da Juventude (Voices of Youth, no original em inglês), que organizou, em 2020, o projeto digital chamado A arte da saúde mental, por meio do qual jovens do mundo todo expressaram suas tristezas e angústias decorrentes da pandemia em poemas, ilustrações e histórias. O resultado, disponível nesta página web, ecoa movimentos e estudos como o de Zarobe e Bungay (2017), que abordam os benefí cios que o engajamento em artes traz principalmente para jovens e adolescentes.

Enraizados na luta antimanicomial, surgiram diversas experiências e movimen tos críticos em diferentes países da América Latina. No Brasil, o projeto pioneiro Loucos pela Diversidade (AMARANTE; LIMA, 2008) criou iniciativas para esti mular a produção artístico-cultural de pessoas em sofrimento psíquico. O proje to Memória da Reforma Psiquiátrica no Brasil criou um acervo de documentação com informações sobre os grupos e projetos de arte e cultura no campo da saúde mental. Entre as inúmeras experiências registradas, elencamos algumas: o Proje to TAM TAM, em Santos (SP); o Coral Cênico Cidadãos Cantantes, em São Paulo (SP); o Museu da Loucura, em Barbacena (MG); o Bloco Doido É Tu, em Fortaleza (CE); o Espaço Aberto ao Tempo (EAT) (WANDERLEY, 2002 e 2021); a banda Harmonia Enlouquece; e o Bloco Carnavalesco e Ponto de Cultura Loucura Subur bana, no Rio de Janeiro. Esse verdadeiro movimento cultural antimanicomial, que dialoga com a sociedade e com as artes em diversos âmbitos, promovendo ampla participação social e protagonismo dos atores sociais do movimento, conta ainda com expressões em filmes, exposições de arte, grupos culturais, teatrais e musi

AMÉRICA DO NORTE

AMÉRICA LATINA E CARIBE

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 58 nente e é também o fundador da Tender Arts Nigeria, organização sem fins lucra tivos que aplica arteterapia e outras abordagens em artes e saúde mental.

Como resultado dos processos de reforma e fechamento das instituições psiquiá tricas, os sistemas de saúde na região, assim como na Europa e na Austrália, adota ram uma abordagem comunitária dos cuidados com a saúde mental. Nos Estados Unidos, é significativa a presença do campo chamado artes em saúde ou artes em medicina7, dedicado a transformar experiências clínicas e de cuidados de saúde em geral através das artes e da cultura. Em 2016, foi fundada a Organização Na cional para Artes em Saúde. Mais recentemente, esse campo deu origem à prática de creative placemaking (“criar lugares criativos”, em uma tradução literal), que pretende desenvolver comunidades sustentáveis, saudáveis e menos desiguais por meio de práticas artísticas e culturais. Realizado entre 2010 e 2020 por meio de uma colaboração entre agências do gover no dos Estados Unidos, fundações e financiadores privados, o Artplace America desenvolveu diversos projetos ao redor dos Estados Unidos que abordavam ques tões de saúde mental como estigma e trauma (HAND; GOLDEN, 2018). Alguns exemplos são o coral Urban Voices8, que trabalha com indivíduos em sofrimento psíquico e/ou em situação de rua em Los Angeles; o projeto A Poem at a Time, que substituiu outdoors comerciais por cartazes com poemas de uma linha no bairro afro-americano mais antigo de Louisville; e o 100 Stone Project, no Alasca, que instalou esculturas desenvolvidas em conjunto com comunidades do estado, es pecialmente pelas mãos daqueles em sofrimento psíquico/emocional, com foco em conscientização e prevenção de suicídios. Há um pequeno documentário so bre esse último, disponível aqui. Nesse mesmo sentido, vale mencionar um projeto realizado pelo Centro de Artes em Medicina da Universidade da Flórida chamado WE-Making, que investigou como práticas artísticas e culturais comunitárias ge ram coesão social e, consequentemente, bem-estar para essas comunidades. Além de um relatório, a iniciativa gerou um repositório virtual com artistas, projetos e organizações atuando nesse marco que reúne bem-estar, comunidade e as artes.

Em Cuba, por exemplo, um dos mais importantes líderes da psiquiatria cubana, Raúl Gil Sanchez, fundou o Centro Comunitario de Salud Mental de Regla e a Bie nal de artes y salud mental, em Havana (OLIVEIRA, 2011). Para Gil Sanchez, “el arte, además de cumplir una función estética, tiene una relación directa con la forma de expresión de las personas”11. Já em Medellín, na Colômbia, destacamos o Centro Psique – Arte e Psicologia, projeto que entrelaça arte e saúde mental e desenvolve laboratórios de experimentação criativa, cursos e publicações. Atualmente, o cen tro disponibiliza oficinas de escrita terapêutica, em que a prática criativa é usada como um canal de autoconhecimento e construção artística. A Argentina, por sua vez, apresenta um campo consolidado e profícuo nas artes e saúde mental. Lá, a Red Argentina de Arte y Salud Mental tem forte incidência em políticas públicas e participou da elaboração de um documento que deve orientar o desenvolvimento de dispositivos de arte na rede comunitária de saúde mental (DIRECCIÓN NACIONAL DE SALUD MENTAL Y ADICCIONES/ARGENTINA, 2018). Em 2021, da trajetória dessa rede se originou a Red Latinoamericana de Arte y Salud Mental, cujo objetivo consiste em democratizar, socializar e cons truir projetos em conjunto. Vale mencionar, ainda, alguns dos grupos culturais ligados à reforma psiquiátrica no país. É o caso da Frente Artistas del Borda, fun dada pelo psicólogo social e artista Alberto Sava (que é também presidente hono rário da Red Argentina de Arte y Salud Mental) e que trabalha com circo, criação de murais, oficina de mímica, oficina de teatro participativo e oficina de desma nicomialização, com quase quatro décadas de “arte, lucha y resistencia” (SAVA, 2008 e 2020).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 59 cais, pinturas, esculturas etc. (AMARANTE; TORRE, 2017; TORRE, 2018; AMA RANTE et al., 2021).

Uma discussão importante que cerca esse campo tem a ver com a importância de que essas práticas em artes e saúde, de modo geral, não se reduzam a uma op ção elitista, disponível para aqueles que já têm abundantes recursos financeiros e acesso a outras formas de tratamento (CLIFT; CAMIC; DAYKIN, 2010). No Bra sil, para além do formato acessível e gratuito de muitas das iniciativas mencio nadas acima, destaca-se também a expansão dessas discussões e práticas para as periferias das cidades, como é o caso da ONG Redes da Maré9. Em 2018, a ONG inaugurou o Espaço Normal, “primeiro espaço de referência sobre drogas e saúde mental em um território de favela” (REDES DA MARÉ, 2022), que busca apoiar pessoas que usam crack, álcool e outras drogas com práticas de redução de da nos e criação de uma rede de cuidado. O espaço oferece diversas atividades para os acolhidos, entre elas a participação em oficinas de cerâmica. A 1a semana de saúde mental na Maré10 foi realizada em 2021, em parceria com o centro de es tudos People’s Palace Projects, vinculado à Queen Mary University of London. No galpão que em breve será a nova sede do Espaço Normal, foi apresentada a performance Becos, abordando temas que afetam a saúde mental dos moradores da Maré, como racismo, violência policial e ansiedade. Ações informativas, como distribuição de cartilhas e sessões do Cineminha no Beco, também fizeram parte das atividades do evento. Encontramos também em outros países latino-americanos processos inovadores.

Um importante exemplo são os grupos de Teatro do Oprimido (TO), metodologia teatral desenvolvida pelo brasileiro Augusto Boal que convida ao pensamento crí tico e à transformação social por meio do teatro12 . O Centro Jana Sanskriti, loca lizado na região da Bengala Ocidental, na Índia, e fundado por Sanjoy Ganguly em 1985, é hoje referência internacional na prática de TO. O centro realiza trabalhos em diferentes problemáticas da vida comunitária, como violência contra a mulher, e recentemente vem amplian do sua atuação direta em saúde mental, em parceria com outros grupos teatrais e com centros de pesquisa locais, como a Fundação para Pesquisa sobre Esqui zofrenia (Scarf, na sigla em inglês). Já o Centro para Diálogo e Mudança Co munitária (CCDC, na sigla em inglês), em Bangalore, na Índia, vem realizando jogos, oficinas e teatros-fórum (uma das técnicas de TO) sobre temas de saúde mental desde 2011. Finalmente, vale citar o Centro de Recursos Interativos (IRC, na sigla em inglês), localizado em Lahore, no Paquistão, que busca promover empoderamento e desenvolvimento social em camadas marginalizadas da população por meio de TO. Em 2008, o IRC lançou o Vasakh international documentary film festival e, em 2011, a Maati TV, iniciativas audiovisuais focadas em direitos humanos, democracia e cultura, que abordam questões como conscientização em saúde mental e ansiedade por meio de vídeos e podcasts As experiências na região não se limitam, contudo, ao teatro. Há iniciativas por parte de artistas multidisciplinares como Val Resh, que aborda em sua arte sua própria relação com questões de saúde mental e seu diagnóstico clínico. A artis ta e ativista é também fundadora da organização The Red Door, cuja proposta é tornar o discurso sobre saúde mental e bem-estar mais inclusivo, utilizando as artes como caminho. Um trabalho importante de ser mencionado é o da organiza ção não governamental Kolkota Sanved, pioneira no campo da Dança Movimento Terapia junto com populações marginalizadas, principalmente com mulheres que sobreviveram ao tráfico sexual e a outras formas de violência de gênero. Por fim, vale destacar a plataforma on-line Mental Health Talks India, um espaço que con vida para a troca de histórias relacionadas à saúde mental, com uma seção espe cialmente dedicada à arte e à poesia. A escassez de recursos financeiros e pessoais para o atendimento em saúde mental contribui para o agravamento do problema. Nesse cenário, experiências artísticas são uma alternativa para o apoio a indivíduos em sofrimento psíquico e seus familiares, na luta contra o preconceito sistemático e pela conscientização da população sobre saúde mental

