Guerra de Urina - Livro

Altair Martins

guerra de urina

Altair Martins

guerra de urina

Ao povo da primeira montagem, Roberta Severo, Serena Espinosa, Bruno Farina, Mateus Atz, Izabel Pinheiro, Vanessa Raminelli, Waldo Pereira Neto, Breno Gomez, Bibiane Ferreira Borges, Caroline Macedo, Gisela Rodriguez, Fernanda Batista, Charles Dall'Agnol, Iara Müller e Fabiana Santos.

sumário

prefácio

9

cenário

13

personagens

15

ato 1

17

ato 2

39

ato 3

79

prefácio

A MORTE DA INGENUIDADE OU DA BOA-FÉ ANTONIO HOHLFELDT1

Altair Martins publicou pelo menos seis livros de prosa, quase duas dezenas de premiações... Natural de Porto Alegre, onde nasceu em 1975, professor universitário, poderia satisfazer-se com todo este imenso caminho já aberto e trilhado em sua vida. Mas não...

Altair Martins agora ataca de dramaturgo. E não chega apenas com um, pois produziu três textos dramáticos a serem sucessivamente publicados, sendo que este primeiro, “Guerra de urina”, certamente dá o tom do que estará por vir.

Se, na prosa, Altair Martins se notabilizou por uma forte e eficiente experimentação com a linguagem, renovando-a profundamente, na dramaturgia ele faz uma outra revolução, também com a linguagem, mas não no mesmo sentido anterior. Basta atentar-se para este título aqui referido. O escritor resolveu confrontar-se diretamente com um dos aspectos mais evidentes que a linguagem humana permite: a sociabilidade. Colocando seus personagens numa situaçãolimite, ele experimenta a linguagem num outro registro, aquele da escatologia.

No enredo de “Guerra de urina”, encontramos a Dona da Lavanderia que, de certo modo, apresenta-se como uma anti-heroína do drama apresentado; seus comparsas e confrontantes, o Chicleteiro, o Cadáver do Fiscal de Trânsito, o Vendedor de Balões, Marlboro e a Mulher do Chicleteiro. A situação é, ao mesmo tempo, hilariante e dramática: há uma guerra em desenvolvimento, uma estranha guerra, por certo: “os sobreviventes tomaram as ruas, sem notarem que as ruas desapareceram”, explicita, quase como um narrador, uma das demais inesperadas 1 Professor do PPG de Escrita Criativa/Dramaturgia da Escola de Humanidades da PUCRS; colunista do Jornal do Comércio, em que assina comentário semanal sobre teatro.

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figuras que ocupam a cena, o Refrigerante, que dialoga com Um Pacote de Salgadinhos...

Se a situação é estranha (no sentido freudiano) e os personagens ainda mais, Altair Martins trata de ao menos estruturalmente buscar uma referência clássica da dramaturgia ocidental, que é o coro. No entanto, esse coro é formado, justamente, pelo Refrigerante e pelo Pacote de Salgadinhos, com o que de imediato desaparece qualquer expectativa de encontrarmos algum ponto de referência para nos situarmos em relação ao texto que se inicia.

Assistimos a uma crescente deterioração da situação e dos próprios personagens. Evidencia-se um sentimento de derrota e de frustração, na medida em que os personagens tentam compreender – sem alcançar completamente seu intento – o que está verdadeiramente acontecendo: o temor pelos venenos jogados nas frutas e verduras; a impossibilidade de dormir; a perda de alguns membros do corpo. Surge, então, a Agência, que tudo comanda, que tudo coordena, que tudo observa e que tudo decide.

O leitor-expectador fica sabendo que está no meio de uma guerra profissional, e “nem os vencidos devem ser amadores”, comenta um personagem. Já não sabemos mais se estamos diante de uma situação real, se isso é um sonho (ou um pesadelo), se apenas estamos a ler uma paráfrase crítica mais ou menos absurda...

De um lado, instala-se o medo, mas também o desânimo, quem sabe um sentimento de impotência que faz com que muitos simplesmente desistam e/ou aceitem o contexto em que estão.

Altair Martins não perdoa nada nem ninguém. Leva a situação a um limite quase apocalíptico para, de repente, mudar todo o registro. A rubrica é sugestiva: “A tela se abre ao fundo. Imagens de programas imbecis. Risadas. As cenas se sucedem. Enquanto todos riem, a cortina vai baixando”. Estaríamos assistindo apenas a um desses shows ridículos que caracterizam a programação de todas as estações de televisão, ao longo de todo o globo terrestre, num final de semana?

Eis a ambiguidade proposta pelo dramaturgo que, ao estrear na literatura dramática com este texto, desafia-nos a uma série de experimentos: a linguagem, o espetáculo, a encenação, a reflexão sobre a sociedade de consumo, o egoísmo, a irracionalidade daquelas questões que parecem “politicamente corretas”, mas não o são assim tão eficientemente etc.

Ler o texto de Altair Martins é divertido, mas certamente vê-lo transformado em espetáculo será ainda mais. Porém, cuidado: esse divertimento é crítico, pode matar... nossa boa-fé ou ingenuidade.

Porto Alegre, julho de 2018.

