Axés do Sangue e da Esperança

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Texto de Orelha de Muniz Sodré AXÉS DO SANGUE E DA ESPERANÇA Quando Abdias Nascimento poetisa o princípio cosmológico da água doce (“Senhora Nossa Oxum/ Fora quem transfigurou vosso sangue vermelho/ Na gesta cunhada/ No cobre deste abebê que me cobre/ Nas cores rituais de vossas vestes/ No dendê que me doura/ o vatapá e o acarajé...”), o leitor obriga-se à aventura de uma viagem mítica, para aceder à plena fruição do texto. Terá de saber, assim, do vigor do vermelho, axé principal, na mitologia de Oxum; da fecundidade expressa em seus símbolos, de seu poder genitor, da cor amarela de seus metais, de seu leque ritual, de suas comidas. Desta natureza é o solo que espera o “viajante” em Axés do Sangue e da Esperança. Alguém poderá objetar que se exige erudição do leitor. E a alegação terá procedência. Mas vai deixar de lado o fato que essa erudição pode ser encontrada no povo, nessa massa de milhões que cultua os princípios cosmológicos oriundos da África, os orixás. Por aí se vê a coloração poética de Abdias do Nascimento – é negra como sua pele, como seu pertencimento étnico-cultural.

Mas Abdias – homem de teatro, de cátedra, de ensaios inflamados de lutas políticas – faz mesmo poesias? Bem, não há em seus versos as grandes “metáforas obsedantes” nem as tão decantadas imagens sonoras reclamadas pelos críticos de escola. Os temas são modulados mais pela emoção do escritor diante de sua profundidade mítico-ideológica do que pela pura e simples unidade melódica das palavras. Abdias obtém, no entanto, por intensidade emotiva, um ritmo que deixa transparecer o ethos de lamento, protesto e júbilo de uma etnia. Axés do Sangue e da Esperança é um convite à reinvenção do discurso sobre o negro, assim como Rimbaud nos incita a “reinventar o amor”. O amor de Abdias do Nascimento parece viver e agitar-se pelo poder das palavras, invenções, explosões, com que ele compõe seus poemas, suas cantigas, - por que não? – seus orikis?

Muniz Sodré






Copyright © 1983 by Abdias do Nascimento Este livro foi feito no regime de coedição com a RIOARTE Desenhos: Abdias do Nascimento Fotografias antigas: álbuns da família Nascimento Fotos de Paulo Freire e de Yemanjá: Elisa Larkin Nascimento Foto na Serra da Barriga: Josival Melo Capa: Ana Maria Silva de Araújo Ilustração da capa: Abdias Nascimento: reprodução da pintura A Flexa do Guerreiro Ramos (acrílico sobre tela, 106 x 156 cm., Búfalo, NY, EUA, 1971). O título da obra homenageia o sociólogo negro falecido em 1982. Contracapa: foto de Elisa Larkin Nascimento por Abdias Nascimento

Edições Achiamé Ltda. Rua da Lapa, 180, sobreloja 20021 – Rio de Janeiro – RJ Brasil Editor Robson Achiamé Fernandes Coordenação Editorial Moacyr Cirne


INTRODUÇÃO GRIOT & GUERREIRO Lélia Gonzalez A poesia de Abdias Nascimento tem muito a ver com sua pintura e com seu teatro. Exatamente porque cada registro nos remete ao outro, numa espécie de circularidade, tematizando, em suas respectivas linguagens, um campo cultural alternativo àquele totalitariamente imposto pela cultura dominante: Abdias “poeteia, pinta e teatraliza” porque e enquanto negro. A força metafórica de seus versos, a força colorida das formas de seus quadros, a força dramática de suas peças, ele não buscou nas escolas ocidentais especializadas em “fazer artistas”, mas nesse campo cultural alternativo, repito, reelaborado e recriado pelo povo negro em nosso país. É do axé (para os nagôs) ou do muntu (para os bantus), é dessa força vital doadora da existência e da transformação dos seres que ele retira a energia que perpassa os três registros em que sua criação artística se expressa. Como nos diz Muniz Sodré, o “muntu, assim como o axé, existe nos animais, minerais, plantas, seres humanos (vivos e mortos), mas não como algo imanente: é preciso o contato de dois seres para a sua formação. E, sendo força, mantém-se, cresce, diminui, transmite-se em função da relação ontológica do indivíduo com os princípios cósmicos (orixás), com os irmãos de linhagem, com os ancestrais, com os descendentes” (A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro, Ed. Codecri, 1983, PP. 129-130). 9


Não é por acaso que, no poema de abertura, “Padê de Exu Libertador”, o autor invoca esse princípio da existência individualizada e também princípio dinâmico da comunicação, veiculador do axé que é Exu (Sodré, Muniz, op. Cit., p. 122), dizendo: (…) Imploro-te Exu Plantares na minha boca O teu axé verbal Restituindo-me a língua Que era minha E ma roubaram (...) É recebendo o axé plantado por Exu ( e atende-se para o plantado), que eu posso retornar a língua que me foi roubada; é absorvendo esse axé que retomarei o conhecimento de um saber que me foi tirado pela violência física, pelo terrorismo cultural, pelo etnocídio a que fui submetido por aqueles que escravizaram meus ancestrais e que, hoje, me exploram e discriminam, afirmando sua “superioridade” e sua “civilização”; é retomando o “meu falar antigo/ por tua força devolvido”, que não me perderei nas armadilhas das abstrações vazias que só fariam me arrancar do chão o que piso com meus pés desnudos e ligeiros na dança do aqui e do agora, onde passado e futuro estão presentes. Por isso mesmo, com teu axé, “percorrerei as distâncias do nosso aiyê/ feito de terra incerta e perigosa”… Por outro lado, é importante ressaltar que esse poema de abertura não ocupa tal lugar por mero acaso. Ele aí está como elemento indispensável à abertura do ritual que cerimonializa as atividades da comunidade-terreriro. E 10


falar de ritualidade é dizer uma das marcas típicas da cultura negra. “todo ritual, diz-nos Muniz Sodré (op. cit., p. 130), implica num conjunto de procedimentos (verbais e não-verbais) destinados a fazer aparecerem os princípios simbólicos do grupo, aquilo que os gregos acabaram chamando de verdade (alétheia)”. E é fazendo seu padê de Exu que Abdias “abre os trabalhos” rituais para que sua verdade, sua negra verdade de homem negro, possa surgir no xirê de sua vida de an-danças por esse aiyê, “feito de terra incerta e perigosa”. E, na invocação dos orixás, convertido em griot, ele conta cantando filho de josina, a de braços escarificados em “buquês de queimaduras e cicatrizes” pelos tachos de pasta fervente de goiaba. De Exu a Oxalá, em terras africanas ou da diáspora, os orikis/poemas se seguem, cumprindo os procedimentos do ritual nagô/bantu. Em linguagem ocidental, diríamos que é este o modo de estruturação do livro. “Mãe” é, sem a menor dúvida, um dos melhores poemas do texto, dada a sua grande riqueza metafórica. O elemento líquido – desde “águas primordiais de Olokum” (que nos remetem a Isis, Oxum e a todas as grandes-mães míticas), ao leite e ao sangue – constitui o mar por onde o griot/ poeta navega suas lembranças de infância, suas andanças solimônicas com amigos/irmãos, suas denúncias de negro revoltado, seus soluços de sensibilidade ferida, seu amor generoso pelos de sua linhagem. Na verdade, ele narra o seu mergulho no ventre da vida. O axé, implorado no poema de abertura, manifestase na força de palavra que navega “do Egito antigo a Oshogbo a Franca”, cantando o amor que exalta Josina doceira, mãe-de-leite de filhos alheios, senhora do saber das ervas que curam os males e as mazelas dos que a ela recorriam (e que não foram poucos). Josina, a do amor 11


valente, “jamais enfraquecido/ na queixa ou na lágrima”. Josina, mulher negra oprimida e explorada pelos senhores da terra francana, terra que “se alimentou/ do teu suor/ dos teus ossos/ da tua carne/ golpeada pela necessidade”. Josina, mulher de José, “não o carpinteiro/ mas o sapateiro”. Josina, mãe de Benedito, Rubens, Dedé, Oliveira metalúrgico, Antônio, Abdias e Ismênia, brotados das águas e do sangue de seu ventre (não cheio de graça, mas de axé). Josina, a dos braços vigorosos “nos quais/ navego teus abraços/ nesses braços que soa teus/ traço a ternura dos lábios meus/ à flor borbulhante do sangue/ que chamusca tua pele escura/ no tacho da tua existência/ tão curta de alegria/ tão sofrida de vivência/ raiz fincada na terra ao/ infinito de tua compaixão/ unicamente partilhada/ à graça pura da doação”. Ninguém melhor do que o poeta negro para cantar o amor à mulher-mãe. Mas o canto da mulher-filha também se faz presente em “Evocação da Rosa”, oferecido a Yemanjá, a quem conheci nas terras geladas de Búfalo, qual um raiozinho de sol dos trópicos exilado. E o que se tem, na “Evocação da Rosa” é mais uma doação de amor paterno que fala da própria infância para a infância da filhinha distante. E, na história da gatinha Rosa, fica uma espécie de apelo que, dada a continuação do xiré da vida, tenta dizer à filhacriança, ainda não mulher: - Vê? Temos algo em comum. Eu também já fui criança. Já em “Lucina” se delineia o amor à mulher-amada, metonimizada em Lua. Uma sensualidade tépida, que perpassa pelo poema, desvela a sensibilidade do amante (filho de Oxum, é bom não esquecer) em seus doces apelos à amada: “Vem Lucina pálida/ que ao teu luar/ beijarei teu lunar” ou, então, “Vem Lucina pálida/ genoflexo beijarei teu sexo”. Mas eis que o queixume do amante, que deseja sua 12


“rosa da noite/ se abrindo toda da lua ao reflexo”, explode no grito alegre do africano “ministro alufá/ Xangô servidor do sexo / bebedor de aluá” que em tempo de lunação, clama por lues, “lues não/ Tragam-me luas luanas/ venham luandas aruandas”… E neste poema de amor, onde nosso griot fala de sexo, as rimas se sucedem prazerosas nos volteios das danças e contradanças do ato de amor (perplexo, complexo, reflexo, luniflexo, desflexo etc). Mas só no finalzinho do poema, encontrei aquela que, a meu ver, o caracteriza sem rodeios: amplexo. Afinal, já nos primeiros versos, nosso griot fala de um escafandrista que mergulha em profundas águas enluaradas... Aliás, a história desse poema é bastante curiosa. Primeiro, porque “Lucina” foi o primeiro poema publicado do autor (em Paris, na revista Le temps dês loups, nº 45, 1969). Segundo, porque se trata de seu único poema por encomenda; justamente para fazer parte de uma antologia que tematizava a Lua, com a contribuição de poetas de todas as partes do mundo. Vivia-se, naquele momento, o impacto do lançamento do Sputnik e demais satélites artificiais. Por essas e outras, ele nada teria a ver com o xirê que estamos acompanhando. Mas quem é que pode determinar os desígnios da criação poética? Sobretudo quando ela se faz sob a égide dos orixás, esses doadores de axé? Os passos do ijexá, cantado pelo griot/poeta, conduzem-nos ao solo sagrado de Oshogbo. E aqui, o cântico se eleva, intensificado pelo toque dos atabaques, agora na exaltação da Grande-Mãe Mítica. Em sua “prece a Oxum”, o filho-peixe mensageiro, num relato indignado, denuncia os senhores da acumulação que em sua blasfêmia selvagem sacrificam milhões de crianças negras aos ídolos de seu terrorismo colonialista. E mais, sob a hipocrisia do 13


