A mulher da quinta feira de outubro

Page 1

A mulher da quinta-feira de outubro A ideia do meu primeiro santo dia de férias foi unir meus bloquinhos e observálos. Não que eu os fosse catalogar – longe de mim tal organização –, mas apenas queria os vê-lo juntos e deixar por conta dos meus devaneios as histórias rasuradas de página a página. Então, abro um deles. Folha para cá e folha para lá, encontro esse relato, ajustado um pouco para compartilhar aqui: “Eu vi. Eu vi em São Paulo, às 14h59 de uma quinta-feira de outubro, enquanto esperava na Avenida Rio Branco o ônibus que me levaria ao bairro do Limão, uma senhora, ou moça, ou jovem, não sei. O corpo não era de senhora, mas os braços cansados sim. De longe, parecia que a mulher não pesava mais que dois baldes cheios de batatas. Também não era alta. Tinha o tamanho daqueles medianos freezers antigos. Usava um vestido branco, soltinho, e uma jaqueta daquelas que só cobrem o corpo no intenso frio do inverno sulino. O cabelo era ruivo, pintado, mas um ruivo desbotado, já meio alaranjado. De longe dava para ver que não se tratava de um cabelo sedoso, hidratado e com ‘brilho natural’, como prometem as propagandas de shampoo. Era um cabelo seco. Seco e embolado. O tempo presenteou aquelas madeixas com dreads – penteado que não foi feito por um hippie sentado na praça. Meus olhos acompanhavam seu balançar. Dois passinhos, um pulo. Dois passinhos, um pulo. Toda vez que pousava no solo, apoiando seus pés no asfalto, tinha a impressão que o impacto quebraria seus finos tornozelos – quiçá do tamanho de suas coxas, punhos e antebraços. Logo, minha visão é cortada. 'Tsiiiiiiiiiiiiiiii', parou um ônibus em minha frente. Não era o do meu destino, apenas mais um 'Av. Rio Branco' que deixava e carregava pessoas naquele lugar. Assim como o transporte chegou, saiu, e é nesse momento que vi uma das cenas que me arrancou lágrimas. Antes de continuar preciso esclarecer uma coisa: não sou dessas pessoas cheias de mimimi e que choram por qualquer coisa. Na verdade, a última vez que me recordo de lágrimas escorrendo pelo meu rosto fora quando ativistas resgataram os beagles usados para testes no Instituto Royal. Uma reação normal para mim que sou ligada às causas animais e ambientais. #SejaVegetariano #AcabemComOsRodeios#ParemComOsTestes EmAnimais... essas coisas. E a imagem que vi me causou mais ou menos o mesmo sentimento forte. Do outro lado da rua, a mulher já não seguia no seu ballet de dois passinhos e um pulo, mas estava agachada. Deitada. Debruçando-se na calçada quente e deixando os dreads desbotados varrerem o chão. Já não agia como uma humana, agia como um animal. A responsável pela posição era a sede. A moça lambia a água que escorria de uma vala. Mesmo longe, dava para ver sua língua se movendo para levar à boca algumas gotas do líquido que já não estava na composição pura. A cor denunciava isso. Aos poucos e sem querer,


meus olhos umedeceram. Em pensamento, tentei me colocar no lugar dela. Impossível. Jamais passei necessidade tal. E fiquei assim, atônita, observando aquela senhora, ou moça, ou jovem, a saciar sua sede. 'Tsiiiiiiiiiiiiiiii', parou outro ônibus e me cortou a visão. Agora é o meu, rumo ao bairro do Limão. Subi no carro, olhos minguados e molhados. Disfarcei. Sequei as lágrimas e então, pela janela, dei a última olhada naquela senhora, ou moça, ou jovem, que eu bem sei, já não vive a vida dela, mas sim, uma vida roubada pelas drogas. Pena que não descobri seu nome, história e como parou naquela vala a beber água. Quem sabe já era uma prática comum. Quem sabe um copo com água seria incomum. Não sei. Só sei o que vi em São Paulo, às 14h59 de uma quinta-feira de outubro.”


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.