Danças para vestir o pensamento (um livrodança)

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DANÇASPARA

VESTIROPENSAMENTO (UMLIVRODANÇA)

LUCIANAARSLAN

38. 64. 86. 108.

VESTIROPENSAMENTO UMLIVRODANÇAPARADIVAGAR CO2
04.
DANÇASPARA
TERAPIACOMPAULPRECIADO UMAETRÊSCADEIAS PENSARCOMOCORPO: ANAMIRA,DANÇAEFILOSOFIA CRÉDITOS
16.

UMLIVRODANÇAPARADIVAGAR

Este livrodança é um material híbrido. Apresenta textos, fotos, desenhos e links para vídeos de improvisações. Todos os materiais estão interconectados de forma orgânica, mas os leitorespectadores podem escolher como, em qual tempo e o que desejam acessar.

Longe de querer prescrever um modelo para a leituraudiência dos vídeos, desenhos, movimentos e textos presentes neste livrodança, convido todos a acessar o material de forma livre, elegendo e escolhendo partes dos vídeos apresentados, navegando pelos textos e imagens sem necessariamente seguir uma ordem.

É preciso esclarecer em relação aos vídeos: os trabalhos de movimentação improvisada foram pensados como estudos de corporificação dos textos, como ensaios para movimentá-los – e não como videodanças. Alguns textos (quando transformados em escores) geraram um movimento improvisado de quase uma hora ou mais, uma composição lenta, que foi nascendo no ato de improvisação. Assim, a plataforma destes vídeos é realmente o livrodança. Explicitar esse tempo de escuta do corpo, um tempo mais silencioso, pouco espetacular e eu diria até pouco cotidiano – se considerarmos a vida acelerada que nos permeia – era primordial neste trabalho que é um elogio ao lento, ao silencioso e ao devagar.

Também, as danças improvisadas a partir e com os textos geraram fotos e desenhos, uma notação sensível capaz de rememorar

alguns princípios da experiência que podem ser desdobrados em futuras improvisações.

A ideia inicial deste livrodança surgiu a partir de um laboratório ministrado pela artista e filósofa Ana Mira, que realizei pouco antes da pandemia de Covid-19, no centro em movimento de Lisboa1. Neste laboratório, uma das propostas foi a criação de escores a partir de textos filosóficos: fizemos leituras em voz alta, grifamos e marcamos textos, para posteriormente criarmos escores que dançaríamos e improvisaríamos. Por isso, achei importante aqui, neste livrodança, apresentar uma entrevista com Ana Mira, artista que tem dedicado muitos anos de pesquisa sobre as relações entre pensamento, filosofia e dança.

Finalmente, exponho que este livrodança insere-se numa linhagem de trabalhos corporais que eu, desde 2015, vinha desenvolvendo, com livros2. Entre danças e performances, arrastei, carreguei e amarrei muitos livros, mergulhei em pilhas de livros e realizei um context specific para bibliotecas e ambientes acadêmicos. Este livrodança foi, então, um exercício de transformar o livro em um meio-obra e não somente em tema, imagem, objeto cênico ou discurso presente nas ações.

1 O centro em movimento (c.e.m) é uma espécie de não-escola, localizada em Lisboa. Desde 1990, se dedica a múltiplas áreas de investigação artística, atravessadas pelos estudos do corpo, do movimento e do comum.

2 No apêndice do livro anterior a este, apresento a linhagem destes trabalhos realizados com objetos-livros. Arslan, L.M. CORPO (sentido); corporeidade e estesia nos processos de ensino-aprendizagem. Uberlândia: Regência e Arte Editora, 2020.

QUANDOVESTIMOSOPENSAMENTO?

QUANDODANÇAMOS-PENSAMOS?

Percebi que os textos lidos com o corpo consciente podiam ser complexificados e incorporados. A experiência de realizar danças a partir de pensamentos e reflexões filosóficas me convidou a identificar certas anestesias geradas por certos hábitos de aproximação de alguns discursos/textos, os quais vinha me dedicando a estudar e a aprender-ensinar.3

Entre as ocupações que escolhi para a minha vida, a docência e a pesquisa, deparo-me com leituras que convidam à mobilidade – dos mínimos aos grandes gestos – na vida. Quando estudo, almejo que meus pensamentos, de algum modo, se transmutem em mais vida. Assim, desejei navegar pelas danças que nascem das palavras, imaginei a ação de ler como uma coreografia para fazer as palavras reverberarem na vida.

Estranhar-se no ato de ler, dançar os textos por via de escores abertos foi uma estratégia para ler através do coração (como anuncia o trabalho da artista Mette Edvardsen). Mergulhar no exercício de reconhecer as vibrações dos discursos e experimentar acolher as leituras que excitam e fazem acordar o corpo, reler com os ouvidos, ler com cochiladas, pela voz do outro, girando, arrastando e saltando. Discursos geram danças e danças também

3 Existem vários artistas e festivais que têm levantado questões próximas, dentre os quais destaco a plataforma curatorial "Atos de Fala", que desde 2011 tem realizado ações voltadas para a relação entre o texto e a performance. Concebida por Felipe Ribeiro e Cristina Becker, vídeos e catálogos podem ser acessados no site: https://www.atosdefala.com.br/

geram discursos e pensamentos que acordam e transbordam na vida cotidiana. Dançamos-pensamos.

Através do corpo em movimento ou do corpo em pausa (consciente), podemos compreender os sentidos da leitura somática, provar as palavras assumindo seus limites e suas capacidades para transformar. Qual o alcance das reverberações causadas por uma leitura? Como prolongar o que se lê no mundo? Como um discurso é incorporado?

Tais perguntas relacionam-se com as ideias anunciadas no campo de estudos da somaestética, criado pelo filósofo Richard Shusterman, o qual resgata, através da filosofia e até mesmo das teorias da cognição, como a aprendizagem e o pensamento reflexivo nascem do corpo integral.

O título Danças para vestir o pensamento4 me pareceu uma ótima alegoria para a relação intrínseca entre pensamento e dança. Da forma como aprendi e como venho praticando dança, não consigo mais separar pensamento - dança.

4 Esse nome foi sugerido durante uma aula com a professora Camila Soares de Barros, na qual ela estava apresentando o processo do seu trabalho heterológica, realizado em coautoria com Thiago Righi. O livro digital com a documentação deste trabalho pode ser acessado no site https://www.camilasoares.com.br/heterologica

OESCORECOMOTÁTICADESOAR (ESUAR)OPENSAMENTO-CORPO

O termo escore, na dança, reúne diversas compreensões e usos, pode ser: uma fala/imagem/texto que inspire movimentações corporais, um comando que convide o dançarino a estabelecer algum foco de atenção preciso, uma ou mais tarefas que apresentam um desafio durante o ato de improvisar, um modo de registrar informações para serem posteriormente revisitadas, uma estrutura aberta de movimentação, entre outros.5

Meu contato com os escores foi aprendido através da prática de improvisação: nos estúdios de dança, nas cidades e na vida. Experimentei, no grupo Substantivo Coletivo,6 improvisar a partir de escores apresentados na forma de imagens, por comandos de voz, por gestos, através da emissão de sons, músicas e/ou textos. Mas, também a partir dessas práticas, passei a utilizar escores para reavivar a minha prática como professora da graduação em Artes Visuais, definindo previamente alguns que pudessem afinar a minha presença em composição com os alunos.7 Como forma de aperfeiçoamento pessoal, tenho experimentado escores para aguçar modos de estar, para sintonizar no cotidiano, na vida.

