Bdsm

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Sexo nas correntes Isadora Stentzler “Acho que estou em estado de choque. Meu inconsciente desapareceu, ficou mudo ou simplesmente caiu fulminado. Estou paralisada. Posso observar e absorver, mas não consigo articular meus sentimentos porque estou em estado de choque. Qual é a reação apropriada à descoberta de que um amante em potencial é um completo tarado sadista ou masoquista? Medo... sim... esse parece ser o sentimento preponderante. Reconheço agora. Mas, por incrível que pareça, não tenho medo dele. Não acho que ele vá me machucar, bem, não sem meu consentimento. Muitas perguntas confundem minha cabeça. Por quê? Como? Quando? Com que frequência? Quem? Vou até a cama e passo as mãos nas colunas ricamente entalhadas. São muito resistentes, e o trabalho é impressionante. - Diga alguma coisa – ordena Christian, a voz enganosamente macia. - Você faz isso com as pessoas ou elas fazem isso com você? Ele sorri, achando graça ou aliviado. - As pessoas? – Ele pisca duas vezes ao considerar a resposta. – Faço isso com mulheres que querem que eu faça. Não entendo. - Se você tem voluntárias dispostas, porque estou aqui? - Porque eu quero muito, muito fazer isso com você. - Ah. – Engulo em seco. Por quê? Vou até o fundo da sala, bato de leve no banco estofado da altura da minha cintura e corro os dedos pelo couro. Ele gosta de machucar mulheres. A ideia me deprime. - Você é sádico? - Sou dominador.” (50 tons de cinza, pg 92.) O trecho acima faz parte da trilogia “50 tons”, eleita a melhor ficção de 2012 pela National Book Foundation. A obra adulta da britânica Erika Leonard James, que vendeu 67 milhões de exemplares em 47 países e 2,5 milhões só no Brasil, traz o romance da estudante Anastasia Steele e o bilionário Christian Grey numa trama sadomasoquista. Mas a história é ficção. Na vida real, pesquisa feita com 860 usuárias italianas do C-Date, site mundial de relacionamento voltado para encontros casuais (casual dating), revelou que sete em cada dez mulheres teriam interesse em experiências sadomasoquistas. De acordo com os resultados, o aumento é consequência das crescentes publicações sobre o tema. Já no Brasil os números são menores. Apenas 63 brasileiros de um grupo de 2.122 entrevistados consideram o sadomasoquismo como algo para experimentar no mínimo uma vez na vida. Nos primeiros lugares ficaram o sexo selvagem seguido do sexo a três. O sadomasoquismo, como indica o especialista em sexualidade Paulo Tessarioli, é a complementação do sadismo (prazer em ver ou fazer alguém sofrer) com masoquismo (prazer em sofrer). “Para que um ocorra, os dois tem que estar de acordo, uma vez que não existe um sádico sem um masoquista”, explica. O envolvimento das personagens com o sadomasoquismo na trilogia, prende os leitores que passam a fantasiar e, em alguns casos, desejar o estilo de relacionamento na vida delas. No entanto, Tessarioli classifica o livro apenas como ficção, inclusive no que diz respeito ao sadomasoquismo. “Aquilo é muito mais


