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como novas possibilidades à leitura, à escrita e à publicação? Como os livros escritos, produzidos, distribuídos e lidos de forma digital — livres de restrições de estoque, ponto de venda, matérias-primas e território — afetam (contribuem ou ameaçam, de acordo com o ponto de vista) nossa relação com o texto, a produção e a difusão da cultura? E quais as implicações — econômicas, sociais e morais — do digital na cadeia produtiva do livro e na reconfiguração de seus agentes: autores, editores, livreiros, bibliotecários, professores? Em 10 ensaios, profissionais da palavra, entre autores, livreiros e editores, comentam sobre as transformações pelas quais estamos passando e apontam tendências, oportunidades (e riscos) para as novas formas como iremos escrever, disseminar e consumir nossas ideias. Da redefinição do papel do bibliotecário na era da informação imediata às novas plataformas para a criação literária; da relação das livrarias com o produto digital à pirataria de textos e à dissipação da autoria individual — análise, reflexão e considerações práticas feitas por quem vive pela palavra escrita, para um futuro que já chegou. Publicado sob licença Creative Commons Não-Comercial

CRAIG MOD

LIVRO LIVRE

O QUE AS TECNOLOGIAS DIGITAIS PODEM OFERECER

CRISTIANE COSTA CORY DOCTOROW PAULO COELHO SETH GODIN PLINIO MARTINS FILHO

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N O VA S P O S S I B I L I DA D E S PA R A A L E I T U R A , A E S C R I TA E A P U B L I C AÇ Ã O CO M O D I G I TA L KEVIN KELLY C.S. SOARES CARLO CARRENHO JOSÉ LUIZ GOLDFARB MARÍGIA MADJE TERTULIANO DOS SANTOS

978-85-64528-06-2



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CRAIG MOD CRISTIANE COSTA CORY DOCTOROW PAULO COELHO SETH GODIN PLINIO MARTINS FILHO

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N O VA S P O S S I B I L I DA D E S PA R A A L E I T U R A , A E S C R I TA E A P U B L I C AÇ Ã O CO M O D I G I TA L KEVIN KELLY C.S.SOARES CARLO CARRENHO JOSÉ LUIZ GOLDFARB MARÍGIA MADJE TERTULIANO DOS SANTOS



7 A PRESENTAÇÃO

15 O QUE OS LIVROS SE TORNARÃO  

25 O FUTURO DO LIVRO IMPRESSO E DAS EDITORAS   

33 E-LIVROS: NEM E-, NEM LIVROS  

5 9 PIR ATEIEM MEUS LIVROS  

63 O FUTURO SI NE QUA NON DAS LIVRARIAS  

69 O FUTURO DA BIBLIOTECA  

75 POR UMA IDEIA DE LITERATURA EXPANDIDA  

85 A NARRATIVA KRAPOTKIN .. 

93 L IV R OS PÓS-ARTEFATO E PUBLICAÇÃO  

121 O FUTURO DO LIVRO        



APRESENTAÇÃO O insubstituível cheiro dos elétrons


VOCÊ NÃO SABE O QUE É UM E-BOOK. Nem você, nem ninguém. Ainda não vimos um e-book pleno, que incorpore a ancestralidade do livro com os recursos assombrosos do digital. O que hoje entende-se difusamente por “e-book” ou livro eletrônico — a miscelânea de leitores eletrônicos e os variados tipos de arquivos de texto que os povoam — deveria ser chamado, mais apropriadamente, de e-incunábulo. Assim como seus equivalentes do século 15 — os primeiros livros produzidos com a então revolucionária tecnologia de imprensa —, os incunábulos eletrônicos estão primeiramente preocupados em imitar, emular, simular. Seis séculos atrás, a Bíblia impressa por Gutenberg, mesmo gravada com inflexíveis tipos de metal, tinha que parecer como se fosse manuscrita por um monge caprichoso. Para mascarar a indesejada regularidade do material impresso, cada exemplar era individualizado por iluminuras e rubricas, feitas à mão. Mais importante: o formato dos primeiros livros impressos era o mesmo dos livros manuscritos — pesados, imponentes, caros e em uma língua iniciática, o latim — seja para garantir que só teriam o poder de lê-los aquelas pessoas que já detinham o poder na sociedade, ou para convencer às pessoas que aquilo era de fato um livro, o que de modo algum era evidente para o público na década de 1450. Os e-incunábulos do princípio do século 21 também tentam imitar, emular e simular aquilo que não são. Os e-readers mostram-nos uma “página” virtual, que podemos “virar” ou mesmo marcar, “dobrando-se” a “orelha”. (E as “prateleiras” virtuais de programas como o iBooks, da Apple, são de “madeira”, para completar o simulacro). O formato — número de “páginas”, quantidade de caracteres por “página”, organização — ainda é o mesmo dos livros impressos, com o agravante de que se reprimem no livro eletrônico, deliberadamente, as vantagens básicas do digital, como copiar e colar, anotar e compartilhar. Mais sintomática é a manutenção, no digital, do preço no mesmo patamar do análogo “palpável”, sinal da resistência a perturbar o 8