que chamam de “sincretismo”, obrigam-nos a, “em lugar de vosso sagrado nome/invocar nomes profanos/ nossa senhora da conceição/ nuestra señora de la caridad del cobre/ fetiches pagãos insanos”. Na denúncia indignada, afirma-se a heterogeneidade em face da ideologia dominante ocidental que, em sua fome de controle absoluto, só permite a afirmação da diferença, justamente porque esta não passa de um disfarce da sua exigência totalitária de homogeneidade transparente. Chegamos agora ao ponto culminante do nosso xirê. Aqui, a heterogeneidade se afirma plena de axé, no canto forte do griot e no toque acelerado do adarrum. Pisando firme no espaço sagrado dos orixás, dos ancestrais, do mito e do rito, a dança também se acelera. E do peito do griot explode um oriki tonitruante de conclamação à luta, imagem terrível de Xangô Justiceiro. Pontuado pelo ritmo candente dos atabaques, aqui e ali marcadamente nomeados, o brado ecoa vibrante, arremetendo contra a “descivilização ocidental”, etnocida em sua “universalidade” ditatorial, letal em seu unitarismo sectário (“na sola dos pés sangrentos/ temos dançado/ o madrigal da escravidão/ o minueto do tráfico/ o fado do racismo/ agora na pele flamejante dos tambores/ dancem eles o nosso baticum de guerra/ até despontar aquela aurora/ de dançar o afoxé/ da nossa batalha final vitoriosa”). Por tudo isso, há que desfraldar a bandeira tricolor, não aquelas do imperialismo ocidental, mas a do panafricanismo, “úmida do sangue negro derramado/ no combate vermelho sempre continuado/ pela integridade verde da herança nativa poluída”. Em sua dança de guerra, transfigurado em Ogum, com o ixé de Oxum em seu peito fincado, nosso griot de novo “firma o ponto” da heterogeneidade: “somos a semente noturna do ritmo/ a 14


consciência amarga da dor/ florescida nos toques anunciadores/ da perenidade das coisas vivas”. Empunhando o agadá, “obrigação de Ogum e Ifá, o griot/ guerreiro conclama seu povo a transfigurar o tempo do chorar e reclamar em tempo de afirmação do próprio ser, através da luta semeada com decisão, ampliada “com ardor e paixão” às custas da “incompreensão/ do inimigo ou irmão”. Pois só o ser-em-luta é capaz de se desvencilhar das armadilhas do louvor e do egoísmo, do desejo de glória ou do medo da morte, todas elas armadilhas, sobretudo a última, “do insensível mundo branco”. Afinal, “tempo de viver (ensina Ajacá)/ é tempo de morrer”. E para aqueles que ainda titubeiam, continua: “uns já estão mortos/ vivendo/ nós estaremos vivos/ morrendo”… “O Agadá da Transformação”, a meu ver é como um testamento mito-poético que o guerrilheiro Abdias lega a seus irmãos. Mas há que estar no campo alternativo da cultura negra para que o axé/ muntu nele contido possa ser absorvido, afim de que se apreenda o seu segredo. Laroiê! No xirê de sua vida, nosso griot canta muitos outros orikis, dançando-os ao ritmo do opanijé, do ijexá, do alujá, do adarrum e tantos outros, ao passar por terras míticas e/ ou reais. Deles aqui não falei, para não ser repetitiva ou por efeitos de minha própria limitação. Mas diante de um deles me curvo em silêncio respeitoso, já que a minha iniciação até ai não chegou. Refiro-me ao oriki de encerramento, “Axexé em Oxalá”… E, retomando o canto de outro poeta, ficamos por aqui: Tá contada a minha história Verdade, imaginação Espero que o Sinhô 15


Tenha tirado uma lição: Que assim mal dividido Esse mundo anda errado (…) Afinal, a lição que nos foi dada é de que, inclusive, a gente tem o mundo da gente pra contar a nossa história. ORAYEYEO! AXÉ/MUNTU!

Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 1984

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NOTA SOBRE O AUTOR Abdias Nascimento nasceu em Franca, SP, no ano de 1914, filho do sapateiro e músico José Ferreira do Nascimento e da doceira e ama de leite Georgina Ferreira do Nascimento. Formou-se em Economia pela Universidade do Rio de Janeiro em 1938 e foi o primeiro diplomado no histórico Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), em 1957. Concluiu pós-graduação pelo Instituto de Oceanografia em 1961. Fundou, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), primeira entidade afro-brasileira a romper com a barreira racial no teatro brasileiro, vinculando a luta pelos direitos civis dos negros à recuperação e valorização da herança cultural africana. Atuou, a partir de 1950, como curador do projeto Museu de Arte Negra do TEN. Vivendo no exterior durante 13 anos em função da repressão do regime militar, Abdias Nascimento lecionou nas universidades Yale, Wesleyan, do Estado de Nova York, nos EUA, e Ilé-Ifé (hoje Obafemi Awolowo), na Nigéria. Atuou intensamente nos eventos e nas iniciativas internacionais do pan-africanismo e de cultura negra, levando ao palco mundial a denúncia da discriminação racial no Brasil. Nessa época, desenvolveu a sua produção artística como pintor, trabalhando temas da matriz cultural africana, e expôs em museus, universidades e centros culturais. Retornando ao Brasil em 1981, ele liderou a fundação da Secretaria do Movimento Negro do Partido Democrático Trabalhista, participou da criação do Memorial Zumbi e do Movimento Negro Unificado e fundou o IPEAFRO – Instituto de Pesquisas e Estudos AfroBrasileiros. Como deputado federal, ele apresentou a 17


primeira proposta de criminalização do racismo (PL1661/1983) e de cotas e amplos programas de ação afirmativa pela igualdade racial (PL 1332/1983). Atuou na criação da Fundação Cultural Palmares e lutou junto com o movimento negro pela instituição do dia 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos Palmares, como Dia Nacional da Consciência Negra. Em 1991, Abdias Nascimento se tornou o primeiro senador afrodescendente a dedicar o seu mandato à promoção dos direitos dos negros no país. O Centro Schomburg de Pesquisa das Culturas Negras, Biblioteca Pública do Município de Nova Iorque em Harlem, homenageou Abdias Nascimento com o Prêmio da Herança Africana Mundial em 2001, ano em que ele proferiu uma das conferências principais do Fórum das ONGs da Conferência Mundial Contra o Racismo de 2001. As Universidades de Brasília, Federal da Bahia, do Estado da Bahia, do Estado do Rio de Janeiro, e Obafemi Awolowo na Nigéria lhe outorgaram título de Doutor Honoris Causa. A UNESCO lhe conferiu o Prêmio Toussaint Louverture em comemoração ao bicentenário da revolução do Haiti. Abdias foi indicado oficialmente ao Prêmio Nobel da Paz de 2010. Ele faleceu em maio de 2011, pouco depois de celebrar 97 anos na Escola de Samba Villa Rica, Ladeira dos Tabajaras, Rio de Janeiro.

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OBRAS PUBLICADAS SELECIONADAS Livros O Griot e as Muralhas, com Éle Semog. Rio de Janeiro: Pallas, 2006. Quilombo: Edição em fac-símile do jornal dirigido por Abdias do Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2003. O quilombismo, 2a ed. Brasília/ Rio de Janeiro: Fundação Cultural Palmares/ OR Produtor Editor, 2002. O Brasil na Mira do Pan-Africanismo. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais/ Editora da Universidade Federal da Bahia EDUFBA, 2002. Orixás: os Deuses Vivos da África/ Orishas: the Living Gods of Africa in Brazil. Rio de Janeiro/ Philadelphia: Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros/Temple University Press, 1995. A Luta Afro-Brasileira no Senado. Brasília: Senado Federal, 1991. Nova Etapa de uma Antiga Luta. Rio de Janeiro: Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Negras – SEDEPRON, 1991. Africans in Brazil: a Pan-African Perspective, com Elisa Larkin Nascimento. Trenton: Africa World Press, 1991. Brazil: Mixture or Massacre, trad. Elisa Larkin Nascimento. Dover: The Majority Press, 1989. 19


Combate ao Racismo, 6 vols. Brasília: Câmara dos Deputados, 1983-86. (Discursos e projetos de lei). Povo Negro: A Sucessão e a “Nova República”. Rio de Janeiro: Ipeafro, 1985. Jornada Negro-Libertária. Rio de Janeiro: Ipeafro, 1984. A Abolição em Questão, co-autoria com José Genoíno e Ari Kffuri. Sessão Comemorativa do 96o Aniversário da Lei Áurea (9 de maio de 1984). Brasília: Câmara dos Deputados, 1984. Sitiado em Lagos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980. Sortilégio II: Mistério Negro de Zumbi Redivivo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. (Peça de teatro). Sortilege: Black Mystery, trad. Peter Lownds. Chicago: Third World Press, 1978. Mixture or Massacre, trad. Elisa Larkin Nascimento. Búfalo: Afrodiaspora, 1979. O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. Racial Democracy in Brazil: Myth or Reality, trad. Elisa Larkin Nascimento, 2a ed. Ibadan: Sketch Publishers, 1977. Racial Democracy in Brazil: Myth or Reality, trad. Elisa Larkin Nascimento, 1a ed. Ile-Ife: University of Ife, 1976.

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Sortilégio (mistério negro). Rio de Janeiro: Teatro Experimental do Negro, 1959. (Peça de teatro). Organização de antologias, revistas, e obras coletivas Thoth:Pensamento dos Povos Africanos e Afrodescendentes, nos. 1-6. Brasília: Senado Federal, 1997-98. Afrodiaspora: Revista do Mundo Africano, nos. 1-7. Rio de Janeiro: IPEAFRO, 1983-86. O Negro Revoltado, 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Journal of Black Studies, ano 11, n. 2, dez. de 1980. (número especial sobre o Brasil). Memórias do Exílio, org. em colaboração com Paulo Freire e Nelson Werneck Sodré. Lisboa: Arcádia, 1976. Oitenta Anos de Abolição. Rio de Janeiro: Cadernos Brasileiros, 1968. Teatro Experimental do Negro: Testemunhos. Rio de Janeiro: GRD, 1966. Dramas para Negros e Prólogo para Brancos. Rio de Janeiro: TEN, 1961. Relações de Raça no Brasil. Rio de Janeiro: Quilombo, 1950.

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ÍNDICE Página Introdução: Lélia Gonzalez Nota sobre o autor Prefácio: Paulo Freire Padê de Exu Libertador Mãe Autobiografia Escalando a Serra da Barriga Evocação da Rosa Prece a Oxum Oriki da Elisa Testemunhando Búfalo Olhando no espelho Brisas panamenhas Contraponto de um negro e um paternalista branco El brujo de Palmares Evocação noturna de Copacabana Lucina Peregrinação a Gorea Mucama-mor das estrelas O sangue e a esperança O agadá da transformação Tempo de Rag Rumo a Bluefields Regresso ao Orum Axexê em Oxalá Glossário

9 17 26 31 38 47 50 55 59 65 67 71 75 79 82 88 91 96 102 107 109 115 118 119 122 124 130 23


Abdias, Yemanjá e Lélia Gonzalez Búfalo, abril de 1979.