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cenário

O CENÁRIO é reduzido ao que sobrou de uma casa durante a guerra: ao fundo, porta e marco de porta, sem parede; janela e marco de janela pendurados, sem parede; sofá amarelo de dois lugares e televisão de tubo e antenas numa mesinha de rodas (a televisão deve ser vista apenas de lado). No primeiro plano, bolas de Pilates de várias cores, infladas de modo que permitam que os personagens as usem para sentar.

14

per

sona

gens

A

DONA

DA

LAVANDERIA:

mulher

descabelada

que

não

encontra as mãos (a guerra as dissolveu com detergente).

O CHICLETEIRO: fabricava chicletes quando percebeu que sua casa foi imobilizada pelos agentes da guerra. Precisa que alguém ensine sua mulher a dançar e a salve do sofá.

O

CADÁVER

DO

FISCAL

DE

TRÂNSITO:

personagem

semimorto no centro do palco. Está de uniforme e venda nos olhos.

A MULHER DO CHICLETEIRO: é uma mulher artificial, plástica: meias e bobs, fica nua, usando apenas um macacão cor da pele com uma vagina enorme de borracha, quatro seios enormes de borracha (dois na frente e dois nas costas). Fica no sofá, em frente à televisão, comendo salgadinhos e bebendo refrigerante.

O VENDEDOR DE BALÕES: em todas as cenas aparece com um balão inflado numa das mãos. Tem a sensação de que, se o balão escapar, será o fim. É atormentado por uma perna de dançarina de tango.

MARLBORO: vestido de caubói, pedala uma bicicleta toda branca, com uma cesta coberta de flores de plástico. Traz as informações da Agência.

O CHICLETEIRO, O VENDEDOR DE BALÕES e A DONA DA LAVANDERIA devem usar galochas iguais.

CORO: um refrigerante e um pacote de salgadinhos fazem os papéis de telejornalistas.

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ato I

choque cena um

Em cena estará o cadáver do fiscal de trânsito, inerte no chão. Numa tela ao fundo do palco, um programa de telejornalismo começa. Os apresentadores, duas mercadorias — um refrigerante e um pacote de salgadinhos —, fazem o coro.

CORO

Boa noite!

Imagens de guerra tomam a tela: gente desesperada fugindo, protestos, coquetéis molotov sendo arremessados, explosões.

UM REFRIGERANTE

É a guerra, é a guerra: os sobreviventes tomaram as ruas, sem notar que as ruas desapareceram. Buscam um lugar para entender o que houve, mas como entender se já não há mais geografia nem história no mundo? Tudo cheira a urina. As plantas começam a definhar, e muitos animais já amanheceram mortos.

UM PACOTE DE SALGADINHOS

A guerra agora é total: os espaços ficaram tão pequenos que o único lugar seguro é o sofá de casa. A recomendação é que todos esqueçam a guerra lá fora. Fiquem dentro de suas salas, liguem seus televisores, coloquem meias quentes e aguardem a programação. Toda comida deve ser pedida por tele-entrega.

A dona da lavanderia entra correndo em cena, fugindo desesperada. O chicleteiro entrará depois, também fugindo. A dona da lavanderia para diante do cadáver do fiscal de trânsito, horrorizada. Depois, senta numa das bolas e examina dentro das mangas da camisa, procurando as mãos. O chicleteiro vai até a casa e a examina, olhando pela janela aberta.

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CORO

Para onde quer que os sobreviventes fujam, serão encontrados. Não há onde se esconder senão dentro das casas. Por que lutar contra a natureza das coisas se não há mais natureza alguma? Pobre gente numa guerra sempre presente.

A tela se apaga. Sons de metralhadora e explosão. Aviões da guerra. Gente que morre.

A DONA DA LAVANDERIA vai até o chicleteiro.

Essa casa é sua?

O CHICLETEIRO

É minha. Mas não posso entrar. A casa está contaminada.

A DONA DA LAVANDERIA

Sei. A guerra, ela também começou aí dentro.

O CHICLETEIRO

Sim. Uma guerra dentro das casas. Da minha também. Ao contrário do que anunciam, não podemos mais voltar pra dentro. (Apontando) E essas bolas?

A DONA DA LAVANDERIA

São do último bombardeio. Dizem que a guerra ainda mostrará sua arma secreta.

E aqui fora há este mau cheiro, percebe?

O CHICLETEIRO cheira.

É o mesmo cheiro que sinto em casa, só que menos forte. (Olha a dona da lavanderia e depois examina ao redor). Está sozinha?

A DONA DA LAVANDERIA

Não. Há um cadáver ali (aponta com o punho).

O CHICLETEIRO

Conhecido teu?

A DONA DA LAVANDERIA

Meu? Não. (Vai até o cadáver). É um homem de uniforme. Com vendas nos olhos. Barbudo. (Cutuca com o pé). Há prendedores na roupa, como se o cadáver tivesse fugido de um varal.

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O CHICLETEIRO

Morreu de quê?

A DONA DA LAVANDERIA, examinando o cadáver com o pé.

Não sei. Está branco, os lábios rachados. E tem umas feridas pequenas no rosto.

(Examina melhor). Não é bem branco, é um cinza. E perto da boca e dos olhos ele é meio esverdeado.

O CHICLETEIRO

Então deve ter sido afogamento.