frágil porém intrincado mecanismo de produção — a cadeia que vai do agente literário ao livreiro — para encarar as possibilidades do digital como oportunidades, e não como riscos. A resistência do livro impresso durou até meados do século 17. Mesmo diante da evidente maravilha tecnológica que era (e é) o volume impresso, muitos afirmaram que aquilo simplesmente “não era livro”. Onde estavam as marcas dos copistas? E as iluminuras? Como assim todos os livros são iguais? Se qualquer servo puder comprar um livro, que valor que ele terá? E onde estava o cheiro da vela e do pergaminho? Os atuais e-books, ou e-incunábulos, são acolhidos (ou melhor, rejeitados) com igual desconfiança. “Como vou levar um computador para a cama?”, e, o mais frequente, “Ah, mas eu gosto do cheiro de livros…” [Dada a frequência do fator “cheiro” na argumentação, vale uma curta digressão para explorá-la. Seria a capacidade olfativa o ponto central da experiência de leitura? Ler, uma atividade ótico-neural seria na verdade um prazer sensorial, um deleite organoléptico? De onde vem essa sinestesia, que nos faz “devorar” ou “saborear” livros? O toque do papel poderia nos disparar uma reação orgânica ao prazer que ele anuncia, como uma madeleine de Proust (ou a sineta de Pavlov)? Talvez o livro impresso seja o exemplo perfeito do conceito de “fetiche”: a capacidade de projetar poderes sobrenaturais em um objeto inanimado. Quando atribuímos as poderosas sensações (de prazer, de excitação, de tristeza ou de indignação) que um bom texto nos inculca ao material de que o livro é feito, ou à encadernação do volume, ou ao cheiro que ele exala, não estaríamos de fato colecionando paralelogramos de fetiche em nossas estante, e tomando o livro tátil por seu conteúdo etéreo, o impresso no papel pelas impressões em nós, o meio pela mensagem? (E, se assim for, o que haveria de mau nisso? Porque não podem conviver, ou se sobreporem, o amor pela leitura com o amor pelo livro?)] L I V RO L I V RE

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Já que evocamos “o meio e a mensagem”, vale lembrar de McLuhan quando ele diz que “o engajamento instantâneo que acompanha as tecnologias instantâneas dispara uma função conservadora, estabilizante e giroscópica no homem”. Equivale a dizer que novas tecnologias que permitam a expressão e a facilitação da comunicação são encaradas como ameaças por aqueles que se veem encaixados na estrutura de poder — seja no papel de mandatário ou de ser mandado — do antigo sistema. São os que jogariam na retranca, no time dos apocalípticos, se Umberto Eco estivesse fazendo a escalação. Esses tecnocéticos tem uma opinião simples a respeito dos e-books: não “vingarão”. O livro impresso existe há seis séculos, o livro tangível existiu desde sempre. São ancestrais. E-books são brinquedinhos provisórios, jamais vão substituir os livros. Isso nos leva à segunda frase mais ouvida quando se fala de e-books, seja na versão afirmativa peremptória — “isso nunca vai substituir o livro” — ou na interrogativa ansiosa — “será que isso vai susbtituir o livro?” A história nos lega muitos exemplos de novos meios que se supunham (se temiam ou se esperavam que) iriam suplantar os anteriores. Como se fossem os pardais que, trazidos ao Brasil por francófilos, teriam exterminado os tico-ticos. Vejo tico-ticos à minha janela, em meio aos pardais, assim como noto que a internet não pôs um fim à televisão que, por sua vez, não levou o cinema ao ostracismo a que teria relegado o rádio, que tampouco inviabilizou o teatro, aquele que teria sido o algoz da tradição oral. “A descoberta do alfabeto irá criar o esquecimento na alma dos que aprendem, porque eles não mais usarão a memória”, já pontificava Sócrates há um par de milênios. Graças à escrita e à sucessão dos meios de comunicação, ninguém esqueceu do velho ateniense. Há explicações para que a chegada do eBook seja em um tom diferente da chegada, por exemplo, do CD. Este foi saudado quase unanimemente como maravilha tecnológica. Isso ocorreu por 10


duas razões: primeiramente, o CD vinha para suplantar um formato, o LP, que era relativamente novo, surgido há três gerações, ao contrário do livro impresso, que é tão antigo que torna-se imemorial. Em segundo lugar, e talvez mais relevante, o CD não representava uma ameaça de democratização, de abertura. Pelo contrário, era uma patente registrada, com um número limitado de fornecedores e uma tecnologia restrita. Os novos meios sempre chegam com exigências de reconfigurações, de alterações de papéis — e, geralmente, levam à concentração do poder. Já o e-book é extraordinariamente assustador porque surge atrelado à internet, e seu caráter é associado à voracidade democratizadora e anarquista da web, dando a todos o acesso a tudo, solapando direitos e impondo o gratuito. Há mesmo um discurso carbonário que compara o e-book e a autopublicação como a tomada, pelo proletariado, dos modos de produção. Nessa linha, o editor, por exemplo, será o velho latifundiário (gatekeeper) tornado obsoleto, quando o portão — que dá acesso direto ao leitor — for escancarado. E já que estamos na dança das cadeiras da cadeia produtiva do livro, para que precisamos de livrarias ou agentes literários quando uma entidade incorpórea chamada “mídia social” poderia sacramentar o que vale a pena ser lido ou publicado? Curiosamente, o lado “integrado” da discussão — representado por aqueles que aderem entusiasmados às novas tecnologias e erguem hipérboles libertárias — acaba aproximando-se, em sua abordagem “arrasar para construir” do discurso dos “apocalípticos”. Em ambas as visões, o livro eletrônico significa não um meio para um fim (a leitura), mas o fim de um meio (o livro impresso). As reconfigurações dos papéis de editores, livreiros, agentes, leitores e até daquele que dá sentido a todos os outros — o autor — são apenas algumas das possibilidades (leia-se “ameaças” ou “oportunidades” conforme o gosto do freguês) da chegada do digital ao livro. Pode-se gastar muitas páginas ou bytes defendendo o poder democratizador da leitura e da escrita digitais ou L I V RO L I V RE

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perorando sobre a dissolução do hábito da leitura em um mundo de múltiplas tentações fugazes. Pode-se celebrar a liberdade da autopublicação ou sartreanamente lembrar que essa liberdade nos condena à inoperabilidade financeira. Autores podem alegremente saltar de plataforma em plataforma, de experimento narrativo em experimento narrativo, ou vituperar contra o esgarçamento do romance. Pode ser que tudo tenha de mudar, para que tudo permaneça como está. O fato é que somente quando a poeira dos elétrons se assentar, e o caldo opiniático for distilado em conclusões mais consistentes, é que saberemos o que a chegada do digital, essa travessia tecnológica comparável à imprensa de Gutenberg, implicará em nosso modo de fecundar nos outros e em nós mesmos as ideias — em outras palavras, o “publicar”, o “escrever” e o “ler”.