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Elisa: nestes axÊs celebro a celebração perene celebrada em nosso amor compartilhado

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Paulo Freire e Abdias Nascimento GuinĂŠ-Bissau, 1976

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PREFÁCIO De nome, naturalmente, fazia tempo, um bom tempo, que conhecia Abdias do Nascimento, quando, certo dia, nos encontramos pela primeira vez em Nova York. Estivemos juntos por horas conversando em torno de nosso exílio, das nossas esperanças, dos nossos projetos. Do que fazíamos naquele momento, ele, nos Estados Unidos; eu, no Chile. O exílio foi sempre um tempo, em qualquer espaço, para encontros, até então irrealizados, entre muitos de nós. Montevideu, Santiago, La Paz, Toronto, México, Bissau, Nova York, Berlin, Estocolmo, Paris, Genebra, Londres – diversificada e extensa geografia – foram alguns destes espaços que medializaram muitos destes encontros. Encontros que eram, quase sempre, como se fossem reencontros de velhos amigos e companheiros. Em que ora “curtíamos” uma saudade “mansa” do Brasil, ora sentíamos com relação a ele o mesmo que Unamuno com relação à Espanha, quando um dia ele disse: “A Espanha me dói”. O Brasil nos doía ontem e continua as nos doer hoje, profundamente. A segunda vez em que nos encontramos, Abdias e eu, foi em Dar-es-Salaam. Sentados, estivemos de novo, por longo tempo, naquela vez numa praça do agradável campus da Universidade de Dar, conversando sobre a África, sobre as marcas profundas que dela recebemos; sobre a arrogância branca negando, desdenhando, minimizando ou distorcendo o valor daquelas marcas. Não sei se, naquela conversa, cheguei a dizer a Abdias o quanto a minha primeira visita a Tanzânia me tinha tocado, o quanto me havia possibilitado o reencontro comigo mesmo. 29


Nosso terceiro encontro, no tempo ainda do exílio, se deu uma vez mais em terra de África. Bissau foi o sitio em que ele ocorreu. Em todas estas oportunidades, Abdias era o mesmo intelectual comprometido, o mesmo artista criador, a mesma sensibilidade inquieta. Sua prática confirmando sempre o seu discurso. A sua poesia, tão amena quanto forte, expressão também de seu engajamento fundamental. Nada neste livro bonito nega ou contradiz a sua forma de estar sendo no mundo – nada nega suas raízes que lhe dão vida e autenticidade. “Leito de sangue negro emudecido no espanto clamor de tragédia não esquecida crime não punido nem perdoado queimam minha entranhas.”

Paulo Freire Perdizes Outubro, 1981

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PADÊ DE EXU LIBERTADOR Ó Exu ao bruxoleio das velas vejo-te comer a própria mãe vertendo o sangue negro que a teu sangue branco enegrece ao sangue vermelho aquece nas veias humanas no corrimento menstrual à encruzilhada dos teus três sangues deposito este ebó preparado para ti Tu me ofereces? não recuso provar do teu mel cheirando meia-noite de marafo forte sangue branco espumante das delgadas palmeiras bebo em teu alguidar de prata onde ainda frescos bóiam o sêmen a saliva a seiva sobre o negro sangue que circula no âmago do ferro e explode em ilu azul Ó Exu Iangui príncipe do universo e 31


último a nascer receba estas aves e os bichos de patas que trouxe para satisfazer tua voracidade ritual fume destes charutos vindos da africana Bahia esta flauta de Pixinguinha é para que possas chorar chorinhos aos nossos ancestrais espero que estas oferendas agradem teu coração e alegrem teu paladar um coração alegre é um estômago satisfeito e no contentamento de ambos está a melhor predisposição para o cumprimento das leis da retribuição asseguradoras da harmonia cósmica Invocando estas leis imploro-te Exu plantares na minha boca o teu axé verbal restituindo-me a língua que era minha e ma roubaram sopre Exu teu hálito no fundo da minha garganta lá onde brota o botão da voz para 32


que o botão desabroche se abrindo na flor do meu falar antigo por tua força devolvido monta-me no axé das palavras prenhas do teu fundamento dinâmico e cavalgarei o infinito sobrenatural do orum percorrerei as distâncias do nosso aiyê feito de terra incerta e perigosa Fecha o meu corpo aos perigos transporta-me nas asas da tua mobilidade expansiva cresça-me à tua linhagem de ironia preventiva à minha indomável paixão amadureça-me à tua desabusada linguagem escandalizemos os puritanos desmascaremos os hipócritas filhos da puta assim à catarse das impurezas culturais exorcizaremos a domesticação do gesto e outras impostas a nosso povo negro Teu punho sou Exu-Pelintra quando desdenhando a polícia defendes os indefesos 33


vítimas dos crimes do esquadrão da morte punhal traiçoeiro da mão branca somos assassinados porque nos julgam órfãos desrespeitam nossa humanidade ignorando que somos os homens negros as mulheres negras orgulhosos filhos e filhas do Senhor do Orum Olorum Pai nosso e teu Exu de quem és o fruto alado da comunicação e da mensagem Ó Exu uno e onipresente em todos nós na tua carne retalhada espalhada por este mundo e o outro faça chegar ao Pai a notícia da nossa devoção o retrato de nossas mãos calosas vazias da justa retribuição transbordantes de lágrimas diga ao Pai que nunca no trabalho descansamos esse contínuo fazer de proibido lazer encheu o cofre dos exploradores 34


à mais valia do nosso suor recebemos nossa menos valia humana na sociedade deles nossos estômagos roncam de fome e revolta nas cozinhas alheias nas prisões nos prostíbulos exiba ao Pai nossos corações feridos de angústia nossas costas chicoteadas ontem no pelourinho da escravidão hoje no pelourinho da discriminação Exu tu que és o senhor dos caminhos da libertação do teu povo sabes daqueles que empunharam teus ferros em brasa contra a injustiça e a opressão Zumbi Luiza Mahin Luiz Gama Cosme Isidoro João Cândido sabes que em cada coração de negro há um quilombo pulsando em cada barraco outro palmares crepita os fogos de Xangô iluminando nossa luta atual e passada Ofereço-te Exu 35


o ebó das minhas palavras neste padê que te consagra não eu porém os meus e teus irmãos e irmãs em Olorum nosso Pai que está no Orum Laroiê!

Búfalo, 2 de fevereiro de 1981

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Dona Georgina e JosĂŠ Ferreira do Nascimento (Franca, provavelmente em 1911)

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MÃE (em memória de minha mãe Josina – Georgina Ferreira do Nascimento) Quero navegar Franca tuas campinas onde ao roçar teu capim mimoso as siriemas de alongadas pernas me devolvem aos ouvidos cansados de tanto ouvir o eco de canto metálico martelando espasmódico teus horizontes de fugitivas miragens Navego teus cafezais (outros navegaram canaviais) à fresca lima transparente refresco a febre ressecante da minha ânsia adolescente Não navego ainda (conforme deveria) as águas primordiais de Olokum pois temerário navegador das águas secas remando vou a terra roxa da qual o joão-de-barro incessante constrói sua morada Nado braçadas de léguas léguas dos teus cafezais que infinitam em verde este escuro olhar 38


gerado ao tempero cheiroso do marmelo ao caldo suculento do mocotó à pasta fervente da goiaba escarificando nos reluzentes braços de minha mãe buquês de queimaduras e cicatrizes Navego o sangue de tua terra arroxeada ao sangue pisado no plantio das árvores na colheita rubro-negra do “melhor café do mundo” Mergulhador do sangue nasci de nascença sei que pouco importa ao sangue a peripécia sofrida quando o próprio sangue o teu mãe nos ensina ao coração que desfalecem e renascem de tua bondade humana de teu amor valente jamais enfraquecido na queixa ou na lágrima Navego teu leite perfume de flor de laranjeira mergulho teu seio materno que me devolve à boca leite primal de Isis irmãe amantesposa 39


Isis que me pariu em seus negros seios leite negro me nutriu Navegador do sangue navegador do leite sei dos que vieram e se foram antes de mim pois no sangue deles flutuo Navego a santificação do seu martírio de escravos celebro seus quilombos levantados suas Áfricas enfurecidas em minhas veias plenas de eguns antepassados Navegador de aurora e desastres um sabiá canta no meu sangue esta gota rubra trazida pela manhã ao gotejar dos meus crispados olhos O bisturi da madrugada revolve as feridas enquanto o sonho mal sonhado intensifica a pulsação dorida deste navegar de morte e vida protoplasma do meu leite do meu sangue viagem sem volta só de ida Piloto das tempestades 40


com Efraím e Gerardo navego o absurdo as piranhas da peripécia neste navegar aos pegos e pagos a caminho em Villaguay descerei no sorriso angélico del hombre verde uma ardente orquídea plantarei em Ipueiras um presente do africano Apolo (disfarçado em grego) entregarei bacamarte chapéu de couro alpercata de rastreador ao poeta do rastro dos Mourões tripulantes da irmandade Raul Bó Godo Napoleão no rastro da liberdade desde o prata ao solimões navegamos a maldição deste navegar de solidões Mergulho a doçura da mãe adoçada no amargo doce ígneo algoz queimador da beleza dos teus braços Braços vigorosos nos quais navego teus abraços nestes braços que são teus traço a ternura dos lábios meus a flor borbulhante do sangue que chamusca tua pele escura 41


no tacho da tua existência tão curta de alegria tão sofrida de vivência raiz fincada na terra ao infinito de tua compaixão unicamente partilhada à graça pura da doação Navego os que virão e nem semente ainda são no espelho refletida esta rubra gota tua me vejo e me reconheço membro da raça daqueles esculpidos de rochas e troncos de cujo vinho junto a Ogum nos embebedaremos e à direita e à esquerda à frente e atrás deceparemos cabeças neste atlântico sanguinolento aos gemidos de sangue maldito navegaremos do mar de orelhas cortadas ao mar do sangue vindicado navegando nossas armas da liberdade Navego o pus e o luto que rutilam a gota do teu sangue profanado jorrando em mim séculos de gritos milênios de ritos 42


Esta terra roxa terra francana princípio de navegação não te enterrou mãe não foi tua amarração esta terra se alimentou do teu suor dos teus ossos da tua carne golpeada pela necessidade mas a verdade de ti mesma escapou da cova aberta neste chão Soluçando meu pranto navego minha alegria na gota infinita da tua presença nutrindo os bagos vermelhos de romã infundindo delicadeza ao ramo da avenca afinando o gorjeio dos pássaros Navego tua gota em mim espessa gota nos bagos do meu pai José não o carpinteiro mas o sapateiro José Ferreira do Nascimento em tua gota navegante nos bagos de José vieram o Benedito e o Rubens também chamado de coronel Café 43


o José Filho alcunhado Dedé depois o Oliveira metalúrgico Antônio doador de coragem e alegria iluminado dos Orixás e da materna valentia perdido vim eu o navegador sem bússola da mesma gota tua fertilizante dos óvulos da maninha Ismênia frágil mãe adolescendo nos doces olhos contritos protegendo a criança fundida a seu corpo num corpo único sem costura nem conflito lentamente submergindo a juventude dos seus gritos no inocente silêncio da correnteza dos aflitos Gotejando vermelha gota arroxeando a terra dos espaços arroxeando os espaços do tempo do Egito antigo a Oshogbo a Franca tua é a gota miraculosa a gotejar as águas prístinas dos mares e oceanos de Olokum nestas águas escuras todos nós à proteção dos girassóis de Xangô os que vieram ontem 44


os de hoje os que virão amanhã enia dudu de sangue imperecível nadaremos nosso mar de sangue mergulharemos nosso oceano de leite varando os cabos de tormentas náufragos do sonho bebedores de sangue e das águas da liberdade na fonte do teu ventre mãe

