Crucifixo - Cópia

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Fr. José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap

O Crucifixo que São Francisco e Santa Clara encontraram na igreja De São Damião iluminou as suas vidas. Traz até hoje a luz de Deus para tantas pessoas! Este pequeno livro quer apresentá-lo e ajudar a descobrir alguns de seus interessantes segredos. Quer ajudar a receber a sua luz e a sua benção. Para passar adiante.

O CRUCIFIXO DE SÃO DAMIÃO

Centro Franciscano de Espiritualidade


Vamos ver de perto o Crucifixo de São Damião. É aquele que falou com São Francisco no começo de sua vida de conversão, e com Santa Clara durante seus quarenta e dois anos de mosteiro.

Vamos saber porque Francisco e Clara conseguiram ouvilo.


Estamos diante de um ícone, uma figura com especial valor simbólico e religioso. Os ícones expressam a teologia da luz, a teologia da beleza. Nosso crucifixo é um hino à santidade de Deus, expressa na luz e na beleza. Nós vamos explicar um crucifixo feito há novecentos anos. Mas não vamos nos limitar a descrever a figura e os seus símbolos, riquíssimos. Vamos mostrar como esse ícone transformou a vida de São Francisco e de Santa Clara — e como ainda é uma fonte de oração, santificação e transformação para nós, hoje.


Um ícone não é uma figura qualquer: é uma figura santa. Quem o faz não é um pintor qualquer: É uma pessoa consagrada à santidade

Esse pintor é chamado iconógrafo: o pintor de ícones. Ele é um eremita: que vive na solidão da contemplação

Um mestre o ensina a contemplar: 1). Deixando-se envolver pela luz de Deus que passou para um santo; 2). Passando essa luz para uma tábua; 3) Sabendo que daí essa luz vai santificar as pessoas, envolvendo-as na santidade de Deus


O iconógrafo Um iconógrafo não é um pintor qualquer, é uma pessoa consagrada, que dedica toda a sua vida a fazer ícones. Trata-se de um contemplativo que, descoberta sua vocação, coloca-se sob a direção de um mestre. Com ele, vai aprendendo a se deixar iluminar pela Luz da santidade de Deus. Contempla-a no que é santo: pessoas ou mistérios. É na medida em que se sente iluminado que vai aprendendo a escolher e preparar a tábua, a colher o material para preparar as tintas. Todo o material usado é natural, tirado das plantas, da terra, de ovos. A tábua é alisada e fica com a superfície levemente côncava. Sobre ela é colado um pano fino, sobre o qual é passada uma base. Cada fase do processo que vamos apresentar é feita muito lentamente, só depois de muita contemplação.


Quando o ic贸n贸grafo sente que j谩 foi envolvido por bastante de Luz que veio de Deus e que passou para o santo, dle prepara o quadro e as tintas De acordo com o ensino do seu mestre.

Ele corta a t谩bua, Ele a lixa, Ele cola um pano sobre ela, Ele a cobre com um fundo branco.


Depois, sempre continuando a sua contemplação, ele risca o contorno do santo que pretende desenhar.


Depois, o iconógrafo preenche tudo que está fora do contorno

Com uma cor dourada ou azul, porque ele está representando O santo como ele já está vivendo na glória de Deus


Depois ele localiza Tudo que vai ser carne Do santo E pinta rosto, Mãos, pés... Da cor da terra, Porque nós somos barro

Na medida em que ele For crescendo na contemplação Vai voltar para pintar essa carne Com cores cada vez mais claras, Representando Representandoaaluz luzde deDeus Deus Que Quevai vai crescendo crescendo Na Nasantidade. santidade.


Esse trabalho pode levar meses ou anos....

É pouco a pouco... Que o iconógrafo Vai pintando os outros detalhes.

Ele sempre usa formas e cores simbólicas

Que vão falar de uma beleza que não é a nossa: É a de Deus.


Quando o ícone fica pronto é levado para a Igreja ou para uma casa.

Diante dele, as pessoas não vão falar... vão tomar um banho de luz e de santidade. É Deus quem estará olhando para elas e as santificando.


Um ícone muito conhecido em quase todos os países é o quadro de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, hoje guardado em uma igreja de Roma. Sua devoção é muito difundida. Esse é um ícone muito rico

em detalhes.


É provável que este ícone

A Santíssima Trindade Feito por Roublov

No século XVII Seja o mais famoso.

É tido como uma obra prima. O estudo de seus detalhes

Pode dar um livro.


O Crucifixo de São Francisco foi colocado

há mais de novecentos anos na capela de São Damião. Hoje, nessa capela,

está apenas uma cópia. O original que São Francisco conheceu está na basílica

de Santa Clara, em Assis.


O ícone de São Damião é uma figura colorida, pintada

em uma tábua de nogueira com 2,10 m de altura e 1,30 m de largura. e 2 cm de espessura. Vemos Jesus Cristo duas vezes: Primeiro na cruz, onde, com 1,80 m,

sua presença domina todo o quadro.


Depois, vemos Jesus subindo aos céus. Ele está saindo de um círculo que representa a terra: tem os pés como os de quem sobe um degrau, sua cabeça e mão direita já estão no reino dos habitantes do céu. E carrega uma cruz de ouro com cabo de madeira: É o sinal da sua vitória.