Os artigos selecionados para esta edição — que sai em papel e em e-book, — são exercícios especulativos. São escritos por alguns dos mais brilhantes pensadores sobre o tema, entre escritores, professores, livreiros e editores. Porém, dada a enormidade do tema, o leitor pode virar a última página (física ou virtualmente) deste livro sentindo-se como um daqueles cegos proverbiais que tateavam o elefante. Em relação aos livros eletrônicos — e ao que eles podem ser — há muito para se tatear ainda. Kevin Kelly nos conduz em um passeio sobre os possíveis caminhos evolutivos dos leitores eletrônicos, um dos quais leva curiosamente o livro de volta para casa, ao velho códex de páginas acetinadas. Plinio Martins Filho, em ponderado contraponto, demarca alguns limites para o e-book, alguns permanentes, outros que poderão ser superados, e sugere àqueles que esperam que os e-books substituam os livros impressos que o façam sentados.

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Cory Doctorow, em um dos primeiros ensaios francos sobre ebooks, testemunha sobre suas aventuras na publicação eletrônica, em formatos que antes pareciam só existir em seu gênero de predileto: a ficção científica. Paulo Coelho, único megabest-seller brasileiro, explica francamente sua posição controversa em relação à pirataria — a pronta aderência. Carlo Carrenho aborda as livrarias, suas atitudes em relação ao digital, e revela alguns insights sobre o que as fazem indispensáveis, e o que têm de fazer para assim permanecerem. Seth Godin mostra como um bibliotecário pode desempenhar um papel fundamental para transformar em informação e cultura o cabedal de dados disponibilizado instantaneamente pelo digital. Cristiane Costa nos oferece um painel caleidoscópico das experiências — comerciais ou heroicas — da narrativa com a miríade de plataformas e os recursos colaborativos que tornam difusos (ou intercambiáveis) os papéis de autor e leitor. C.S. Soares exercita a escrita pós-digital mostrando, entremeado a uma narrativa de múltiplas bifurcações, como a evolução do romance parece confluir com as possibilidades libertárias do digital. Cabe a Craig Mod mostrar como o digital pode resgatar uma das melhores características dos livros pré-Gutenberg que a imprensa, curiosamente, desestimulou: a marginália, a individualização dos livros através da experiência única de quem os leu. E como essa experiência pessoal pode ser desfrutada socialmente. José Luiz Goldfarb e Marígia Madje Tertuliano dos Santos expandem nosso panorama histórico nos ajudando a reconsiderar o que de fato seja o livro, sua quintessência que permanece em todos seus suportes, dos papiros à tela de LCD. Que o leitor aprecie a discussão, e ajude a escrever as próximas páginas (ou o seu equivalente) do e-book.

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O QUE OS LIVROS SE TORNARテグ

K E V I N K E LLY テゥ escritor, foi um dos fundadores da revista Wired e テゥ publisher do site Cool Tools. twitter: @kevin2kelly


UM LIVRO É UMA HISTÓRIA INDEPENDENTE, uma argumentação, ou corpo de conhecimento que leva mais de uma hora para ser lido. Um livro é completo no sentido de que ele contém seu próprio começo, meio e fim. No passado um livro foi definido como qualquer coisa impressa entre duas capas. Uma lista de números de telefone era chamada de livro, mesmo que não tivesse princípio lógico, meio ou fim. Um maço de páginas em branco, encadernado, foi chamado de livro de rascunhos. Era um objeto descaradamente vazio, mas estava entre duas capas, e portanto foi chamado um livro. Hoje as páginas de um livro de papel estão desaparecendo. O que é deixado em seu lugar é a estrutura conceitual de um livro — um monte de textos amarrados por um tema em uma experiência de leitura que leva certo tempo para ser concluída. Já que a “casca” tradicional do livro está desaparecendo, cabe perguntar se sua organização não seria apenas um fóssil. Será que o conteúdo intangível de um livro pode oferecer qualquer vantagem sobre as numerosas formas de texto atualmente disponíveis? Pode-se passar horas lendo contos bem escritos, reportagens ou ponderando sobre a web e nunca encontrar nada “livresco”. Têm-se fragmentos, comentários alinhavados, vislumbres. E esta é a grande atração da web: uma miscelânea de peças frouxamente conectadas. EXISTEM livros na web. Muitos deles. Eu postei um dos primeiros livros impressos, de forma integral, na web, em 1994. No entanto, já que você não precisa ultrapassar nenhuma barreira para chegar a estas páginas, o material livresco tende a se dissolver em um emaranhado indistinto de palavras. Sem nada que a contenha, a atenção do leitor tende a fluir para fora, deixando para trás a narrativa central ou discussão. A velocidade do foco móvel cria uma força centrífuga que catapulta leitores para fora das páginas do livro. Um dispositivo em separado para a leitura pode ajudar. Até agora, temos uma tabuleta (tablet), um bloco (pad), e um objeto 16

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que cabe na mão (handheld). O dispositivo para a mão é o mais surpreendente. Especialistas têm insistido por muito tempo que ninguém iria querer ler um livro em uma pequena tela brilhante de poucas polegadas, mas eles estavam errados. Redondamente errados. Muitas pessoas leem felizes seus livros nas telas de seus telefones. Na verdade nós não sabemos o quão pequena pode ser uma tela de leitura. Existe um tipo experimental de leitura chamado Apresentação Rápida Visual em Série que utiliza uma tela com a largura apenas de uma palavra. Seu olho permanece parado, fixo em uma palavra, que é substituída pela próxima palavra no texto e então pela seguinte. Desse modo, seu olho lê uma sequência de palavras, uma “atrás” da outra em vez de em uma longa fila lado a lado. A tela não precisa ser muito grande para isso. Outras telas inovadoras estão tornando-se casa para os livros. A tinta eletrônica (e-ink) reflexiva está destronando o antigo sistema de publicação. Esta tecnologia consiste em uma folha de papel branco que reflete a luz ambiente ao seu redor, coberta com texto escuro capaz de variar. Para o olho comum, o texto sobre este “papel” especial (na verdade, uma folha de plástico) parece tão nítido e legível quanto a tradicional tinta sobre o papel. A primeira geração desta e-tinta em preto e branco fez com do Kindle um best-seller pioneiro. No atual estágio de e-ink, o “livro” é uma tabuleta, uma prancha, que contém uma única página. A única página é “virada”, clicando em um botão na prancha, de modo que uma página se dissolve em outra página. Uma característica fundamental dos e-books em e-paper é que o tamanho da fonte pode ser ajustado individualmente. Você quer um tipo maior? Basta apertar um botão e o livro reflui inteiramente para a forma desejada. Uma página de e-ink pode ser do tamanho de um bolso, ou maior; o Kindle já vem em dois tamanhos. Como o uso vai se estabelecendo com o tempo, é provável que encontremos em um e-book a recomendação: “Este livro é melhor visualizado em um tablet tamanho 3.” Você provavelmente vai ter mais de um leitor L I V RO L I V RE