Búfalo, 1977

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IrmĂŁ IsmĂŞnia. (Provavelmente em 1935)

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AUTOBIOGRAFIA

EITO que ressoa no meu sangue sangue do meu bisavô pinga de tua foice foice da tua violação ainda corta o grito de minha avó LEITO de sangue negro emudecido no espanto clamor de tragédia não esquecida crime não punido nem perdoado queimam minhas entranhas PEITO pesado ao peso da madrugada de chumbo orvalho de fel amargo orvalhando os passos de minha mãe na oferta compulsória do seu peito PLEITO perdido nos desvãos de um mundo estrangeiro libra... escudo... dólar... mil-réis Franca adormecida às serenatas de meu pai sob cujo céu minha esperança teceu minha adolescência feneceu e minha revolta cresceu CONCEITO amadurecido e assumido emancipado coração ao vento não é o mesmo crescer lento que ascende das raízes ao fruto violento 47


PRECONCEITO esmagado no feito destruído no conceito eito ardente desfeito ao leite do amor perfeito sem pleito eleito ao peito da teimosa esperança em que me deito

Búfalo, 25 de janeiro de 1979

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Abdias Nascimento escalando a Serra da Barriga, 24 de agosto de 1980

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ESCALANDO A SERRA DA BARRIGA Eis aqui o chão ancestral debaixo dos meus pés seu coração pulsa o vibrante tan-taneo subterrâneo trepida a matriz da terra negra grávida de tanta lágrima tanta vida tanta esperança perdida Meus passos ecoam ao resgate da esperança pelo caminho antecedente (nem largo nem estreito) soturno ruído de correntes à luz de Orum incandescente olho oculto das sementes olho sábio de Orumila em minha semente coetânea Escalo a íngreme encosta ardentes palmas perfilam na gota do meu sangue onisciente o códice de inescrutáveis mensagens (decifra o código, babalaô risca o ponto o dilogum o opelê de Ifá e Ogum) Alcanço a segunda paliçada uma usina projeta seus corruptos canaviais ao arrepio das profundas gargantas emergem milhares de vozes dilaceradas antigas silenciosas 50


Serra serrote serra da vingança serra o mal de barriga da serra serra bem serrada a gorda pança do latifúndio da desesperança Silêncio absoluto no cosmo nascente na altitude que atinjo só me envolve o amplo precipício ao pio torturado dos pássaros ao torpor dos frutos latejantes lá no abismo montes de cadáveres calcinam ao punho assassino dos bandeirantes ótica ilusão fantástica alucinação? Ou não seria real este sol a pino lambendo as nódoas do sangue apunhalado que se desvelam ao fluxo reverso da memória? à pressão daquilo que abomino a lembrança em desatino clamaria ao espaço da história? Entretanto tudo existe é verdadeiro esta picada ascendente riscada na barriga do monto flor volumosa escuro ventre convexo cavado ao ritual libertário da rosa Serra serpenteada no lombo dos quilombos serra rastreadora do rastro dos invasores serra cem anos de luta incessante ao fragor das batalhas ao despedaçar das correntes Saravá africanos valentes 51


Saravá imortal Zumbi à frente Palmilho o chão da minha história sua lagoa primal seca à sede da intrusão o coco oricori balança ao cheiro dos limoeiros sob meus passos dilata-se a extensão das terras serradas à serra da libertação Subo mais: zênite das evocações ressurgência do tempo inaugural do peixe-Oxum no mergulho mineral às águas míticas das germinações Dançam invisíveis presenças frementes ao tambor das prístinas recordações ao soletrar das invocações dos ancestres eguns virentes Ai serra serrote serra feroz serra com fúria o braço do algoz serra a arrogância a gula indecente serra os dentes da injustiça alvinitente Chego ao planalto apenas limitado pelo azul infinito demarcado à imensidade verde dos vales circundantes tudo é ar livre e puro tudo é acontecer negro sem fronteiras Esta é minha herança prematura na integridade do seu amor na violência da luta passada no sacrifício certo do presente na certeza da vitória futura Serra-templo ancoradouro 52


de sonhos e ossada africana da esperança o tesouro da negra dignidade humana Pré-doado fui a esta herança vacante invulnerável sou ao raio inimigo pelo axé de Exu cingido desafio o golpe dos tratantes Zâmbi Zumbi Zambiampungo Zumbi zenite Serra serrote serra a exploração ah serra da compaixão Serra serrote serra a humilhação oh serra da libertação

Serra da Barriga (Alagoas), 24 de agosto de 1980

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Yemanjá no dia do seu 10º aniversário Búfalo, 15 de setembro de 1981

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EVOCAÇÃO DA ROSA Evocação da Rosa (Para Yemanjá – no seu décimo aniversário) Era uma vez uma rosa que não era vegetal nem rosa mineral carecia até da cor de rosa era uma gata formosa negra amarela e brancosa irrequietamente caprichosa vestida de suave pêlo multicor Bichana terrivelmente amorosa dos laços dos seus encantos nenhum gato jamais se livrou pelos telhados miava dengosa suspirava a noite inteira seduzindo namoradeira toda a gataria ao luar da lua alcoviteira Certo dia Rosa pariu uma ninhada de gatinhos de várias cores engraçadinhos os mais lindos eram os pretinhos mamavam de patinhas entrelaçadas ronronando de olhos cerrados boquinhas rosadas coladas às rosadas tetas de Rosa Num desses momentos 55


um gatão assassino pêlo sujo desbotado miando feio saltou felino matando gatinho por todo lado A mãe valente e briosa socorri de porrete na mão ajudei a defesa de Rosa esbordoando estridente perseguindo o ladrão ele fugiu espavorido um gatinho levando nos dentes outros sangravam na agonia Rosa fuzilava os olhos dementes miando plangente a dor que lhe doía noites a fio seu gemer se ouvia ó doce e carinhosa Rosa era de cortar o coração ver-te enlouquecida recusar enfurecida aquela felina traição ir definhando entristecida até a completa inanição Rosa cheirosa e macia que ao morrer no meu jardim plantei sob a terra desapareceu aos cuidados da minha pobre primavera de uma gata demente e morta a rosa-gata enternecida em rosa-flor floresceu 56


foram ambas a única rosa que a infância me deu

Búfalo, 30 de janeiro de 1981 (antecipando o 15 de setembro de 1981)

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PRECE A OXUM Mãe Oxum oraieieu estou chegando e partindo chego e peço vossa benção parto cedo com vosso perdão perdão por chegar tão tarde no cumprir desta missão há quinhentos anos ditada pelos irmãos da escravidão Como posso Oxum continuar se até a língua me arrancaram? Imploro ajuda a Exu dono da palavra laroiê minha fala agora vou soltar Reconheceis em mim Oxum vosso pássaro odidê? sustentai-me com vossa pupa amarela fortalecei-me com a vossa gema de ovo sou partícipe do poder preto axé indestrutível do nosso povo mágico poder do oculto nas pétalas de escamas e penas que recobrem vosso corpo molhado no sangue vermelho do corrimento cósmico desde sempre propiciando a raças dos humanos dos pássaros 59


das folhas dos peixes do peixe original saltando daqui mesmo destas margens das águas ancestrais para concertar com o Rei Laro o pacto do vosso culto neste templo solene diante do qual me prosterno em dobalê ante vós deponho ao pé dos troncos destas árvores míticas que rodeiam vosso ilê demarcando o orum do vosso aiyê a oferenda aos ancestrais Batam firme os atabaques sou o vosso filho-peixe peixe-filho nadando vim ekodidê trançado a meus cabelos flutuando às águas fecundantes do vosso ventre genitor e provedor das crianças deste mundo milhões de crianças negras estão no beijo que vos trago e no apelo angustiado de inocentes transformados na sinistra pira onde se queima a felicidade no sacrifício da destituição transição da livre ingenuidade para a violência da colonização 60


Perdão mãe Oxum chego e parto antes de partir reparto notícias vindas do parto de um mundo grávido e farto não de crianças felizes espinhos e cicatrizes esmagando as matrizes da humana identidade de seres provindos de Olorum Sabeis Senhora Oxum que obrigados temos sido a em lugar do vosso sagrado nome invocar nomes profanos nossa senhora da conceição nuestra senõra de la caridad del cobre fetiches pagãos insanos? Ignoram que vós Senhora Nossa Oxum fora quem transfigurou vosso sangue vermelho na gesta cunhada no cobre deste abebê que me cobre nas cores rituais de vossas vestes no dendê que doura o vatapá o acarajé da vossa comida temperada ao tempero do vosso sangue não do sangue negador da vida dos traidores e do opressores mas do sangue generoso vosso 61


aquele que infundistes em mim em todos os abibimã vossos filhos o sangue da perpétua floração do amor Contemplo este vosso templo horizontal e sereno erguido neste espaço sagrado de Oshogbo habitado unicamente pelo vosso rio antigo este verde apaziguador de vossas árvores os pássaros e animais que ilustram vossa lenda vivente e vivificante ouço apenas este silêncio denso e calado que permite este diálogo mudo liberto das palavras e da razão Senhora mãe Oxum perdão chego e parto vou partir agora o coração parto ao odor das violetas do meu campo santo de amor Ruth Genilda Denair e Maria de Lourdes amor sem condições em sua gala de ternura é mais que recordações onde também existe Léa fértil em gestações Iansã militante de revoluções Parto agora Mãe Sagrada 62


protegei meu corpo envolvei-me em vossas escamas vossas folhas vossas penas de odidê me dê vosso abebê sou vosso Ataojá filho primeiro do vosso sangue nem o Rei Laro nos alvores da criação e Menininha vossa ilustre e bem-amada ialorixá hão sido adoradores vossos mais fiéis do que eu que estive presente no pacto do peixe na conversão do pássaro da folha e do sangue dourado vosso o qual em vosso abebê bebemos nossa própria origem e destino Oraieieu

Oshogbo, setembro de 1976 Búfalo, 1º de fevereiro de 1980

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ORIKÍ DA ELISA Amor em saudade desatado de carência física embotado Amor de amor pleno transbordante música pungente latejante Lateja amor as têmporas as teclas teclam amor agudo punhal inclemente apunhalando a dor Dor do desamor que não é meu nem teu meu é o bemquerer que não morreu associado partilhado na partilha do que é meu e teu Teu e meu na brancura de Obatalá no negrume de Laroiê nos peixes dourados de mamãe Oxum oraieieu Exu saravá 65


Amor saudade corimba danço minha lágrima enquanto no tambor tua imagem crescente multiplica minha força expande meus horizontes transforma a vida num grito feliz na afirmação de um de dois de todo o humano em nós Amor unijugado no trabalho a quatro mãos na luta compartilhada de esperança em comunhão ao ritmo das coisas belas ao gosto agreste do bom do belo que profetiza a ternura que és tu Elisa