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 60 ÁSIA Experiências em arte e saúde mental são em certa medida incipientes na Ásia, mas não menos potentes. Configuram importantes espaços de combate ao forte estigma associado à loucura e ao sofrimento psíquico ainda presente na socieda de asiática. A tendência ao preconceito e à discriminação na região se materializa principalmente sob rótulos de perigo e agressividade que levam à exclusão social desses indivíduos (LAUBER; ROSSLER, 2007). A escassez de recursos financei ros e pessoais para o atendimento em saúde mental contribui para o agravamen to do problema. Nesse cenário, experiências artísticas são uma alternativa para o apoio a indivíduos em sofrimento psíquico e seus familiares, na luta contra o pre conceito sistemático e pela conscientização da população sobre saúde mental.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 61 EUROPA Na Europa, temos experiências importantes em diversos países, englobando des de movimentos diretamente relacionados à desconstrução manicomial e à arte realizada por antigos pacientes internados até iniciativas de artistas que buscam abordar experiências traumáticas por meio da arte. A seguir, apresentamos ape nas algumas das experiências no continente, uma breve fotografia de um campo já bastante avançado. Na Itália, cabe destaque ao movimento de psiquiatria democrática liderado por Franco Basaglia na década de 1970, que se tornou mundialmente conhecido não apenas pela desconstrução manicomial, mas também pelas múltiplas estratégias e possibilidades de vida criadas nesse processo, especialmente na experiência na cidade de Trieste, e ainda em outras cidades. Uma reconversão total dos anti gos hospitais psiquiátricos provinciais, que se tornaram parques abertos à cida de, e a criação de cooperativas sociais são importantes legados pós-Basaglia (DE LEONARDIS; MAURI; ROTELLI, 1994; BASAGLIA; TRANCHINA, 1979; GALLIO; GIANNICHEDDA; DE LEONARDIS; MAURI, 1983; VENTURINI, 2016). Em Trieste, o antigo manicômio deu lugar ao Parque de San Giovanni (Parco di San Giovanni) e a diversas cooperativas sociais13, além da Rádio Fragola, do res taurante Il Posto delle Fragole, do Festival lunatico, da companhia teatral Accade mia della Follia e diversas outras iniciativas. Em Milão, destaca-se a Cooperativa Olinda (no antigo hospital psiquiátrico Paolo Pini), que integra laboratório teatral (Teatro La Cucina) e galeria de arte, junto com outras iniciativas e eventos comu nitários. Em Roma, há a cooperativa Il Grande Carro e, em Nápoles, a cooperativa Je So Pazzo. Vale mencionar, ainda, festivais como o Impazzire si Puó e o Festival dei Matti Na Espanha, foi criada a Pinacoteca Psiquiátrica, com exposições de arte de pesso as em situações de sofrimento mental (DESVIAT, 2016). Em Portugal, chamamos a atenção para o Festival internacional de cinema e saúde mental (Ficsam), desde 2014, com mostra competitiva de filmes de diferentes tipos, incluindo ficção/dra ma, documentário, animação e experimental, além de conferências e workshops Há também o Teatro Umano, criado em 1998, projeto que trabalha com teatro, te atro social e teatro comunitário, incluindo performances em espaços públicos com metodologia inovadora, em diferentes contextos e públicos. Busca atuar seguindo a máxima “Quem não exprime, oprime ou deprime”.

No Reino Unido, o campo de artes e saúde mental é bastante disseminado. Em 2017, o grupo parlamentar sobre artes, saúde e bem-estar lançou um relatório reunindo evidências de todo o país, com destaque para a chamada prescrição social, prática de indicar a pacientes a participação em atividades sociais não clínicas, de forma complementar a tratamentos medicalizados mais tradicio nais (CULTURE, HEALTH & WELLBEING ALLIANCE, 2021). As origens do modelo remetem aos anos 1980 e ao movimento de desinstitucionalização (fechamento de hospitais psiquiátricos no país), que foi oficialmente ado tado pelo sistema nacional de saúde britânico (NHS, na sigla em inglês) por volta dos anos 1990, expandindo-se desde então. Nesse modelo, o cuidado se desloca para a comunidade – por isso, a prática também é conhecida como

Ainda no Reino Unido, cabe destacar iniciativas que se afastam da prescrição so cial e promovem novas formas de pensar o fazer artístico nas fronteiras com a saú de mental e o bem-estar. É o caso do festival Mad hearts, realizado por professores da Queen Mary University of London junto com artistas que questionam loucu ra, normalidade e bem-estar em suas obras, e do Festival artístico escocês de saúde mental (SMHAF, na sigla em inglês), fundado em 2007 com o objetivo de explorar como as artes podem prevenir o sofrimento psíquico e combater estigmas, reunin

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 62 community referral. Organizações do terceiro setor ganham espaço na provisão de cuidados primários em uma prática que aborda questões mentais, psicos sociais e socioeconômicas e age sobre “bem-estar comunitário e inclusão so cial” (CHATERJEE et al., 2018). O processo de prescrição passa pelo NHS, em que um profissional da saúde vincula o indivíduo atendido a uma organização de referência. Pode buscar essa forma de apoio uma ampla gama de pacientes, desde aqueles que enfrentam problemas de sofrimento mental, como depres são moderada, até indivíduos considerados vulneráveis ou sob risco (CHA TERJEE et al., 2018). Uma das formas de prescrição social é justamente a que direciona indivíduos a práticas de atividades artísticas e culturais. Diferentemente da arteterapia, as ati vidades de “artes sob prescrição” são facilitadas por artistas e engajam um gru po de pessoas da comunidade, atuando em dois níveis: primeiro, diretamente na melhoria da saúde e do bem-estar dos participantes, e, então, promovendo enga jamento da comunidade e inclusão social (BUNGAY; CLIFT, 2010). A prática de prescrição social de artes é bastante difundida e consolidada no Reino Unido e conta com diferentes organizações, redes e entidades, como a Academia Nacio nal para a Prescrição Social, a Aliança de Cultura, Saúde e Bem-Estar e a própria prefeitura de Londres. Um exemplo de organização artística que atua nesse es quema é a Artlink Central, em Stirling, na Escócia, que oferece programas apli cando artes visuais, músicas e atividades criativas interativas para pessoas com problemas de saúde mental, dificuldades de aprendizagem e demência. Em Glou cestershire, no sudeste inglês, foi realizado um grande estudo sobre essa prática, o qual demonstrou que o programa de artes sob prescrição na região resultou numa queda de 37% em consultas e em um retorno de investimento entre 4 e 11 libras esterlinas para cada libra investi da (SLAY; ELLIS-PETERSEN, 2016). A Artlift, organização que atua na região, oferece atividades que reúnem até 12 pessoas com um artista treinado, bem como cursos voltados para artistas que desejam se aprofundar nessa área. Embora a maior parte dessas iniciativas ainda se concentre no Reino Unido, em 2021 foi instituída a Aliança Global para a Prescrição Social, com o apoio da OMS e de outras fundações internacionais. O objetivo da aliança é promover melhores práticas em prescrição social ao redor do globo, em um contexto de apoio aos Ob jetivos de Desenvolvimento Sustentável, definidos pela ONU.

Diferentemente da arteterapia, as atividades de “artes sob prescrição” são facilitadas por artistas e engajam um grupo de pessoas da comunidade, atuando em dois níveis: primeiro, diretamente na melhoria da saúde e do bem-estar dos participantes, e, então, promovendo engajamento da comunidade e inclusão social

Uma das formas de prescrição social é justamente a que direciona indivíduos a práticas de atividades artísticas e culturais.

CONCLUSÃO: ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL: INOVAÇÃO, CRIATIVIDADE E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Assim como o questionamento do paradigma psiquiátrico manicomial foi fun damental para o nascimento dos movimentos de reforma psiquiátrica, também o questionamento dos cânones e formalismos escolásticos nas artes no século XX, com o modernismo e as vanguardas artísticas, foi fundamental para o surgimen to da arte contemporânea. Mas há algo além: é que tal influência mútua entre o campo psiquiátrico e o campo artístico produziu profundos abalos de mentalidade e, em sua zona de contato, os dois campos alteraram-se mutuamente, mudando a compreensão estética no campo das artes e a compreensão da loucura como doen ça mental no campo psiquiátrico.