Chegando ao céu, Jesus encontra os Santos, aqui representados por dez figuras com auréolas. Mas ele está sendo recebido pelo Pai e o Espírito Santo. O Pai é representado pela mão que abençoa. O Espírito Santo está no dedo: No cântico Veni Creator ele é chamado “dedo da direita do Pai”.


Reparem que o quadrado grande, abaixo dos braços de Jesus representa o Livro da Vida na Terra.

O meio-quadro, no alto, representa o Livro da Vida no Céu. É um meio quadrado, porque nós só sabemos muito pouco do Livro da Vida depois da morte.

Da mesma forma, a cabeça de Jesus está cercada por um círculo bem grande;

sua chegada ao céu está cercada por um círculo menor; O Pai e o Espírito Santo estão em meio círculo, porque já tivemos a sua revelação mas não os vemos diretamente.


A Trindade no céu

Livro da Vida no Céu Jesus chegando ao céu

Jesus na Terra

Livro da vida na Terra


Esta figura representa as pessoas que estiveram ao lado da cruz de Jesus. Estão dentro de um quadro que simboliza um livro aberto, porque nós pudemos conhecê-las


Aqui estão Nossa Senhora e São João Evangelista. Os dois apontam com a mão direita para o Deus crucificado.

Nossa Senhora tem a mão esquerda apoiando o rosto: é um símbolo da contemplação. São João simplesmente segura o manto com a esquerda. Sobre os dois cai o sangue precioso de Jesus, que sai da chaga do peito e que também sai da chaga da mão direita. São João olha para Maria, que ele acolheu como sua Mãe.


Do outro lado estão Maria Madalena, Maria, a mulher de Jacó, e o centurião. A Madalena também tem uma atitude contemplativa. A outra Maria faz um gesto de admiração. O centurião segura o decreto da condenação de Jesus na mão esquerda mas, com a mão direita, testemunha sua fé na Trindade de Deus. Ele reconheceu que Jesus era o Filho de Deus. A outra figura pequena, com diversas voltas acima da cabeça, costuma ser apresentada como filho do centurião, que Jesus curou, ou como o povo ali presente.


Aqui podemos ver o centuri達o com maiores detalhes.


À direita está um soldado romano: Longino, aquele que deu uma lançada em Jesus.

À esquerda está um sacerdote que, petulante, com a mão na cintura, diz a Jesus que, se for Deus, que desça da cruz.


Embaixo da mão direita de Jesus, dois anjos comentam a grandeza do amor de Jesus, que deu sua Vida pela Humanidade. Eles também são banhados pelo sangue que sai da chaga de Jesus.


Embaixo da mão esquerda de Jesus, outros dois anjos comentam a grandeza do amor de Jesus, que deu sua Vida pela Humanidade. Eles também são banhados pelo sangue que sai da chaga de Jesus.



Nas duas extremidades da cruz, há duas figurinhas que se dirigem para o centro: para Jesus. Alguns estudiosos dizem que elas estão representando As santas mulheres que foram cuidar do corpo de Jesus no sepulcro. E vieram a ser as primeiras testemunhas da Ressurreição. Alguns outros dizem que devem ser dois anjos, argumentando que as duas figuras estão descalças. Mas é difícil até perceber se elas estão mesmo sem calçados.




Das chagas dos pés de Jesus, como também das chagas das mãos e do peito, o sangue brota como uma flor e cai sobre personagens que, por ele, são lavados dos pecados. Abaixo dos pés de Jesus, recebendo também o seu sangue salvador, há vestígios de seis figuras: poderiam de São Damião, de São Rufino, padroeiro da cidade... Temos segurança da penúltima, que é São Pedro


Você consegue ver um galinho aqui no alto?

Não é tão fácil perceber, nesta nossa reprodução um tanto defeituosa, mas abaixo do galinho está uma fogueirinha

Essas duas figurinhas identificam São Pedro, que estava aquecendo as mãos junto a uma fogueira quando negou Jesus. Então, como Jesus tinha avisado, o galo cantou!



Acima da cabeça de Jesus, está escrito, em latim: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”. Essa inscrição é própria do Evangelho de São João. Nesse Evangelho se diz que Jesus é a luz que brilhou nas trevas. E se vai mostrando que essa luz brilhou cada vez mais. Para expressar e destacar a luz, além da claridade do Cristo, muitos detalhes do crucifixo são reforçados em preto e vermelho. Um exemplo é dos olhos de Jesus.


Diante deste Cristo de São Damião, nós sabemos que São Francisco fez esta oração:

“Sumo e soberano Deus, iluminai as trevas do meu coração. Dai-me uma fé reta, esperança certa, caridade perfeita, bom senso e conhecimento, Senhor,

para que eu cumpra o vosso santo e verdadeiro mandamento”.


1. Sumo e soberano Deus A leitura das biografias medievais pode dar a impressão de que Francisco chegou, viu o Crucificado, ouviu-o e respondeu imediatamente com a sua oração. Na realidade, ele deve ter ficado muito tempo, dias, contemplando e orando, antes de formular a oração que chegou até nós. E já devia fazer algum tempo que estava nessa oração de busca quando o ícone o iluminou. Em Espoleto, quando teve o sonho do castelo de armas, ele já percebera que era o Senhor quem lhe falava, e já exclamara: “Senhor, que queres que eu faça”. Orando na solidão, ele já sentira “dentro dele mesmo um espírito novo, que o levava a orar ao Pai”. Em São Damião, a luz detonou sua visão interior.