A DONA DA LAVANDERIA

Afogamento, no meio da rua?

O CHICLETEIRO

Depois da morte, o corpo de um afogado começa a boiar, por causa dos gases que continuam atuando por dentro. Deve ter sido o caso desse cadáver aí, que veio à superfície.

A DONA DA LAVANDERIA, pensando.

É, deve ter sido o caso. Tem uma água que sai da boca dele. As feridas devem ter sido feitas pelos peixes, que tiraram pedaços da carne. Coitado.

O CHICLETEIRO vai até a casa e olha pela janela.

A minha mulher. Ela continua no sofá, olhando televisão. (Grita). Mulher! Estou aqui fora! Não vem?

Sons de tiros. Veículos militares.

O CHICLETEIRO

É triste. Está imobilizada no sofá, com a boca cheia de salgadinhos.

A DONA DA LAVANDERIA

Está morta?

O CHICLETEIRO

Não. Ela ri. E de vez quando se mexe, só isso. Mas sempre rindo. Muito triste.

(Grita). Mulher!

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A DONA DA LAVANDERIA vai até a janela e tenta chamá-la.

Senhora! O marido lhe espera. Estamos em guerra, e a senhora precisa reagir.

(Espera).

O CHICLETEIRO

Nada.

A DONA DA LAVANDERIA

Se soubéssemos que a guerra iria começar...

O CHICLETEIRO

E como eu iria saber? Fabrico chicletes. É isto: ficava dentro da fábrica a ordenar o ritmo. Cinco funcionários, quatro sabores. Antes eu fabricava palancas de caminhão. Naquela época eu poderia parar a guerra — bastava fechar a fábrica.

Mas por que invadiram a casa de um chicleteiro?

A DONA DA LAVANDERIA

Para mim a guerra começou quando perdi as mãos, veja (mostra). Sou a dona da lavanderia. Mas a lavanderia foi tomada. Sei que foi o detergente, um detergente poderoso que anulou as minhas mãos. Elas estão aqui, ó, só que ficaram escondidas. Não as encontro porque sinto que uma mão procura a outra. (Pensa).

Deve ser assim que se anula uma pessoa: é só fazer que ela não se concentre, me entende? Eu já tinha sentido isso enquanto tentava tingir o vestido de uma cliente. Ela tinha pedido a cor azul, mas qual azul? Fiquei indecisa: o azulturquesa daria suavidade, o cobalto encheria de elegância o tecido, e o marinho, bem, o marinho daria sobriedade, porque o marinho é sempre sóbrio. Mas entre os azuis já existentes, não sei se sabe, estão sendo fabricados mil outros azuis. Há um azul para cada número. O número 340, por exemplo, parece veludo. (Olha para as mangas). Minhas mãos... sei que elas sofreram com isso também.

O CHICLETEIRO

Isso o quê?

A DONA DA LAVANDERIA

A indecisão, a divisão, a fratura... Minhas mãos coçaram de vontade. Então fui lavar as mãos com o novo detergente. E elas desapareceram. Vivemos numa época em que as opções nos apagam.

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O CHICLETEIRO

Permite que eu procure as suas mãos?

A DONA DA LAVANDERIA, estendendo os braços.

Por favor.

O CHICLETEIRO examina as mangas da dona da lavanderia.

A DONA DA LAVANDERIA

Já tentei encontrá-las. Mas o problema é que elas também tentam se encontrar. É como procurar uma criança que se perdeu e que também está nos procurando.

O CHICLETEIRO

Tenho as duas mãos para procurar as tuas, minhas duas mãos visíveis (mostrando), mas não há nenhum sinal das tuas mãos. Nem de uma nem de outra.

A DONA DA LAVANDERIA

Me pegaram de jeito.

O CHICLETEIRO

Tem certeza de que não foram roubadas?

A DONA DA LAVANDERIA

Por que alguém roubaria um par de mãos de mulher?

O CHICLETEIRO

Na guerra tudo é útil. O que as suas mãos sabiam fazer?

A DONA DA LAVANDERIA

Lavagem, tinturaria e costura.

O CHICLETEIRO

Muito úteis, vê? Os pés estão aí?

A DONA DA LAVANDERIA

Sim.

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O CHICLETEIRO

Então não há de ser nada. Conheço pessoas que tocam violino com os pés.

A DONA DA LAVANDERIA

Onde?

O CHICLETEIRO

Na televisão. Se na televisão se toca violino com os pés, a gente se adapta.

A DONA DA LAVANDERIA

Ainda não me adaptei a esta guerra.

Sons de metralhadoras. Gente que morre.

O CHICLETEIRO

Penso agora que a guerra começou aqui em casa quando tive de matar o cachorro.

Era um bassê de orelhas negras, comprado numa petshop, em cinco vezes. Semana passada eu olhava para ele e pensava: coleira, casinha, vacinas anuais, tosa, banho, tratamento para o focinho, porque ele não respirava bem. Foi aí que me dei conta: eu não tinha um cachorro. Já não há mais cachorros, percebe? Gradualmente eles foram substituídos por mercadorias. São mercadorias que comem, bebem e cagam. Algumas usam tênis. E nós as mostramos aos vizinhos.

A DONA DA LAVANDERIA

Sim, sim. Isso aconteceu com o futebol.