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tamanho 3. O seu favorito pode ser coberto em couro bem gasto e macio, moldado especialmente para sua mão. O e-leitor recomendado para uma revista de arte como a Wired pode ser outro, bem grande. Tão grande que ele ficará somente na mesa de centro. Porém não há razão para que um e-book só possa ser uma tabuleta. Chegará o dia em que papel de tinta eletrônica será fabricado em folhas flexíveis e baratas. Uma centena dessas folhas pode ser reunida em um maço, ganhar uma lombada e ser recoberta com duas capas atraentes. Dessa forma, o e-book será muito parecido com um livro atual. Poderemos virar fisicamente suas páginas, navegar o livro em 3D e voltar para um trecho anterior do livro tentando adivinhar a que altura da pilha ele estava. Para alterar o livro, basta tocar em sua lombada, e as mesmas páginas conterão um volume diferente. Já que o uso de um livro 3D é tão sensual, talvez seja melhor comprar um com as páginas mais finas e acetinadas. Pessoalmente, eu prefiro páginas grandes. Eu quero um leitor de e-book que se desdobre, à maneira de um origami, com uma folha que seja, pelo menos, tão grande quanto um jornal de hoje. Talvez com o mesmo número de páginas. Eu não me importo de tomar alguns minutos para dobrá-lo de volta para um pacote de tamanho de bolso quando tiver acabado de ler. Eu amo poder esquadrinhar múltiplas colunas compridas e saltar entre as manchetes em um plano. O MIT Media Lab e outros laboratórios de pesquisa estão testando protótipos de livros que são projetados por raios laser a partir de um dispositivo de bolso em uma superfície plana que haja por perto. A tela, ou a página, será qualquer coisa que estiver à mão. Ao mesmo tempo, a tela que vemos pode nos ver. Os pequenos olhos construídos em sua tabuleta, a câmera que você encara, pode ler seu rosto. Protótipos de software de monitoramento facial já podem reconhecer o seu humor, notar quando você está prestando atenção, e mais importante, descobrir em qual parte 18

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da tela você está prestando atenção. Ele pode mapear se você está confuso por uma passagem, ou muito entretido, ou entediado. Isso significa que o texto poderia se adaptar à forma como ele é percebido. Talvez ele se expanda em mais detalhes, ou diminua durante uma leitura mais rápida, ou troque de vocabulário quando você tiver dificuldades, ou reaja de uma centena de outras maneiras possíveis. Há inúmeras experiências sendo feitas com o texto adaptativo. Uma delas fornece resumos diferentes de personagens e enredo dependendo do ponto da leitura em que você esteja. Tanta flexibilidade faz lembrar o tão esperado, porém nunca realizado, sonho de histórias que se bifurquem. Livros que tenham múltiplos finais, ou enredos alternativos. Tentativas anteriores de hiperliteratura encontraram o fracasso entre os leitores. Eles pareciam desinteressados em decidir sobre o enredo, esperavam que o autor tomasse a decisão. Porém, nos últimos anos, histórias complexas, com caminhos alternativos têm sido um sucesso estrondoso em video games. (E, à propósito, há bastante leitura envolvida nesses jogos.) Algumas das técnicas desenvolvidas em domar a complexidade das histórias conduzidas pelos leitores em jogos poderiam migrar para os livros. Especialmente livros com imagens em movimento. Nós ainda não temos uma palavra para eles. Livros com muitas fotos ainda chamamos de livros ilustrados, livros de mesa de centro (coffee table books) ou livros de arte. Mas não há razão para que as imagens nos livros digitais devam permanecer estáticas. E nenhuma razão para pensar que se tratam de filmes. Em uma tela podemos casar texto com imagens cinéticas, informando-se mutuamente. Texto dentro de imagens em movimento, bem como imagens dentro de textos. Alguns diagramas interativos produzidos pelo New York Times e pelo Washington Post têm chegado mais perto desse casamento entre palavra e movimento. Esse híbrido de filmes e livros vai exigir um conjunto de ferramentas de que ainda não dispomos. Atualmente é difícil navegar L I V RO L I V RE

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por imagens em movimento, ou analisar a gramática de um filme, ou fazer anotações em um quadro de um filme. O ideal seria manipular imagens cinéticas com a mesma facilidade com que manipulamos o texto — indexação, marcando referências, cortando e colando, resumindo, citando, criando vínculos (links), e parafraseando o conteúdo. À medida que ganharmos estas ferramentas (e habilidades) iremos fazer uma classe de livros altamente visual, ideal para a formação e educação, que poderemos estudar, rebobinar, e estudar novamente. Eles serão os livros a que poderemos assistir ou a televisão que poderemos ler. Quando uma mesa puder servir-se à exibição de um livro, e um livro puder ser algo a que se assista, teremos de voltar à pergunta do que constitui um livro. E o que acontece quando ele já nasce digital? O efeito imediato de livros que nasceram digitais é que eles podem fluir para qualquer tela, a qualquer hora. Um livro aparecerá quando for invocado. A necessidade de comprar ou estocar um livro antes de lê-lo já não existirá. Um livro será menos um artefato do que um encadeamento contínuo que flui para a sua visão. Aqueles que atualmente custodiam os e-books — Amazon, Google e os editores — concordaram em conter sua liquidez, impedindo os leitores de cortar e colar texto facilmente, ou de copiar grandes seções de um livro, ou ainda de manipular o texto mais seriamente. Contudo, no fim e ao cabo, o texto dos e-books será liberado, e a verdadeira natureza dos livros irá seguir seu curso e florescer. Iremos descobrir que os livros nunca quiseram realmente ser listas telefônicas, catálogos de hardware, ou extensos diretórios. Estes são os trabalhos para os quais os sites são muito superiores — com toda aquela atualização e busca — são tarefas para as quais o papel não é adequado. O que o livro sempre quis foi ser anotado, marcado, sublinhado, ter as pontas de suas páginas dobradas, ser resumido, ganhar referências cruzadas, hiperlinks,