2 Iluminai, Senhor! O jovem Francisco deve ter ficado extasiado com tanta luz deste Cristo. É Jesus na Cruz, é Jesus na Ressurreição e é Jesus na Ascensão. Sempre luminoso.

Porque ele é “a luz que brilhou nas trevas” (Jo, 1,9-10). Trevas são a escuridão em que o ser humano fica quando rompe com Deus. No meio delas, resplandece a Palavra de Amor de Deus. Como São João vai demonstrando em seu Evangelho, Jesus vai ficando cada vez mais luminoso, na medida em que as pessoas o aceitam. E quanto mais luminoso fica, parece que muitos encontram razões ainda maiores para não aceitá-lo. A luz do Crucificado fez Francisco olhar para si mesmo e perceber que, lá dentro, tudo era escuridão. Sem que se desse conta, a luz de Deus já fizera com que aprendesse a olhar para dentro.


2. Iluminai as trevas

Outro passo deve ter sido dado quando, atraído por aqueles enormes olhos abertos e tranqüilos, o centro da luz, ele foi levado a olhar para onde Jesus olhava: para o mundo imenso lá fora e para dentro de si mesmo. Enxergando o mundo lá fora com o olhar do Filho de Deus, ele ouviu que estava sendo chamado para uma reconstrução. Olhando com o olhar de Jesus para a sua própria interioridade, percebeu que o seu coração, a sua interioridade, estava em trevas. É importante que não tenha falado em “iluminai as trevas da minha mente”, como nós, provavelmente, diríamos.

Estamos acostumados, principalmente em nossa civilização ocidental, com idéias e palavras que falam à mente, mesmo quando são figuras gráficas, como os sinais do trânsito.


3. Fé, Esperança e Caridade Fé é a total confiança em Jesus Cristo: Ele nem se engana nem me engana. É o caminho iluminado que descobrimos em um mundo confuso. São Francisco tinha muitas razões para pedir uma “fé direita”. Tinha plena consciência das heresias que pululavam em seu tempo, principalmente a dos cátaros. Não queria nele mesmo e, mais tarde, não quis em seus seguidores, nenhuma “fé torta”. Apesar do amor fraterno que sempre teve para com os hereges.


Esperança é a virtude que nos anima a nos movermos na direção de Deus.

Tem que ser a nossa força na escuridão. Costumamos colocar nossas esperanças em ideais, de curto ou longo alcance, mas sem firmeza. A esperança boa tem que ser certa, firme, inabalável. Mas uma esperança dessas é só a que Deus dá.


Caridade é o amor. Só será total quando conseguirmos dar-nos inteiramente a quem amamos: como as Pessoas da Trindade se amam. Então, vai ser perfeito. É a nossa entrega na escuridão. Nossas limitações não permitem que nosso amor seja perfeito, embora possa ser aperfeiçoado. Mas, nós vivemos numa confusão de amores desnorteados porque quisemos “ser como Deus” e o rejeitamos. Ora, só Ele é o Amor.


Nós estamos nos julgando deuses, e não somos. Então, a nossa visão do próprio eu não é apenas insegura: é falsa. O bom senso de Francisco levou-o a escrever, com os seus companheiros, uma “Regra de Vida” segura, firme, mas profundamente livre. Ele sempre foi imensamente compreensivo com seus frades e com todas as pessoas. Certamente porque se tratou de um bom senso pedido a um Jesus ressuscitado e triunfante mas que ainda ostentava a cruz da sua obediência ao Pai. De acordo com o ensinamento evangélico, a Igreja sempre proclamou que Jesus, por nós, “se fez obediente, obediente até a morte, e morte de cruz”.


Podemos acreditar que foi o bom senso concedido por Deus que levou São Francisco ao conhecimento de um sentido de obediência muito mais profundo do que costuma ser apresentado por nós. Alguns acreditam que São Francisco fez a oração diante do Crucifixo como uma resposta a Jesus que mandara reconstruir a sua casa. Isso daria a toda a oração um sentido de pronta obediência ao mandato claro de restaurar a capelinha.

Um conhecimento um pouco mais amplo de tudo que São Francisco escreveu e viveu mostra que se tratava, sim de obediência, mas de uma obediência muito maior. Através da entrega total de sua vida a Deus, ele (e mais tarde seus seguidores) trariam uma restauração profunda à Santa Igreja Universal. Era seu carisma, que estava desabrochando com a luz do Crucificado.


Em primeiro lugar, ele viu em Cristo crucificado o maior exemplo da verdadeira obediência: corresponder ao amor de Deus, que é todo o Bem. Deus quis transmitir todo o Bem, isto é, Ele inteiro, ao homem com o seu mundo. Jesus é a Palavra, que devia fazer a transmissão, trazendo aos homens o seu convite. Ainda que a missão fosse difícil (Pai, se for possível, afasta de mim este cálice, mas não se faça a minha vontade e sim a tua!), Jesus obedeceu.

Em segundo lugar, mesmo na escuridão interior, ele deve ter sentido que o Bem de Deus vinha a ele através desse Cristo luminoso: pediu tudo que achou necessário para cumprir o “mandamento”: luz, fé, esperança e amor, bom senso e conhecimento. Obedecer, para ele, era acolher todos os bens que o Deus Bom nos manda, usá-los e retribuir — ou mesmo devolver — com gratidão.