O CHICLETEIRO

Na Segunda Guerra usaram tanques infláveis e de papelão. Ilusão como arma. A partir daí, as armas evoluíram nesse sentido. Já não há como escapar. Por isso não podíamos ver que a guerra estava começando. A minha mulher, por exemplo (olha pela janela), parece uma embalagem.

A DONA DA LAVANDERIA

É. Tudo se tornou arma. (Cheira). De vez em quando o vento traz uma rajada do mau cheiro.

O CHICLETEIRO olha para dentro de casa.

Ei, não quer ensinar a minha mulher a dançar?

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A DONA DA LAVANDERIA

Não vê que perdi as mãos?

O CHICLETEIRO

Tem razão. Mas pode usar outras partes. A senhora nunca usou outras partes?

Que número calça?

A DONA DA LAVANDERIA

Trinta e cinco. Mas por que quer que eu dance com a sua mulher?

O CHICLETEIRO

Para dar a ela algum impulso lírico. É um tipo de resgate, entende?

Blecaute e sons de aviões e bombardeios. Quando a luz gradualmente se acende, os dois em cena estarão encolhidos a um canto do palco. O cadáver terá nitidamente mudado de lugar.

O CHICLETEIRO

Passou. Desse bombardeio escapamos.

A DONA DA LAVANDERIA, olhando para o cadáver.

Ei, cadáveres não mudam de lugar, mudam?

O CHICLETEIRO, olhando para o cadáver.

Não. Durante a guerra é normal que fiquem parados assim.

A DONA DA LAVANDERIA

Parece que ele estava mais próximo de nós.

O CHICLETEIRO olha o cadáver.

Não acho.

A DONA DA LAVANDERIA

Estava, sim.

O CHICLETEIRO levanta-se e vai até o cadáver. Olha-o.

Não, não estava. Também agora pouco importa. Já está morto mesmo. (Vai até a dona da lavanderia). Amiga, nessas horas é bom acreditar que tudo é ilusão de guerra.

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A DONA DA LAVANDERIA

Ainda não me acostumei com isso. (Olha para um canto do palco). Vem chegando alguém.

Aparece o vendedor de balões.

cena dois O CHICLETEIRO, olhando.

Já vi esse homem pela praça. É o vendedor de balões.

O VENDEDOR DE BALÕES entra assustado, com um balão na mão. Cheira o ar.

De novo este mau cheiro. (Vai até a janela e cheira fundo). De quem é esta casa?

O CHICLETEIRO

É minha.

O VENDEDOR DE BALÕES, para a dona da lavanderia.

É da senhora também?

A DONA DA LAVANDERIA

Senhorita. E sou só a dona da lavanderia.

O CHICLETEIRO

Eu sou o chicleteiro. O dono da casa. Olhe pela janela: a mulher sentada no sofá não está morta, só não se mexe. É a minha mulher. Se sabe dançar, entre.

O VENDEDOR DE BALÕES, para o chicleteiro.

Então já vi que a guerra também invadiu sua casa. Menos mal.

A DONA DA LAVANDERIA

A mim, me tomaram a lavanderia e as mãos.

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O VENDEDOR DE BALÕES

Menos mal.

A DONA DA LAVANDERIA

Menos mal?

O VENDEDOR DE BALÕES

Menos mal. Sou apenas alguém que fabricava os próprios balões, que inflava os próprios balões com a boca, depois atava e os vendia. A guerra também me tirou de casa, e agora parece um parasita me comendo por dentro. (Senta-se numa bola).

Não sei como aconteceu. (Coloca a mão livre no rosto, como quem vai chorar).

Têm tempo para me ouvir?

A DONA DA LAVANDERIA

Senhor vendedor de balões, já o estamos ouvindo, não é?

O VENDEDOR DE BALÕES

Há mais alguém com vocês?

O CHICLETEIRO

A minha mulher, lá dentro.

A DONA DA LAVANDERIA

E o cadáver. (Aponta com o punho).

O VENDEDOR DE BALÕES

Um cadáver! (Vai olhar). Morreu de quê?

A DONA DA LAVANDERIA

Afogamento, coitado.

O VENDEDOR DE BALÕES, retornando até eles.

Menos mal. Acho que o cadáver não vai nos escutar.

O CHICLETEIRO

Minha mulher também não.

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O VENDEDOR DE BALÕES

Então escutem vocês: sonhei uma coisa pavorosa. Já sonharam com consciência?

A DONA DA LAVANDERIA

Consciência de quê?

O VENDEDOR DE BALÕES

De que é um sonho. Tudo parece dizer que é um sonho, e você tem a consciência plena disso.

O CHICLETEIRO

Estamos em guerra, e em guerra tudo passa a ser normal.

O VENDEDOR DE BALÕES

Sei que estamos em guerra. Entendi tudo quando o sonho virou pesadelo e transformou-se numa propaganda sem fim. Todas as noites, um comercial de meia-calça. Uma voz anuncia a maciez e a flexibilidade da meia. Mostra os detalhes, pequenas figuras que sobem em linha de dentro da sandália negra e se perdem na escuridão de cima. A voz fala que nem mesmo as unhas de um gato arranham a meia. Há um slogan anunciando que a meia tem vida própria. Então surge em cena, no ar, uma perna de dançarina de tango, com a meia delimitada por uma racha num vestido negro, em cima, e uma sandália, também negra, embaixo. A perna chuta, se recolhe, dá voltas, ziguezagueia e pisa forte o ar. E tudo recomeça sem que a meia descole da perna ou o vestido mostre dois dedos a mais da coxa. Não há música, mas sei que é tango. Eu queria acordar, mas como tirar os olhos da perna?