Os escores verbais, aqui neste livrodança, foram utilizados de

5 Burrows, J. A choreographer's handbook. London and New York: Routledge, 2010.

6 O Substantivo Coletivo é um grupo de que faço parte desde 2017. Ele está vinculado ao Núcleo de Estudos de Improvisação em Dança (NEID), um grupo de pesquisa registrado no CNPq, vinculado ao Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia. O site do grupo: https://substantivocoletivo.com.br/.

7 Essa ideia é detalhada no livro: Arslan, L.M. CORPO (sentido); corporeidade e estesia nos processos de ensino-aprendizagem. Uberlândia: Regência e Arte Editora, 2020.

forma híbrida. Os textos serviram como inspiração para a movimentação corporal/somática e também, quando apresentados no meio da improvisação, funcionavam para desarranjar o hábito e provocar uma atenção sensorial capaz de agregar o que estava acontecendo no instante da criação. A experiência a partir dos escores verbais visava modos de incorporar o pensamento, mas muitas vezes o corpo soava no pensamento de tal forma que pude compreender, na experiência, o que vinha a ser o corpo-pensamento.

CO2

"Reconhecerqueatravésdalínguanós tocamosunsnosoutrosparece particularmentedifícilnumasociedade quegostariadenosfazercrerquenãohá dignidadenaexperiênciadapaixão,que sentirprofundamenteémarcade inferioridade;pois,dentrododualismo dopensamentometafísicoocidental,as ideiassãosempremaisimportantesquea língua.Paracuraracisãoentrementee corpo,nós,povosmarginalizadose oprimidos,tentamosresgataranós mesmoseàsnossasnossasexperiências atravésdalíngua."

BellHooks

Texto de Referência:

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 233

CO2

Relaxeetransforme-se (deite) (repouse) Lembrequeaalegriapodecoexistircomo trabalhoduro Umahora,areverênciasetransformaem casulo Sintaoblococomocorpo,ocorredorcomo gargantaeoprofessorcomocélula. Encontrecomaparede,conversecomela. Mantenhacontatocomoqueestáfora.

CO2

Vídeo https://youtu.be/X-F2cLign64
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TERAPIA COM PAUL PRECIADO

"(...)paraentenderarelaçãocorpopodernasociedadedisciplinadora,na sociedadefarmacopornográficaos modelosdecontroledocorposão microprotéticos:agora,opoderatua pormeiodemoléculasincorporadasao nossosistemaimunológico;osilicone tomaaformadeseios, neurotransmissoresalteramnossas percepçõesecomportamento;hormônios produzemseusefeitossistêmicos sobreafome,osono,aexcitação sexual,aagressividadeea decodificaçãosocialdanossa feminilidadeemasculinidade"1

PaulBPreciado

1
PRECIADO, Paul B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 86.

TERAPIA COM PAUL PRECIADO

DACORAGEMDESERVOCÊMESMA

Suamão,suabocaeseusorifícios sãoseus, movimentecomseusorifícios Comosevocêpudessesemovimentar sendovocêmesma.

Movimentecomseusorifícios Dancecomosevocênãofossemaiso queosseusdocumentosdizemdevocê dancecomosetodososabortosfossem pertimitidos

aborteosmovimentosquenãoquer dancecomtodososseusorifícios

Texto de Referência: Preciado, B. Transfeminismo. São Paulo: N-1 Edições, 2017.

TERAPIA COM PAUL PRECIADO

Vídeo https://youtu.be/VpE_7Am2yME
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UMAETRÊS CADEIAS

“Ocomprimentodopequenopassoseráde umpé,odopassocomum,dopassodobrado edopassodeestradadedoispés, medidosaotododeumcalcanharaooutro; quantoàduração,adopequenopassoedo passocomumserãodeumsegundo,durante oqualsefarãodoispassosdobrados;a duraçãodopassodeestradaserádeum poucomaisdeumsegundo.Opassooblíquo seráfeitonomesmoespaçodeumsegundo; teránomáximo18polegadasdeum calcanharaooutro...Opassocomumserá executadomantendo-seacabeçaaltaeo corpodireito,conservando-seo equilíbriosucessivamentesobreuma únicaperna,elevandoaoutraàfrente, apernaesticada,apontadopéumpouco voltadaparaforaebaixaparaaflorar semafetaçãooterrenosobreoqualse devemarcharecolocaropénaterra,de maneiraquecadaparteseapóieaomesmo temposembatercontraaterra"

Texto de Referência: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.

UMAETRÊS CADEIAS

Bomempregodocorpo.

Nadadeveficarociosoouinútil: não-ociosidade.

Umcorpobemdisciplinadonoseu mínimogesto.

dividirocorpoemquantasparcelas forpossíveldividir, desintegrar,CORPO(DES)INTEGRAL

UMAETRÊS CADEIAS

https://youtu.be/F0dkvURVMpg Vídeo
PENSARCOMOCORPO:
ANAMIRA,DANÇAEFILOSOFIA1

Participei do laboratório “Dança e filosofia” orientado por Ana Mira2, no c.e.m. (centro em movimento), em fevereiro de 2020. Neste laboratório compareceram tanto o grupo que estava construindo o festival Pedras ’20 – don’t feed the meaning como também outras pessoas que, como eu, estavam realizando práticas pontuais no c.e.m. Éramos, no total, não mais do que dez pessoas.

Embora muitas das experiências vividas no c.e.m. tenham se amalgamado nas eu-células3 e transformado minhas experiências posteriores, este laboratório de Ana Mira acompanhou-me no pensamento-corpo-dúvida por diversos meses. Vislumbrei, através desta experiência, um modo de jogar com a esquizofrenia na qual eu vivia como professora-pesquisadora-movente. As práticas tradicionais que realizava como acadêmica pareciam um pouco (ou muito) descorporificadas e apenas capazes de anunciar

1 As entrevistas gravadas foram transcritas na íntegra e editadas por Luciana Arslan e Bernardo RB. Foram mantidos alguns traços do português de Portugal, priorizando o conteúdo da conversa. Ao mesmo tempo, foram feitas alterações para o português do Brasil, considerando as especificidades da linguagem escrita.