OCEANIA Na Austrália, o campo é também amplamente baseado em experiências comunitá rias, como nos demais países anglófonos, e passa atualmente por franca expansão com a consolidação de esforços de pesquisa e de atenção do setor público. O Marco Nacional para Artes e Saúde foi divulgado em 2014, com o objetivo de promover a integração de práticas artísticas e de saúde de forma ampla. Mais recentemente, o foco vem se redirecionando para o campo de artes e saúde mental ou, em uma concepção mais ampla, artes e bem-estar, impulsionado pelo papel das artes dian te dos desafios impostos pela pandemia de covid-19. É exemplo desse movimento o Fórum de artes e bem-estar, organizado pelo Conselho da Austrália para as Artes em novembro de 2021, para discutir como as artes e a criatividade geram efeitos positivos na saúde mental e no bem-estar das pessoas. No evento, foram aborda das algumas experiências já existentes nessa área no país, como Artes para Re cuperação, Resiliência, Trabalho em Equipe e Habilidades da Força de Defesa da Austrália (ADF ARRTS, na sigla em inglês) e a Experiência de Dança para Artistas Maduros (Made, na sigla em inglês). Nas universidades, há um esforço para avançar e consolidar esse campo com a gestação de uma rede de pesquisadores e a expansão de pesquisas multidiscipli nares na área, como as lideradas pela Universidade de Melbourne (Criatividade e bem-estar), pela Universidade de Sydney (Create) e pelo Instituto Black Dog, que vem atuando para a difusão da prática de prescrição de artes no país (DAVIDSON, 2021). O instituto, em conjunto com a Universidade de South Wales, fundou em 2016 o festival The big anxiety [A grande ansiedade], que reúne artistas, cientistas, profissionais da saúde e a comunidade em geral para discutir a atenção à saúde mental no século XXI. Outro exemplo interessante é o The Dax Centre, que tra balha com artistas com problemas de saúde mental, garantindo um espaço seguro para que possam criar e exibir sua arte, e oferece oficinas artísticas para pessoas neurodiversas e com traumas ou questões psicológicas em geral.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 63 do em um mesmo evento excelência artística, justiça social e uma programação diversa com foco na comunidade. Há também experiências importantes de gru pos e organizações teatrais como Fevered Sleep, Ridiculusmus e Contact Thea tre, teatro de Manchester liderado por jovens que, em parceria com a Fundação Wellcome, instituiu um espaço de pesquisa em artes e saúde dentro de suas ins talações para o desenvolvimento de peças e performances teatrais que abordem os desafios para a saúde mental e física de adolescentes e jovens.

3. Por exemplo, o relatório que traz evidências da literatura sobre os impactos da arte no bem-estar (WORLD HEALTH ORGANIZATION – WHO, 2019). Disponível em: abstracts/what-is-the-evidence-euro.who.int/en/publications/https://www.

Nesse sentido, diversas rupturas e deslocamentos vêm sendo possíveis, tais como: ruptura com o discurso técnico-científico e médico-psiquiátrico como detentor da verdade sobre a loucura e crítica ao conceito de doença; ruptura com a noção de arte como restrita à terapêutica, o que permite questionar a sobredetermina ção da arte pela clínica; e ruptura com a concepção de cultura como restrita à arte institucionalizada ou a formalismos escolásticos. E, nesse processo, vivemos uma reinvenção das artes e da relação da sociedade com a diferença e a diversidade, por meio da construção de relações solidárias, inclusivas e criativas, na luta por produção de vida e transformação social.

NOTAS 1. Para mais informações sobre arte bruta, consultar: 28termo3776/art-brutenciclopedia.itaucultural.org.br/https://.Acessoem:jan.2022.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 64 Por sua vez, é no cenário contemporâneo que uma multiplicidade de experiências e estratégias artístico-culturais se torna profundamente inovadora na reinvenção das artes e do cuidado com o sofrimento psíquico. Experiências que promoveram a ressignificação do cuidado com o sofrimento psíquico, como ocorreu no Brasil e na Itália; novos espaços de encontro entre as artes e a saúde mental, como a con solidação da prescrição social no Reino Unido; e as referências de arte e saúde nos Estados Unidos e em países da África demonstraram que as experiências artís tico-culturais são fundamentais. Além de seu potencial para produzir lugares de pertencimento e modos de participação social para os sujeitos, elas atuam contri buindo para uma desmedicalização e uma despatologização dos modos de cuidado e intervenção sobre o sofrimento psíquico e a vulnerabilidade psicossocial.

COMO CITAR ESTE ARTIGO TORRE, Eduardo; STEFFEN, Mariana. Arte, cultura e saúde mental: experiências internacionais e projetos inovadores na construção de um novo lugar social para a loucura e a diferença. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022. Disponível em: Acessomental-experiencias-internacionaisobservatorio/arte-cultura-saude-observatorio-itau-cultural/revista-www.itaucultural.org.br/secoes/https://.em:2maio2022.

EDUARDO TORRE É psicólogo, doutor em saúde pública [Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)], professor e pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/ Ensp), da Fiocruz.

2. Sobre o termo “arte primitiva”, consultar: primitivaitaucultural.org.br/termo3183/arte-https://enciclopedia..Acessoem:7fev.2022.

MARIANA STEFFEN É mestre em políticas públicas [Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)], pesquisadora da People’s Palace Projects (Queen Mary University of London).

7. O site da Universidade da Flórida faz uma interessante discussão sobre as diferentes abordagens para o tema: what-is-arts-in-health/center-for-arts-in-medicine/about/https://arts.ufl.edu/academics/

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 65 em:a-scoping-review-2019improving-health-and-well-being-on-the-role-of-the-arts-in-.Acesso28jan.2022.

11. Em tradução livre, “a arte, além de cumprir uma função estética, tem uma relação direta com a forma de expressão das pessoas”. Trecho de entrevista disponível em: em:mental-2011-20110308/comienza-bienal-arte-salud-www.radiorebelde.cu/noticia/https://.Acesso16fev.2022.

9. A ONG Redes da Maré desenvolve ações buscando a garantia de direitos básicos para os habitantes do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. 10. A 1a semana de saúde mental na Maré foi um desdobramento da pesquisa Construindo pontes. Mais informações sobre essa pesquisa estão disponíveis em: Acessoprojects/building-the-barricades/peoplespalaceprojects.org.uk/en/https://.em:16fev.2022.

12. Para mais detalhes sobre Teatro do Oprimido, ver Boal (2005). Sobre a experiência de TO e saúde mental no Brasil, ver Santos, Joca e Souza (2016).

13. São exemplos a cooperativa La Collina, a cooperativa agrícola San Pantaleone, a histórica cooperativa Lavoratori Uniti e muitas outras. Para mais informações, ver Thomas (2004).

5. Para mais informações e uma análise crítica dos avanços e retrocessos do processo no Reino Unido, ver Fakhoury e Priebe (2007).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARANTE, P. (coord.) et al Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janei ro: Editora Fiocruz, 1995. AMARANTE, P. (org.) et al Loucura e transformação social: autobiografia da reforma psiquiátrica no Brasil. 1. ed. São Paulo: Zagodoni, 2021.

4. A NYU já lidera outra relevante iniciativa junto com a OMS, a International Research Alliance, que reúne pesquisadores de sete universidades para analisar o impacto das artes e de arteterapias em uma escala global (University of Melbourne, Drexel University, Edge Hill University, Lesley University, University of Heidelberg e University of Haifa).

8. Recomendamos este vídeo com a apresentação do coral em um evento do TEDx: MsXrVsgyoutube.com/watch?v=hbL_https://www.

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6. As escolhas dos casos refletem as experiências e curiosidades dos autores, não pretendendo esgotar a miríade de iniciativas nesse campo mundo afora.

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imagem: Cartelas de Botões / coleção Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

PAÍSES NÓRDICOS Referências globais em temas transversais, como bem-estar, inovação em educação e sustentabilidade, os países nórdicos têm se firmado como protagonistas de várias prá ticas unindo artes e saúde/bem-estar. A Finlândia, por exemplo, implementou, ainda em 1990, o programa Artes no Hospital. Iniciativa da Unesco, alicerçada na Declara ção Universal de Direitos Humanos e na Constituição do país, acabou desencadeando um movimento de pessoas de diferentes áreas em prol das artes e do bem-estar. Em 2010 foi lançado o Programa de Bem-Estar de Artes e Cultura, contendo 3 eixos (inclusão, comunidade, atividades cotidianas e ambientes; cuidados sociais e saúde; e bem-estar no trabalho) e 18 ações, cobrindo aspectos regulatórios, administrativos e financeiros; cooperação entre atores; pesquisa e conhecimento; educação e treina mento; e informação. Com base em uma sugestão do relatório final do programa, foi criado, em 2015, um centro nacional de coordenação e comunicação dos impactos das artes no bem-estar, o Taikusydän. Com a atribuição de firmar as artes e a cultura como componentes perenes dos serviços de bem-estar na Finlândia, convertendo práticas de base em abordagens sistêmicas e integradas, o centro participa de redes internacionais, organiza capacitações, produz e divulga conhecimento e promove o desenvolvimento estratégico do setor, atuando por meio de 14 redes regionais.