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ser compartilhado, e dialogar. Ser digital lhes permite fazer tudo isso e muito mais. Podemos ver lampejos dessa primeira liberdade encontrada pelos livros nos Kindles mais recentes. À medida que leio o livro, já posso (com algum esforço) destacar uma passagem que eu gostaria de lembrar. Posso extrair esses destaques e reler minha seleção das partes mais importantes ou memoráveis. Mais importante: com a minha permissão, meus destaques podem ser compartilhados com outros leitores, e eu posso ler os deles. Podemos até mesmo filtrar os destaques mais populares de todos os leitores, e desta forma começar a ler um livro de uma maneira nova. Eu também posso ler os destaques de um determinado amigo, erudito ou crítico. Isto dá um acesso público maior para a marginália preciosa da leitura atenta de outro autor de um livro (com sua permissão), um benefício de que antes só os colecionadores de livros raros dispunham. A leitura se torna mais social. Podemos compartilhar os títulos dos livros que estamos lendo, bem como nossas reações e notas à medida que os lemos. Hoje, podemos destacar um trecho. Amanhã, seremos capazes de conectar os trechos. Podemos criar um vínculo (link) de uma frase no livro que estamos lendo a uma frase divergente em outro livro que lemos; de uma palavra em um trecho para um dicionário obscuro; de uma cena em um livro a uma cena equivalente em um filme. (Todos estes truques irão demandar ferramentas para encontrar as passagens relevantes). Poderíamos assinar o feed da marginália de alguém que respeitamos, assim acessaremos não só a sua lista de leitura, mas a sua marginália — destaques, notas, perguntas, reflexões. O tipo de discussão inteligente que se tem em clubes do livro, como o Goodreads, pode seguir o próprio livro em si, e ficar mais profundamente entranhada no livro por meio de hiperlinks. Dessa forma, quando uma pessoa cita uma passagem em particular, um link de duas vias conecta o comentário à passagem, e a passagem ao comentário. Até uma boa obra, pouco lida, poderia L I V RO L I V RE

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acumular um conjunto de comentários críticos estilo wiki, fortemente ligado ao verdadeiro texto. De fato, uma densa “hiperlinkagem” entre livros faria de cada livro um evento de rede. Nesse momento, o máximo que um livro pode fazer é referir-se ao título de outro livro. Se outra obra for mencionada de passagem ou na bibliografia, um e-book ativamente estará linkado a todo o livro. Muito melhor seria um link para um trecho específico em outra obra, uma proeza técnica que ainda não é possível de ser alcançada. Porém quando pudermos criar links profundos em outros documentos na resolução de uma frase, e fazer que esses links sejam biunívocos, teremos livros em rede. Esta, por sinal, foi a visão original de Ted Nelson para o Docuverse. (Ele também previu um sistema de micropagamento e de crédito construído sobre uma economia plenamente literária.) Você pode ter uma noção de como poderia ser isso visitando a Wikipédia. Pense na Wikipédia como um livro muito grande — uma enciclopédia — o que ela é de fato. A maioria dos seus 27 milhões de páginas está repleta de palavras sublinhadas em azul, indicando que essas palavras são conceitos hiperlink para outro lugar na enciclopédia. A Wikipédia é o primeiro livro em rede. Com o passar do tempo, quando todos os livros tornarem-se totalmente digitais, cada um deles irá acumular o equivalente às passagens sublinhadas em azul quando cada referência literária estiver em rede dentro desse livro e com todos os outros livros. Este hiperlinking profundo e rico tecerá todos os livros em rede em um grande metalivro, a biblioteca universal. Durante o próximo século, os estudiosos e fãs, auxiliados por algoritmos computacionais, unirão os livros do mundo em uma única literatura em rede. Um leitor será capaz de gerar um gráfico social de uma ideia ou uma linha do tempo de um conceito, ou um mapa de rede da influência de qualquer noção na biblioteca. Iremos compreender que nenhum trabalho, nenhuma ideia, está sozinho, mas que todas as coisas boas, verdadeiras e belas são redes, os ecossistemas de peças imbricadas, entidades relacionadas e obras semelhantes. 22

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A Wikipédia é um livro que não só se lê socialmente, mas que também se escreve socialmente, e é famosa por isso. Ainda não está claro quantos livros serão escritos coletivamente. É evidente que muitos trabalhos científicos e técnicos serão construídos por meio da colaboração descentralizada, dada a natureza profundamente colaborativa da ciência. Porém o núcleo central da maioria dos livros provavelmente continuará a ter a autoria de um autor solitário. No entanto as referências auxiliares em rede, discussões, críticas, bibliografia e links em torno de um livro provavelmente serão uma colaboração. Os livros sem esta rede irão se sentir nus. A biblioteca completa universal, com todos os livros em todas as línguas, em breve estará disponível em qualquer tela. Haverá muitas maneiras de acessar um livro, mas para a maioria das pessoas, na maioria das vezes, qualquer livro será essencialmente de graça. (Você vai pagar uma taxa mensal para “tudo o que você puder ler”.) O acesso será fácil, mas encontrar um livro, ou trazer para ele a atenção vai ser difícil, por isso a importância da rede do livro vai crescer, porque a rede é o que traz os leitores. Uma peculiaridade de livros em rede é que eles nunca são feitos, ou melhor, que se tornam torrentes de palavras em vez de monumentos. A Wikipédia é um fluxo de edições, como qualquer pessoa que tenha tentado fazer uma citação a ela já se deu conta. Livros também estão se tornando fluxos, uma vez que precursores da obra são escritos, as versões anteriores são publicadas, as correções são feitas, as atualizações acrescentadas e versões revisadas aprovadas, tudo online. Um livro está rede no tempo, bem como no espaço. Mas por que se preocupar chamando essas coisas de livros? Um livro em rede, por definição, não tem centro, é somente as bordas. Seria a unidade fundamental da biblioteca universal a frase, ou o parágrafo, o capítulo ou o artigo, em vez do livro? Talvez sim. Mas há um poder na forma longa. Uma história independente, uma narrativa unificada e argumentação encerrada exercem uma estranha atração sobre nós. Há uma ressonância L I V RO L I V RE