Rio de Janeiro, 1 de julho de 1980

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TESTEMUNHANDO BÚFALO (Para Gino e Dan) À lâmina de tua neve expulsaste a vida de tuas ruas desertas envolveste tuas árvores num estranho sudário teu ar gélido sinistro estilete de água cristalizada vaza meus olhos impotente sinto mas não vejo tua hecatombe percebo que desapareces sob camadas de flocos desabando implacáveis sobre ti sei que já nem pareces uma cidade fizeram de ti um pesadelo cuja máscara calcinada alucina tua face é uma careta alvar pendulando ao caos intemporal Em vão piscas um olho tua natureza urbana exauriu-se para sempre insensível estás à dor e à alegria que percorrem teus espaços tangidas pelo chicote de teus ventos No meio dos teus escombros apalpo teu coração congelado que jaz inerme na poça dos teus lagos de sangue coagulado Só restou de ti reminiscência urbana 67


estruturando o fantástico cemitério espacial flutuando sobre precipícios aguafeitos cercado ao renque de hirtos espectros álgidos Lúgubre fonte do frio nevado aos ventos espúrios de Oyá da não-lembrança nascente do nada Tanto irmão e irmã negros sepultados pelo sinistro frio da neve vitimados pelo racista frio do desamor chacinados Estes escombros têm soterrado muito sonho muita esperança a bela Joanne em flor inclusive soterrados estão a Ode de Gerardo ao Real Negro o retrato meu no lápis do Loio o delicado Oxossi que Ismael concebeu a Adalgisa generosa me concedeu Como perdoar tanto crime maior cometido por cidade tão menor? Assim me lembrarei de ti: Búfalo ― uma cidade? um animal? um fantasma lunar? reconheço perscrutando este fusco meio-dia tuas agressivas presas de granizo tempestuoso uivando seu indestrutível uivo de destruição rugido dos ventos lacustres 68


de tuas águas gelificadas sob teu cinzento céu indiferente (ou neutro) donde não provém qualquer amenidade nem se ouve nenhum canto de gaivota saudando mais uma triste aurora Apalpo teu coração de gelo ainda mais crispada se torna minh’alma irremediavelmente crispada à poluição de tuas metalurgias tuas químicas teu fatal poder deshumanizante Ao derradeiro instante uma vez mais apalpo teu coração de gelo eis que de repente descubro sua leve palpitação um dourado sol interior o ilumina reflete-se dentro de minhas pupilas testemunho às portas do julgamento vejo enxergo sob a túnica imaculada de Obatalá a cintilante semente do amor cresce aquece o exilado afaga e beija o homem quase tombado Búfalo, 25 de janeiro de 1981 69


Abdias aos 5 anos 70


OLHANDO NO ESPELHO (Para meus netos Samora, Alan e Henrique Alberto) Ao espelho te vejo negrinho te reconheço garoto negro vivemos a mesma infância a melancolia partilhada do teu profundo olhar era a senha e a contra-senha identificando nosso destino confraria dos humilhados a povoar de terna lembrança esta minha evocação de Franca Éramos um só olhar nos papagaios empinados ao sopro fresco do entardecer Negrinho garota negra vivemos a mesma infância nos cafezais brincamos nas jaboticabeiras trepamos chupamos a mesma manga e melancia Éramos uma única ansiedade à subida multicor dos balões pejados de nossos sonhos e ilusões Negrinho meu irmão como te chamavas tu? Felisbino Sebastião Geraldo? Serias menina: Rosa Negra Alice Tarcila? Ou te chamarias Aguinaldo? 71


Lembro nosso emprego: lavar vidros entregar remédios fazer limonada purgativa limpar as sujeiras de uma farmácia E aquele grito em nosso ouvido: “—Acorda preguiçoso”! era o patrão outra vez cochilaste reclinado ao chão Assustados teus olhos dançaram desgovernados pelas lágrimas saltaste inutilmente lépido Um dedo irrevogável te apontou a porta do desemprego assim regressaste à casa que já não tinhas na noite anterior morrera tua pobre mãe que a mantinha Negrinha garoto negro sei que somos uma prosseguimos os mesmos ao abandono de nossa orfandade Assim juntos e sem nome devemos continuar nosso sonho nosso trabalho reinventando as nossas letras recompondo nossos nomes próprios tecendo os laços firmes nos quais ao riso alegre do novo dia 72


enforcaremos os usurpadores de nossa infância Para a infância negra construiremos um mundo diferente nutrido ao axé de Exu ao amor infinito de Oxum à compaixão de Obatalá à espada justiceira de Ogum Nesse mundo não haverá trombadinhas pivetes pixotes e capitães de areia

Búfalo, 1980 73


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BRISAS PANAMENHAS I A meus pés ― surpresa líquida Clama a Baía de Limón Crispada em ódio e verde À descoberta invasora de Colón Oh praia de limo amargo Punhal cravado sem compaixão Liberte seu chão fidalgo De fuzil e metralha na mão Sopra meu rosto brisa leve fresca brisa de Limão Sopra bem soprada das feridas cicatrizes abertas no coração Mergulha Porto Belo fundo Sob as ruínas de El Rey Fumega a alfândega incendiada À funesta sombra de Francis Drake (se afunda o corsário fundo ao peso dos crimes imundos renegado cadáver apodrece preso em seu caixão de chumbo) O ouro e a prata fluem sem vida Assassinados no eldorado liquefeito Drake jaz em metal desfeito 75


E o belo porto aguarda a próxima lida de vingar tanta agressão sofrida Sopra vento fresco sopra forte tanto roubo tanta sanha de morte Sopra pra bem longe as feridas sopre pra mim outro norte II Quero em San Lorenzo no forte me libertar de todas as tristezas recolher o riso dos Congos no ritual das reais grandezas à matina das puras belezas Somos tantos somos tontos somos congos dos quilombos somos contentes erês soltos à brisa leve onde Oyá recolhe a lágrima a dor dos séculos traçando o arco-íris da esperança sustentada pelo amor de Olorum Sopra alívio brisa fagueira tanta ferida e cicatriz Sopra as costas a alma dos Congos ao calor da terra nutriz 76


Sopra o compasso a melodia de quem nunca foi feliz Sopra a fortaleza da raça em africana diretriz III Abrem-se as eclusas invasão de espumas escuras sob elas borbulham as inquietas águas libertadas forçando sempre mais a passagem pela abertura velozmente ampliada Os americanos ousaram trancar o vôo das gaivotas cujo grito sobe rijo como aço apelo lancinante agonizando o espaço Ah ave de bélico metal por que mirar em vão o céu azul dispare a bala do seu grasno fatal apontando o norte não o sul Anayansi me conduz pela mão assim penetramos o espaço da espoliação Suas veias negras latejam tomo o pulso do sangue panamenho e ele explode em riso vital sobre a ofensa e a humilhação 77


O Dorian Star atravessa o canal seu vagar arrogante fere as quatro da tarde de um sol agonizante sobre o Miraflores Locks Anayansi aponta o Pacífico à esquerda do lado oposto marulha o Atlântico O centro do cosmo é ela mesmo Anayansi águas ternas de Oxum por onde outro barco  TAPNTOPIA  EIPAIEYE desliza tranqüilo sua intrusão Sopra sopra brisa trigueira sopra Baía de Limão Sopra do canl as sujeiras sopra pra longe a agressão

Panamá, março 1980 – Búfalo, 23 de outubro de 1980 78


CONTRAPONTO DE UM NEGRO E UM PATERNALISTA BRANCO (Para Ironides Rodrigues, esteta da Negritude) Irmão negro meu irmão não amargue tua boca em vão evoque a memória do senhor bom reza ladainha procissão ― A lembrança esta indelével na roleta da opção risquei ponto laroiê ave o Exu da libertação Irmão negro meu irmão esqueceu nossa bonita relação contada até no folclore de mamãe preta e pai João? ― Está tudo registrado com cuidado e devoção tambor do sangue martirizado batendo toque de rebelião Irmão negro meu irmão por que morder no ódio a hóstia do perdão perder a ressurreição? ― Ressuscitei gritando não ao cristo da consolação 79


do meu caminho quero a paixão do humano amor expresso em ação

Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1980

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Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1980

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EL BRUJO DE PALMARES (A Francisco Pabón, Hermano borícua) O cognoscível escapa ao olho nu como escrutar o tempo na face inescrutável das pedras? o bruxo é o enigma escarificado na carne do cemi latejando no talo dos vegetais e no brilho das estrelas ele sonda no silêncio das profundidades cosmogônicas o acontecer das germinações vitais ao embruxo do bruxo posso contemplar a textura delicada da cerâmica igneri enquanto ponteio à ponta da pedra de três pontas do cerimonial taíno o tempo inaugural boriquén se desvenda ao meu embruxamento e o sortilégio da salsa a transfiguração da yerba expandem o poder do bruxo na domação da história vertiginosa que ele o bruxo protagoniza e testemunha a luta fratricida entre 82


aruacas e caribes precedeu o poder do embruxo depois invadiram a terra boriquén junto às armas dos espanhóis o escudo sacrilégio ostentava um cordeiro no centro da nova Ilha San Juan Bautista afirmavam ser ele o anunciador de Cristo cordeiro de Deus então o bruxo invocou Yocahu Deus supremo dos aruacas para testar a imortalidade dos cristãos submergiram a cabeça jovem de Salcedo nas águas pagãs taínas nenhum cordeiro foi capaz de salvar o moço católico se afogando sob as águas indígenas quando alguém perguntou ― onde está o ouro boriquén? O bruxo respondeu: ― o cordeiro de Deus levou tornaram a perguntar ― onde está o povo caribe? e o bruxo ― o cordeiro de Deus matou trouxeram africanos escravizados das ilhas vizinhas os fugitivos se homiziavam em San Mateo de Cangrejos e eram livres se aceitassem o batismo o bruxo humedecia a consciência 83


na água benta do novo cativeiro e mergulhava inteiro nas águas rebeldes e aconteceu o primeiro levante escravo nos recuados idos de 1527 o sangue negro correu grosso ao fio da espada reinol mas sangue não é assunto vão para ser vertido sem remissão sendo o axé vermelho do bruxo fertilizou o chão borícua plantou uma cultura de gritos colhida no grito escravo de 1825 onde o bruxo e dezessete mala casta foram imolados na forca por via do seu embruxo ao se levantarem os patriotas em Lares se ouviu do bruxo o grito “Viva Puerto Rico Libre!” pouco depois uma águia espantosa violou os céus ilhéus sua poderosa asa de aço estrangulou o grito dos portorriquenhos e o cordeiro do Deus católico agonizou nas garras aduncas da sinistra águia wasp o bruxo acabou encarcerado agonizando em El Morro seviciado tempos depois no morro alto de palmares o bruxo convoca o bembê dos eguns comparecem mortos e vivos 84


os dezessete enforcados além de outros negros mala casta o herói nacional Don Albizu Campos o poeta Piétri a poetisa Julia de Burgos e um vago Paco de ofício indefinido (seria ele o bruxo encarnado?) no secreto da mata conjuram os adeptos dos ritos da libertação a gesta da independência se regava na semente do bruxo e as etapas da gesta eram mais que memória do bruxo e se inscreviam na prática sem pausa de cada instante em cada gota de sangue pontilhando os roteiros de Exu traçados de Loíza Aldeia em San Juan ao norte ao sul onde está Ponce a Fajardo no leste ou Aguadilha no oeste os quatro pontos se cruzam se fixam no olho oculto do bruxo integrador das pedras e dos sonhos do tambor e do cemi à sua lágrima de sangue adubando a semente do futuro lá no monte o bruxo pulsa o desespero penetra a fonte do grito dança a gota de sangue na coreografia de guerra 85


de vida e de morte entre os que querem impor a morte aos que só desejam viver a vida em liberdade e existência soberana desfrutando os frutos da verde natureza riquezas do paraíso boriquenho contempla o bruxo a ilha violada sob voluptuosa redoma mar-e-céu rodeada de águas azuis onde tubarões agridem a espuma espumando mórbidas flores brancas na areia das praias de sol tem o bruxo entre os dedos um raio flamejante brotado da pedra lavrada do cemi onde se conta de bombas explodindo nos quarteirões de Wall Street e se fala de tiros disparados contra o vero ninho branco da águia onde Truman chocava os ovos da agressão o bruxo fita e medita o horizonte sem fim se desdobra do alto daquele palmares num azulado que progressivamente se esfuma no infinito traga fundo a yerba no fumo vê a hora que chega o momento de outra vez descer e grita “Viva Puerto Rico Libre” sua voz percorre toda a ilha e os povos livres do mundo 86


respondem e repetem o grito del brujo de Palmares

BĂşfalo, 5 de fevereiro de 1981

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IMAGEM NOTURNA DE COPACABANA Nascido no exílio me disseram um dia: ― Este é o teu país Olhei em torno e não me reconheci nas coisas que me rodeavam Deverei também cantar o Brasil? Antes de sentir adivinhei o perfume noturno da minha Pátria Chegue perto bem perto amor Chegue mais bem pertinho de mim Que teus escuros braços me enlacem o peito assim me tomem o negro coração em teus abraços Me aconchegue bem amor assim Suplico a proteção da tua sombra nesta noite sem imagens lunares Me sustenta sombra-pátria nesta revolta sem fim Para que não se desfaça o coração dentro de mim Veja ao palor do néon o Banco Português Embalado à fria guarda dos escudos Herdados do sangue do saque e da sordidez A madrugada acalenta o banco os escudos e vela o sono de uma negra velha sob a marquise em leito de farrapos 88