2 Ana Mira (Ana Sofia Palula Fonseca de Mira) leciona na Escola Superior de Teatro e Cinema - Instituto Politécnico de Lisboa e no Ar.Co - Centro de Arte e Comunicação Visual nas áreas do corpo, movimento e dança, e da filosofia e estética, respectivamente. Estudou práticas somáticas e dança contemporânea na Europa e Estados Unidos. Completou o seu doutoramento em Filosofia /Estética, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade NOVA de Lisboa (2014) sob orientação do filósofo José Gil, como investigadora visitante no Center for Research in Modern European Philosophy - Kingston University e bolsista da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Foi investigadora visitante no departamento de Performance Studies da Tisch School of the Arts - New York University como bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian (2007). Colabora com o grupo de investigação Arte, Crítica e Experiência Estética do Culturelab no Instituto de Filosofia da NOVA (FCSH-UNL) e com centros artísticos como a Porta33. Na performance de dança, destaca a sua colaboração com os coreógrafos Pauline de Groot, Russell Dumas e Rosemary Butcher e a sua adaptação do solo “At Once” (SPCP/2009), de Deborah Hay. Tem publicado os seus ensaios de dança e filosofia internacionalmente. Em seu site é possível acompanhar seus trabalhos: https://ana-mira.com/ 3 Neste texto, a quantidade de termos com hífens justifica-se pelo fato de, no uso comum, muitos termos se encontrarem “raptados” por certos discursos que se contrapõem à ideia de um corpo integral ou de uma perspetiva somática. Por exemplo, a ideia de que “temos” um corpo pressupõe que exista uma consciência extra-corpo. Sinto que, quando a escrita parte de uma perceção do corpo, principalmente a partir da experiência de quem move-pensa, é necessário reorganizar (ou desorganizar) um discurso já muito impregnado de sentidos díspares.

1

uma integração corpo-mente no discurso sem, contudo, exemplificar tal integração na prática universitária.

Muito embora o filósofo Richard Shusterman4, com quem realizei um estágio pós-doutoral na Florida Atlantic University, também oferecesse laboratórios práticos, ele não o fazia com frequência na universidade na qual estava sediado. Em instituições acadêmicas, todo um contexto-espaço com tempos métricos constrange movimentos didáticos que escapam a determinadas lógicas, ainda que paradoxalmente os possam convidar.

Ana Mira ofertou um laboratório que uniu práticas de leiturapensamento-dança, num local de investigações artísticas – não acadêmico –, mas ela tem uma sólida formação acadêmica, realmente incorporada. Talvez por isso eu senti, no eu-corpo-percepção, um escancaramento da unidade (indissociável) entre práticas corporais e práticas de pensamento.

É importante esclarecer que os laboratórios oferecidos pelo c.e.m. seguem um princípio de construção horizontal, no qual os proponentes dos laboratórios atentam-se aos processos dos participantes. Então, o laboratório ofertado por Ana construiu-se também com/naquele grupo.

A confluência entre filosofia, pensamento, cognição e práticas corporais fez nascer um enorme desejo de continuar as pesquisas iniciadas nesse laboratório. Também foi a partir dele e de práticas de escrita na rua realizadas com o c.e.m. que passei a desdobrar diversas camadas somáticas da leitura, da escrita e do pensamento. Passei a atentar-me a certa coreografia do pensamento

4 Realizei um estágio pós-doutoral com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no Center for Body, Mind, and Culture, centro interdisciplinar que fomenta pesquisas relacionadas ao corpo-mente-cultura (fundado e dirigido pelo filósofo Richard Shusterman, que cunhou o termo somaestética).

que invadia desde os mínimos gestos aos movimentos mais amplos e políticos. Principalmente, a minha coreografia com os alunos contagiou-se de sensações experimentadas nesse laboratório: passei a tentar construir e abrir novas possibilidades de pensar as leituras e de conectar as referências teóricas às práticas desenvolvidas de formas pouco usuais. At diante dessa reverberação, um pouco desordenada e às escuras, que desejei contatar a Ana, para poder compartilhar um pouco do seu conhecimento com outras pessoas: as que desejam vislumbrar modos mais orgânicos, somáticos de pensar e habitar o mundo. Então, resolvi contactá-la posteriormente para uma conversa, a qual foi gravada na plataforma Zoom, no ano de 2021, em dois dias, e transcrita aqui por mim, com a revisão e edição de Bernardo RB 6 , que também estev nalmente, a conversa foi importante para pontuar a extensão temporal do próprio laboratório, que não terminou ao fim daquela semana de encontros presenciais: tal organicidade atemporal e o fluxo do tempo vivido no laboratório constituíram uma importante característica dele. Mais do que isso, as duas entrevistas realizadas com Ana, as quais resultaram nos excertos a seguir, me permitiram ainda outro pequeno mergulho no universo dela.

Desejo que o laboratório de dança e filosofia habite muitos espaços-corpos-tempos.

1o encontro: trajetórias

Luciana Arslan (LA): Você agora está dando aula de estética.

Ana Mira (AM): Sim. Eu fiz a graduação em Animação Sociocultural e segui sempre trabalhando com a dança. Depois, quando comecei a estudar Filosofia, como era filosofia/estética, tanto no mestrado quanto no doutorado, as artes visuais predominavam; muito embora José Gil abordasse a dança e apesar de eu nunca ter deixado de praticar, estudar e escrever sobre a dança.

LA: Eu vi que você cita muitos autores das artes visuais na sua tese7.

AM: Sim, por causa da filosofia/estética. Entretanto, em Lisboa, uma escola que é muito interessante, o Ar.Co, abriu uma vaga para lecionar o curso de estética, e já vou para o terceiro ano trabalhando. Então, tenho lido e pesquisado muito acerca das artes visuais, indo atrás dos escritos de e sobre artistas. As artes visuais têm estado cada vez mais presentes.

LA: Como é que surgiu o trabalho do laboratório oferecido no c.e.m. em Lisboa? O que faço hoje é ainda reverberação daquela experiência que tive com você há um ano atrás. Talvez você pudesse falar como é que foi chegando na ideia desse laboratório ofertado no c.e.m.

AM: Em termos (de falar) do trabalho da dança, encontrava-me numa esfera da ativação dos mapas do corpo, das práticas somáticas, da percepção do movimento e de como é que todo esse conhecimento do corpo se traduzia depois na relação com o espaço,

6 O editor/revisor desta entrevista também desenvolve pesquisa sobre aspetos performativos de leitura e de escrita. É possível conhecer um pouco de sua pesquisa no artigo: Bethonico, Bernardo Romagnoli. O texto que existe antes da frase: apontamentos sobre ler, escrever e performar. Revista Digital do LAV, Santa Maria, vol. 9, n. 2, p. 245-260, mai./ago. 2016. https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/22442/pdf

5 O termo soma seria mais adequado, porque se refere ao corpo vivo e integral.

7 Mira, A.S.P.F. Silêncio, potência e gesto: um corpo na dança. 2014. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa, Lisboa, 2014. http://run.unl.pt/handle/10362/14026

com o tempo, com o público e na composição e criação coreográfica. Estava assim nesse lugar de uma escuta ampla do corpo, com alguma compreensão do modo como o corpo se forma-desformaforma permanentemente, as práticas incorporadas suscitam movimento e o revelam no espaço, no tempo e na criação, também.