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natural que atrai uma rede em torno dele. Iremos decompor os livros nas peças e bits que os constituem e os recompor na web, porém a organização de alto nível do livro será o foco de atenção — esse produto escasso em nossa sociedade. Um livro é uma unidade de atenção. Um fato é interessante, uma ideia é importante, mas apenas uma história, um bom argumento, uma narrativa bem trabalhada é incrível, e nunca será esquecida. Como Muriel Rukeyser disse: “O universo é feito de histórias, não de átomos.” Neste momento estamos em uma corrida para encontrar o recipiente adequado para livros digitais. Libertos de suas cascas de papel, os livros parecem precisar mais do que a imensidão aberta da web. Eles gostam da compacidade viral de um PDF, mas não de sua aparência rígida. O iPad é sensual e intimista (como o conteúdo dos livros), mas atualmente é pesado na mão. O Kindle tem a vantagem de concentrar a atenção, o que eles gostam. Os últimos dois recipientes cobram por sua conveniência e interface, o que alimenta os autores. Os livros podem aparecer em qualquer tela, e serão lidos em qualquer lugar onde seja possível, porém estimo que irão gravitar em torno de formas que favoreçam a leitura otimizada. No longo prazo (os próximos dez a vinte anos) não iremos pagar por livros individuais mais do que pagaremos por músicas individuais ou filmes. Tudo será transmitido em serviços de assinatura paga, de onde você só vai “pegar emprestado” o que quiser. Isso neutraliza a ansiedade de hoje em produzir um recipiente para e-books que possam ser propriedades. Os e-books não serão propriedade de ninguém. Eles serão acessados. O verdadeiro desafio à frente é encontrar um dispositivo de exibição que dará o foco de atenção de que um livro precisa. Uma invenção que incentive você a seguir para o próximo parágrafo, antes da próxima distração. Acho que esta será uma combinação de estímulo por software, interfaces de leitores altamente desenvolvidas e hardware otimizado para a leitura. E livros escritos com esses dispositivos em mente. 24

KEVIN KELLY


O FUTURO DO LIVRO IMPRESSO E DAS EDITORAS

P LI N I O MA R T I N S FI LHO é professor, presidente da Edusp e editor da Ateliê Editorial.


O LIVRO, COMO TECNOLOGIA DE ARMAZENAMENTO e transmissão de conhecimento, segue insuperado. A tecnologia dos e-readers pode trazer vantagens para profissionais que precisam de livros de consulta com constante atualização, bem como podem ser práticos companheiros de viagens para quem não consegue carregar muitos livros e, até mesmo, estimular a venda de livros. Mas o futuro do livro ainda é impresso, e esse deve ser o foco principal das editoras brasileiras nos próximos anos. Até que surja uma nova tecnologia realmente mais avançada, o livro vive — para a alegria de nossas bibliotecas, editoras, prateleiras e leitores. Emitir juízo sobre o que está por vir, quase sempre, é parcelar um equívoco em prestações mais suaves. No que diz respeito ao futuro imediato do livro, porém, algumas considerações parecem oportunas. Em maior ou menor grau, os recentes debates a respeito do tema têm se debruçado sobre a dúvida: terá o formato “tradicional”, impresso em papel, chegado ao seu fim com o surgimento de novas tecnologias (no caso, os e-readers ou, na falta de termo melhor, “leitores eletrônicos”)? A resposta, como em todas as vezes que esse questionamento foi levantado no último século, continua sendo “não”. E a negativa nada tem a ver com nostalgia: é, puramente, uma constatação tecnológica. Por contraditória que possa parecer a afirmação, a tecnologia do livro ainda é muito mais avançada que a dos leitores eletrônicos. Vale lembrar que, ao contrário do que prega a cultura vigente, uma nova tecnologia nem sempre é mais avançada do que a anterior, e a mais avançada prevalece até ser de fato superada. O conceito de tecnologia admite diversas definições, mas podemos aqui entendê-la como o conjunto de técnicas utilizadas para superar determinado problema. A classificação de uma tecnologia como mais ou menos avançada que outra, por sua vez, se dá pela comparação entre eficiência de ambas. O “problema” que a tecnologia do livro deve enfrentar, definamos desta forma, é o armazenamento e a disseminação do saber humano. Sob esse 26

