Em nome do povo em nome da democracia

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Em nome do povo, em nome da democracia Isadora Stentzler Saio da 14ª Delegacia de Polícia (DP) em São Paulo, onde dois manifestantes foram presos, e caminho com um grupo para o terminal Pinheiros. Somos seis ou sete. Não faz frio. Mas também não faz calor. É um clima atípico ao clima de inverno. No caminho até o ponto, nada de futilidades. Discursos politizados e indignação com a atual gestão governamental pautavam os assuntos. Risos também. Afinal, ninguém é de ferro. Quebra-quebra? Não. Não havia vândalos ali. Grafites, sim. Mais alguns minutos e chegamos. O ônibus não tarda. “Não temos grana”, revelamos. Sem problemas. Passamos por baixo da catraca e sentamos nos bancos ao fundo. O ônibus acelera, e para. De novo. De novo. E de novo... mas é somente quando ele abre as portas na avenida Morumbi, que descemos. O destino é o Ocupa Alckmin, Palácio dos Manifestantes nº 4.666. Era noite de 23 de agosto. Naquela sexta-feira, cerca de 300 pessoas participaram de um ato contra a revista “Veja, fascista, sensacionalista!” em frente a editora Abril. Depois de duas prisões e as horas avançadas, não tive para onde ir – afinal, não sou de São Paulo - e fui convidada para me juntar ao grupo rumo ao Ocupa. Se olhasse só de fora, veria apenas lonas. Negras, amarelas e azuis. E para muitos dos “burgueses” que moram no Morumbi, o local não passa disso. Um amontoado de lonas negras, amarelas e azuis. Mas para os inúmeros jovens que já circularam pelo local desde o primeiro dia, o Ocupa é um símbolo de resistência. “Já fazem três semanas que estamos aqui”, me contou Laila Manuelle, 24. “E não vamos sair tão cedo.” Cada conversa, só reforçou a ideia de que o Palácio dos Manifestantes não está lá para enfeiar o bairro nobre, mas para embelezar a democracia. O que vale também para os grafites. Nos primeiros dias, a fachada do Palácio dos Bandeirantes, nº 4.500, foi decorada com palavras de ordem. “Idiotice é escrever seu nome, agora, escrever uma mensagem, aí sim!”, pontuou um dos ocupantes que vira e mexe usava os sprays para retocar alguma frase nas lonas. Mas naquele dia, as paredes amarelas do Palácio já estavam repintadas e, segundo um manifestante, com algumas câmeras a mais. O que encontrei ali é o fruto de uma manifestação do dia 2 de agosto. Na época, um grupo saiu do Masp, na avenida Paulista, em direção ao portão 2 do Palácio, onde ficaram. Não sem motivo. Pelo contrário. A indignação popular era tamanha, que materializou em barracas as reivindicações contra a gestão do atual governador Geraldo Alckmin. A arbitrariedade da polícia militar, que fez lembrar episódios como a desocupação do Pinheirinho e o massacre do Carandiru, ainda entalados na garganta de muita gente, serviram para frisar o descaso do governador. Além dos “R$ 777,5 milhões roubados do contribuinte”, lembrados numa faixa na entrada no local.


Aquilo então que começou com algumas barracas, ganhou uma estrutura de cabos de aço, arames, cordas e paus e se transformou no Palácio dos Manifestantes. Rotina? Não. Luxo? Não. Desordem? Também não. O Ocupa funciona assim. Para entrar, é preciso “deixar de lado o ego”, pois o sistema é horizontal. Ao menos era isso que indicava um quadro de giz em cima de duas grandes caixas de isopor logo após a “lona” de entrada. Lar Ocupa Um por todos e todos por um. É clichê, mas é assim que funciona. No sábado, logo após o almoço de arroz e macarrão com pouco molho, chegou a hora da limpeza. Ninguém fugiu. Um guardou a sacola de comida, dois buscaram cerca de 10 garrafas de água a 300 metros do Ocupa, outros lavaram a louça, e eu e mais dois varremos e dobramos as cobertas. “Aqui a gente entende o que realmente tem valor”, começa a me explicar Laila. “Por exemplo, água é importante? É, água é importante. Comida é importante? É, comida é importante. Saneamento básico é importante? É, saneamento básico é muito importante.Comunicação é importante? É, comunicação é importante. Agora, carro é importante? Não, carro não é importante.” Para se manter no local, diferente do que publicou a revista Época na matéria “Inimigos da democracia” na edição de 12 de agosto, o grupo conta com doações que nada tem a ver com R$ 70 por dia ou carne e cerveja à noite, indicados pelo semanário. “Se fosse assim eu nem ia mais pra casa!”, brinca o estudante de arquitetura Henrique Rosse, 20. Coincidentemente, naquele dia (24), duas caixas de bananas foram doadas. Mas não só isso. Iogurte, energético, torradinhas, pão, pão doce, suco e frios também chegaram. “Na maioria das vezes não sabemos quem mandou. Mas aceitamos”, me contaram. Entre os utensílios que já receberam estão o gerador de energia, modem roteador para internet wi-fi, cobertores, fogão, barracas e livros – o grupo possui uma “biblioteca livre” com clássicos da literatura brasileira para as horas vagas. Porém, nem sempre eles ganham tudo. “As vezes a gente racha com a galera e compra algo”. “Mas e se alguém não pode ajudar?”, pergunto. “Aí não ajuda, a gente não obriga ninguém”, me respondeu Laila. Sempre que precisam de alguma coisa, eles também postam na página oficial do Ocupa Alckmin no Facebook – mesmo nome – as necessidades. E agradecem de forma geral, já que em algumas ocasiões os ajudadores ficam no anonimato. Ocupam porque sim


A fim de permanecer no local, alguns manifestantes contrariaram chefes e familiares. Uma das moças com quem conversei disse que quando o Ocupa começou ela estava terminando o período de estágio numa empresa. Mas parou de ir. Quem sabe porque os futuros patrões não entenderiam. Além do emprego, ela disse que a relação com a mãe não ficou das melhores. “A gente se via pouco mesmo”, frisou. Para não voltar seguidamente para casa, ela, assim como outros manifestantes, iam até um shopping próximo para tomar banho, e depois voltar ao Ocupa. Mas isso não é regra. A mãe do estudante de design gráfico Pedro Henrique, 25, por exemplo, participou das lutas da ditadura contra o poderio militar. Ela entende e apóia a atitude do filho como sendo a vez dele de reivindicar pela mudança no país. É por isso que permanecer no Ocupa não é vandalismo, nem vadiagem. Mesmo que alguns carros da zona nobre passem xingando os manifestantes, inclusive a mim que estava com o grupo naquele dia, ainda há pessoas que entendem o significado da permanência e compartilham dos ideais dos ocupantes. Mas até quando ficarão por lá? Nem eles sabem. Se o medidor para isso for a vontade de lutar, estes guerreiros da democracia não arredam o pé tão cedo. Não porque eles não têm para onde ir, mas porque em alguma rua há alguém que não tem - vítima do vandalismo de um Estado que não dá acesso as condições básicas para viver. Sendo assim, eles permanecerão, afim de pregar que: “Entre a burguesia que oprime e a favela que é oprimida, nós defendemos a igualdade de direitos sociais” – Palácio dos Manifestantes, número 4.666.

Publicado originalmente em: http://www.brasildefato.com.br/node/25749


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