Em relação aos estudos de filosofia, no início parecia que estava a partir pedra, porque eu não tinha feito a licenciatura nesse campo...cada vez que era dada uma referência bibliográfica, eu conhecia muito pouco. Esse mestrado era muito exigente, durou cinco anos. Não era como aqueles mestrados de um a dois anos. Tive vários seminários e depois ainda foram mais dois ou três anos a escrever. Então, foi quase uma licenciatura, só não o foi porque a graduação teria ido mais à história da filosofia e ali no mestrado enveredei, desde o início, pela filosofia/estética. Com a urgência de escrever a tese, fui fechando e aprofundando as leituras. A história da filosofia tenho feito agora, aos poucos. Naquela altura foi só receber, estudar, ouvir. Tive a oportunidade de estudar com José Gil8 e Maria Filomena Molder9. Então, fui acolhendo, fui acolhendo...

Escrevi a tese de mestrado, e esse esforço para traçar o pensamento e escrever sobre a dança... Durante a tese escrevi sobre o filme de um dueto dançado do coreógrafo australiano Russell Dumas. Ele vinha do Royal Ballet, mas também passou por Cunningham, não quis ficar na Merce Cunningham Dance Company,

8 José Gil, nascido em 1939, em Lourenço Marques, Moçambique, foi professor catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade NOVA de Lisboa, onde é, atualmente, pesquisador no IFILNOVA. Lecionou Estética, Filosofia da Arte e Filosofia Moderna e Contemporânea. É filósofo e ensaísta, sendo autor de vários livros que abordam problemas estéticos, destacando-se nas suas preferências a reflexão sobre o corpo.

9 Maria Filomena Molder, nascida em 1950, foi professora catedrática na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade NOVA de Lisboa, onde é, atualmente, pesquisadora no IFILNOVA. É filósofa e escreve extensivamente sobre problemas estéticos – enquanto problemas do conhecimento e da linguagem, sendo autora de vários livros.

acabando por fazer parte da Trisha Brown Dance Company durante os anos que viveu em Nova Iorque. Tinha uma linguagem de movimento enraizada e fluida e cada coreografia era desenvolvida através de um contato próximo com os bailarinos com quem trabalhava. Ele, que vinha da dança clássica e moderna, e depois da pós-modernidade da dança de Trisha Brown, já tinha começado naquela altura a estudar as práticas somáticas que apareceram nas décadas de 1960 e 1970, e a integrar esses ensinamentos na sua experiência da dança. Quando o vi dançar e aos seus bailarinos senti... parecia que todas as impressões que eu tinha colecionado de workshops, espetáculos, documentos e arquivos... tudo aquilo que eu mais gostava... se reunia na sua linguagem de movimento, no seu estilo. Estive com Russell Dumas algumas vezes na França, numa residência artística que ele tinha.... Tentei aprender, percebi que era difícil incorporar a sua linguagem de movimento, pois iria demorar. Ainda assim, pude ter a experiência corpórea dessa linguagem e regressei a Lisboa com uma fita VHS, que mostrei para José Gil e disse que gostaria de escrever sobre o filme do dueto dançado “ABCDEFG”, de Russell Dumas (1994)10.

Durante os cinco anos de mestrado, acolhi muito das aulas. E fui lendo. Com algumas dificuldades no início e, ao mesmo tempo, a aprofundar o olhar sobre aquele trabalho, aquele dueto dançado, a tentar traduzi-lo, escrevê-lo, analisá-lo pela escrita. Esse foi o grande esforço do mestrado. A prática do estudo, o dar voz à escrita em torno do corpo e da dança, isso aconteceu ali, tal como

10 Mira, A. ABCDEFG: The feet understand, tese de Mestrado não publicada em Filosofia /Estética, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade NOVA de Lisboa, 2008 http://hdl.handle.net/10362/135616

eu tanto procurava.

Quando terminei o mestrado recebi uma bolsa da Gulbenkian com duração de três meses para estudar no departamento de Performance Studies da Tisch School of the Arts – New York University (era para ter ido antes, durante o mestrado, mas não consegui apoio). Como já tinha terminado a tese há mais tempo, fui assim mais disponível para apreender as matérias que lá se trabalhavam. Ali, com André Lepecki, Richard Schechner e Diana Taylor, desenvolvi o gosto pelos estudos da dança e performance, assim como pelos arquivos e documentação, pela perspetiva de um arquivo vivo. Nesses três meses, como estava nos Estados Unidos, participei no projeto Into the Folds (2008) do Sense Lab11 com Erin Manning e Brian Massumi, em Montreal-Canadá. Tratava-se de um workshop de movimento e filosofia com vinte participantes. Ainda estava em Nova Iorque, quando recebi uma série de textos de Henri Bergson, Alfred North Whitehead, Gilles Deleuze, José Gil e Friedrich Nietzsche. Li tudo e fui para lá.

O workshop aconteceu num espaço amplo e o encontro foi informal apesar do rigor na leitura e discussão dos textos. De manhã cedo, alguns participantes do projeto orientaram aulas de ioga ou movimento...A Erin Manning também propôs uma prática de tango a partir da escuta do corpo, para além da sua exposição com texturas: ela desenvolve um trabalho nas artes visuais com tecidos e cores e, no espaço do workshop, encontrava-se uma, ou talvez mais, das suas peças criando uma espécie de filtro, véus e dobras. Gostei bastante de participar neste workshop de movi-

11 O SenseLab está situado em Montreal e se define como um "um laboratório de pensamento em movimento" onde são experimentados modos de pensar coletivos e através de várias práticas. http://senselab.ca/wp2/

mento e filosofia, onde a prática e a teoria coexistiam.