ANA CARLA FONSECA INTRODUÇÃO As artes – incluindo música, dança, teatro, artes visuais e literatura – são cada vez mais reconhecidas por seu potencial para promover saúde e bem-estar. Entretan to, para que sejam incluídas nos serviços de saúde e cuidados sociais, é preciso haver evidências robustas de sua eficácia, de seus impactos e de seus custos1 Essa declaração, extraída de um relatório de 2016 do Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra, dá o tom da oportunidade e do desafio enfrentado na concepção e na implementação de políticas de saúde envolvendo as artes. Este artigo se propõe a contribuir nesse campo com uma revisão histórica de políticas públicas e progra mas icônicos e análise de eventuais estudos de impacto. As iniciativas se inserem na chamada prescrição social, que preconiza uma abordagem holística de saúde e bem-estar, integrando tratamento clínico e atividades sociais – exercícios, jardi nagem, recreação e arte –, neste caso, “artes sob prescrição”.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 71

Benefícios sociais e econômicos das artes e da cultura na promoção da saúde e do bem-estar – em busca do norte da bússola

Em 2016 foi lançado um programa trienal para ampliar o acesso às artes e à cultura nos serviços de saúde e bem-estar. Já uma ampla reforma dos serviços sociais, de

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 72 saúde e governos regionais, iniciada em 2015 e que previa que municípios, regiões e o terceiro setor tivessem responsabilidade coletiva pela promoção do bem-estar pela cultura, foi cancelada em 2019, após encontrar várias dificuldades.

Já em Aarhus o programa teve ondas de nove semanas, com três encontros sema nais de duas horas cada um, envolvendo 16 participantes. A prefeitura enfatiza que a incorporação da cultura, além de proporcionar bem-estar (preventivamente ou como tratamento), favorece o retorno de pessoas afastadas ao trabalho e ajuda a combater desigualdades sociais, no que tange tanto à prevalência de doenças men tais (que atingem 17% dos que têm Ensino Fundamental e apenas 10% dos forma dos) quanto à participação cultural (pessoas com alto nível de educação têm o do bro de chances de participar de atividades culturais do que as com baixo nível de educação). Com base nesses argumentos, a Câmara Municipal de Aarhus destinou cerca de 5 milhões de reais a um fundo de apoio a iniciativas de cultura e saúde. No conjunto dos municípios, o programa Vitaminas de Cultura divulgou ser custo -efetivo, já que onera os cofres públicos em 12 mil coroas dinamarquesas (cerca de 10 mil reais) por paciente, enquanto cada consulta custa mil coroas, e uma semana de absenteísmo na economia representa a perda de 4 mil coroas para a sociedade.

Na Suécia também prevalecem avaliações pontuais de projetos de curta duração ou em piloto, usualmente por meio de grupos focais. Estes geralmente avalizam benefícios dos programas para o bem-estar mental e o pertencimento, mas são cautelosos em sugerir impactos no longo prazo ou em isolar os efeitos da cultura proporcionados pela realização de atividades em grupo em geral. Como exemplo, estudos qualitativos com profissionais da assistência primária de saúde permi tiram concluir os benefícios em motivação, criação de rotinas, interações sociais e autoestima.

De atuação mais recente, a Dinamarca ganhou notoriedade pela implementação do programa Vitaminas de Cultura (Kulturvitaminer), voltado para pessoas com quadro leve ou moderado de depressão, ansiedade ou estresse. Seu piloto ocor reu de 2016 a 2019, em quatro municípios do país. Em Aalborg, por exemplo, foi realizado com uma média de 2,5 atividades culturais por semana, em ciclos de dez semanas. Parcialmente financiado pelo orçamento da saúde nacional e adminis trado pelo centro de empregos local, foi articulado entre a prefeitura e instituições culturais de referência na cidade, oferecendo atividades de canto; playlists custo mizadas para o aproveitamento consciente da música; leitura em grupos; visita a museu, seguida de discussão sobre a experiência e de oficina de arte; oficinas sobre atuação e o uso da linguagem corporal; genealogia e história da cidade; participa ção em ensaios musicais e introdução aos instrumentos.

Um estudo qualitativo com sete participantes do programa revelou mudanças positivas na saúde mental, conferindo-lhes maior capacidade de vencer desafios e de driblar barreiras impostas pelo sofrimento. Não se localizaram, porém, de monstrações do custo-benefício do projeto, que, segundo Mikael Nilsen, coorde nador do Kulturvitaminer, demandou um investimento do governo dinamarquês equivalente a mais de 4 milhões de reais, dos quais a prefeitura de Aalborg recebeu 1 milhão de reais e desembolsou o mesmo valor.

A análise contemplou mais de 3.500 estudos publicados na literatura acadêmica entre 2000 e 2019, em inglês e russo, utilizando metodologias variadas e cobrindo um vasto espectro de modalidades artísticas. Os impactos foram categorizados em prevenção e promoção e em gestão e tratamento, tendo depois sido subdivididos por temas, como coesão social, redução de desigualdades sociais, desenvolvimen to infantil, aumento da resiliência do cérebro contra degenerações cognitivas e redução do risco de mortalidade prematura. Para os autores, as artes podem bene ficiar a saúde física e mental ao reforçar a resiliência das comunidades, especial mente quando não há tratamento clínico simples. As evidências, porém, têm por limite a escassez de estudos realizados em escala, uma vez que, em sua maior parte, se baseiam em projetos de validação ou repli cação, com amostras pequenas e/ou de curta duração. Além disso, a transposição dos benefícios a contextos regionais distintos deve ser vista com cautela. Quanto aos impactos econômicos, a coordenadora do estudo reconheceu que há poucos, embora com resultados “promissores”. Para a OMS, que ecoa a importância dos investimentos em artes e cultura para a promoção do bem-estar, trata-se de um conjunto de intervenções não invasivas, de baixo risco e que podem usar recursos ou ativos existentes, sendo assim custo-efetivas. Em seu discurso de abertura no lançamento desse relatório, a ministra de Ciência e Cultura da Finlândia, Hanna Kosonen, afirmou que as artes e a cultura se tornaram parte importante da promoção de saúde e bem-estar no país, por meio de políticas transversais e duradouras focadas em direitos culturais, benefícios para a sociedade A quase totalidade dos artigos produzidos ao longo da última década por pesquisadores que integram a Rede Nórdica de Pesquisa em Artes e Saúde analisa os benefícios de projetos artísticos para: educação, capacitação da sociedade para vencer os desafios contemporâneos, redução das desigualdades sociais, melhora nos resultados de tratamentos médicos e atenuação de sintomas físicos e psicológicos, redução do uso de ansiolíticos, analgésicos e soníferos, minimização do isolamento social e da solidão, prevenção e redução de emoções negativas, e ajuda para que as pessoas lidem com sua saúde mental, praticamente inexistindo estudos dedicados a recortes econômicos

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 73 Entretanto, a quase totalidade dos arti gos produzidos ao longo da última dé cada por pesquisadores que integram a Rede Nórdica de Pesquisa em Artes e Saúde analisa os benefícios de projetos artísticos para: educação, capacitação da sociedade para vencer os desafios contemporâneos, redução das desigual dades sociais, melhora nos resultados de tratamentos médicos e atenuação de sintomas físicos e psicológicos, redu ção do uso de ansiolíticos, analgésicos e soníferos, minimização do isolamento social e da solidão, prevenção e redução de emoções negativas, e ajuda para que as pessoas lidem com sua saúde mental, praticamente inexistindo estudos dedi cados a recortes econômicos.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS) Em 2019 a divisão europeia da OMS lançou o mais extenso relatório de estudos enlaçando artes e saúde. A coordenação esteve a cargo da unidade de Insights Cul turais e Comportamentais da instituição, cuja missão é promover a importância da cultura nas políticas públicas de saúde.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 74 e geração de novas oportunidades para os artistas. Embora tenha reconhecido a importância do relatório em validar os benefícios das artes em prevenir doen ças físicas e mentais, promover a saúde e tratar doenças agudas e crônicas, ela não se furtou a ressalvar: “Eu gostaria de ver mais resultados do impacto econômico da inclusão das artes na saúde pública e no bem-estar social, especialmente no que diz respeito a ações preventivas. Em um mundo no qual o dinheiro fala mais alto, isso é muito importante”.