fantasia. Quem lê fica estimulado e até maravilhado com algumas coisas que encontra na literatura, mas é pura fantasia.” Fora dos livros, o sadomasoquismo é encontrado com força no universo BDSM. A sigla que indica Bondage (técnica de amarrar a pessoa para ato sexual) e Disciplina, Dominação e Submissão, Sadismo e Masoquismo surgiu em meados dos anos 1990 quando eventos e publicações do tema também passaram a ser mais frequentes. A base para esse comportamento esta nas siglas SSC: São, Seguro e Consensual. São da sanidade do que se faz; Seguro pela proteção e cuidados com a outra pessoa; e Consensual pela certeza de que o que se faz dará prazer aos envolvidos. Dentro desse universo a única regra fixa é a presença do masoquista e do sádico que definem os papeis de submisso e dominador, o resto é organizado de acordo com cada praticante. Assim, o casal que adota o estilo cria as regras da relação ditando até que ponto o masoquista consegue chegar. Entram aqui as preferências e fantasias sexuais requeridas e vetadas de cada parte. Alguns casais optam por assinar contratos e outros definem verbalmente podendo eleger uma safeword (palavra de segurança), que também pode ser um gesto usado pelo masoquista quando ele atingiu o limite. Chicote “Nós usamos chicotes, algemas, coleiras, plugs genitais, vibradores, velas, palmatórias, vendas, prendedores de mamilos, mordaças e gelo”, conta o casal carioca que não quis se identificar. “Só não aceito cortes e fisting [introdução da mão nas cavidades anal e genital]”, completa a submissa A.P., 43 anos. A.P. e V.P., 28, vivem há um ano juntos e se conheceram pela internet. Embora as idades sejam diferentes, A. P. diz que o mais importante nessa relação é o quanto a submissa está disposta a se submeter ao dono. Embora dessa forma o assunto assuste, sadomasoquismo não pode ser definido como uma sessão de tortura, já que quem pratica o faz em consenso do que vai acontecer. Tessarioli explica: “Na dupla SM [sádico e masoquista], o masoquista sabe que ele quer aquilo. Ele sente prazer com a dor e com aquela situação. Inclusive o fato de ter consenso entre as partes é que torna a prática prazerosa.” O sexólogo destaca que em geral os praticantes de sadomasoquismo são pessoas de um nível sociocultural e econômico maior, assim compondo um público diferenciado e preparado para tal relacionamento. Mas o BDSM não é limitado apenas ao sexo. Podem existir casos em que o dominador faça exigências ao submisso a qualquer hora e que, necessariamente, não estão ligadas ao ato sexual. “Uma vez eu fui ao shopping plugada na genital e com prendedores no mamilo”, exemplifica A.P. A submissa também atende outros pedidos do dono como dormir aos seus pés, usar coleira e tomar café da manhã em uma tigela na posição canina. “Não existe dor, isso tudo é superado”, enfatiza. Uma vez praticante do BDSM, nada impede que o indivíduo, seja sádico ou masoquista, abandone a prática. SubSafira, 25 anos, que também não quer se identificar, largou o BDSM por aproximados seis meses para entrar num relacionamento baunilha (sem práticas sadomasoquistas). Em minúcias, ela descreve a primeira relação BDSM: “foi no apartamento em que ele levava suas submissas. Tinha ganchos em todas as paredes do apartamento. Em um dos quartos ele guardava todo material: cordas, pregadores, plugs, roupas etc. Ele já tinha um ritual pré-montado, em que colocava a coleira em mim, me despia, depois me levava pra sala e eu ajudava a despi-lo. Depois começávamos.” SuBSafira praticou BDSM por cerca de um ano e teve quatro parceiros. Mas foi com o último que ela provou o sadomasoquismo de forma mais intensa. Aumentando a resistência a cada


sessão (prática sexual), ela conta que chegou a fazer um espartilho com agulhas nas costas. “Eu desmaiei de medo neste dia”, lembra. “Fiquei cerca de 30 segundos desacordada.” Em outros encontros era submetida a cortes nas nádegas, seios e barriga, além de sessões de spanking com cinta, mão, chicote e ralador. Algumas cicatrizes duraram mais de 15 dias para sair, mas como seu dominador era médico, ela acreditava no cuidado. Hoje SubSafira não pratica mais. Segundo ela, seu lado “mulherzinha falou mais alto” e ela passou a desejar algo a mais. “Queria carinho. Uma companhia para dormir, sair, viajar, e que às vezes fizesse amor no lugar de sexo. Alguém que me tocasse com ternura, que se importasse e se preocupasse.” No entanto, a saída do BDSM não mudou a opinião sobre o comportamento. “Na época me ajudou muito, agora me conheço mais e eu estou mais sexualmente madura”, afirma. “Não me arrependo.” Como Tessarioli compara, o sadomasoquismo é semelhante a uma cena que se torna boa para os praticantes à medida as regras do casal são seguidas. On-line Na internet, o site www.senhorverdugo.com disponibiliza aos internautas informações seguras a respeito do BDSM. Atualizado pelo Senhor Verdugo, 54 anos, como é conhecido, a página foi criada em 16 de fevereiro de 2007 e traz de guia de motéis para realização de fetiches, até experiências pessoais, literaturas, filmes e materiais didáticos para iniciantes. Desde que foi criado, o portal já recebeu mais de 2 milhões de visitantes e chegou aos 8 mil acessos em um dia. O site informativo também aponta outra página sadomasoquista. O www.fetlife.com é uma rede social voltada aos interesses BDSM. No portal em inglês, que funciona como um Facebook, os usuários criam seus perfis informando além de dados pessoais, os fetiches e posição no BDSM (submissão ou dominação). A maioria prefere usar nicks ou pseudônimos. Com filtros de pesquisa, a rede social fornece contatos de qualquer cidade e abre espaço para grupos de discussões e divulgação de eventos BDSM. O empresário D. A., 41 anos, utiliza a página para organizar encontros sadomasoquistas mensalmente. Dominador há 20 anos, há dois prepara eventos BDSM com a sócia Kamahleoa pelo grupo Dungeon Fetish Fest (DFF). O grupo é fechado, por isso para participar de um evento é necessário ser convidado ou ter o perfil aprovado. “Se é a primeira vez de alguém, pedimos referência e fazemos uma investigação para saber como é índole dele”, explica. Nos encontros não são permitidos uso de drogas nem álcool associado com as práticas BDSM. “Se alguém abusa é convidado a se retirar”. A ideia, segundo D. A., é criar um ambiente para receber as pessoas como amigos e dar a elas a sensação de bem estar. Cerca de 50 a 100 pessoas participam das reuniões feitas pelo DFF que variam de coffe break em local arejado a festas dress code, quando os praticantes vão fantasiados de acordo com seus fetiches. Outros grupos que também organizam festas em São Paulo são o clube Dominna e o Projeto Luxúria. Normal é o prazer De acordo com o psicanalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Carlos Augusto M. Remor, a prática se intensifica dependendo do nível de masoquismo que um dos pares apresenta. O mais leve seria o Fantasma Masoquista, quando o indivíduo apresenta uma leve inclinação para o prazer na dor. Mas mesmo que a pessoa demonstre predisposição a isto, não significa que ela sentirá prazer em uma relação sadomasoquista, uma vez que o nível mais leve pode ser representado pela aceitação às pequenas frustrações ou acidentes pequenos do dia a dia. O segundo nível é a Condição Masoquista, neste a presença da dor se torna mais constante, mas ainda não atingiu o nível máximo. O terceiro e último é o Masoquista, e este sim compreenderia o masoquismo pleno, aquele em que o indivíduo não é capaz de ter outro tipo de