O CHICLETEIRO

Já tentou falar com a moça?

O VENDEDOR DE BALÕES

Que moça?

O CHICLETEIRO

A dona da perna.

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O VENDEDOR DE BALÕES

Não há moça. É só uma perna. Uma perna direita, solta no ar, dançando. E é o suficiente. A perna começou a me assombrar há uma semana, antes da guerra começar.

A DONA DA LAVANDERIA

Talvez tenha sido o começo da guerra.

O VENDEDOR DE BALÕES

Há de se pensar nisso. (Continua). Com medo daquela perna, passei a beber cachaça para dormir. Não digo que seja medo, mas não há como tirar os olhos da perna enquanto dança. E a propaganda manteve-se assídua: a voz, a textura do material, tornozelo e pontas de dedos reforçados, flexibilidade — essa palavra é dita alongando-se as sílabas —, a perna veste a meia, enquanto pelinhos da coxa se levantam com o contato e passam pela malha fina da meia. E então o tango começa, e então a perna dança sozinha. Sonho com isso sempre. E cada vez fica pior. Eu durmo com esse balão na mão, podem imaginar? É ele que me lembra que eu tenho de acordar. É como uma boia, porque sinto que, se eu dançar com a perna, estarei perdido. No último sonho, dois dias atrás, a perna esteve tão próxima, que senti seu cheiro, um cheiro de perna nova que dança com meias novas. Pude jurar que ia ficar preso dentro do sonho, sem poder sair de lá, vendo o comercial sem fim de meia-calça, porque a perna não cansa. Não acordei nem quando explodiram a casa do vizinho. Só despertei por causa deste balão aqui, que me puxava o braço para a realidade. Mas a cada sonho o trabalho do balão parece mais difícil, porque sinto o meu braço mais pesado. Estou assustado.

A DONA DA LAVANDERIA

E qual a marca da meia-calça?

O VENDEDOR DE BALÕES

Não sei. Parece ser uma palavra de outro mundo.

A DONA DA LAVANDERIA

Faz um esforço, vai.

O VENDEDOR DE BALÕES

Não adianta. Já tentei. Já percorri o supermercado a ver se a imagem daquela perna me aparece pela frente. (Coloca a mão no rosto, pronto para chorar).

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A DONA DA LAVANDERIA

Que droga, é só uma propaganda. (Dá as costas).

O VENDEDOR DE BALÕES

Há três noites que não durmo. Não quero mais dormir, não posso. Não vou acordar, entendem? No último sonho, tive a sensação de que o joelho, aquele joelho rotundo, falava. Fazia a perna dançar diante dos meus olhos, ao alcance da mão. Aí me lembrei do balão. Eu estava segurando este balão no sonho também.

Então a coxa chegou ao meu ouvido, sempre dançando, posso dizer que roçou de leve a minha orelha, e o joelho pediu que eu estendesse as mãos para a perna e a tocasse. Foi então que o balão me acordou. Sentado na cama, o corpo todo suado, entendi que aquela gente do sonho quer que eu solte este balão. Há algo aqui dentro.

O CHICLETEIRO

Sim, há ar e baba.

O VENDEDOR DE BALÕES

Ar e baba, sim. Mas ar e baba fazem a coisa flutuar. Precisa algo mais? Ar e baba aqui dentro formam algo de mágico, porque são ar e baba humanos, sem custos de gás ou de energia elétrica. É uma esperança para estes tempos que alguém consiga fazer algo flutuar apenas com ar e baba. Assim, entendi que, se este balão estourar, não restará mais nada. É o plano deles: me fazem sonhar com aquela coxa, a aproximam de mim para que eu solte o balão.

A DONA DA LAVANDERIA

Isso é loucura. O veneno despejado nas frutas nos deixa assim. Deve ter te afetado.

O CHICLETEIRO

Me afetou também. Sou capaz de ver a coxa. Os pelinhos levantam mesmo?

O VENDEDOR DE BALÕES

Preciso de ajuda.

O CHICLETEIRO

Que tipo de ajuda?

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O VENDEDOR DE BALÕES

Não posso mais dormir, entendem? Preciso que alguém me acorde se eu cochilar.

(Vai até a dona da lavanderia e a segura pelo braço). Me ajuda, não me deixa dormir, que não vou acordar. A perna... por favor?

O CHICLETEIRO

Eu entendo. Mas, se a dona da lavanderia ficar acordada para te acordar, também ela não dorme.

O VENDEDOR DE BALÕES

Preciso que alguém segure o balão. Sei onde me esconder da perna.

O CHICLETEIRO

Se eu segurar esse balão, vou ter que ficar segurando ele pra sempre.

A DONA DA LAVANDERIA

Já eu não tenho mãos para segurar. E também não acredito que o balão seja perigoso.