Depois reuníamo-nos com os textos nas mãos, alguns tinham lido mais, alguns que vinham da filosofia sabiam mais sobre as matérias propostas, outros menos. O workshop foi acontecendo, conversávamos em torno dos textos, e creio que ali eu apanhei o jeito de reunir um grupo de pessoas em torno de alguns textos e desenvolver práticas de filosofia e movimento, de sentarem-se todos no chão. Porque, para mim, ora estava no estúdio a pesquisar movimento, ora estava na universidade sentada numa cadeira e debruçada sobre os textos. Enquanto fui aluna de José Gil e Maria Filomena Molder assisti ao cuidado que ambos tinham em conhecer o trabalho de cada aluno. Tentavam fazer com que as aulas tivessem poucos alunos e decorressem à volta de uma mesa. Mas nem sempre era possível, porque muitas pessoas queriam assistir às suas aulas...eu lembro de haver pessoas fora, à porta da sala. Enquanto mestranda e doutoranda, pude ter encontros de orientação com ambos. Enfim, era um curso de filosofia na Universidade NOVA de Lisboa. A dança e a filosofia estavam separadas, sabes? E, de repente, poder participar naquele workshop numa espécie de armazém, de galeria, mudou tudo poder ver uma peça ali ao fundo, num espaço aberto.

LA: É apaixonante ver as imagens que eles têm no website do SenseLab.

AM: E foi mais aquele jeito particular que eles tinham de fazer: para fazer uma prática estávamos sentados no chão e outros sentados não sei onde, havia uma mesa com uma comidinha lá ao fundo, e estávamos lá para estudar conceitos. Trabalhámos textos

de Bergson, de Simondon... numa relação mais horizontal com os filósofos do que na academia. Procuro nutrir uma atitude de respeito por todas as pessoas em qualquer lugar, mas aquele modo de estar [do SenseLab] aproximava-se daquele que eu conhecia das aulas de dança, apesar de se estar a trabalhar com a filosofia.

Depois também fizemos jogos que eram práticas de teoria, como o Conceptual Speed Dating, que despertou em mim outros modos de abordar a teoria e filosofia: desenvolver práticas teóricas que não eram de corpo, movimento, dança. O Conceptual Speed Dating é um jogo em que metade dos participantes se divide para um lado e metade para o outro. Depois, um grupo forma os flows (fluxos) e, a outra metade, forma os posts (postos). Aos postos foram atribuídos conceitos (como, por exemplo, o “molecular” de Deleuze e Guattarri) e cada um dos postos (com o seu conceito) passava a ocupar um lugar fixo no espaço. Os fluxos circulavam por entre os postos, dialogando com eles e reunindo apontamentos sobre cada um dos conceitos. O tempo é cronometrado de modo que os fluxos mudem de posto sucessiva e rapidamente. Por acaso, não fiz esse jogo no laboratório de dança e filosofia em que participaste, mas é um dos que costumo propor.

Durante o jogo, os orientadores colocavam uma música muito alta para os fluxos transitarem de posto a correr. Já não me lembro quanto tempo se tinha em cada posto...poucos minutos. Há

um texto de Brian Massumi sobre o Conceptual Speed Dating12. O tempo que tinhas em cada posto era muito pouco, a música soava alto para os fluxos transitarem de posto. Estavas sempre a mudar de posto-pessoa-conceito e a pensar alto e velozmente,

12 Manning, E. & Massumi, B. Thought in the Act: Passages in the Ecology of Experience. The University of Minnesota Press, 2014.

em diálogo. Obviamente, quanto mais se conhecesse cada conceito melhor. Chegávamos a jogar durante uma hora, algo assim, a correr de um lado para o outro, zum zum zum, a ter conversas de 2 ou 3 minutos com cada posto. Todos iam tirando notas, então, quando o jogo terminava, tinhas listas de possíveis sentidos para cada conceito.

Nunca tinha pensado assim, sabe: fazer um jogo com teoria. Para mim a teoria era [Ana faz um gesto de leitura] ... Eles entregaram os textos antes, li todos. Portanto, não se tratava de esquecer o lugar de ler devagar, de estudar, de escrever, mas era depois em coletivo poder mesclar, confundir, conversar alto e rápido. No final do jogo ainda nos reunimos todos para falar outra vez dos conceitos e cada um de nós sabia muito mais. E tentávamos também esclarecer algumas dúvidas, porque ao mesmo tempo há um trabalho rigoroso com os conceitos. As pessoas quando vêm de outras áreas inventam muito... observei quando Massumi dizia, “não, esse conceito não quer dizer isso... quer dizer isto...”. Ahhh, não, esse conceito não quer dizer isso...

De qualquer modo, todo aquele diálogo que se gerou foi inspirador, marcou-me profundamente. Quando regressei a Lisboa fiz o primeiro laboratório de dança e filosofia a partir dessa experiência. Fui construindo o programa do laboratório sem esquecer o rigor dos textos. Preparar cuidadosamente, ler, escrever, apontar e fazer mapas... Nos laboratórios, não ter receio de convidar as pessoas para se ler junto, para se conversar sobre aquilo que se estava a ler. E assim construir uma prática. Ou, transmitia uma prática a fazer e voltava-se a conversar.

Outra experiência que me marcou foi a minha passagem pelo departamento de Performance Studies, em Nova Iorque. A primeira vez que lá estive ainda estava a viver em Amsterdã e foi antes de iniciar o mestrado. Quis lá estudar e entrei, mas não consegui financiamento. Escolhi, então, estudar filosofia tal como tanto queria.

Nessa minha primeira visita ao departamento de Performance Studies na New York University, fui para uma aula, já não me lembro de quem era, fui assistir para poder elaborar a candidatura para mestrado. Entrei na sala, era grande, tinha um chão ótimo para se fazerem práticas de movimento. Tinha a possibilidade de projetar imagem, também havia mesa e cadeiras que facilmente se empurravam para o lado para se ficar com mais espaço.

Era o modo como essa sala física estava organizada. Poderes passar do computador e da projeção de imagem para a mesa de trabalhos e, depois, para o espaço vazio. Foi assim: temos tudo idealmente! A própria sala me marcou.

A prática que nós fizemos, sabe qual foi? Tínhamos que escrever sobre nós mesmos como se tivéssemos morrido. E tinha de ser como se estivéssemos escrevendo para o jornal. Tínhamos que escrever o nosso próprio obituário.

LA: Essa experiência foi posterior ou antes do c.e.m?

AM: Comecei a estudar com Sofia Neuparth quando tinha por volta dos 16 anos, antes do c.e.m. ser o c.e.m. Quando participei no projeto do SenseLab, eu já ia com muito estudo de dança. E tinha terminado o mestrado. Só que a filosofia é muito difícil e os meus estudos nesse campo ainda eram recentes.

Então, quando cheguei ao SenseLab, eu já tinha estudos de dança e tinha terminado o mestrado. O percurso do mestrado tinha sido fascinante, mas eu ainda não sabia bem como trabalhar com os dois campos, para além de ter percebido que podia sempre escrever.

Aquelas experiências fizeram-me compreender que podíamos cruzar a dança e a filosofia... de outro modo que não fosse só pela escrita. Também podiam ser modos de pesquisa coletivos. Podia fazer naquela altura um movimento inverso, estudar filosofia para voltar à dança.