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ponto de vista, a tecnologia do livro impresso ainda é a mais eficiente criada pelo homem. Comecemos pelo fator custo, que costuma ser, afinal, o que determina a adoção de qualquer tecnologia. O e-reader, obviamente, ainda é um aparelho muito mais caro que um livro. Ele vem acompanhado da premissa de que o comprador economizará na compra de futuros títulos, mais baratos em versão eletrônica do que física. A premissa é ilusória, uma vez que, a exemplo de todos os gadgets das últimas décadas, o usuário logo será obrigado a comprar novas versões do aparelho, a cada dois anos, no máximo, sob pena de ter em mãos um artefato obsoleto e sem suporte técnico. O custo dessas trocas, muito provavelmente, superará a quantidade de livros que o leitor compraria no mesmo período. Custos ambientais também favorecem o livro. Enquanto esse se vale de uma fonte renovável (quase todo papel que se usa hoje vem de florestas controladas), o impacto de produzir um e-reader para cada leitor do planeta seria infinitamente pior. Além de envolver mais materiais, vários deles poluentes e não renováveis, o aparelho tem vida útil menor e é bem mais difícil de ser reciclado. Há, também, o custo de manutenção. Depois de comprado, um livro não requer nenhum cuidado para continuar funcionando perfeitamente, salvo armazená-lo em condições nada exigentes. Já o e-reader ainda é um aparelho que necessita de recargas regulares, além de ser muito mais sensível para transporte e manuseio. Não pode ser molhado, nem levado para a praia — não serve sequer para apoio de cabeça em uma eventual soneca! Como tecnologia de armazenamento de informação, o livro também continuaria sendo mais eficiente a longo prazo. Hoje, um e-reader pode conter muito mais informação que um volume de papel, mas enquanto livros que atravessaram séculos em perfeito estado se contam aos milhares, os hard drives têm vida útil cada vez menor. Em outras palavras, quantas vezes você já ouviu L I V RO L I V RE

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a frase “meu livro teve uma pane e perdeu todos os dados”? Passemos, então, para aquela que é considerada a principal vantagem dos leitores eletrônicos: sua capacidade de armazenar, em um dispositivo leve e compacto, uma quantidade de livros muito maior do que pode carregar qualquer ser humano. Teoricamente, isso faria do e-reader um artefato mais eficiente que o livro para armazenar e espalhar conteúdo. O argumento até faz sentido, mas, posta de lado a lógica ingênua de “quanto mais, melhor”, fica a dúvida: é mesmo vantagem relevante carregar uma quantidade de títulos impossível de ser lida? O entusiasta da nova tecnologia rapidamente sacará do bolso uma comparação com os MP3 players, hoje capazes de armazenar uma quantidade sobre-humana de músicas — e que por isso mesmo foram tidos como algozes do CD. A comparação, apesar de frequente, peca por igualar duas experiências muito distintas. Via de regra, canções populares têm no máximo cinco minutos de duração, portanto faz sentido ter à disposição um sortimento grande de opções, inclusive para ouvi-las aleatoriamente. A tecnologia do MP3 player possibilita, portanto, uma experiência real e atraente que seria muito complexa de conseguir com CDs. Já os livros são experiências sem tempo definido. Alguns duram meses, outros até uma vida inteira, mas dificilmente duram menos que um dia, período no qual, espera-se, o leitor dormirá e largará tudo o que estiver carregando. Logo, o que o e-reader tem de superior em relação ao livro é algo como uma carteira capaz de acomodar passagens para todos os países do mundo — de que adianta, se você só pode visitar um de cada vez? Claro, o fato de uma vantagem não fazer muito sentido não a transforma, automaticamente, em desvantagem. Ninguém diria que é um problema ter toda sua biblioteca à disposição sem a necessidade de se levantar da cadeira (os fisioterapeutas, talvez). Mas as coisas devem ser postas num contexto mais amplo: essa pequena e duvidosa vantagem do e-reader é suficiente para ofuscar todos os outros aspectos no qual o livro ainda é, incon28

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testavelmente, mais eficaz? É o caso de proclamar a morte de uma tecnologia perfeitamente adequada, aperfeiçoada ao longo de quinhentos anos, como o livro? Ainda creio que não, e mais razões se somam à tecnologia para afirmá-lo. Retomemos a comparação com música. Outra razão para duvidar de um “efeito iPod” no mercado editorial é que os aparelhos eletrônicos estão ainda muito distantes (e talvez nunca sejam capazes) de reproduzir satisfatoriamente a experiência sensorial de ler um livro. Para se experimentar a música, bastam os fones funcionarem; se o som vem de códigos binários ou de um feixe de laser sobre um pedaço de plástico, a sensação é a mesma. Já um livro não é só seu conteúdo, é também a forma, a inteligência e a beleza com que o texto e as imagens são distribuídos em suas páginas. A legibilidade das fontes, as proporções da diagramação, o peso do papel, as margens abertas para a imaginação (e eventuais rabiscos), tudo isso faz parte da experiência do livro. Quem afirma que tais nuances não fazem diferença pode tentar explicar por que as pessoas não leem nem imprimem seus livros pela internet, o que seria sem dúvida mais simples e barato. A tecnologia dos leitores eletrônicos, por sua vez, ainda está muito distante de abarcar o prazer sensorial único de cada livro, mostrando os textos todos da mesma forma, duros, corridos. Isso sem mencionar as imagens que aparecem monocromáticas e grosseiras — alguém poderia imaginar livros infantis ou de fotografias, muitas vezes objetos de arte em si, substituídos por uma tela multifunção? Além da visão e do tato, o livro exige atenção completa, proporcionando em contrapartida uma experiência intelectual única. Tanto é que ele sobrevive praticamente incólume a supostos “inimigos” como o rádio, a televisão e o computador — mas não necessariamente piores ou melhores que o papel, mas que sem dúvida não conseguiram suplantá-lo na função de armazenar e transmitir conhecimento. Pode-se dizer que mais gente se informa hoje pela internet e L I V RO L I V RE