REINO UNIDO O Reino Unido apresenta uma série de levantamentos e análises dos impactos econômicos de investimentos em artes para o bem-estar – ainda que, novamente, de projetos-piloto ou de curta duração. É o caso do relatório encomendado pelo Arts Council England sobre o programa Arts on Prescription, oferecido como complemento ao Acesso Individual a Terapias Psicológicas [Individual Access to Psychological Therapies (IAPT)]. O estudo abrangeu um grupo de 44 participan tes e comparou os resultados aos obtidos por quem só usou IAPT – de baixa ou alta intensidade2 –, adotando como métrica o ano de vida ajustado por qualidade (quality-adjusted life year), estimado em 20 mil libras. O cálculo computou os cus tos totais do projeto, incluindo aluguel de espaços para as reuniões, comunicação e monetização de trabalhos voluntários. Se comparado aos custos do IAPT de baixa intensidade, o projeto mostrou-se custo-efetivo com a recuperação de 37,5% dos participantes. Se consideradas as perdas de produtividade evitadas com a remissão, a taxa cai para 16%. Já compa rado a tratamentos de IAPT de alta intensidade, o projeto é custo-efetivo quando a taxa de recuperação é de 31% dos participantes. Embora alvissareiras, as conclu sões devem ser consideradas com precaução até ser desenvolvido um estudo com amostra maior (confirmando as taxas de recuperação), mais longo (verificando a durabilidade dos efeitos), com números variados de sessões (até definir o número ótimo delas) e com uma gama maior de doenças mentais. Além disso, os custos de muitas terapias psicossociais vêm diminuindo com consultas digitais, o que afeta as análises comparativas. Outros estudos em pequena escala e com abordagem econômica foram realizados desde então, dos quais vale mencionar dois. O primeiro foi uma revisão de 10.270 estudos, dos quais 11 foram analisados quanto ao custo-efetividade de arteterapia em grupo para 533 pessoas com distúrbios não psicóticos de saúde mental. Pes quisadores da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, concluíram que em sete estudos a arteterapia foi associada a melhoras nos sintomas da saúde mental em comparação ao grupo de controle, bem como foi custo-efetiva. Novamente, porém, ressalvaram-se o tamanho da amostra e a necessidade de novos estudos para con firmar os dados. O segundo estudo foi uma avaliação do projeto Dance to Health, que oferece exer cícios de dança como prevenção à queda de idosos. Levantando-se métricas antes e após a participação no projeto, os resultados indicaram que o programa reduziu Para a OMS, que ecoa a importância dos investimentos em artes e cultura para a promoção do bem-estar, trata-se de um conjunto de intervenções não invasivas, de baixo risco e que podem usar recursos ou ativos existentes, sendo assim custo-efetivas

Nos Estados Unidos, vêm ganhando espaço iniciativas de organizações do terceiro setor, como a Culturunners, por meio do programa Healing Arts, e debates reunin

O Reino Unido apresenta uma série de levantamentos e análises dos impactos econômicos de investimentos em artes para o bem-estar – ainda que, novamente, de projetos-piloto ou de curta duração

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 75 as quedas em 58% e representou uma economia potencial, em dois anos, de 196 milhões de libras – 158 milhões delas para o serviço público de saúde. Cabe destaque, ainda, para o HEartS (The Health, Economic and Social Impact of Arts Engagement). Coordenado pelo Center for Performance Science, o progra ma de pesquisa recebeu cerca de 1 milhão de libras de financiamento do Arts and Humanities Research Council e envolveu, entre 2018 e 2021, parceiros de saúde pública (como os serviços nacionais da Inglaterra, da Escócia e da Irlanda do Nor te) e do setor cultural (como os Arts Councils da Inglaterra, de Gales e da Escócia, além de conservatórios, museus, teatros e instituições de dança).

EXPERIÊNCIAS COMPLEMENTARES Na Austrália, o primeiro programa-piloto de prescrição social para doentes men tais foi implementado em Sydney em 2016/2017. Um estudo realizado com 13 dos participantes, em ondas com intervalos de seis meses, indicou melhora significati va da qualidade de vida e saúde, levando os autores a defender seu enquadramento na política de saúde do país e nos modelos de financiamento que favorecem a aten ção às comunidades, especialmente as isoladas. Em recorte distinto, em 2019 foi desenvolvido um estudo qualitativo com crianças de 8 a 14 anos incluindo a estimativa do investimento de retorno social [social re turn on investment (SROI)] gerado por sua participação em um programa de artes circenses. Os resultados indicaram melhoria em quatro áreas do bem-estar infan til: alívio de estresse, elevação da autoestima e aumento da confiança, associados à diminuição de potenciais custos de tratamento de doenças como depressão e an siedade, e maior socialização, associada a menores custos causados por disfunção social, como crime e prisão. A análise de SROI resultou em 7 dólares de retorno para cada dólar investido no programa.

Além de levantar novos dados (por exemplo, a forma de participação cul tural), o estudo realizou uma entre vista nacional tanto com a população em geral quanto segmentando qua tro grupos de pacientes – de doenças mentais, cardiovasculares, respiratórias crônicas ou câncer. Uma inovação foi classificar as atividades culturais em ativas (fazer música, dança, artes, foto grafia, teatro); com participação física (ir a concerto, teatro ou cinema, visitar museus); e domiciliares (ouvir rádio, assistir à TV, ler, visitar uma exposição on-line ). Além disso, o desenho metodológico e a abrangência do questioná rio teriam gerado dados suficientes para permitir relacionar variáveis socioe conômicas, geográficas e étnicas. Os resultados enfatizaram os processos por meio dos quais a participação em artes e cultura promove conexões sociais e contribui para o bem-estar mental, constituindo um subsídio importante para futuras práticas artísticas; entretanto, não foram realizadas estimativas eco nômicas para políticas públicas.

À luz do crescimento galopante do sofrimento mental em escala planetária, especialmente nas gerações mais jovens, o desenvolvimento desse campo de estudos se configura não apenas como oportunidade, mas como premência

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 76 do especialistas em artes e saúde, como os da Grantmakers in the Arts, embora ainda de forma tímida. No que tange a estudos, é raro localizar análises econômi cas dos projetos, que usualmente elencam os benefícios para o bem-estar indivi dual ou social.

MENSAGENS FINAIS

Processos históricos longevos, urdidos ao menos desde a década de 1990, e em consonância com uma visão de cultura e de bem-estar própria explicam o prota gonismo dos países nórdicos e do Reino Unido nos estudos que associam práticas e participações artístico-culturais a benefícios à saúde e ao bem-estar, individu al ou social. Mesmo nesses contextos, porém, identificam-se eventuais desconti nuidades, dificuldades em estabelecer governanças e a necessidade de capacitar profissionais em programas necessa riamente multissetoriais. Diante disso, estudar os impactos de programas de participação cultural na promoção do bem-estar e avaliar o custo-efetividade desses programas se torna ainda mais relevante. Enquanto o primeiro eixo demanda complementa ções e aprofundamentos – como a definição e a implementação de indicadores nas políticas de bem-estar, inclusive por serem estes fundamentais para justifi car prioridades –, o eixo econômico ainda está por se firmar. Em ambos, porém, prevalecem avaliações de projetos pontuais e usualmente de curto prazo, espe cialmente de ordem preventiva. À luz do crescimento galopante do sofrimento mental em escala planetária, espe cialmente nas gerações mais jovens, o desenvolvimento desse campo de estudos se configura não apenas como oportunidade, mas como premência. O Brasil tem muito a se inspirar nos países que inovaram nessa abordagem, para então desen volver metodologias de impacto que enriqueçam o desenho, a implementação e o monitoramento de políticas de bem-estar pautadas pelas artes e pela cultura, ati nentes a nosso modelo de saúde pública e aos nossos desafios sociais.

No Canadá, ganharam destaque nos últimos anos os programas de prescrição so cial envolvendo visitas a museus, como o Museu Real de Ontário e o Museu de Ar tes de Montreal. Neste, é franqueada a entrada de portadores de receitas emitidas por integrantes da Associação de Médicos Francófonos do Canadá, usualmente para pacientes com depressão, Alzheimer ou fragilidades cardiovasculares.

ANA CARLA FONSECA Doutora em arquitetura e urbanismo, com a primeira tese no Brasil sobre cidades criativas, pela Universidade de São Paulo (USP); mestre em administração de empresas (USP); administradora pública pela Fundação Getulio Vargas (FGV/SP); e economista (USP), com MBA pela Fundação Dom Cabral. É consultora e conferencista em cinco línguas, 229 cidades e 32 países. Após ter atuado como executiva de marketing e inovação de multinacionais por dez anos, no Brasil, em Londres e Milão, preside, há 18 anos, a Garimpo de Soluções, empresa pela qual coordenou vários planos estratégicos de economia criativa no Brasil e no exterior, além de ter atuado para a ONU. Autora de livros pioneiros em economia criativa e cidades criativas, foi agraciada com o Prêmio Jabuti em Economia e finalista em Urbanismo. Venceu o Prêmio Claudia 2013 em Negócios e foi apontada pelo jornal El País como uma das oito personalidades brasileiras que impressionam o mundo.