Santa Clara refere, em seu Testamento, que Francisco teve, em São Damião, uma profunda experiência de Deus:

“Pois, quando o Santo, logo depois de sua conversão, sem ter ainda irmãos ou companheiros, estava construindo a igreja de São Damião, em que foi visitado plenamente pela graça divina e foi impelido a abandonar totalmente o mundo, numa grande alegria e iluminação do Espírito Santo, profetizou a nosso respeito aquilo que o Senhor veio a cumprir mais tarde. Pois, nessa ocasião, ele disse em voz alta e em francês para uns pobres que moravam ali perto: Venham me ajudar na obra do mosteiro de São Damião, porque nele ainda haverão de morar umas senhoras cuja vida famosa e santo comportamento vão glorificar nosso Pai celestial em toda a sua santa Igreja (TestCl 9-14)”.


Entendemos que a santa quer falar de uma experiência muito mais longa, muito mais profunda do que a de simplesmente ter escutado um pedido de Jesus e ter respondido com a oração “Iluminai”. O texto confirma que a proposta de Deus, feita através do ícone de luz, era restaurar a Igreja, toda a sua Santa Igreja, através de muitos homens e mulheres que, em tantos séculos, pediram e continuam a pedir para terem sua interioridade iluminada, para viverem a fé, a esperança e a caridade, para terem bom senso e conhecimento das coisas de Deus. É assim que a vontade de Deus, que é Amor e Salvação, vai sendo cumprida através da história.


O encontro com o Crucifixo de São Damião marcou o íntimo de São Francisco. durante a sua vida, ele cresceu no amor do Crucificado. No fim da vida, recebeu a visita de Jesus como um serafim de fogo que marcou nele as suas chagas. Nosso encontro com o Cristo de S.Damião deve nos levar a uma conversão.


Nós vamos nos aprofundar um pouco mais na espiritualidade da luz para que ela nos ajude a caminhar na direção dessa nossa transformação em Jesus, a imagem da divindade.


A Igreja Oriental ensina: A única santidade é a de Deus. A santidade de Deus se revela nessa Luz que nos transforma para sermos e para vermos a Beleza. Quando ainda não o conhecemos bem, pode até ser que, formados em outras culturas, tenhamos dificuldade para perceber a beleza expressa num ícone.

Mas nós vamos aproveitar, olhando detidamente o Cristo de São Damião, para enxergar — como Francisco e Clara enxergaram — que essa é a beleza que teríamos se não tivéssemos cedido à tentação de “ser como Deus”.


Seremos outros cristos não se acontecerem em nossa vida situações semelhantes às dele, mas na medida em que refletirmos a beleza que Deus continua a ver em tudo, porque continua a ser Criador. Nosso Crucifixo é um livro de Teologia e um livro de Oração. Mas entendendo teologia como no Oriente: não o estudo sobre Deus, mas a vida em Deus.


2 Teologia da Luz Um ícone, como é o Crucifixo de São Damião, só pode ser entendido e apreciado na visão da “Teologia da Luz”, da Igreja Oriental. Em primeiro lugar, “teologia”, aqui, não fala de um estudo de Deus. É uma experiência, uma vivência de Deus. Para essa teologia, tanto quanto podemos dizer que “Deus é Amor” e que “Deus é Santo”, podemos dizer que “Deus é Luz”. A sua santidade, então, comunica-se como a Luz. Santa é uma pessoa que se tornou iluminada pela Luz-Santidade de Deus.




Quando contou a história da criação, a Bíblia foi dizendo que “Deus viu que era bom”. O texto grego da Bíblia diz que tudo era “kalón”: não só bom, mas também bonito. Deus estava mostrando que tudo é como Ele: cheio de bondade e resplandecente de beleza. Um santo escreveu que o Reino de Deus é quando todas as belezas chegam à Beleza perfeita. Um escritor famoso também disse que o Espírito Santo é a captação direta da beleza.

Por isso o Espírito Santo, que é a alegria eterna, em quem o Pai e o Filho se comprazem, incendeia os nossos corações para dizermos com Jesus: “Venha a nós o vosso reino”. É assim que se abrem os nossos “olhos do Espírito”, como dizia São Francisco, para contemplarmos toda a Beleza à luz da eternidade. Essa é a verdade de Jesus transfigurado.


Observe-se que o fundo do Cristo da Ascensão é vermelho, o fundo do quadro dos santos é dourado, e o fundo do Crucificado é negro.


Podemos falar em Teologia da Luz ou em Teologia da Beleza. Mas, como se trata da Beleza de Deus, pode ser que não a entendamos bem. Estamos acostumados a olhar outras coisas e outras belezas, sem ver Deus. O grande destaque do Crucificado de São Damião são os seus enormes olhos. São grandes, brancos, e têm linhas pretas e vermelhas acima e abaixo para se destacarem mais. São olhos de amor, de paz, que se dirigem para todos, mesmo os que estão longe, oferecendo a luz de Deus.


