Antônio à margem

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Antônio à margem Isadora Stentzler e Cley Medeiros Imagine um milionário. Ele desperta às 8 horas, toma um banho no chuveiro Silver TAG showerque comprou por U$$ 100 mil dólares, veste o terno Giorgio Armani de R$ 750, o sapato italiano Louis Vuitton de R$ 790, entra no Audi TT que comprou por R$ 204 mil, dá a partida e guia a máquina até a avenida central, parando na empresa da qual é dono. Às 10 horas gasta R$ 11,50 em um Starbucks médio de cappuccino com chocolate, e ao meiodia come mais R$ 24,90 de almoço numa churrascaria. Para ele, caviar é só aperitivo. Até o final do dia entre gasolina, compra no mercado e esmola deixada para o malabarista no sinal, o empresário se envolveu com R$ 406.229,40. Isso numa segunda-feira monótona. Em Campinas, longe desta ideia de empresário ou milionário, bem ali no Paulistão, ou no mercado público, ou abaixo de um toldo que sirva de teto, está outro homem. Um de 46 anos. A segunda-feira normal dele não tem caviar, nem Armani, nem almoço por R$ 24,90. Na verdade, às vezes nem tem almoço. Ele veste o que dão a ele, ou o que consegue comprar com esmolas que ganha de empresários. Naquela quinta-feira, a grife escolhida era um par de chinelos azul royal, uma calça imitando jeans em tom esverdeado e um moletom sobreposto pela jaqueta vermelha com mangas e detalhes frontais azuis. Para ele, melhor que Armani. Seu Antônio Aparecido dos Santos é catador de latinha, pedreiro não atuante e morador de rua. Há três anos largou a casa de alvenaria com cinco cômodos, a esposa e as filhas de 25, 19 e 18 anos para viver assim. Uma escolha própria e consciente, mas forçada por circunstâncias. “Minha esposa não aguentou o álcool, eu tava bebendo demais. Tava descontrolado. Um exemplo: eu comprava uma máquina de lavar nova, eu ia e quebrava ela. Eu comprava uma geladeira e riscava todinha de faca. Então cheguei a conclusão ‘eu não aguento mais!’ e fui embora. Eu sei que foi uma palhaçada o que fiz.” Desde 2011, Antônio não recebe mais os quase R$ 2 mil por mês que conseguia juntar de obra em obra. “Eu nunca fui assalariado”, explica. “Trabalhava por engenho. Já cheguei a tocar quatro, cinco obras por vez.” Para a sociedade de consumo pós-moderna, dos Santos é um nada. Ele não contribui para os bancos capitalistas e tampouco alimenta o leão do imposto de renda. Se dependesse dos bolsos do pedreiro, a economia estaria quebrada. Ele não é consumista ao extremo e nem o pode ser. Na verdade pode. O pão de queijo e o refrigerante, que compra quando dá, são os bens supérfluos de Antônio. Da vida antes das ruas, as memórias não são tanto pelas regalias, ou os R$ 100 por dia que ganhava tocando obra, mas sim as que envolviam o tempo. “Antes eu fazia musculação e karatê, pesava 66 quilos, tinha o corpo definido e jogava bola no Juventude. Em cidade assim a gente consegue fazer um pouco de tudo”. Hoje, ele não faz quase nada. Para contar os detalhes da vida, Antônio se perde nas palavras. Muda a rota da história. Revive o ontem a cada frase, mas não deixa passar o hoje. Porém, não consegue contar tudo. Não porque se perdeu, mas porque as lutas do dia a dia o fizeram não dar bola para coisas que antes


seriam

essenciais.

Um exemplo são as questões que envolvem a vida financeira. Por mês, ele não sabe quanto recebe de investimento, doações, e nem quanto consegue por fruto do atual trabalho, que é catar latinhas. A única referência é que um quilo (cerca de 66 latinhas) equivale a R$ 2,40. Só. Uma vez, ele conseguiu R$ 1 mil em latinha. Mas não foi de uma vez. Sempre que ganha algo, ele logo gasta, já que não tem como guardar o dinheiro. Se guarda, o roubam. E quem o rouba, são pessoas tão necessitadas quanto ele. Na quinta-feira de Corpus Christis, Antônio já tinha 63 latinhas. “Com mais três eu fecho um quilo!”, vibrava. Se por dia ele consegue R$ 2,40, em um mês de 30 dias, a soma seria de R$ 72. Em um ano, R$ 964. Em dois anos, R$ 1.928 mil. Isso é pouco mais que um jornalista de jornal impresso em uma cidade do interior de São Paulo ganha por mês. A diferença do jornalista para seu Antônio são as contas obrigatórias. Ele não tem nenhuma, ou melhor... “Algo que eu gasto sempre? Tem sim! A birita! Três doses por dia.” O vício que tirou Antônio de casa é ainda a sua única companhia dos velhos tempos. Mas para ter esta companhia, ele precisa desembolsar R$ 2 por dose. Nem sempre ele consegue chegar ao número de três por dia, por isso se mune com um estoque pessoal de pinga carregada em uma das sacolas plásticas penduradas no ombro. A periodicidade da compra também é um mistério. A vida do pedreiro só complica um pouco quando ele precisa comer. “Um dia eu janto, outro dia não janto. Um dia almoço, outro dia não almoço. Mas tem dias que algumas pessoas me pedem ‘O senhor esta com fome?’ e me dão comida. Sei que é premeditado por Deus. Mas pra alguém que tinha uma vida digna, hoje não ter nada, nem alimentação às vezes, não é fácil! Mas eu sofro mais nos domingos e feriados quando lembro da minha casinha. Eu poderia estar sentado vendo TV com minha mulher, minhas filhas, fazendo minha comidinha ou levantando pra abrir a geladeira. Mas não tenho mais isso.” Enquanto falava, o morador de rua comia as mexericas de um saco de um quilo que comprou com desconto por R$ 1. Os olhos lacrimejando foram consequência das feridas ainda abertas na história da vida deste pai. Depois de mais de uma hora conversando, ele se despede. Antes, revela o que há nas sacolas que carrega com ele: 63 latinhas e uma bermuda. Na verdade, a sombra de uma bermuda. Antônio foi roubado. Quem sabe enquanto dormia ou enquanto deixou as sacolas a ver navios em algum ponto. Por isso, indigna-se, mas logo ergue a cabeça e em tom enfático assegura: “Sabe, essa conversa com vocês me fez pensar que se eu tivesse trabalhado desde que eu vim pra rua, eu podia estar bem agora. Mas eu vou mudar. Logo quero estar de baixo de um teto! Se Deus quiser!” Não se pode assegurar que a promessa de Antônio será cumprida, mas o desejo de mudança deste homem, ao menos, é claro e é plausível. “Sabe quando você constrói uma parede tijolinho por tijolinho e depois destrói tudo? Foi o que fiz. E fico me perguntando ‘será que amanhã vou querer acordar pensando em latinha?’ Não! Eu quero mudar! Eu quero ter a minha casinha de novo. E eu vou ter. Vocês vão ver!”


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