NOTAS 1. PUBLIC HEALTH ENGLAND. Arts for health and wellbeing: an evaluation framework. 2016. 2. No sistema britânico de saúde, a assistência de baixa intensidade é feita por clínicos (psychological wellbeing practitioners) sem formação médica. Usualmente são treinados profissionais da comunidade local com interesse por terapias psicológicas, sólida experiência em cuidados de saúde e formação compatível com a dos níveis acadêmicos do treinamento (de graduação ou pós). Fonte: University of East Anglia

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 77 COMO CITAR ESTE ARTIGO FONSECA; Ana Carla. Benefícios sociais e econômicos das artes e da cultura na promoção da saúde e do bem-estar – em busca do norte da bússola. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022.

imagem: Atenção Veneno / coleção Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

Reflexões sobre o uso da arte e da cultura na prática com populações vulnerabilizadas

CARMEN SANTANA “Pintei e desenhei tanto que no fim já nem sabia mais onde estava. Levei um susto ao ver lá embaixo, nos pés, aquelas terríveis botas de guerra.”1 (Paul Klee)

RESUMO O impacto positivo das artes e da cultura na promoção do bem-estar e da saú de das populações é evidenciado em produções científicas ao redor do mundo. Neste artigo, abordamos em especial o papel da arte no cuidado de pessoas em situação de vulnerabilidade social, apresentando nossa experiência com a po pulação em situação de rua na cidade de São Paulo. Refletimos sobre a contri buição das práticas de atividades significativas para a transformação pessoal e o empoderamento coletivo desse grupo e destacamos o valor da arte e da cultura no enfrentamento das adversidades, na construção de identidades positivas e na participação comunitária. Finalmente, reforçamos o cenário conceitual que considera a cultura e o contexto social como elementos centrais do cuidado e da compreensão do processo saúde-doença. Assim escreveu Paul Klee em seus diários, relatando o intenso processo criativo que viveu durante o serviço militar, na Primeira Guerra Mundial. Para o artista, desenhar e pintar nesse período funcionou como uma espécie de “bunker mental”. A frase, em seu contexto, é um convite à reflexão sobre qual o papel das artes e da cultura em cenários de violência, de carência material, de sofrimento e de extrema vulnerabilidade social. Tenho trabalhado com a prática de atividades artísticas com populações vulne rabilizadas nos últimos 25 anos, especialmente com pessoas em situação de rua, imigrantes ou refugiadas. E não é raro ouvir de gestores públicos comentários como: “Não faz sentido trabalhar com arte com pessoas que passam fome”; “Essas pessoas precisam de um trabalho de verdade, não disso...”; “Não vou investir recur sos em ações culturais quando posso comprar vários pratos de comida com esse dinheiro”; e assim por diante. Em resposta a esses comentários, compartilho o argumento de uma liderança das pessoas em situação de rua, uma mulher indígena que viveu nessa condição por muitos anos ao lado de sua família: “Então o senhor pensa que somos como porco? Que a gente só come e caga?”.

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REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 80 ARTE E SAÚDE MENTAL Desde a Pré-História, o desenho e a pintura têm sido utilizados como forma de co municação, expressão e simbolização do domínio do ser humano sobre a realida de objetiva. Podemos encontrar os primeiros autorretratos nas silhuetas de mão marcadas em negativo por cima das figuras de animais no escuro das cavernas. Imagens remanescentes dos diversos períodos da história da humanidade reve lam a concepção de mundo de cada povo, espelham a cultura e a sociedade de cada época, em uma linguagem que transcende a barreira dos idiomas. A possibilidade de expressão e comunicação viabilizando o encontro e o diálogo em situações cul turais, sociais e de identidade diversas marca a inclusão das artes nos espaços de cuidado no mundo contemporâneo (SANTANA, 2004).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu o impacto das artes e da cultura na promoção do bem-estar e da saúde das populações em uma detalhada revisão de mais de 900 pesquisas científicas (WHO, 2019). No entanto, embora as relações entre arte e saúde mental tenham sido abordadas farta e amplamen te pela literatura, as pesquisas avaliativas da inserção da prática artística em contextos de cuidado de populações vulnerabilizadas são recentes (STEFFEN; TORRE, 2022). No campo da saúde, o papel da arte em contextos terapêuticos geralmente é rela cionado às práticas de arteterapia. No entanto, a associação das palavras “arte” e “terapia” pode ser aplicada em inúmeros contextos e com significados diversos. A multiplicidade criativa de olhares é própria dessa área, mas também pode gerar mal-entendidos, conclusões estereotipadas e julgamentos precipitados. A prática de atividades artísticas em si pode ter valor terapêutico (WHO, 2019), o que não é a mesma coisa que arteterapia. Tanto na arte quanto nos contextos terapêuticos, exercitamos a capacidade huma na de perceber, representar, dimensionar e redimensionar as relações do sujeito com o mundo e consigo mesmo. A arte promove esses processos pois faz com que lidemos com figuras, configurações, espaços e movimentos. Já na arteterapia, a pessoa realiza todos esses aspectos terapêuticos dentro de um contexto clínico, na presença de um arteterapeuta, especialista que escuta, observa e ajuda a compreen der os conteúdos que emergem no processo. Para tratar aqui dos benefícios da arte e da cultura para populações vulnerabiliza das, utilizaremos o termo “terapia pela arte” para descrever práticas de atividades artísticas com a intencionalidade de promover saúde. Por ser mais abrangente, esse termo também pode ser aplicado quando a arte se insere em um contexto de cuidado desenvolvido por quem não é especialista. Essa intencionalidade na prá tica artística pode envolver a participação em ateliês de artes plásticas, de dança, de música, de poesia e de teatro, entre outras formas de manifestações artísticas. A terapia pela arte aborda o benefício de uma produção significativa para o sujeito, assumindo a preocupação estética um segundo plano. Pode ser definida como uma terapia de ação, na qual os sujeitos exploram suas questões e revelam suas expe riências por meio de um fazer artístico. O foco da comunicação entre os sujeitos é não verbal e está no desenvolvimento do processo criativo.

O transtorno mental é um fator que contribui para que a pessoa viva em situação de rua. Por outro lado, as condições de vida nas ruas colaboram para o apareci mento da doença mental. E a dificuldade de acessar os serviços de saúde piora am bas as condições, causando ainda mais sofrimento para as pessoas com transtorno mental severo em situação de rua. Ao se afirmar que a condição dessas pessoas é um problema de saúde pública, é fundamental que a saúde seja compreendida de maneira ampliada, a partir da vi são dos direitos humanos. Essa perspectiva é caracterizada por dois elementos fundamentais: a intersetorialidade (que abrange a arte e a cultura na produção da saúde) e a participação social (que reforça a importância do envolvimento dos su jeitos nas questões de seu interesse). A implementação de ações para aliviar o sofrimento e abrir os horizontes da popu lação em situação de rua é uma prioridade no cenário atual, mas sua efetivação não ocorrerá sem o desenvolvimento de estratégias institucionais que permitam a in tegração e a colaboração entre os diversos setores da sociedade. Ações inovadoras são necessárias para uma compreensão abrangente do tema e para o enfrentamento

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 81 ARTE E CULTURA NA PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

A presença de pessoas vivendo nas ruas é um drama social nas cidades brasilei ras, e que foi bastante agravado pela pandemia de covid-19. O censo da população de rua realizado na cidade de São Paulo em 2021 estimou que 31.884 pessoas es tão nessa situação, sendo 19.209 sem abrigo, vivendo nas calçadas, e 12.675 abri gadas em centros de acolhida da capital. Em 2019, haviam sido contadas 24.344 pessoas em situação de rua, o que significa que houve um aumento de 31% em dois anos. Desde a primeira edição do censo, realizada nos anos 2000, a popula ção em situação de rua tem crescido em São Paulo, tanto em números absolutos quanto em porcentuais relacionados ao crescimento da população da cidade em geral. Em 2000, a população da cidade era de 10.434.252 habitantes, com uma proporção de 83 pessoas em situação de rua para cada 100 mil. Em 2021, a cidade contava com 10.396.372 habitantes, sendo 257 pessoas em situação de rua para cada 100 mil (SMADS, 2021). Em pesquisas anteriores, informações dos próprios entrevistados revelaram que o abuso de substâncias ilícitas é mais grave entre aqueles que dormem nas calçadas, ou seja, que não utilizam os centros de acolhida: 84% das pessoas que vivem nas ruas e 54% das que vivem nesses centros declararam fazer uso de ál cool e/ou de outras drogas. A substância mais utilizada nos dois grupos é o álcool (70% e 45%, respectivamente). Alguns fazem uso somente de drogas ilícitas, outros combinam as diversas substâncias psicoativas. Na rua, entre os adultos com até 30 anos, 77% usam alguma droga ilícita além do álcool. Essa proporção vai diminuindo conforme aumenta a idade, chegando a 24% entre os que têm 50 anos ou mais (FIPE-SMADS, 2015). No censo de 2009, em São Paulo, 74% des sa população declararam fazer uso de álcool e/ou de outras drogas. Em oficina realizada em 2010, equipes da saúde atuantes no centro da capital paulista esti maram que cerca de 90% das pessoas atendidas apresentavam algum transtorno mental e/ou dependência química.

Problemas sociais complexos exigem ações intersetoriais, diálogo e participação ativa das pessoas envolvidas. Oferecer cuidado vai além de oferecer abrigo, alter nativa para a sobrevivência econômica ou comida. Essas pessoas procuram, como quaisquer outras, um sentido para a sua existência, um senso de pertencimento e uma identidade saudável. A integração da arte e da cultura nesse contexto fornece um canal privilegiado de comunicação, expressão e transformação social. Em si tuações de sofrimento intenso, muitas vezes, falar não ajuda. A arte facilita esses processos pois trabalha com metáforas e imagens, capazes de alcançar a experiên cia humana em situações que a palavra não consegue expressar.