1). Deus Santo, Deus Luz A palavra ícone vem do grego êikon, que quer dizer imagem. Como tal, é uma representação. Mas não é como as nossas estátuas ou quadros, porque o ícone já é feito como uma experiência da Luz da santidade, que, depois, é transmitida. Na visão da Igreja Oriental, teologia é viver Deus. E viver Deus é partilhar da santidade da Trindade. Para poder falar dessa santidade, que é in-exprimível, usam o símbolo da Luz. Todo ícone apresenta um santo ou outro mistério sagrado. Um santo é uma pessoa iluminada por Deus e, por isso mesmo, luminosa: transmite luz. Para que haja um ícone, é necessária a intervenção de um iconógrafo (um pintor de ícones) que, na contemplação, acolhe a Luz de Deus que passou pouco a pouco para o santo. Como conseqüência, o iconógrafo também se torna luminoso. Então, passa para uma tábua a Luz de Deus, que recebeu do santo. E a tábua, o ícone, vai ser uma lâmpada, um sol, capaz de transmitir santidade de Deus para quem se expõe à sua luz. Por tudo isso, o santo não é representado como se estivesse vivendo na terra e no seu tempo, como nós costumamos fazer. Ele é representado na glória de Deus, onde já recebeu toda a sua Luz. O ícone não é uma comunicação dirigida à mente: é uma palavra de vida que passa de coração para coração. Do coração de Deus até o nosso.


Outro detalhe importante: além de não ter sombras, o ícone não tem sinais de movimento, porque todo o seu movimento é interior: a santificação progressiva. Isso é expresso pela luz interior e por figuras geométricas muito equilibradas, que só poderemos observar se nos detivermos com atenção. Mas não são feitas para observar: só para transmitirem um sentimento.

Isto é muito importante: diferentemente dos nossos quadros e imagens, os ícones não são feitos para ficarmos olhando: são eles que olham para nós e nos iluminam.

Por isso mesmo, ainda que os detalhes de cores e símbolos sejam bem caprichados, não têm nenhuma intenção de serem “perfeitos” ou realistas como detalhes.


Para dar exemplo de alguns detalhes estabelecidos: a figura de Jesus costuma ter uma auréola dividida por uma cruz. Um dos quatro braços nunca é visto, porque fica por trás da cabeça; nos outros três costumam ser postas três letras gregas: um ómicron, um omega e um ny: hó On, Aquele que é. As Nossas Senhoras costumam ser distinguidas por três estrelas: uma da cabeça e duas nos ombros. Essas últimas duas nem sempre ficam visíveis. Também pode haver inscrições. A maioria em grego, muitas em russo. O Crucifixo de São Damião tem inscrições em latim. Quando o iconógrafo acha que sua parte está terminada, avisa os sacerdotes. Eles virão, muitas vezes acompanhados pelo povo, para benzer o ícone e para transportá-lo para a igreja ou para uma casa. A liturgia da Igreja Oriental não pode ser celebrada sem ícones.


3. Ícones Além dos aspectos que já expusemos acima, há outros importantes que devem ser considerados. Com a visão que demos do iconógrafo, de sua contemplação e de seu trabalho, é claro que não teria cabimento alguém comprar um ícone numa loja de objetos religiosos.

Um fiel não vai orar diante do ícone como nós oramos. Ele nem tenta “falar” com o ícone ou pedir uma intercessão. É o ícone que olha para ele e que “fala” com ele. Como? Dando-lhe um banho de luz. Transformado, ele vai crescer no bem. Não é pelo toque que o ícone transmite sua força; é pela luz.


É provável que nossos olhos ocidentais se voltem para os ícones mais estudando-os do que sentindo-os. Damos, então, mais algumas explicações “ocidentais” que nos ajudem a apreciar o ícone de São Damião. 1. Embora tenha muitas coisas em comum com os ícones bizantinos (de Bizâncio, a antiga Constantinopla, hoje Istambul) o ícone de São Damião tem claras conotações de uma origem siríaca. Monges sírios devem ter vivido na região, por onde sempre passaram muitos estrangeiros. Mas também é românico, porque dá para ver que o iconógrafo tinha assimilado características da pintura local, se não foi mesmo um italiano. 2. É evidente que estamos diante de um Crucificado siríaco; Ele não está morto na cruz. Ressuscitou, venceu a morte. Tem os olhos abertos, não tem coroa de espinhos e sua posição é serena, mas, triunfante. Na mentalidade siríaca isso é bem expresso pelo fato de Jesus estar, ao mesmo tempo, numa cruz e em um caixão de defuntos (fundo preto), mas sem tampa. 3. É fundamental a inscrição “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”, porque todos os detalhes são pintados na perspectiva do Evangelho de São João, que apresenta Jesus como a Luz. 4. A inscrição em latim e diversos outros pontos demonstram que o Crucifixo foi feito na Itália, e na cidade de Assis. Isto é por enquanto. Vamos fazer muitas outras observações quando estivermos conhecendo o Cristo de São Damião por partes.


3. Olhos que iluminam Outra perspectiva. É o ícone que olha para nós. É Deus quem nos santifica. De fato, Jesus é “o vidente, o único que vê o Pai” (Jo 6,46), porque está “voltado para Ele” (Jo, 1,18). Ao mesmo tempo em que nos enxerga com amor refletidos no Pai, ele quer compartilhar conosco a sua visão divina. Ou quer abrir nossos olhos para que enxerguem o mundo, as pessoas, tudo como Deus vê, porque, quando “quisemos ser como Deus”, perdemos essa capacidade. São Francisco, em sua Primeira Admoestação, fala-nos de enxergar com os “olhos do espírito” a presença de Jesus na Eucaristia. Foi com os olhos do espírito, certamente iluminados pelo seu Crucifixo, que Francisco e Clara sempre viram Deus. É impressionante que usem só imagens visuais sempre que falam em Deus. A linguagem luminosa dos ícones não sugere idéias. Detona a transformação. Podíamos aprender a viver como um iconógrafo. Contemplando toda presença de luz de Deus que já chegou não só aos santos e santas, como aos mistérios celestes, mas também todo sinal de luz que descobrimos nas pessoas, nos acontecimentos e nas coisas deste mundo. Podíamos lembrar também que toda luz que entra está desencadeando um processo. Se resistirmos, vamos nos embotar. Se nos abrirmos, virão novas luzes. Nós precisamos da Luz e temos que passá-la adiante.