O fervor do meu ódio e rancor mudos afague o frescor do teu beijo Que a doçura do teu pejo não detenha a ira do meu punho nem dilua o vibrar da minha tensão neste ato de revolta em compulsão Onde está o meu País? Ao embalo matinal dos pesadelos À visão do banco e da minha raça atirada ao lixo Os sentimentos bradaram Ogunhiê! as ideias se fizeram armas e o ódio não se consumiu em vão Ó pátria queimada de amor demais negro perfume meu Celebro aqui tuas forças misteriosas que alimentam nossa vida na esperança que sustenta a luta no amor teu que é história é luta passada é glória é luta de libertação Agora

Búfalo, 1974 89


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LUCINA O lunário indica a direção e o preciso instante de partida Nas águas profundas o escafandrista procura ― Onde está nossa lua? indagam os namorados Vem Lucina pálida que ao teu luar beijarei teu lunar Rápida silenciosa ela desliza entre nuvens e estrelas Docemente seu fluxo alumia casais se amando no jardim homens se matando nas guerras palácios desertos templos mendigos ao relento do jasmim Ao seu refluxo se amparam os seresteiros ébrios a tocaia as putas em serviço Há pastor de ovelhas Conheci pastor de lutas Já fui pastor de abelhas 91


Melhor é pastorear as putas Arrepiada ao frio de junho pousou à superfície do mar convexo Lua Luar Luna Lunar desapareceu deixando efêmero palor indicativo do exato momento do seu flexo Quero a minha rosa da noite se abrindo toda da lua ao reflexo Uns de lua na testa eu de lua no sexo (destino anexo: lunexo) Lá vamos tateando o azul o abismo e a rosa Vem Lucina pálida luniforme coração origem do unicorne fonte da perdição É tempo de lunação tempo de danação Acudam-me com aluá tragam-me lues lues não Tragam-me luas luanas venham luandas aruandas Depressa lua nova lua cheia Funesta lua rameira 92


Estarei luético luniflexo aluado lunícola lunático complexo? Sou ministro alufá Xangô servidor do sexo Bebedor de aluá Mudo interroga o escanfandrista no labirinto pluriplexo: ― Que sinto ao tato dos meus dedos? Algas? Talvez musgos tíbios Lábios em flor Pétalas de carne? Sob o olho eletrônico de Jodrell Bank desvela-se o mistério Do labirinto só resta agora vulgar deserto o Sputnik violando o azulsilente o abismo se tornando lua (ou o corpo de matéria enluarada) a rosa enfurecendo o oceano das tormentas Adeus rosa marinha nunca mais sexo ao luar Nunca mais dindinha lua à luz do lupanar Esvaziou-se o complexo tudo desflexo perplexo 93


Vem Lucina pรกlida genuflexo beijarei teu sexo Jodrell Bank nexaria o plexo Alunissaria o complexo-reflexo se desfeito o nexo rompido o plexo Nรฃo partissem os enamorados (viagem sem regresso) em amor circunflexo amplexo de rosa lua e sexo

Rio de Janeiro, 14 de junho de 1967

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PEREGRINAÇÃO À GOREA (Para Kariamu e Molefi) Quero surpreender teu verdadeiro rosto velado pelo sol brilhante desta manhã atravesso tua praça um cartaz me convida “Chez Tonton” escolho beber a água do teu chafariz descansar sob os ramos da centenária baobá Caminho tuas ruas estreitas à vigilância das fortalezas coloniais desço teu ventre metálico labirintos de ferro e aço onde teus incríveis canhões ciumentos giram e apontam suas longas bocas de fogo recortadas ao azul intenso do céu ameaçando os quatro pontos cardeais enquanto tuas crianças nos sorriem e saúdam “des amis”? Procuro tua face real marcada de França Inglaterra e Portugal no teu rastro deslizo deslizando sobre o fio cortante de tuas pedras limosas batidas pelas águas turvas pelas quais desço ao teu ventre oceânico da garganta dos afogados ainda se ouvem gemidos e maldições 96


às mãos assassinas explodindo em flores de espuma de sinistra alvura este marejar atlântico de ondas de espumas não nasceu das águas de Abeocutá na fonte límpida de Yemanjá esta maresia não lava não limpa não cala o clamor do sangue dos mártires que ensangüenta os paredões da tua “Maison des Esclaves” Deslizo teu ventre de pedra lisa resvalo as bocas retorcidas clangorando seu clamor nos porões do teu ventre na favela de tuas águas poluídas chego aos teus ruivos infernos onde Cristo pálido nos oferece uma hóstia de fel enquanto o látego lateja nossas costas lateja nossa alma até nosso espírito subir aos céus da dor suprema à pontaria dos canhões civilizadores sorvemos o cálice de sangue na eucaristia de nossa própria agonia transubstanciada 97


Descendo ao rolar dos séculos meus dedos tocam na pupila do passado a escuridão do teu seio pequenino (te chamarias Léa Garcia) tu eras a amada que serias amando sem pecado ébano-lírio das savanas sorvendo a espuma do amor à espuma do vinho puro colhido no talhe da palmeira não fora o espanto que te colheu ao feroz dente europeu que corpo e alma te mordeu ouço no ventre-tumba teu grito enchendo o espaço infinito com teu inocente gesto indefeso que mais depressa te perdeu Desço aos abismos do ódio transbordando em mim a meu lado está Aguinaldo gênio dignificando os palcos da vida ao meio-dia da vida ceifado pelo desdém branco que o golpeou no mesmo ódio o rosto irado daquele Sebastião batizado de corrupção africana acusado renuncia ao burel franciscano e empunha o duplo machado de lutador Baixo até o ventre da dor ignoro se agora apaziguadas as ondas de 98


sangue deste mar recuperada está a aurora modelando do teu corpo o ébano por onde a beleza se conforma e transluz Somente sei que tocando este ébano forma em movimento tateio o epicentro da história destas águas que envolvem a ilha fazendo de Gorea a armadilha punhalada genocida que escraviza e tira a vida Desço ao ventre destas águas (não as águas de Oxum ou Yemanjá) coalhadas de ossos no dente dos tubarões de ronda almas convulsas se debatem nos sacrifícios humanos ao deus da cobiça da espoliação e da intolerância Pelo teu ventre aberto Gorea alcanço a rota dos navios negreiros refaço a tragédia o trajeto 99


a epopéia da minha raça Penetrando as entranhas da Mãe África já não sinto o fedor da morte branca que tu expulsaste para sempre sei que teu coração continuará sangrando no corpo sagrado ainda sangrando de Soweto e Namíbia Mas sei também que tu Gorea erguida no teu ventre de martírio abre para todos o ventre do teu amor lá no teu íntimo acolhedor deparo tua verdadeira face serena bela imortal África sorridente ao toque dos tambores batendo batendo nossa pele retesada toque de festa e regozijo no atabaque da tua liberdade

Gorea, 1976/ Búfalo, 1981 100


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MUCAMA-MOR DAS ESTRELAS (Ao Clóvis Brigagão, litigante do armamentismo) Deitada nas mágicas esteiras olho de Ifá em combustão sufocada do armatã às poeiras nublando ao sol e as eiras batidas de tambor em punção à macuma-mor das estrelas só ecoa n’alma solidão Não direi que isto é poesia talvez lembranças fantasia quem sabe murmurar de sonhos testemunho ou biografia Sei do rendilhado escuro bordado na palma vertical dos teus véus trança soluçando esteiras camufla universo de mistérios ao velar o armatã os céus Na carne alegre pretidão noturna sobem rios cetins e águas puras refrescor das matas e naturas caindo sobre ela em solidéus Diz Ifá que nossa sorte dança e brinca sobre o mar quem conhece a nossa morte ele diz que está no ar 102


Está no grão de poesia das contas do colar opelê decifrando a cifra da Oxum-rio a rolar pedras de águas vivas do lírio negro a boiar ài mucama-mor das estrelas como teu estandarte empunhar teu umbigo de amor tocar a lágrima perene estancar secar o plantel de dor? Há tempos afugentei a melancolia exonerado da ternura quero uivo enrouquecido cão de Ogum agonizante ao degolamento ritual Em meu lombo de Exu renegado estala o lenho corta o lanho vitupério da brancura o banho núncio do revide ao escárnio do golpe covarde e traiçoeiro à negra carne flagelada paz de Oxalá maculada ao cuspe secular no rosto junto à bofetada cristã tranco o perdão posto no alguidar de coisa vã 103


Adeus mucama-mor das estrelas tenho muito a caminhar muita encruza a farejar Exu das águas negras do Nilo planta dos pés escravos em Chocó palma de mãos sangrentas em Esmeraldas amargor açucarado de Cuba rugidos sincópicos do Harlem príncipe acorrentado de Porto Príncipe Não me viste na luta em desatino caminhando rumos nos sem-rumos do destino? Meu ferro de três pontas aponta em ti mucama-mor das estrelas os punhais da libertação Zumbi Nzinga Toussaint Malcolm X Amilcar três pontas do triângulo equacionam dos ângulos dos teus seios o fundamento agudo do teu sexo Mucama-mor proclamo em cheio teu prenho ventre a tantos prazeres tal mundo a pleno devaneio correndo inquirindo vendo 104


e sendo Tomo-te à concha de minhas mãos recolho-te dos ventos benfazejos que te trazem a mim planto-te no meu tronco tuas raízes mergulham as raízes da montanha crescemos ramagens maduramos lagos em flor Venta forte armatã venta o passo e o descompasso a alternância do mais e do menos se fundem confundem os homens e as mulheres perderam o juízo onde está a lucidez? À escalada da lucidez que importa se o peito estala de alegria ou de tristeza? Nenhum socorro vem da numeração do infinito a centopéia o tudo ou nada trânsito para todos os abismos conjurando a pétala e o vermelho poluir o pólen enlouquece o amarelo e o roxo à explosão tardia da primavera Conjugados a chispa e a flor em botão 105