relação se não aquela que lhe cause dor. A classificação abre margem para que a prática seja encontrada em diversas pessoas nos diferentes níveis. “Se pensarmos em pessoas que gostam de dar tapas, ou receber tapas, de xingar ou de serem xingadas durante atividades sexuais, já estamos falando de um comportamento sádico ou masoquista”, explicou o psicólogo Diego Henrique Viviani, do Instituto Paulista de Sexualidade. Não adeptos ao BDSM tendem a tratar como anormais os praticantes e a tarjá-los como estranhos. Mas de acordo com o psicanalista que se baseia em Freud, a atitude é equivocada. “Não existe uma normalidade, pois normal é aquilo que nos satisfaz. E a maneira de cada um transar é uma escolha própria. Só cada pessoa pode dizer o que é melhor para si”, conclui Remor. Da mesma forma que o conceito de normalidade, a origem da predisposição também é subjetiva. “As preferências sexuais são altamente subjetivas, e criadas ao longo da história de vida do indivíduo, portanto é completamente complicado associar quais tipos de situações podem trazer algum tipo de associação sexual a algum tipo de comportamento sadomasoquista”, pontua Viviani. A criação ao longo da história tem a ver com as informações agregadas desde a infância, mas também com escolhas posteriores, advindas de uma curiosidade ou fantasia anteriormente criada. Em São Paulo, o Instituto Paulista de Sexualidade presta consultoria a diversos casais e raramente atende algum que fale mal do sadomasoquismo. O que acontece é que pela prática se tornar comum para o par, os envolvidos tentem a tornar o fetiche interessante e prazeroso, e não um sofrimento. E qualquer pessoa pode praticar o BDSM? Desde que aja preparo, sim. O sadomasoquismo deve ser encarado como parte do repertório sexual do casal. Assim, quando visto dessa forma, ele pode se tornar até benéfico. Mas é claro, estudo e aconselhamento devem ser requisitos para experimentar o estilo. Vendas no mercado erótico sobem 20% depois de ‘50 tons’ A Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual (Amebe) revelou que depois da publicação da trilogia ‘50 tons de cinza’ em agosto de 2012, aumentaram 20% as vendas dos produtos eróticos citados no livro. Dentre eles há destaque para chicotes, algemas, máscaras e bolinhas tailandesas. Segundo a presidente da Amebe, Paula Aguiar, a última vez que as vendas subiram foi de 2001 pra 2002, quando Tiazinha estava no auge e à procura por chicotes e máscaras de gatinhos também subiram. “Para usar estes produtos é necessário um preparo, um repertório, que no caso elas encontram na trilogia ’50 tons’”, pontua Paula. Vendedores da rede também passam por capacitação profissional para indicar o que convém em cada caso, já que, conforme a presidente, qualquer produto erótico usado de forma inadequada pode causar traumas. Tanto a trilogia quanto os produtos do sexshop não fazem ligação com o BDSM, relacionamento baseado no sadomasoquismo. “Nossos produtos servem para os casais fazerem a brincadeira do ’50 tons’, como alguns chamam, uma peça teatral. Não para machucar.”


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