Um primeiro passo é esquecer o próprio eu, percebendo que o verdadeiro centro de tudo é Deus. Para nós, já é demais sermos filhos queridos do Senhor Altíssimo, que se fez pequeno. Depois, uma das primeiras iluminações do coração de Francisco deve ter sido a capacidade de ver, lá dentro, que Deus é o sumo Bem, todo o Bem, que só Ele é bom e que não existe nada de bom fora dele. Esse veio a ser um ponto básico da espiritualidade de São Francisco e de seus seguidores. Quando, no fim de sua vida, chegou à maior união com o Crucificado recebendo suas chagas, Francisco expressou-o ardorosamente na oração que escreveu para Frei Leão:


Vós sois santo, Senhor Deus único, que fazeis maravilhas. Vós sois forte, vós sois grande, vós sois altíssimo, vós sois rei onipotente, vós Pai Santo, rei do céu e da terra. Vós sois trino e uno, Senhor Deus dos deuses, vós sois o bem, todo bem, o sumo bem, Senhor Deus vivo e verdadeiro.


Vós sois amor, caridade; vós sois sabedoria, vós sois humildade, vós sois paciência, vós sois beleza, vós sois mansidão, vós sois se-gurança, vós sois descanso, vós sois gozo, vós sois nossa esperança e alegria, vós sois justiça, vós sois temperança, vós sois toda nossa riqueza e satisfação.


Os ícones falam ao coração. A grande diferença é que as palavras à mente definem. E as palavras ao coração, não definindo, abrem os horizontes. As palavras à mente convencem. As palavras ao coração, movem. Essa é uma tremenda experiência de Deus, que o levaria a exclamar: “Quem sois Vós, Senhor? e quem sou eu?”. A Oração diante do Crucifixo de São Damião é a primeira que conhecemos do nosso santo. A última deve ser o Cântico de Frei Sol. Na primeira, ele era jovem e se sentiu escuro no interior. Na última, cego, doente, em fim de vida e em tempo de inverno, sua oração já era toda luz, luz interior. Em suas outras orações é possível notar como a sua Luz foi crescendo.


Vós sois beleza, vós sois mansidão, vós sois protetor, vós sois guarda e defen-sor nosso; vós sois fortaleza, vós sois refrigério. Vós sois nossa esperança, vós sois nossa fé, vós sois nossa caridade, vós sois toda doçura nossa, vós sois nossa vida eterna: Grande e admirável Senhor, Deus onipotente, mi-sericordioso Salvador.


4 Sangue Redentor Nós continuamos a celebrar, todos os dias e em todos os lugares, a Morte de Jesus como porta da nossa Vida. Foi o seu sangue redentor que nos mereceu a salvação. Nossos Crucifixos comuns costumam apresentar Jesus Cristo morto depois de intensos sofrimentos, com o corpo coberto de sangue. No Crucifixo de Francisco e Clara há o mínimo de Sangue: é o que brota das chagas e nos liberta da opção de querermos ser deuses. É um sangue que se derrama sobre todos, até sobre Nossa Senhora e os Anjos, porque todos precisamos dele, nós que temos uma vida alimentada por seu Corpo e seu Sangue. O Evangelho recorda que, ao pé da Cruz, os sacerdotes clamavam: “Que o teu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos!”. Estavam proferindo uma maldição, mas Jesus transformou-a numa bênção. Forma de vida, o sangue redentor pagou pelos nossos pecados e abriu as portas de um Reino novo: um convite a todos os povos e o prelúdio da eternidade. Dos pés feridos de Jesus escorre o sangue sobre diversos santos, não identificáveis porque esmaecidos pelo tempo. Do peito, parece cair só sobre São João. Chamamos a atenção para o fato de que, no ícone de São Damião, o sangue brota sempre como uma flor, que traz vida para o mundo. É um sangue que já não martiriza o Crucificado; enaltece o Ressuscitado.


1. Sangue da Vida Na linguagem hebraica da Bíblia, o sangue é a sede da vida. Um corpo sem sangue é um corpo morto. Porque o sangue é a vida, e esta pertence a Deus, Ele vinga o sangue inocente. Beber o sangue seria destruir a vida. Os prodígios com intervenção de sangue anunciavam a vingança divina. Se os próprios judeus derramavam sangue de vítimas junto ao altar é porque queriam significar que toda vida volta a Deus. Por isso, foi um escândalo para os contemporâneos ouvirem Jesus dizer: “Eu garanto a vocês: se vocês não comem a carne do Filho do Homem e não bebem o seu sangue não terão a vida em vocês. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue vive em mim e eu vivo nele (Jo 6,53-56) A custo os cristãos conseguiram libertar-se do modo antigo de conceber o sangue. Por que o sangue de Cristo transmitiria vida? Mas o fundamento do que Jesus estava dizendo era sólido. Só a novidade era tão grande que custou a ser assimilada. E ainda custa. Se o sangue humano transmite vida humana, o sangue de Deus feito homem transmite vida divina. Vamos refletir melhor. Todas as culturas e todas as religiões sempre expressaram a necessidade que temos de expiação e reparação. E, por isso, também falaram em redenção.