2º encontro: sobre qual estado o corpo alcança (sobre o laboratório de Dança e Filosofia)

AM: O laboratório não “é”, comecei a construí-lo, mas está sempre a crescer. Ainda que os encontros não tenham um método, há algumas premissas. Espero que nunca tenham um método. Gostava que fosse criando objetos artísticos: textos, peças de dança. Nunca desfazendo da parte da investigação, mas gostava mais disso do que chegar a um método.

Existem modos de fazer e um dos principais é como um objetivo: é difícil que exista na academia o aprofundar na mesma sala de aula as diferentes práticas de leitura, de escrita, de movimento e de diálogo. E todas as variantes que daí derivam: o ler juntos, alto; ou ler só um e os outros escutam; ou ler todos com o texto na mão; ou um tem o texto na mão e os restantes têm os olhos fechados, entre outras variantes possíveis. Essas são, vamos chamar assim, premissas, porque acho que “método” seria uma coisa ter-

rível (caso o laboratório se fechasse num método). Essa é uma forma de aprofundar diferentes práticas num mesmo grupo, na mesma sala de aula e com a experiência que cada um tiver. Não é preciso ser-se filósofo para que um texto de filosofia nos diga alguma coisa, ou não é preciso ser bailarino para pesquisar a relação com a gravidade. Essa é uma premissa.

Outra premissa é encontrar formas de transposição entre estas diferentes práticas. Quer dizer, acredito que cada uma pode ser aprofundada por si só, enquanto se encontram formas de transpor umas práticas para as outras. Por exemplo, construir pesquisas de movimento a partir dos textos que estávamos a ler. Portanto, essa questão das variantes é importante porque nessa construção até se pode cortar um texto aos bocadinhos, em segmentos, e espalhá-los pelo estúdio até se conseguir alcançar essa partitura. São práticas difíceis, no sentido de não serem imediatas. Não se constrói uma partitura assim, sem mais nem menos. Às vezes pode ser difícil transpor um plano, que muitas vezes é bastante conceitual, para depois não poder “ser” no movimento. Então, não é imediato, há que ensaiar essas formas de transposição entre diferentes práticas sem desfazer o tempo dedicado a cada uma delas. Acho que, se estivéssemos sempre a transpor, se estivéssemos sempre a ler e a pensar que estamos a transpor, pronto, isso não... porque, por exemplo, se não lermos atentamente, também não vamos compreender o que aquele autor está a dizer, o que às vezes acontece quando se está numa zona de experimentação, às vezes até em peças artísticas que convocam a filosofia, já tenho visto que é rápido demais e fica superficial. Então, para mim é importante esse movimento vertical do estudo aprofundado do

texto, assim como são importantes as pesquisas de movimento, mesmo se não estiverem aproximadas do texto. Entrar num plano de prática cuidada, por exemplo, não começar logo pela leitura e interpretação dos textos e desenvolver uma prática; fazer um movimento sensível de relação com o espaço, com o tempo e/ou recorrer a uma técnica ou cruzamento de técnicas que sabemos fazer. Não ter medo de passar tempo com uma das práticas: a leitura, as práticas de movimento, de composição, de improvisação, de escrita, de diálogo e suas variantes. Depois, encontrar modos de transposição entre as diferentes práticas. Como por exemplo, podemos construir pesquisas de movimento ou partituras de improvisação e composição a partir dos textos. Mas também pode acontecer a partir de uma pesquisa de movimento encontrar-se um modo de aceder a um texto; ou seja, o texto não tem que ser o ponto de partida.

LA: No nosso laboratório [em fevereiro de 2020, no c.e.m.] começavamos pelo texto, mas como você disse a leitura também pode vir depois. Se bem que, na verdade, há uma camada somática na leitura.

AM: Por exemplo, no vosso grupo, e em outros, a leitura já não acontece sobre uma mesa, já não há um orador, e há todo um trabalho anterior que permite que a leitura se faça num outro plano, mais sensível. No entanto, também pode acontecer, no próprio laboratório, partirmos de uma prática de movimento e nela encontrar uma tal forma de transpor para a leitura, ou para a interpretação de um texto. Portanto, entre essas premissas, e sem criar um método, existem as práticas numa relação horizontal entre si, ou seja, sem hierarquia: não é o texto que domina, são

as diferentes práticas. Igualmente, é importante dar tempo a cada uma delas, pois nenhuma é a principal. Até porque como estávamos a ver, se vou a um centro de dança desenvolver uma prática de leitura, nunca é igual a trabalhar com uma turma de filosofia que até pode querer experimentar o movimento. Depois, há sempre aquilo que cada um transporta consigo, aquilo que cada um é. Portanto, o laboratório procura que as práticas não tenham uma hierarquia entre si, antes nele são experimentados diferentes modos das mesmas se cruzarem.

São importantes os momentos que tiramos para refletir sobre o que acontece, para conversar ou, por exemplo, para rever, reconstruir ou reconstituir algum momento. Deixar pousar, deixar cair, também são movimentos pertinentes. Durante a tese de doutorado, trabalhei muito uma ideia de documento sensível que era uma espécie de mapeamento do movimento traduzido pelo próprio movimento e pela escrita. Sinto que são importantes estes momentos de reflexão sobre aquilo que aconteceu, que podem ter também as suas variantes: pode cada um ir para o seu canto escrever ou fazer um desenho sobre o caminho que percorreu, fazer um desenho com partes escritas, ou até tentar reconstituir ou transmitir a alguém a experiência que teve. Estes momentos, sinto que são importantes, porque refletir sobre o que acontece e sobre as passagens entre as práticas cria a possibilidade de avançar mais um pouco.

Há outra premissa (há mais, que não sei ainda...), que é a relação entre o estar só e o coletivo. Por acaso, no nosso grupo de laboratório no c.e.m. correu bastante bem, porque cada um... eu senti que cada um se sentia suficientemente só e acompanhado ao

mesmo tempo. Não invadimos muito o espaço uns dos outros, creio, facilmente dispersávamos e facilmente nos reuníamos. Não é sempre assim, às vezes há grupos que só funcionam quando estão todos juntos, outras vezes, há um elemento que está sempre a ir-se embora e acaba por perder os momentos de que precisa e da força do coletivo. No nosso laboratório foi dinâmico, muito orgânicas estas mudanças. Mas eu não tenho resposta para isso, é importante criar espaço onde cada um sinta que pode estar só e em coletivo. E se for possível que cada um sinta essa responsabilidade de cuidar um pouco desses estados, também, sem se mutilar, no sentido de sentir que naquele dia ele queria não estar ali ou ficar no canto do estúdio com os olhos fechados, pronto. Criar espaço para isto, mas de algum modo também conseguir que o laboratório vá avançando, que não tenha pontos de ruptura. Às vezes os pontos de ruptura são interessantes, mas numa semana... a relação entre o estar só e o coletivo, dar espaço para que os dois coexistam e, de preferência, que cada um sinta o timing em si e nos outros para estar só ou em coletivo. Acho que esta premissa é importante porque há passos que só se dão sozinhos e outras vezes há passos que só se dão em grupo. É preciso ir compreendendo e identificando estes momentos do só e do coletivo de se afastar do grupo e de regressar. É preciso aceitar esses movimentos de condensação e dispersão ao longo das diferentes práticas, aliás também podem haver diferentes formas de estar para cada uma das práticas.