O VENDEDOR DE BALÕES, ameaçando.

Solto o último balão então?

O CHICLETEIRO pega a dona da lavanderia e o puxa a um canto.

Você ouviu? É o último balão?

A DONA DA LAVANDERIA

Sim, ouvi que é o último balão. Faz diferença ser o primeiro ou o último?

O CHICLETEIRO

Ô, se faz. Faz muita diferença: é o último balão, o que não foi vendido. Se o perdermos, haverá um mundo antes desse balão e outro depois. Uma perna tentando um homem, uma perna que fala pelo joelho, pelinhos de uma coxa que se levantam com um simples toque: dá para ver que é algo apocalíptico.

Arriscamos?

A DONA DA LAVANDERIA

O que temos a perder num mundo depois daquele balão?

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O CHICLETEIRO

Creio que tudo.

A DONA DA LAVANDERIA

Nesse caso, eu perco menos, porque já não tenho as duas mãos.

O CHICLETEIRO

Ou talvez mais. Vê bem (mostra): se formos perder aos poucos, eu, pelo menos, tenho ainda duas mãos a oferecer.

O VENDEDOR DE BALÕES, ameaçando.

Solto?

A DONA DA LAVANDERIA vai até ele.

Achamos melhor que não.

O VENDEDOR DE BALÕES

Ficamos todos acordados então?

O CHICLETEIRO

Sim: você segura o balão, e ninguém vai deixar que o outro durma.

Blecaute. Som da guerra. Acende-se a luz gradualmente: os três personagens de cena estarão escorados uns nos outros, com medo. O cadáver do fiscal de trânsito estará sentado, com o rosto vendado virado na direção deles. A dona da lavanderia é a única a perceber. O cadáver volta a deitar imóvel.

cena três A DONA DA LAVANDERIA

Ei, aquele cadáver, parecia que ele estava nos ouvindo.

O CHICLETEIRO

Tem certeza?

31

A DONA DA LAVANDERIA

Sim, não o ouve?

O CHICLETEIRO escuta.

Tem razão. Ele nos ouve em absoluto silêncio.

A DONA DA LAVANDERIA

Não é estranho?

O CHICLETEIRO

O silêncio? Não, com cadáveres é assim: é a virtude deles.

Som da guerra. Tropas marchando.

Entra Marlboro, na bicicleta branca.

cena quatro MARLBORO, anunciando.

A doença está no ar da sala, sobre o sofá. Não se trata de gás. Agora tudo cola. É uma guerra domesticada, esta. Muito cuidado. (Puxa um cigarro, como num comercial, e finge que está fumando, enquanto olha para o horizonte, na posição do comercial de TV).

O CHICLETEIRO

Reconheço esta imagem. O senhor é o cigarro Marlboro?

MARLBORO

Sou só aquele caubói que fuma, mas não traga. Trouxe as notícias da Agência.

A DONA DA LAVANDERIA

Que Agência?

MARLBORO

A Agência da guerra.

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A DONA DA LAVANDERIA

E quem é o responsável pelo mal?

MARLBORO

Não há um gerente da maldade. É a Agência, e ela não tem um responsável. A era das responsabilidades acabou. Os sistemas sobrepujaram as pessoas.

O VENDEDOR DE BALÕES

O que a Agência faz?

MARLBORO

A Agência não faz. A Agência delega. Seu objetivo é o mais nobre, o objetivo de sempre: a Agência manda incluí-los. Essa é a primeira notícia. Agora a segunda: as casas foram tomadas, e tudo o que não for supérfluo passará a ser considerado arma.

O CHICLETEIRO, para os outros.

É por isso que estamos aqui. Andávamos armados.

A DONA DA LAVANDERIA

Mas você fabricava chicletes!

O CHICLETEIRO

Entendi a mensagem da Agência. (Para Marlboro) O chiclete deixou de ser supérfluo?

MARLBORO

Positivo. Vocês são os únicos que conseguiram sair de casa. Há mais alguém aqui?

O CHICLETEIRO

Minha mulher. Está lá dentro, presa ao sofá.

MARLBORO

Ela é do partido.

O CHICLETEIRO

Que partido?

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MARLBORO

Dos que riem.

O CHICLETEIRO

Muito provavelmente.

A DONA DA LAVANDERIA

Tem também um homem morto ali na rua. (Aponta).

MARLBORO

Ele era do outro partido.

A DONA DA LAVANDERIA

Que partido?

MARLBORO

Dos que tentam atravessar a rua.

A DONA DA LAVANDERIA

Muito provavelmente.

MARLBORO

Então agora está em casa. Quanto a vocês, vim trazer os termos de uma rendição incondicional: voltem imediatamente para dentro de suas casas e participem. Não há chance alguma de vitória.

A DONA DA LAVANDERIA

Não posso voltar pra lavanderia, já perdi minhas mãos. Sei que vão me apagar inteira com detergente. Já imobilizaram a mulher do chicleteiro.

O VENDEDOR DE BALÕES

E eu sou perseguido por uma perna que dança (mostra), dá voltas, estica, recolhe, aponta para o meu nariz com o pé.

O CHICLETEIRO, completando.

E, quando veste a meia, os pelinhos da coxa levantam.