ó mucama dos punhais trespassado está teu denso coração te reencontro mais tímida mais vital purificada nos descaminhos buscando a doçura total da semente única e final Nem o sofrimento de muitos foi capaz de trazer o siso à mórbida gestação subterrânea de donos da fartura e do riso Nem o sacrifício fende teu corpo inconsútil negro sobre esteiras o olhar repentino da surpresa cegado à violência das poeiras não o vê se esfumando na pureza Permanece esvaindo pó esvaziado da certeza se é futuro ou é poesia enigma-mor da correnteza sangue da minha fantasia sem poder vencer a dor da minha morte a nostalgia

Rio de Janeiro, 15-16 de dezembro de 1981 106


O SANGUE E A ESPERANÇA Corre o sangue nas veias Rola rola o grão das areias Só não corre só não rola a esperança Do negro órfão que só corre e cansa Cansa do eito corre das correntes Corre e cansa do bote das serpentes Só não corre só não cansa de amar O amor da Mãe-África no além-mar Além-mar das águas e da alegria Mar-além do axé nativo que procria Aqui é o mar-aquém do desamor frio Aquém-mar do ódio do destino sombrio Sombrio corre o sangue derramado No mar-aquém de tanta luta devotado Mas o sangue continua rubro a ferver Inspirado nos Orixá que nos faz crescer Crescer na esperança do aquém e do além Do continente e da pele de alguém Lutar é crescer no além e no aquém Afirmando a liberdade da raça amém

Rio de Janeiro, 14 de março de 1982 107


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O AGADÁ DA TRANSFORMAÇÃO Em meu peito vazio de despeito Oxum fincou o seu ixé sou o peixe mergulhado no canto do pássaro odidê pousado na folha da vida trinando a ternura que aconchega a criança Ó peixe dourado que vais nadando os dias e as noites da minha sorte emblema de Oxum me levando águas de Oxalá me lavando no banho lustral da minha morte Existo em minha natureza Ori levedado pelos Orixás embora o costado dos ancestrais clame a costa dos escravos proclame o cravo cravado no lombo me tombando no tombo da contra-costa rebelada do meu axé inflamando na chaga do congo a chama incendiária do quilombo A senha dos atabaques devolve no ricochete do tan-tan as mentiras brancas ventiladas aos ventos das humilhações tragadas basta ouvir o som grave do rum 109


o repicar do rumpi o picar agudo do lé e as irmãs negras portadoras do sofrimento os homens moldados nos crepes ancestrais em uníssono clamor de convulsivo furor desde a degradação e o opróbio desfraldam a bandeira úmida do sangue negro derramado no combate vermelho sempre continuado pela integridade verde da herança nativa poluída Somos a semente noturna do ritmo a consciência amarga da dor florescida nos toques anunciadores da perenidade das coisas vivas à batida dos tambores aquele marcado por tánatos emerge do seu vale sombrio de inércia nas veias insuflado em lugar da letargia cancerosa a pulsação vital cadenciada à harmonia do tambor à alegria do sangue ao rancor justiceiro da metralha Ouçamos o pipocar do couro retesado (ó agadá da transformação) rompendo a couraça do insensível mundo branco na sola dos pés sangrentos temos dançando o madrigal da escravidão 110


o minueto do tráfico o fado do racismo agora na pele flamejante dos tambores dancem eles o nosso baticum de guerra até despontar aquela aurora de dançar o afoxé da nossa batalha final vitoriosa Entre nuvens rubras palpita no meu peito o ixé de Oxum às batidas do rum sigo os labirintos da minha alma axé rum ruminador do silêncio sobre nós imposto rum rumpi lé levando nas asas do ouvido os raios do nosso sol brilhante e jamais posto lé rum rumpi rompedor do cerco dos abutres alvacentos corvejando sob o céu desolado de nossa diáspora compulsória Empunho o agadá obrigação a Ogum e Ifá não é tempo de reclamar nem tempo de chorar tempo é de afirmar nosso ser 111


sem mendigar nosso direito ao poder tempo é de batalhar a guerra secular ao invés de lamentar ou implorar invés de só gritar lutar invés de vegetar e conformar lutar invés de evadir e sonhar lutar semear a luta com decisão ampliá-la com ardor e paixão sem temer a incompreensão do inimigo ou do irmão desdenhar o elogio e o louvor a este mero ato de fraterno amor olhar para além do egoísmo e da glória abrochar no coração o ixé da bravura certos de que à vitória pouco significa nossa vida e nada importa a sepultura Tempo de viver (ensina Ajacá) é tempo de morrer uns já estão mortos vivendo nós estaremos vivos morrendo Morrer enquanto cintila no meu peito 112


o ixé áureo de Oxum enquanto caminho a ancestralidade da minha terra nas pegadas temerárias de Ogum ao fio do agadá transformo a queixa muda das irmãs negras neste canto marcial de esperança de cada soluço teu irmão faço uma bala de fuzil impeço que a bondade amoleça tua revolta e tua dança perca o embalo da trincheira tornando tua coreografia grávida de símbolos em vil moeda de espetáculo mercantil Vem do fundo escuro do tambor esse aflito olhar magoado (não vencido apenas derrotado) das irmãs e irmãos em África fixo olhar pungente absorvendo a beleza vital do meu corpo incrustação do ixé projeção amorosa de Oxum em minha origem plantado por desígnio paterno de Olorum o olhar a devolvendo à intensidade e pungência da antiga luta comum processada à regência do agadá transformador e do nosso cálido recíproco 113


e solidĂĄrio amor OgunhiĂŞ!

Salvador (Bahia), 14 de janeiro de 1982 (Dia da lavagem do Senhor do Bonfim) 114


TEMPO DE RAG No anverso da vida plantaram minha árvore de flores amarelas Pétalas enverdecem nas aras daquele horizonte melancolizado por sons indefinidos Sonidos moucos de Beethoven fugas contraponteadas de Bach? Quero esta melodia empática rendilhadas notas corruptoras da noite poluindo de beleza os lares burgueses Ao sortilégio do ritmo perverso deixar a sensibilidade se afogar no êxtase abrir-se voluptuosa a rosa dos vícios James Scott a emoção desintegrando desabotoada à síncope dos cilícios Heráldica iníqua sutil do time-rag dos dedos betuminosos esfarrapando Na carne gélida das teclas o negro coração em zig-zag No labiríntico tempo noturno (elegante generosidade) Joplin nina o coito nos bordéis tosta às quentes lavras (suplicante autofágico da vertigem) os dourados ramos da maple leaf Menininha aurífera virgem sacraliza a música dessangrada em borbotão Magia do rag e da raça 115


raça em farrapos são Convulsão de vida rag sincopando o ensolarado verso Dos poetas maiores do universo versejando de Oxum a pureza Flor das rimas à natureza piano-rag da delicadeza Amor que desvicia o vício do rag como falso indício De vício e primeiro ofício

Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 1983 116


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RUMO A BLUEFIELDS Adeus noites de ternura! Através da manhã luminosa uma pomba de aço arrulha Sua canção de bélica doçura celebra o sangue da juventude caída Uma pomba de aço voa corta as noites sem ternura espelhadas à face da água poluída A água libertária mana do deserto da injustiça clamando na boca ressequida da desgraça latinoamericana Mana água Manágua umedeça as sementes do desespero à tua água verdejante insufla nos explorados oprimidos e humilhados o canto alado da tua pomba de aço que serena transpõe tuas águas de paz e tuas águas de guerra 57 mil toneladas de tensão invadem tuas águas pacíficas ocultas no New Jersey da invasão 118


Adeus noites de ternura! Uma pomba de aço passa ruflando as asas do seu destino aniquilando no libertado chão somozistas clandestinos invasores da Cidade Sandino Água mana água Irmana os caídos e os não-caídos Não cai eu nem caiu Mercedes cujo sorriso triste evoca no belo rosto moreno seu amor na batalha caído Ao ruflar da pomba esperança sigo o rastro de Bluefields No rio escondido navegamos as pegadas do rei Mosco (mosqueteiro ou fosco) e Palmares reencontramos Desde as raízes de tuas águas Nicarágua Empunhando o palo de mayo emergem figuras ancestrais Africanos calejados de história vêm de Old Bank 119


Creoles reggaeistas surgem de Beholden Negros de punho cerrado despontam de Pointeen E dança, todos dançam o ponto ritual no passo ondulado da mãe Yemanjá Dançam o júbilo de nossa re-união nas encruzilhadas de Exu Terna pomba vigilante vigila teus igarapés outrora coiteiros de piratas esconderijos de flibusteiros Alto muito alto voa a pomba da paz e da guerra ave da libertação! Nas tuas asas de água Manágua Nicarágua Tanta água de palma! Quanta água de solidariedade! À tepidez da tua Lagoa de Pérolas Uma fecundidade indo-afro-américa nunca ambiciosa jamais cobiçosa purifica tuas águas Uma pomba de aço passa 120


corta o luminoso espaรงo Os somozas reaganistas No pasarรกn!

Bluefields, 29 de agosto/ Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1983

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REGRESSO AO ORUM (Ao amigo Jardel Filho, no dia da sua volta às origens) Já ouvi vozes emudecidas apunhaladas na fonte do grito Inexistentes seres entristecidos silenciados ao peso do granito Sussurram flores roxas à brisa que sopra descuidada Ninguém colhe à flor das rochas a viva pétala emparedada Minha voz jaz lá esquecida sepultada orquídea da agonia Temos todos a sorte merecida nos avatares que Ifá anuncia Destino meu e teu no pó truncado silente escuridão sepulcrária Invoco o ministério do axexê cifrado no regresso ao Orum da carne mortuária

Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1983

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Opachor么 de Oxal谩

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AXEXÊ EM OXALÁ “Ó rei Oxalá mãe de Deus” pênis e vagina fonte da progenitura sem excisão nem circuncisão receba o meu próprio axexê em antecipada oferta curvo-me em dobalê de respeito no iká da minha devoção Sobre minha cabeça ainda quente escorre o sangue dos pombos e das cabras brancas sacrificadas em teu nome o sangue salpica a alvura das contas do teu colar cingindo meu pescoço banhado no teu sangue vim Oxalufã projetado no teu sangue vou Oxaguiã caminhando ramos de manjericão e alecrim Deixa-me antes de ir empunhar o teu opaxorô com ele quero tocar o universo dos mitos libertar-me dos limites 124


nevados da lógica possuir a realidade superior do orum na prática do rito palmilhar o chão do aiyê onde o existir é existir em liberdade Conflui o líquido do teu pênis Odudua para o sêmen vaginal de Obatalá deste fluxo leite-sangue Orixalá emerge o primeiro casal Ablisa primogênitos do hermafrodita Oxalá em cujas águas os ritos da criação e da morte se confundem dos mistérios de orum aderida vêm as essências que dão vida multiplicando um ser em dois quem no aiyê nasce já é antes aquele ser unicelular que ao morrer será depois Imploro aos eguns à Mãe Tetê de Iansã ao Alapini Didi de Itaparica o ritmo forte do Biga maestro dos toques fundamentais para que eu possa 125


calçando os pés cósmicos da negra Mercedes coreografar a terra ancestral no axexê da avó Francelina morrendo enlouquecida de tormentos dançar o funeral da avó Ismênia mãe do José em sua residência infinita de firmamento e mar Comi do teu arroz branco cozido ao sangue da paz que me filia a ti Oxalá e a Xangô Atara Mozambi sangue sacralizador do lé rum e rumpi tocando a comemoração toque do opá do mistério entre minhas pernas fabricando a teofania de minha continuidade veio o Henrique Cristóvão armado com os emblemas e os compromissos de Ossâim depois veio o Abdias Filho o Bida na música profetizando tua paz e misericórdia Oxalá a última veio à flor das águas do rio Ogum brotando Yemanjá rindo o riso alegre de erê amadurecendo 126


para os rios da vida Ó Gerardorixalá gerador de rastros e chinas tu conheces as pegadas que marcam a face do universo sabes do axé místico da paixão viste o segredo do opaxorô ligando Ijexá a Búfalo cajado no qual me apoio ao escorregar nas geleiras das ruas desta cidade tão gelada que fez do subterrâneo da liberdade um covil da ku klux klan tombo de costas um céu de ameaças desaba sobre mim minha alma enregelada tomba sob meu corpo tombado ao opaxorô então me apoio na prata da tua piedade me levanto Obatalá ao toque dos tambores aproximando o tan-tan da esperança ao ritmo intenso do adarrum da continuidade saudando os jovens Oxaguiã-filhos pombos negros voando os infinitos de Olorum 127