O trabalho no acolhimento psicossocial das pessoas em situação de rua não é ta refa fácil. Relacionamentos humanos são essenciais nesse processo. Por terem vi vido repetidas situações de violência em todos os âmbitos, essas pessoas frequen temente têm dificuldade em confiar em alguém e em estabelecer relacionamentos pessoais livres de ansiedade. Essa condição resulta em comportamentos ambiva lentes em relação à ajuda oferecida, o que muitas vezes significa, para os serviços socioassistenciais, uma recusa do atendimento. Na prática, a situação de opressão costuma ser reiterada por diversos serviços, es pecialmente o de segurança pública. Como consequência, o comportamento das pessoas em situação de rua observado pelos profissionais responsáveis pelo aco lhimento psicossocial envolve apatia, desinteresse em obter ajuda, negacionismo de situações de doença, indisponibilidade para colaborar, desvalorização de si mesmo, preguiça, intolerância, frieza ou distanciamento, e incapacidade de tomar decisões ou de realizar boas escolhas. Tamanha desesperança gera nesses profis sionais sentimentos constantes de impotência, de que o seu trabalho muitas vezes consiste na prática de “enxugar gelo”. Para enfrentar esse problema, desde 2010, o projeto de extensão universitária A cor da rua, promovido pela Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (EPE/Unifesp), dialoga com trabalhadores e com pessoas em situação de rua usando a arte como estratégia de cuidado e de promoção de saúde mental.2 No campo da saúde mental, a terapia pela arte tem sido capaz de ampliar a moti vação dos usuários para o tratamento de transtornos mentais e de dependência química, além de ser um espaço social de apoio. Também observamos melhora nas capacidades de comunicação, expressão e simbolização dos participantes dos ateliês. A construção de uma linguagem pessoal é uma importante estratégia de intercâmbio. Os ateliês são desenvolvidos em espaços já frequentados pelas pessoas em situa ção de rua, como centros de acolhida, praças públicas e viadutos. Participam pes soas de diferentes idades, nacionalidades e gêneros, cujas produções compõem um acervo de cerca de 1.500 obras selecionadas.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 82 dos problemas. O trabalho intersetorial carece de experiências e de estudos quanto à sua implantação no âmbito da organização de serviços: é preciso identificar a lacuna existente entre as políticas públicas, o conhecimento e a sua aplicação.

“É o único momento em que eu posso estar em contato comigo mesma. Então você vai começando a crescer.”

“Eu cresci na minha autoestima. Eu acho que essa atividade dá uma concepção melhor de você própria porque você cria muito. É que, quanto mais você fica com coisas positivas, mais positiva a sua cabeça vai ficando. Esse crescimento me per mite me sentir mais eu.”

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“Eu acho que o ser humano precisa muito se conhecer e se valorizar, para poder compartilhar o mundo com outras pessoas, para aceitar seus defeitos e os defeitos de outras pessoas.”

DEPOIMENTOS DOS PARTICIPANTES DAS ATIVIDADES DE TERAPIA PELA ARTE SOBRE O SIGNIFICADO DA PRÁTICA

“A arte e a cultura me permitem expressar e falar o que eu sinto. Então aliviam o sofrimento. Também fazem com que as pessoas conheçam nossa situação, tudo que passamos. Então é muito importante mesmo.”

“Você sabe que vai produzir alguma coisa. Você não imaginava que podia fazer tanta coisa. Conforme você faz, vai descobrindo dotes e qualidades que nem sabia.”

“Eu acho que talvez seja um pouco interior, ajuda a esgotar interiormente. Ao se libertar de alguma coisa, você faz o que quiser.”

Exposição Em que rua você mora? Rua como único destino... Rua como casa de morar, realizada no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq/HCFMUSP) em dezembro de 2016. Fotos: Carmen Santana

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para as pessoas em situação de rua, oportunidades de engajamento em atividades socialmente valorizadas e produtivas são limitadas, o que reforça a pobreza e a marginalização. O envolvimento em atividades artísticas e culturais estruturadas fornece um ambiente social seguro, de acolhimento e de liberdade, sem ameaças e sem julgamentos, onde as pessoas se expressam por meio de suas produções en quanto desenvolvem uma atitude positiva em relação a si mesmas e afirmam seus potenciais para a sociedade.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 84 A METÁFORA, A PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS E A SAÚDE MENTAL DE POPULAÇÕES VULNERABILIZADAS

A arte nos apresenta alternativas de identidade do ser porque se baseia na capaci dade existencial que a imaginação tem de transcender a realidade literal. A sensa ção de liberdade descrita por muitos participantes dos ateliês pode ser em razão do desenvolvimento ou da melhora das competências de representação e de atri buição de significados desenvolvidas na prática da arte.

No cenário da atenção psicossocial em São Paulo, a arte constitui um importante instrumento na construção do vínculo entre a população em situação de rua, os profissionais da rede pública e a comunidade. A utilização de técnicas expressivas permite um olhar abrangente e integral para as potencialidades do sujeito. A expe riência de trabalhar com práticas de arte e cultura com pessoas em situação de rua confirma a relevância dessas formas de produção de conhecimento – incluindo o autoconhecimento – para o enfrentamento das situações vividas nesse contexto. Os resultados dessas práticas demonstram como participar de atividades signifi cativas contribui para a transformação pessoal e o empoderamento desse grupo social. Destacamos, ainda, o valor da arte e da cultura no enfrentamento das ad versidades, na construção de identidades positivas e na participação comunitária.

O equilíbrio psicológico depende da experiência subjetiva de compreender o que está acontecendo no entorno e o que se pode fazer para interagir (THOMASHOFF, 2002). Quando alguém sofre uma violência, o prejuízo em sua saúde mental au menta à medida que não se consegue dar um sentido, um significado para a expe riência sofrida.

A metáfora pode ser definida como um modo básico de funcionamento por meio do qual se projetam padrões de um domínio de experiências em outro domínio, de um tipo diferente, com a intenção de estruturá-lo (FIUMARA, 1995). É pela capacida de metafórica que se desenvolve um senso de sentido e de coerência entre inúmeras experiências. Nesse processo, molda-se um olhar mais compreensivo em relação ao mundo, o olhar de um sujeito capaz de se espelhar e de estabelecer conexões entre as diversas experiências vividas. Arte e cultura são aliadas na luta contra a falta de sentido e a desesperança experimentadas por populações vulnerabilizadas. São, por tanto, ferramentas importantes para o enfrentamento de estigmas e traumas sociais.

A literatura internacional aponta que a arte pode oferecer oportunidades para as pessoas em situação de rua se expressarem e comunicarem seus traumas, sendo uma ferramenta para a sua comunicação com a equipe socioassistencial e para o desenvolvimento de forças pessoais e de uma identidade saudável.

NOTAS 1. KLEE, Paul. Diários. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 2. Para saber mais sobre o projeto A cor da rua, ver: Acolhimento psicossocial das pessoas em situação de rua diante da pandemia de covid-19. Disponível em: 10channel=ACordaRuawatch?v=-VKN8-HiZng&t=13s&ab_https://www.youtube.com/.Acessoem:jun.2022.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 85 A realização de práticas culturais e artísticas com populações vulnerabilizadas nos permite operacionalizar o cuidado nas dimensões biopsicossocial. Essas práticas compõem um cenário conceitual que considera a cultura e o contexto social como elementos centrais do cuidado e da compreensão do processo saúde-doença. COMO CITAR ESTE ARTIGO SANTANA, Carmen. Reflexões sobre o uso da arte e da cultura na prática com populações vulnerabilizada. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022. CARMEN SANTANA é médica psiquiatra e arteterapeuta formada pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), com mestrado em políticas e serviços de saúde mental pela Universidade Nova de Lisboa (UNL) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e doutorado em ciências pela Universidade de São Paulo (USP). Foi professora associada visitante do programa de pós-graduação do Departamento de Saúde Coletiva da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (EPE/Unifesp). Há mais de 25 anos, desenvolve pesquisa e projetos participativos voltados para a saúde mental de grupos vulneráveis, especialmente de pessoas em situação de rua, imigrantes ou refugiadas. Atualmente, é coordenadora do projeto A cor da rua e das disciplinas teórico-práticas “Arte, cultura e saúde mental: práticas de arteterapia” e “Saúde mental de grupos vulneráveis” no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq/HCFMUSP).

FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PESQUI SAS ECONÔMICAS; SECRETARIA MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA E DESENVOLVIMENTO SOCIAL (FI PE-SMADS). Pesquisa censitária da população em situação de rua. São Paulo: Universidade de São Paulo, KLEE2015.,Paul. Diários. São Paulo: Martins Fontes, 1990. SANTANA, Carmen Lúcia Albuquer que de. Avaliação de resultados em arteterapia. 2004. Tese (Doutorado em ciências) – Faculdade de Me dicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. Não publicada. SANTANA, C. L. A. de; ROSA, A. Saú de mental das pessoas em situação de rua: conceitos e práticas para profissionais da assistência social. São Paulo: Epidaurus Medicina e Arte, 2016. Disponível em:https://bit.ly/3nXQSNNem:.Acesso13jun.2022.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FIUMARA, Gemma. The metaphoric process: connections between language and life. 1st ed. London: Routledge, 1995.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 86 SECRETARIA MUNICIPAL DE ASSIS TÊNCIA E DESENVOLVIMENTO SOCIAL (SMADS). Pesquisa censi tária da população em situação de rua. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, 2021. STEFFEN, Mariana; TORRE, Eduardo. Arte, cultura e saúde mental: expe riências internacionais e projetos inovadores na construção de um novo lugar social para a loucura e a diferença. Revista Observató rio Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022. Disponível em: Acessotal-experiencias-internacionaisvatorio/arte-cultura-saude-menvatorio-itau-cultural/revista-obseritaucultural.org.br/secoes/obserhttps://www..em:15maio2022.

THOMASHOFF, H. Antistigma – why and how? In: Human art project, Novartis, Germany, 2002. WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). What is the evidence on the role of the arts in improving health and well-being? A scoping review. Denmark: World Health Organization, Regional Office for Europe, 2019. Disponível 14books/NBK553773/https://www.ncbi.nlm.nih.gov/em:.Acessoem:maio2022.

imagem: Capacho / coleção Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

LULA WANDERLEY nasceu em Pernambuco, Recife. Colaborou em jornais e revistas como artista gráfico e participou de exposições como poeta visual. Simultaneamente, estudou Medicina e formou-se em Psiquiatria pela Universidade Federal de Pernambuco. Trabalhou com Nise da Silveira na Casa das Palmeiras e no Museu de Imagens do Inconsciente. Contribuiu com Lygia Clark na transposição do objeto relacional para uma proposta psicoterápica com esquizofrênicos em hospitais psiquiátricos. Com amigos, criou o Espaço Aberto ao Tempo –uma das primeiras manifestações de uma psiquiatria contemporânea no Rio de Janeiro –, onde trabalha atualmente, desenvolvendo pesquisas no tratamento das psicoses com a arte como instrumento. No campo das artes plásticas, faz pesquisas com a imagem digital e realiza pequenos filmes.

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Ana Paula Guljor entrevista Lula Wanderley A editora do número 31 da Revista Ob servatório, a psiquiatra Ana Paula Gul jor, entrevista o artista e também psi quiatra Lula Wanderley. Na conversa, ele narra sua trajetória e relaciona arte e cultura com saúde mental, trazen do figuras importantes para o cenário, como Nise da Silveira, Maria Leontina e Lygia Clark. Confira: COMO CITAR ESTA ENTREVISTA WANDERLEY, Lula. Entrevista concedida a Ana Paula Guljor. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022. ANA PAULA GULJOR é psiquiatra, mestre e doutora em saúde pública (Fiocruz). Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz-RJ; vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme); membro da Comissão Permanente dos Direitos da População em Privação de Liberdade do Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Acesse o conteúdo da entrevista pelo QR Code ou pelo link: lula-wanderley.entrevista-trajetoria-revista-observatorio/itau-cultural/secoes/observatorio-itaucultural.org.br/https://www.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 89

Apresentação: Intersecções entre artes, saúde mental e neurociência TASHA GOLDEN Acesse o conteúdo pelo QR Code ou pelo link: estar-propoe-debates.saude-mental-e-bem-seminario-cultura-agenda-cultural/org.br/secoes/www.itaucultural.https:// Acesse o conteúdo pelo QR Code ou pelo link: df86618b6a.com/727523671/https://vimeo.

A primeira mesa, Como a cultura nos aju da a cuidar da nossa mente?, conta com a psiquiatra Ana Paula Guljor, editora da revista, e o curador Ricardo Resende, mediados por Eduardo Saron – diretor do Itaú Cultural. A segunda, Qualidade de vida por meio da neurociência e da arte traz Ana Paula Guljor como mediadora e os pesquisadores Tasha Golden e Alfred Sholl-Franco como convidados. Por fim, Benefícios socioeconômicos da arte e da cultura agrega a pesquisadora Mariana W. Steffen e a médica Carmen Lúcia Albuquerque de Santana. Confira as mesas cli cando no QR Code ou no link do seminário.

Seminário Cultura, saúde mental e bem-estar Em sua apresentação, a professora Tasha Golden fala das intersecções entre artes, saúde mental e neurociência, trazendo sua experiência como diretora de pes quisa do International Arts + Mind Lab, da Universidade Johns Hopkins.

imagem: Sandálias e peneiras / coleção Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

Ensaio artístico

Acesse o conteúdo do ensaio pelo QR Code ou pelo link:

Arthur Bispo do Rosario criou um arquivo de objetos e nomes, um inventário da atividade criadora humana, uma história narrada através dos objetos e das pala vras que coletou, ganhou, trocou, produziu, selecionou e organizou, especialmente entre os anos de 1967 e 1989, durante sua internação em um dos mais terríveis dis positivos modernos de segregação e racismo: o manicômio. “Uma obra que levou 1.986 anos para ser escrita, documentada e fotografada”, sua missão espiritual, en dereçada ao Fim do Mundo. A obra de Arthur Bispo do Rosario não é apenas uma criação, ela é também criadora. Sua materialização produziu efeitos que irradiam no tempo e no espaço. Não pode ser assimilada com as ferramentas da história da arte ocidental; ao contrário, ela desafia o próprio conceito de arte moderna e abre caminhos na contemporaneidade, instaurando um novo campo de possibilidades estéticas e éticas. Fala-se de um “efeito Bispo” na arte brasileira desde a sua primeira exposição individual, Registros de minha passagem pela Terra, organizada pelo crítico e curador Frederico Morais na Escola de Artes Visuais do Parque Lage em 1989, ano de falecimento do artista. Tal efeito reverbera no museu que ganha seu nome – situado nesse território marcado pela violência institucionalizada –, cuja res ponsabilidade vai além da desafiadora missão de guardar, preservar e expor esse acervo tão importante, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Ar tístico Nacional (Iphan) como patrimônio nacional em 2018. Simultaneamente uma instituição pública de arte e um equipamento de saúde mental, vinculado ao Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, o Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea realiza, desde 2013, programas mobilizados pela luta antimanicomial e inspirados na vida e obra de Arthur Bispo do Rosario, para tecer coletivamente novas práticas nos campos da arte, da educação e da saúde, e para não deixar cair no esquecimento o contexto manicomial em que seus tra balhos foram criados.

(Entrevista de Hugo Denizart com Arthur Bispo do Rosario, 1982)

POR BISPO DO ROSARIO HD: E os hospitais psiquiátricos, o que é que vai acontecer?

bispo-rosario.ensaio-artistico-revista-observatorio-revista-observatorio/itau-cultural/secoes/observatorio-itaucultural.org.br/https://www.

BR: Mas não pode rapaz, mas não pode. Tá mais do que visto, a minha estadia aqui junto com meu povo vai, será vida, vida para todos os tempos e glória, mais nada.

BR: Isso vai acabar, esse negócio de HD:doença...Nãovai haver mais nenhuma doença? BR: Não, miséria... Nada, nada... HD: Nem miséria?... BR: Nada, então, nada. HD: E tristeza?

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 91

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #31 ARTE, CULTURA E SAÚDE MENTAL 92 A mostra Eu vim – Bispo do Rosario: aparição, impregnação e impacto, aberta em 18 de maio de 2022, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, traz para o Itaú Cultu ral (IC) 400 peças dessa obra única, que produz efeitos imensuráveis no campo da saúde mental e na cena artística brasileira. DIANA KOLKER CARNEIRO DA CUNHA é educadora, historiadora e curadora. Mestra em estudos contemporâneos das artes [Universidade Federal Fluminense (UFF)], com a dissertação (E)ventos e (in)ventos: convergências e divergências entre as práticas artísticas, educativas e curatoriais na Bienal do Mercosul. Especialista em pedagogia da arte [Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)] e graduada em história [Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)]. Desde 2017, é curadora pedagógica do Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea, onde coordena o projeto pedagógico da instituição e orienta o programa de residências artísticas Casa B e o Atelier Gaia, além de compor a curadoria dos programas expositivos. Fundadora do Coletivo E, concebeu e realizou diversas ações educativas em contextos artísticos e museais, além de coordenar cursos e programas de formação de mediadores culturais, professores e artistas em colaboração com diversas instituições, como Bienal do Mercosul, Instituto Mesa, Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói, Fundação Iberê Camargo e Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS). RICARDO RESENDE, curador de exposições e museus de arte, é mestre em história da arte pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), com carreira centrada na área museológica. Trabalha desde 1988 em instituições museológicas, como o Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), o Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, a Fundação Nacional de Artes (Funarte), no Rio de Janeiro, e o Centro Cultural São Paulo (CCSP), tendo desempenhado as funções de arte-educador, produtor de exposições, museógrafo, curador-assistente, diretor-geral e curador. Foi curador do Projeto Leonilson de 1996 a 2017. É conselheiro curatorial do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), em São Paulo, e conselheiro do Icom Brasil. É curador do Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, desde 2014.

imagem: Asdrúbal de Moraes / coleção Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea

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