34

MARLBORO

Nossa! A Agência tem métodos cruéis. Mas entendam, ficando aqui fora, as coisas só podem piorar. A Agência trocou o estado de guerra pela guerra permanente. É que não há mais para onde se expandir. O globo tem limites. A Agência pode comprar tudo, mas já não tem onde estocar. Daí a razão de se venderem imagens.

Esta guerra, escutem só, é a da expansão vazia. As bombas são só números, e esses números se acumulam sem que tenham significado.

O CHICLETEIRO

Nos tornamos produto?

MARLBORO

Pelo contrário: matéria-prima. Para que o progresso continue, é preciso eliminar homens e mulheres.

A DONA DA LAVANDERIA, pensativa.

Somos o que resta da natureza...

MARLBORO

Digamos que somos o que resta para ver, porque trazendo a mensagem também apareço.

O VENDEDOR DE BALÕES

Então isto aqui é um zoológico humano?

MARLBORO

Sim. (Enlaça-o pelo ombro). Veja essas pessoas (Aponta para o público). Estão aqui para nos ver. Trouxeram salgadinhos também e ficam horas a nos observar.

Olham nossas placas de identificação: matrícula, hábitat, prazo de validade, alimentação, licença do ministério. Não trouxeram as crianças porque você só tem um balão, e este é um espetáculo feio demais. Olhem, agora estão nos examinando. Vocês precisam de nomes para serem reconhecidos por eles. Pois a Agência lhes fornece os nomes: (Aponta para o chicleteiro e fala para o público).

Este se chama Adams. (Aponta para a dona da lavanderia e fala para o público). O nome dela é Comfort. (Repete para o vendedor de balões, agora com sotaque francês). Este é o monsieur Michelin. (Para os três) Agora comportem-se como pessoas. Continuem conversando animadamente.

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O VENDEDOR DE BALÕES

Por que esses nomes?

MARLBORO

Monsieur Michelin, são nomes sonoros. São nomes redondos. Nomes que têm cor e forma vivas. São nomes particulares. São nomes registrados. São nomes que grudam na gente. Já conseguimos fazer que as pessoas voltem a se dividir em raças.

A era das generalidades acabou.

O VENDEDOR DE BALÕES

Gostei do meu nome.

A DONA DA LAVANDERIA

E o cadáver? Penso que ele também deve ter um nome.

MARLBORO

Ele já tem. Ele se chama Qiaobi.

A DONA DA LAVANDERIA

Quê?

MARLBORO

Qiaobi é o nome dele.

O CHICLETEIRO

Nome estranho: é quase impossível de pronunciar.

MARLBORO

É marca de detergente chinês. Tem grande força na internet depois do comercial em que Qiaobi fez um negro ficar branquinho. Agora, se me permitem, a Agência propõe à senhorita Comfort e ao monsieur Michelin que entrem imediatamente na casa do senhor Adams.

O CHICLETEIRO

Ninguém entrará na minha casa, a não ser que seja para dançar com a minha mulher.

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MARLBORO

Então eles dançarão com ela.

O VENDEDOR DE BALÕES

Ninguém quer segurar o balão.

A DONA DA LAVANDERIA

Não tenho mãos.

MARLBORO

Vim também para segurar o balão.

O VENDEDOR DE BALÕES

Ao senhor eu não entrego.

MARLBORO

Neste caso, terei de informar à Agência sobre um movimento de resistência. Não será nada agradável. Mas as guerras têm disso. É preciso estômago. Volto sempre.

O CHICLETEIRO

Senhor Marlboro.

MARLBORO volta-se.

O CHICLETEIRO

Nos deixe ao menos um maço de cigarros.

MARLBORO

Não tenho cigarros, a não ser este, de papel, colado na minha boca. Mas vou ver se há no estoque. (Saindo pelo lado oposto ao que entrou) Não façam nada de anormal. Depois, quando acharem que viram tudo, verão que ainda resta uma arma da Agência.

O VENDEDOR DE BALÕES

E qual arma?

MARLBORO

A última. (Sai, dando uma gargalhada de filme).

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cena cinco A DONA DA LAVANDERIA, olhando ao redor.

Está escurecendo, vejam.

O CHICLETEIRO, na janela, olhando a mulher.

Minha mulher continua imóvel. É o mesmo programa na televisão, e é sempre dia diante da tela. Mas aqui fora, sim, aqui fora escurece.

O VENDEDOR DE BALÕES, olhando ao redor.

Menos mal. Achei que não escurecia mais.

A luz cai para blecaute.

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ato II

embotamento cena um

É noite. Abre-se a tela ao fundo. Imagens da guerra. Um refrigerante e um pacote de salgadinhos noticiam.

CORO

Boa noite!

UM REFRIGERANTE

Ninguém mais dorme.

UM PACOTE DE SALGADINHOS

O cheiro de urina invade as narinas. O pesadelo cheira a banheiro.

UM REFRIGERANTE

Nesse momento da guerra, quem não urinou que se urine. Não há como arriscar as vidas para ir lá fora.

UM PACOTE DE SALGADINHOS

As autoridades recomendam que se troquem os móveis das casas por móveis de plástico: impermeáveis, inodoros e em infinitas cores. E com cheiro de flores.