Sob teu opá do mistério comando o mistério do meu próprio funeral tuas cinzas e teus ciprestes coroam minha cabeça enquanto meu pênis-opá toca o sagrado do princípio-fim-princípio de tua carne em mim gerada no útero-falo ao rolar da perpetuação dos seres humanos de todos os viventes pedras e pássaros e rios e flores e o fogo de tua paixão e compaixão que no aiyê e no orum agasalham todos nós teus filhos no amor na vida na morte Axé Babá

Búfalo, 6 de fevereiro de 1981

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Avó Ismênia, mãe do José 129


GLOSSÁRIO

Abebê – leque ritual, de forma circular, feito de latão, bronze ou metal cor de ouro, usado por Oxum. Abeocutá – cidade da Nigéria, onde passa o rio Ogum. Sede do culto a Yemanjá. Abibimã – palavra Swahili, significa povo negro; sua significação abrange a totalidade dos africanos (negros), independentemente de qualquer fronteira nacional ou particularidade de tribo ou etnia. Adarrum – toque de atabaques e/ou agogôs, de intensidade rítmica crescente, destinado a aniquilar a resistência dos Orixás em baixar nos

terreiros (templos), atrasando sua descida e incorporação nas filhas e filhos de santo (sacerdotes). Agadá – espada de Ogum, ele tem uma forma diferente da espada convencional. Aiyê – o mundo dos viventes, a terra, isto é, o universo físico. Ajacá – outro nome pelo qual é conhecido Ogum. Alapini – supremo sacerdote do culto de eguns (os antepassados). Aluá – bebida feita de cascas de frutas, especialmente do abacaxi, através de fermentação, com temperos como cravo 130


ou gengibre. É o refrigerante de vários Orixás. Pode, também, ser feita de farinha de arroz ou milho.

original existência genérica do Orum.

Alufá – denominação de sacerdotes negros maometanos no Rio de Janeiro antigo.

Babalaô – sacerdote de Ifá, Orixa da adivinhação (ou da leitura) através do opelê. Há todo um corpo literário de Ifá, resumo da sabedoria e do conhecimento milenar do povo ioruba.

Armatã – vento forte que sopra do Saara para o resto da África em determinadas épocas.

Bembê – cerimônia ritual afro-portorriquenha.

Ataojá – primeiro cultuador e sacerdote de Oxum, na cidade de Oshogbo (Nigéria).

Cemi – esculturas feitas na face da pedra pelos habitantes nativos da ilha Borinquén (atual Porto Rico), antes da invasão de Colombo.

Axé – força espiritual dinâmica e neutra, da qual Exu é o portador. Os veículos do axé, entre outros, são os sangues negro, branco e vermelho.

Chocó – departamento (estado) de Colômbia, de população quase totalmente negra.

Axexê – cerimônia fúnebre ritual, cujo fim é o de libertar a alma da matéria e remetê-la à sua

Corimba – canto ritual afro-brasileiro. Dobalê – saudação de filho/filha de santo, 131


sacerdote de orixá feminino a qual consiste atirar-se ao chão, estendido de bruços, depois virar-se para um lado e o outro se apoiando no respectivo braço. Dilogum – processo de adivinhação utilizando-se búzios. Neste processo quem responde é Exu; tanto as sacerdotisas de Oxum como as ialorixás (mães de santo) e os Babalorixás (Pais de santo), utilizam-se do dilogum. Ebó – oferenda ou sacrifício aos orixás; em linguagem vulgar é o despacho. Todo ritual inicia-se com um ebó a Exu, divindade da comunicação entre os humanos e a divindade. O ebó a Exu chama-se padê. Egum – espírito dos mortos ou ancestrais; eles retornam à vida durante o

ritual no culto a eles dedicado na Ilha de Itaparica e no Ilê Axé Asipá (Bahia). Ekodidê – segundo um mito ioruba, Oxum transformou o corrimento menstrual nas penas vermelhas do pássaro odidê, símbolo e elemento do seu ritual. Enia Dudu – significa em ioruba a totalidade dos povos negro-africanos. Tem o mesmo sentido da palavra abibimã em swahili. Erê – projeção infantil dos orixás; estado de erê é o transe dos orixás. Esmeraldas – departamento (estado) do Equador, cuja maioria populacional e de descendentes de africanos escravizados.

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Exu – Orixá da contradição, princípio da existência individualizada, portador do axé. Dinamizador de tudo o que existe no aiyê e no orum. Patrono do ato sexual. Exu Pilintra – ou Zé Pilintra, originário dos terreiros do Rio de Janeiro, é o mais irreverentes dos Exus. Veste-se de terno branco e chapéu branco (a cor de Oxalá); por confrontar sistematicamente as estruturas socioeconômicas e políticas dominantes, ele é o mais reverenciado pelas populações marginalizadas. Exu Iangui – lama primal, protoforma ou forma primeira da existência humana individualizada. Primogênito da humanidade.

Goréa – ilha na costa do Senegal, entreposto de escravos na época do tráfico. Ifá – Orixá da adivinhação ou da leitura por intermédio do opelê. Assim se fica sabendo que Orixá escolheu determinada pessoa para seu filho ou filha. Ifá resume a história, ciência, literatura, e sabedoria do povo ioruba. Ijexá – cidade da Nigéria onde se pratica o culto a Oxalá (Obatalá). Iká saudação de filho/filha de santo, sacerdote de orixá masculino. Consiste atirarse, estendido, de bruços, ao chão. Ilu – índigo, anil. Ixé – trabalho ritual. Signo e símbolo litúrgico. 133


Laroiê – saudação ritual a Exu. Lé – atabaque do Candomblé, sendo o menor dos três utilizados no ritual. Obatalá – divindade às vezes masculina, tendo Odudua como sua parte feminina; às vezes é hermafrodita. Orixá encarregado por Olorum de criar a terra e os seres humanos. Senhor da procriação. Odidê – pássaro ligado ao mito de Oxum. Odudua – Orixá criador do mundo junto a Obatalá (Oxalá), do qual é a parte feminina. Na representação simbólica do universo ioruba, há uma cabaça cortada ao meio: a parte superior é Obatalá e a parte inferior é Odudua.

Ogum – Orixá do ferro, dos metais, da guerra; restaurador da Justiça; abridor dos caminhos desconhecidos, ele está permanentemente desafiando o mistério cósmico. Ogunhiê – saudação ritual a Ogum. Olokum – Orixá das águas oceânicas. Foi em suas águas primais que Obatalá desceu do Orum por um fio de ouro, com areia secou as águas, e fundou a primeira cidade na face da terra: Ifé, na Nigéria. Olorum – Deus único da teologia ioruba. Origem e fim de toda a criação, Olorum não tem culto e nem se manifesta nos terreiros. Opelê – colar ou rosário de Ifá que o Babalaô utiliza, para ler ou adivinhar. Sistema 134


complexo, quase praticamente desaparecido dos cultos afro-brasileiros de hoje, onde se usa comumente o dilogum. Oraieieu – saudação ritual a Oxum. Ori – cabeça, relacionada com a matéria progenitora da qual é modelada no orum. Oriki – canto de louvor, louvação a alguém. Orixalá – o grande Orixá; um dos vários títulos de Oxalá (Obatalá). Orum – o espaço sobrenatural; o céu. Todo ser humano no aiyê possui simultaneamente uma réplica no orum, isto é, uma existência simultânea nos espaços da vida e da morte.

Orumila – outro nome do Deus supremo, Olorum. Oshogbo – cidade nigeriana onde corre o rio Oxum. Conta o mito que às margens desse rio, Oxum tomou a forma de um peixe e saltou das águas para os braços do rei Laro. Naquele instante fizeram um pacto: o rei erigiu o templo de Oxum naquele mesmo local, e iniciou-se ali o culto à divindade do rio Oxum. Ossâim – Orixá das folhas litúrgicas, das plantas rituais e medicinais. Preside toda a natureza. Oxossi – Orixá da caça e das matas, também conhecido como o rei de Keto. Oxum – Orixá da criatividade, do amor, da beleza, patrona da gravidez e das crianças. Assume a forma de 135


mulher-peixe e de mulherpássaro. Divindade da água doce e dos lagos, ela simboliza o princípio do fundamento feminino. Uma das esposas de Xangô. Oxalá – filho de Olorum, é o senhor da paz e da misericórdia; o mesmo que Obatalá. Oxaguiã – versão jovem de Oxalá. Oxalufã – versão de Oxalá velho. Oyá – Orixá do rio Niger, na África; no Brasil ela é considerada por Iansã. Versão feminina de Xangô ou sua esposa mais jovem, ela é a divindade dos ventos e do relâmpago. Sacerdotisa do culto dos eguns, Oyá ou Iansã é a patrona dos mortos e dos cemitérios.

Pachorô – ou Opachorô: cajado ou bastão de metal branco, objeto ritual simbólico de Oxalá velho (Oxalufã). Possui evidente conotação fálica. Padê – ritual propiciatório. Todo ritual começa com um padê a Exu. Pupa – é a cor de Oxum, significando o amarelo, dourado ou vermelho. Rum – o maior dos três tambores (atabaques) rituais. Salsa – gênero de música popular portorriquenha, de origem africana. Sangue branco – um dos elementos portadores do axé, o qual pode provir de minérios tais como a prata, o chumbo, os diversos sais, e assim por diante. 136


Sangue negro – outro portador de axé; carvão, ferro, índigo, cinzas de animais, e assim por diante. Sangue vermelho – outro portador de axé: azeite de dendê, mel, cobre, bronze, corrimento menstrual, sangue humano e animal, e assim por diante. Tánatos – vem do grego e significa morte. Wasp – expressão idiomática norteamericana significando: branco (white), anglosaxônico e protestante. Xangô – Orixá do fogo, do trovão, das tempestades, foi rei de Oyó, cidade da Nigéria. Esposo de Obá, Oxum e Oyá (Iansã). Patrono da Justiça.

autoridade sobre os devotos, o templo e o espaço sagrado do terreiro. Iansã – Orixá dos ventos, também chamada Oyá. Sacerdotisa do culto dos eguns. Uma das três esposas de Xangô. Yemanjá – Orixá do rio Ogum, em Abeocutá (Nigéria), no Brasil ela preside os mares e oceanos. Também conhecida como Janaína, Sereia do Mar, Princesa de Aiucá. Patrona dos pescadores e da maturidade. Yerba – em Porto Rico significa as folhas da diamba ou maconha. Zâmbi – Deus supremo no culto banto (Angola), ele corresponde a Olorum.

Ialorixá – sacerdotisachefe de um Candomblé, ela exerce completa 137


Zambiampungo – Deus supremo nos cultos de

origem congolesa.

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