Outra das premissas é a da escuta do corpo que igualmente acontecia com o seu grupo. A cada experiência é convocada uma escuta do corpo diferentemente para cada prática, até para

conversar. Eu me lembro, num dos laboratórios (por vezes reajo mal a comentários deste gênero, acho que reagi mal e bem), foi logo no primeiro dia, passados alguns minutos, tínhamos começado a ler um texto e já alguém dizia: “Ah, mas eu não penso assim, porque...”. Respondi: “Calma, às vezes precisamos escutar como é que um autor pensa e, assim, abrimos um bocadinho o nosso próprio modo de pensar ou, então, quando soubermos, já podemos dizer melhor porque não pensamos assim”. Em grupos artísticos acontece trabalharem com teoria de uma forma muito rápida (e não é que isso esteja errado), mas nestas premissas e propostas do laboratório convoca-se esse cuidado, rigor.

LA: Isso me faz pensar sobre uma coreografia do pensamento, como se você estivesse olhando para esse movimento do pensamento.

AM: Exatamente. Não acho que estejam erradas leituras mais horizontais do texto, “apanhar as ideias no ar” e fazer nascer outros pensamentos e gestos. É que, como tenho feito, tem havido uma tendência para interpretar o texto, acreditando que, quanto mais compreender sobre o pensamento de algum autor ou autora, mais longe irei, em termos de abrir as minhas perspetivas, modos de ver, e não começar a interpretar logo de alguma maneira: é isso, essa escuta.

Porém, essa escuta do corpo também existe na prática de movimento. No laboratório de dança e filosofia a prática de movimento é influenciada pelas práticas somáticas, a dança contemporânea e as artes marciais internas num modo de fazer pouco estilizado, antes sensível de estudar o movimento do corpo

Depois, outra premissa, mas que vem na sequência dessa, consiste na ideia de testemunho, de testemunhar. Refiro-me ao modo como nós sentimos que nos desdobramos naquele que faz e naquele que assiste ao que está a acontecer. E somos esse ser desdobrado, que está a fazer e a assistir, não a julgar, mas a acompanhar. A partir daí podem surgir gestos ou palavras, textos que transportam a investigação mais longe. Na tese de doutorado chamava sensações-objeto aos gestos ou sequências de movimento que emergiam da investigação. Para chegar à sensaçãoobjeto, tentei compreender aquilo que José Gil denominava por forma de forças, que já não se encontravam apenas no plano das formas. Tratava-se de formas que vinham de forças e estas vêm de uma intensificação; intensificação do corpo ou do ato de ler, escrever. Há uma altura que se sente surgir alguma coisa que vai para além do plano da investigação, que tem um contorno capaz de suscitar uma vontade de compor ou até de expor. Talvez seja o contorno que marca o surgimento da sensação-objeto. E daí, caminhando um pouco para trás, essas sensações-objeto, quando as encontramos, às vezes aparecem e são tão fortes que sentimos: “Ah, era isto mesmo que não sabia dizer pela escrita ou através do movimento. Mesmo que não saiba dizer o que é, mas, ah, é isto.” Aí, aparece o contorno.

E ainda outra premissa: seria de voltar àquilo que apareceu, reconstituir. Há um grande problema, porque não se pode reconstituir a partir da reprodução da forma. É preciso ir atrás e tentar lembrar que sensações, ou talvez até que conceitos, ou que pensamentos e reflexões filosóficas suscitaram aquilo que apareceu.

e filosofia.

Talvez as reconstituições, ou reconstruções, possam ser feitas a partir das próprias sensações, qualidades, densidades e texturas que se foram encontrando por ali. A partir daí, estas sensaçõesobjeto podem tornar-se formas muito precisas, as tais formas de forças que falamos ou, então, vão variando, mas são uma espécie de lugar ao qual se retorna. No laboratório, raramente se convoca esta possibilidade da consolidação de um objeto artístico final, no sentido convencional do termo (sabendo que não faz muito sentido dizer isto é artístico ou não é artístico). Se essa possibilidade se abre é porque existe uma curiosidade de se tentar perceber que objeto artístico pode surgir do cruzamento entre a dança e filosofia, quer seja através de um dispositivo cénico ou da escrita.

No outro dia estava a ver um filme que nem cheguei ao fim, já era tarde. Era sobre uma estudante de dança que estava a ler um livro de Isadora Duncan13. Tinha vinte e poucos anos e estava a ler esse livro. Depois ela ia para o estúdio, compunha em frente ao espelho, às vezes largava o espelho, com música, sem música... ela sabia ler o sistema de anotação de movimento de Laban (Labanotation) e, assim, reproduzir a dança de Isadora Duncan. Nós víamos ela no café ou no jardim a ler o livro, ou à noite... e a entrar no universo da escrita de Isadora Duncan, nas histórias que ela contava da vida dela. Ia para o estúdio e nós a víamos a criar gestos, a afinar os gestos. Então, tudo era uma espécie de um enredo que se ia construindo, que é como se faz normalmente coreografia. Ela escrevia, fazia desenhos, copiava partes do livro, coreografava. E sempre foi assim, né? Essa busca de imagens e

13 Duncan, Isadora. Isadora Duncan – minha vida. Tradução de Gastão Cruls – 11ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

de textos. A diferença consiste em tentar perceber que “coreografias” podiam surgir a partir deste trabalho de dança e filosofia. Não é tanto a coreografia que me intriga, mas o estado que o corpo alcança e as imagens que aparecem.

Eu gosto também de obras: não gosto de ficar sempre no processo. Gosto de um texto, de uma peça de dança. Talvez seja o tal contorno que torna uma obra plena em si... o que fazer para que se trace?

Ainda não surgiu este espaço no laboratório de dança e filosofia que tem vindo a desenvolver-se no âmbito da investigação.

Agora, um apontamento que reporta à tua pergunta inicial sobre como o laboratório era oferecido em outros lugares e como vinha se transformando. Obviamente, aprende-se muito no contato com cada grupo, muda tudo. Por exemplo, contigo, a sensação que tenho é a de não compreender o alcance a que estás a levar o laboratório. Sinto que o laboratório te afetou e levou a desenvolveres pesquisas e trabalhos. Tenho curiosidade em conhecer o que tens feito e vou aprendendo aos poucos contigo, apesar desse movimento ir para além do laboratório de dança e filosofia em que participaste. Isso é bonito, sentir que alguma coisa do laboratório continua para além dele. E vai para lugares que nem imagino para onde estarás a levar. Dá vontade de aprender com esse movimento, porém dá vontade também de deixar ir, de deixar seguir. Claro que cada grupo afeta o laboratório, é mais uma razão para não se formar um método e deixar que o laboratório se vá construindo ao longo do seu próprio caminho.