Nós vivemos cometendo enganos, leves ou mesmo graves. Muitas vezes, desobedecemos às mesmas leis que criamos. Se nos sentimos na obrigação de pedir desculpas às outras pessoas quando as desrespeitamos ou ofendemos, mesmo que tenha sido “sem querer”, sabemos que algumas falhas são muito maiores e, então, temos que pedir perdão a Deus. Todos os povos sempre tiveram noção de culpa e de pecado, muitas vezes de modo até exagerado. De maneira geral, culpa é o sentimento de responsabilidade pelo erro. Pecado é quando o erro foi contra Deus. Expiação é a nossa disposição de voltar às boas. Reparação é o que fazemos para compensar pelo que foi mal feito. Redenção é uma palavra interessante. Vem do latim re+emere. Ao pé da letra quer dizer “comprar de novo”, isto é, pagar para voltar a ser livre. Esses conceitos sempre foram correntes em todas as culturas. A novidade da Boa Nova de Jesus é que, para fazer tudo isso, ele nos ofereceu a participação na vida divina, aquela grande finalidade para a qual fomos criados e que seria nossa se não tivéssemos querido “ser como deuses”. Os crucifixos comuns derramam sangue para nos comover mostrando como Jesus sofreu por nós. No crucifixo de São Damião, o sangue é derramado por um Cristo glorioso só para demonstrar que, graças a esse sangue, nós ganhamos a vida divina.


2. Cruz da Salvação A própria cruz — duas retas que se atravessam — é símbolo de contradição, de oposição, sinal de morte e sinal de salvação. Comecemos com a contradição. A cruz é símbolo de que Deus veio para subverter todo o mundo que nós tínhamos edificado. É bastante conhecido o texto de 1Cor 1,22-23: Os judeus pedem sinais e os gregos procuram a sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. Um pouco antes, lemos também o seguinte: A linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem. Mas, para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus. Pois a Escritura diz: “Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes” (1Cor 1,18-19). Jesus se coloca em total oposição à nossa sabedoria, a dos que “quiseram ser como Deus”. É bom lembrar que, quando ele foi apresentado no templo, Simeão disse a Maria: Eis que este menino vai ser causa de queda e elevação de muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição (Lc 2, 34). A cruz também é um símbolo muito anterior e muito mais amplo do que o cristianismo: as duas linhas que se cortam podem ser um dos sinais mais claros da “lei dos opostos”, que rege tantas manifestações da natureza. Essa situação indica que sempre há tensão no que vivemos e que sempre há o risco de reduzirmos a tensão fugindo ou nos omitindo. Mas a nossa vida cresce quando sabemos usar os pólos opostos para construir o equilíbrio. Tanto o equilíbrio interior quanto o exterior, de que necessitamos.


De certa forma, a cruz é o contrário da Trindade, porque a Trindade une num ciclo sem fim, enquanto a cruz corta e separa porque considera as forças opostas. Mas a cruz também equilibra as forças opostas e nos permite entrar no ciclo da Trindade. A cruz sempre foi um sinal fácil de fazer, porque basta traçar duas retas em sentido oposto. Talvez seja por isso que a usaram para pregar um condenado de braços abertos, inventando um instrumento de suplício e de morte. Mas foi aí que Jesus, que veio para nos arrancar da morte, transformou a cruz em sinal da vida. São Francisco, que teve uma profunda consciência disso, ensinou desde o começo os seus seguidores a rezarem uma oração que ele mesmo apresenta no seu Testamento, e que também é relatada por seus biógrafos: “Quando encontravam alguma igreja ou cruz, ajoelhavam-se para rezar e devotamente diziam: “Nós te adoramos, ó Cristo, e te bendizemos, em todas as tuas igrejas que estão no mundo inteiro, porque pela tua santa cruz remiste o mundo” (LTC 37). O que ele queria era identificar-se com o Jesus que morreu na cruz obedecendo à vontade do Pai. Queria “seguir os vestígios de Jesus pobre e crucificado”. Entre outras coisas, compôs o Ofício da Paixão, que rezava todos os dias.


1). A luz que vem de dentro O Livro do Apocalipse, a revelação, descreve, no cap. 21, como vão ser o novo céu e a nova terra. Fala de uma cidade toda construída de símbolos. Entre outras coisas, afirma: “Templo não vi nenhum na cidade, pois, o Senhor Deus, o Todo Poderoso e o Cordeiro são o seu templo. E a cidade tão pouco necessita de sol nem de lua para a iluminar, pois a glória de Deus a ilumina e a sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21,22-23). Uma característica dos ícones é que não fazem nenhum jogo de luz e sombras, porque a luz não tem uma fonte exterior, como o sol, o fogo ou uma lâmpada, mas sai da interioridade da pessoa, onde Deus habita. Nesse ponto, o crucifixo de São Damião é um exemplar excelente, porque toda a luz sai do Cristo ressuscitado que está na cruz. Diante dele, São Francisco ficou tão tocado pela percepção dessa realidade, que respondeu com a oração em que pede a luz para o seu coração. Depois disso, toda a sua vida foi o crescimento da iluminação, ele teve uma veneração especial pelo sol e pelo fogo, como símbolos de Deus-Luz e, sempre falou de Deus através de símbolos visuais e, no fim, teve a inspiração do Cântico de Frei Sol, em que, embora estivesse no fim da vida e cego, deu uma amostra de toda a luz que brilhava em seu coração.