CORO

Para sonhar com um carro do ano, estradas impecáveis e céu azul, recomendamos aromatizantes de automóveis Flowery car.

Amanhece. Os três já estarão acordados. O cadáver do fiscal de trânsito estará mais ao centro do palco.

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O CHICLETEIRO

Há um cheiro de morte no ar. Percebem?

A DONA DA LAVANDERIA cheira o ar.

Não sinto cheiro nenhum.

O VENDEDOR DE BALÕES cheira o ar.

Sinto cheiro de plástico.

O CHICLETEIRO

É desse cheiro que estou falando. Um mau cheiro.

A DONA DA LAVANDERIA cheira o ar de novo.

Sim, sim, percebo: um cheiro de embalagem, cheiro de coisa nova, aquele cheiro constituído para apagar os outros cheiros.

O VENDEDOR DE BALÕES cheira o ar novamente.

Achei que vinha das minhas mãos. (Cheira as mãos). Parece cheiro de morte.

O CHICLETEIRO

É o mesmo cheiro do cadáver do fiscal de trânsito.

O VENDEDOR DE BALÕES

Pra mim parece mais cheiro de promoção. Quando avança, é claramente um cheiro para se pagar depois do carnaval. Já estou com vontade de comprar alguma coisa.

A DONA DA LAVANDERIA

Tentem não pensar nisso.

O VENDEDOR DE BALÕES

Em coisas mortas?

A DONA DA LAVANDERIA

Não, em coisas novas. Agora parece que a novidade é mais perigosa.

O CHICLETEIRO caminha até um extremo do palco.

É um gás invisível e poderoso este, um gás que não se dissipa, que coloniza pelo nariz.

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O VENDEDOR DE BALÕES

Estou com vontade de comprar sapatos novos, algo com fivelas e sola de borracha, pagamento em cinco vezes.

O CHICLETEIRO

Não se renda. Diante do horror, pense no cadáver, que se afogou tentando atravessar a rua.

A DONA DA LAVANDERIA

Para mim ele foi afogado.

O CHICLETEIRO

De qualquer maneira, ele não pode ter morrido em vão.

O VENDEDOR DE BALÕES, olhando para o chicleteiro.

“Ele não pode ter morrido em vão”. Esta é uma frase de filme, não é?

O CHICLETEIRO, olhando para o vendedor de balões.

Sim, de todos os filmes.

A DONA DA LAVANDERIA, olhando para o vendedor de balões.

Acho que o gás já está fazendo efeito.

O VENDEDOR DE BALÕES, olhando para a dona da lavanderia, concordando.

Está. (Olha para o horizonte. Pensa. Respira fundo). Vou me render. (Vira-se para entrar na casa).

A DONA DA LAVANDERIA segura o vendedor de balões.

Precisamos reagir. Havia prendedores com o homem morto. (Aponta com o punho).

O CHICLETEIRO vai até o fiscal e traz quatro prendedores.

Aqui estão. (Põe um prendedor no nariz. Em seguida distribui entre eles; ajuda a dona da lavanderia; depois vai ao fiscal e lhe põe também um prendedor no nariz).

O VENDEDOR DE BALÕES

Ele precisa?

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A DONA DA LAVANDERIA

Precisa. Para mim já está claro que nesta guerra até os cadáveres podem participar.

O CHICLETEIRO

Temos que proteger o nosso cadáver. (Põe um prendedor no nariz do fiscal).

O cadáver do fiscal de trânsito mexe a cabeça e tenta erguer o tronco. Só a dona da lavanderia o vê.

A DONA DA LAVANDERIA, indo até os outros.

Tenho certeza de que aquele cadáver se mexeu.

O CHICLETEIRO

É?

A DONA DA LAVANDERIA

É. Veja.

O CHICLETEIRO olha por instantes.

É impressão tua.

O cadáver do fiscal de trânsito tenta se erguer e é visto apenas pela dona da lavanderia.

A DONA DA LAVANDERIA

Mexeu de novo. Olhe bem.

O CHICLETEIRO vai até o fiscal.

Ele sorria?

A DONA DA LAVANDERIA

Está sorrindo?

O CHICLETEIRO

Sim.

O VENDEDOR DE BALÕES

Ora, todo cadáver sorri. Parece que é justo.

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O CHICLETEIRO

É um sorriso saudável mesmo. Ele tinha barba?

A DONA DA LAVANDERIA

Tinha.

O CHICLETEIRO

Não tem mais. Quem de vocês fez a barba dele?

O VENDEDOR DE BALÕES

Pode ter sido ele mesmo.

O cadáver do fiscal de trânsito vira o rosto.

O CHICLETEIRO, assustado.

Sim, ele se mexeu.

O VENDEDOR DE BALÕES

A guerra deve recomeçar então.

A DONA DA LAVANDERIA

Dizem que a guerra é o fim da burguesia. Será por isso que o homem se afogou?

O VENDEDOR DE BALÕES

O que é burguesia?

Explosões. Gente que grita. Os três se encolhem.

A DONA DA LAVANDERIA

A burguesia é isso que nós somos.

O VENDEDOR DE BALÕES

Desde quando?

A DONA DA LAVANDERIA

Desde a hora em que as lojas abrem.

O VENDEDOR DE BALÕES

Dizem que há lojas que já não fecham mais.

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