Gostava que o laboratório tivesse um carácter permanente. Já tentei fazer isso uma vez, mas com outros dois ou três trabalhos

ao mesmo tempo, não consigo. Vai acontecendo de outras formas. Na dança, há pessoas que têm uma aula que lecionam regularmente durante muitos anos, nem que seja uma vez por semana, uma vez por mês. Alguns até tinham, agora já menos, um estúdio e aquela era a sua aula. Durante os dois anos que vivi em Amsterdã estudei com uma bailarina e coreógrafa chamada Pauline de Groot. Na altura, ainda havia o estúdio com o seu nome. Ela dava uma aula às segundas-feiras de manhã desde há muitos anos atrás – Slowly-Slowly –, a qual ia evoluindo ao longo do seu percurso na arte e na vida. No laboratório, eu me sentiria bem com isso, devia ser assim. Não tem acontecido, mas gostaria que o laboratório acontecesse em permanência e por muito tempo.

CRÉDITOS

Ter a pia com Paul Preciado

Mediação corporal na improvisação e preparação corporal: Mariane Araujo. Conceção e criação da trilha sonora: Lucio Pereira (com voz Mariane Araújo). Orientação de pesquisa: Vivian Barbosa e Camila Soares. Edição do vídeo: Luciana Arslan. Foto Performances: Paulo Soares Augusto e Luciana Arslan. Consultoria artística e concepção gráfica: Daniel Lima. Colaboração de Alexis Silva e da 7a turma de Dança da Universidade Federal de Uberlândia nos feedbacks.

Uma e três cadeias

Mediação corporal na improvisação e preparação corporal: Mariane Araujo. Conceção e criação da trilha sonora: Lucio Pereira (com voz Mariane Araújo). Orientação de pesquisa: Vivian Barbosa e Camila Soares. Edição do vídeo: Bruna Freitas. Foto Performances: Paulo Soares Augusto e Luciana Arslan. Consultoria artística e concepção gráfica: Daniel Lima. Colaboração de Alexis Silva e da 7a turma de Dança da Universidade Federal de Uberlândia nos feedbacks.

CO2

Dramaturgia holística e orientação somática: Emiliano Manso. Conceção e criação da trilha sonora: Lucio Pereira. Orientação de pesquisa: Vivian Barbosa e Camila Soares. Edição do vídeo: Bruna Freitas. Fotoperformances: Paulo Soares Augusto e Luciana Arslan. Consultoria artística e concepção grá fi ca: Daniel Lima. Colaboração de Alexis Silva e da 7a turma de dança da Universidade Federal de Uberlândia nos feedbacks. Elaboração dos escores: Bianca Bernardes Trazzi, Eduarda de Lima Suzumura Catita, Francielly Caetano Ribeiro, Gabriela Barbano, Leonardo Eurípedes Nelson Borges, Maria Rosa de Paiva Cardoso, Maria Victoria Moreira Maia, Mariana Ribeiro Barca, Millena Danaila de Oliveira, Samara Milany Viana dos Santos, Sílvia Martins Parreira, Tayná Portilho do Prado, Vitor Ferreira Marquez, Vitor Silva Grevy, Vitoria Marra Brasileira Martins, Brunna Augusta Monteiro Pereira, Cláudia Silva Guimarães, Diego Victor Rezende Rocha, Eduarda Cardoso Alves, Jeffrey Candido do Prado, Luciano Araújo Ferreira, Luyz Renó Martins, Suzana Adamy da Rocha.

Luciana Arslan

Luciana Arslan transita entre as áreas de ensino, dança e performance. Suas práticas artísticas e pesquisas abordam as relações entre corpo, cognição e experiência estética. Desde que estudou Somaestética, no Center for Body, Mind and Culture na Florida Atlantic University (pesquisa pós-doutoral com bolsa da CAPES) passou a intensificar suas pesquisas somáticas.

Além de ter cursado dança – bacharelado na Universidade Federal de Uberlândia, vem realizando diversos cursos livres e laboratórios em locais diversos (Butoh-Centre MAMU, The Place, And_Lab, c.e.m, Estúdio Nova Dança, entre outros).

Na Universidade Federal de Uberlândia, é docente do Instituto de Artes, coordena o grupo de pesquisa SOMA, onde pesquisa principalmente, estesia e corporeidades nos processos de ensino-aprendizagem e é também integrante do grupo de pesquisa NEID, com o qual desenvolve projetos relacionados a improvisação em tempo real.

É autora dos livros: Corpo (sentido): corporeidade e estesia nos processos de ensino-aprendizagem, e Ensino de Arte, (com coautoria de Rosa Iavelberg). Organizou outras publicações pela Editora da UFU, Composer e Regência e Arte e desde 2009 escreve obras didáticas de arte (com co-autoria de Rosa Iavelberg e Tarcisio Tatit Sapienza) para a Editora Moderna.

Agradecimentos

Daniel Lima pela orientação artística e cuidadosa concepção visual do trabalho. Universidade Federal de Uberlândia, em especial os Cursos de Bacharelado em Dança e Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia (por apoiar a presente trabalho). Paulina Maria Caon e Raquel Mello Salimeno de Sá (pela leitura prévia do trabalho). Vivian Vieira Peçanha Barbosa por sua orientação generosa durante o estágio. Paulo Soares Augusto pelas fotos e pela afetiva parceria artística.

Ana Mira por ter aceito e dedicado seu tempo no texto da entrevista. Por fim, gostaria de agradecer ao meu irmão, André Mourão Arslan, por ter me ensinado, entre muitas coisas, a lidar com a impermanência.

1a Edição | São Paulo | 2023

Invisíveis Produções

Editor: Daniel Lima

Revisor: Bernardo Romagnoli Bethonico

Capa: Paulo Soares Augusto e Luciana Arslan

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

A783d Arslan, Luciana. 2023 Danças para vestir o pensamento [recurso eletrônico] /Luciana Arslan. -- São Paulo : Invisíveis Produções, 2023.

109 p.: il. ; (col.)

ISBN: 978-65-87484-04-4

Livro digital (e-book)

Disponível em: https://issuu.com/invisiveisproducoes

Inclui bibliografia. Inclui ilustrações.

1. Dança. I. Título.

André Carlos Francisco Bibliotecário - CRB-6/3408

Atribuição-Uso não-comercial 3.0 Brasil www.creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/br/ Este livro pode ser utilizado, copiado, distribuído, exibido ou reproduzido em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, incluindo fotocópia, desde que não tenha objetivo comercial e sejam citados os autores e a fonte.

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