Para expressar melhor essa Luz de Deus que vem de dentro dos santos, juntamos alguns textos significativos de São Gregório Palamas, muito venerado no Oriente, quando fala da Transfiguração: “Deus é chamado de Luz não segundo a sua Essência mas, segundo a sua Energia. A luz que iluminou os apóstolos não era algo sensível mas, por outro lado, é igualmente errado ver nela uma realidade inteligível, que só seria chamada de “luz” metaforicamente. A Luz divina não é nem material nem espiritual, porque transcende a ordem da criação e é “o esplendor inefável de uma natureza em três hipóstases”. A Luz da Transfiguração do Senhor não teve nem começo nem fim; permaneceu incircunscrita (no tempo e no espaço) e imperceptível para os sentidos, ainda que tenha sido contemplada por olhos humanos... mas, por uma transmutação de seus sentidos, os discípulos do Senhor passaram da carne para o Espírito”. É uma esclarecedora explicação para entender um dos trechos mais inspirados de São Francisco, aquele em que fala da Eucaristia na sua Admoestação 1. É evidente que o que estamos dizendo enche-nos de admiração. Mas, o mais importante é termos uma consciência cada vez mais nítida da luz que nos está tornando luminosos.


2. O que é o céu? São Francisco, no seu Comentário ao Pai-nosso, explica as palavras: “que estais no céu”: “... nos anjos e nos santos, iluminando-os para o conhecimento, porque Vós, Senhor, sois Luz; inflamando-os para o amor, porque Vós, Senhor, sois Amor; morando neles e plenificando-os para a bem-aventurança, porque Vós, Senhor, sois o sumo Bem, eterno, do qual vem todo bem, sem o qual não há nenhum bem”. Nessa visão, não somos nós que estamos no céu, mas é o céu que mora em nós. No ícone de São Damião, o céu é meio livro, um quadrado cortado pela metade: já ouvimos falar dele o que sabemos por Jesus, mas ainda falta muito para descobrirmos. Não nos foi dado o livro inteiro. Contrasta com o mundo dos santos conhecidos, que ocupa um livro completo, em que os corpos estão inteiros. O importante é que Deus já está em nós, só que ainda estamos procurando avaliar sua plenitude, abrindo-nos cada vez mais para ela. Por isso, Francisco pediu para ser iluminado. Na imaginação popular, o céu é um ambiente fechado, com altos muros e uma porta vigiada por São Pedro. Só os bons entram lá. Pensa-se em um lugar de recompensas, de pra-zer, de alegria de reencontros, da segurança de que o bem nunca mais vai terminar. O importante é pensar que, depois da morte, “Deus vai ser tudo em todos” e, por isso, estaremos na plenitude da Vida.


3). O que é um santo? No Crucifixo de São Damião, são apresentados dez santos no céu: cinco de cada lado de Jesus. Dez é um número simbólico representando a totalidade. Podemos pensar tanto na totalidade de dedos nas mãos e nos pés como na soma dos números mais importantes: 1+2+3+4=10. Jesus fala em dez virgens convidadas para o casamento e em dez moedas que uma mulher festejou quando readquiriu a totalidade. Os dez santos representam todas as pessoas que estão no céu. O fato de serem todos parecidos também pode indicar que, na vida eterna, seremos todos irmãos porque Deus será tudo em todos. É bom recordar que nossas crenças religiosas são, freqüentemente, uma salada cultural das religiões dos mais diversos povos que estão em nossas raízes. Ora, todas as culturas sempre tiveram santos e pecadores, recompensas e castigos, principalmente porque precisavam manter a ordem de seu povo. De alguma forma, os que agiam corretamente eram os “santos” e os que não procediam bem eram os “pecadores”. Para os primeiros, Deus era bondoso, para os segundos era carrancudo e severo. A sociedade de hoje não fala mais em santos e pecadores, mas também tem os seus tabus. Temos bastante dificuldade para distinguir tudo isso da proposta evangélica segundo a qual só Deus é Santo. Santas são as pessoas que se abrem para viver a sua santidade. A santidade vai ser plenitude só quando estivermos na situação definitiva. E não será preciso que nos classifiquem como santos.


Ser santo não é ser sobre-humano, sem defeitos, multiplicando milagres, sendo um bom intercessor. É justamente realizar o que somos. Ter um eu verdadeiro (aquele que Deus conhece), viver a dimensão do corpo tanto quanto a da alma. O fundamental é ir vivendo o processo de transformação. Nesta terra, sempre teremos falhas, mas elas são um elemento muito positivo para ajudarmos o processo vendo o que nos falta e deixando a luz de Deus entrar. Entrar e passar: ela vem de Deus através de todas as pessoas e de todas as criaturas e tem que ser passada adiante por cada um de nós. Quando a Igreja canoniza um santo, o que está fazendo é proclamar que essa pessoa, apesar dos defeitos que possa ter tido e das falhas que possa ter cometido, está agora na luz plena de Deus e pode ser olhada com toda confiança como um exemplo, por nós, que ainda estamos no processo de nos abrirmos para Deus que quer trazer todo o Bem para nós.






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