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pela televisão, mas é importante separar “informação” de “formação”. O livro, claro, é um meio “lento”, não se presta a trazer informação imediata (e o imediatismo como valor incontestável da sociedade contemporânea é tema para muitos outros ensaios), mas ainda é o mais eficiente para transmitir conhecimento sólido sobre qualquer tema. Nenhuma universidade séria do mundo, por mais avançados que sejam seus campos de pesquisa, dispensou os livros como alicerce principal na formação de seus alunos. Não é o caso, aqui, de fazer uma defesa anacrônica do livro em detrimento da televisão e da internet: sabemos todos que os meios podem e devem ser complementares. Mas classificaria de improvável a hipótese que uma formação proporcionada apenas pela internet — fragmentária, superficial e aleatória — possa ser preferível, sequer comparável, a uma formação aprofundada e crítica, para a qual os livros ainda são o meio mais apropriado. Menciono a internet aqui porque os e-readers estão, verdade seja dita, muito mais próximos dos laptops e smartphones do que dos livros. O fato de que não cansam a vista não esconde que são, em essência, browsers de navegação de conteúdo, razão pela qual são muito mais apropriados para a leitura de sites, jornais e revistas (em outras palavras, informação) do que para livros. Livros são recortes compreensíveis do universo em expansão que é o conhecimento humano; escolher um título e não outro para ler é, em si, um ato crítico perante essa quantidade infinita de informações — muito diferente da passividade de pagar para ter acesso a toda informação do mundo, mas não fazer nada com ela. Concluo o raciocínio frisando que nada tenho contra a existência dos e-readers. Seria injusto, por exemplo, não notar as vantagens que trarão para profissionais que precisam de livros de consulta com constante atualização, como advogados, jornalistas, dentistas, programadores etc. Eles podem também ser práticos companheiros de viagens para quem não consegue carregar muitos livros. Podem, inclusive, estimular a compra de mais tí-

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tulos, como é comum com usuários de novas tecnologias. Com isso surgiria um novo mercado, e editoras pequenas teriam uma fonte extra de renda, sem a necessidade de grande investimento. Mas é preciso deixar claro que o livro, como tecnologia de armazenamento e transmissão de conhecimento, segue insuperado. Seu futuro, portanto, ainda é impresso, e esse ainda deve ser o foco principal das editoras brasileiras nos próximos anos. Até que surja uma nova tecnologia realmente mais avançada, o livro vive — para a alegria de nossas bibliotecas, editoras, prateleiras e leitores.

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E-LIVROS Nem e-, nem livros

C ORY D OC TOR OW é escritor de ficção científica, ativista, jornalista e blogueiro, coeditor do Boing Boing. boingboing.net craphound.com


PARA COMEÇO DE CONVERSA, deixe-me tentar resumir as lições e intuições que tive sobre e-books, a partir do lançamento de dois dos meus romances e da maior parte de uma coletânea de contos on-line, sob uma licença Creative Commons. Não cheguei a um completo entendimento. Não sei como se parecerão os livros do futuro. Porém eu tenho ideias, e vou compartilhá-las com vocês: E - B O OK S N ÃO S ÃO P E Ç A S DE M A R K E T I NG

Tudo bem, e-books são peças de marketing: quer dizer, dar e-books faz vender mais livros. A editora Baen Books, que tem publicações em série, constatou que dar de graça as edições eletrônicas dos números anteriores quando do lançamento de um novo número faz explodir a quantidade de exemplares vendidos do novo livro — e da backlist (o fundo de catálogo). E o número de pessoas que me escreveram para dizer o quanto curtiram o e-book e, em consequência, compraram meu livro ultrapassa em muito o número de pessoas que me escreveram para dizer “Ha, ha, seu hippie! Li seu livro de graça e agora não vou comprá-lo”. Porém e-books não podem ser somente peças de marketing: e-books são um fim em si mesmos. Em última análise, mais pessoas vão ler mais palavras em mais telas e menos palavras em menos páginas e, quando essas duas linhas se cruzarem, e-books terão de ser a forma como os escritores ganham seu sustento, não como eles promovem edições “sem árvores mortas”. E - B O OK S C O M P L E M E N TA M L I V RO S DE PA P E L

Ter um e-book é bom. Ter um livro impresso é bom. Ter todos é ainda melhor. Um leitor me escreveu para contar que leu metade de meu primeiro romance no livro encadernado, e imprimiu a segunda metade em papel de rascunho para ler na praia.

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Estudantes me escrevem para dizer que é mais fácil escrever suas monografias se puderem copiar e colar suas citações em seus processadores de texto. Os leitores da Baen usam as edições eletrônicas de suas séries para construir relações entre os personagens, lugares e eventos. VO C Ê N ÃO P O S S U I U M L I V RO S E N ÃO AC E S S A R U M L I V RO

Parto da perspectiva de que um livro é uma “prática” — uma coleção de atividades sociais e econômicas e artísticas — e não um “objeto”. Encarar um livro como uma “prática” no lugar de um objeto é uma noção bem radical, e levanta a questão: que diabos então é um livro? Boa pergunta. Escrevi todos os meus livros em um processador de texto (no caso, BBEdit, da Barebones Software — não poderia pedir um editor melhor). Dali, posso convertê-lo em um PDF pré-formatado de duas colunas. Posso transformá-lo em um arquivo HTML. Posso enviá-lo a meu editor, que, por sua vez, pode trasnformá-lo em páginas diagramadas, cópias para revisão adiantada, livros de capa dura e brochuras. Posso encaminhá-lo a meus leitores, que podem convertê-lo em uma imensa gama de formatos. A Internet Bookmobile da Brewster Kahle pode transformar um livro digital em um livro de papel em quatro cores, com sangramento nas páginas, encadernação quadrada, capa laminada e lombada impressa em dez minutos. Pelo preço aproximado de um dólar. Tente converter um livro impresso em um PDF ou arquivo HTML ou arquivo de texto ou uma impressão gastando um dólar e dez minutos! Chega a ser irônico, porque uma das razões mais citadas para preferir-se um livro impresso a um e-book é que livros de papel conferem um sentimento de propriedade de um objeto físico. Antes que a poeira se assente nesta discussão sobre e-books, possuir um livro de papel parecerá menos com o sentimento de “propriedade” do que ter uma edição digital aberta do texto.

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E - B O OK S S ÃO U M M E L HOR N E G Ó C IO PA R A E S C R I TOR E S

A compensação financeira para os autores é ínfima. Amazing Stories, a revista original de ficção científica de Hugo Gernsback pagava dois cents por palavra. Hoje em dia, as revistas de ficção científica pagam… dois cents por palavra. As somas envolvidas são tão minúsculas, que não chegam a ser ofensivas: são charmosamente anacrônicas, históricas, como aquelas placas de “Whiskey 5 ¢” que ficavam nos Saloons do Velho Oeste. Alguns escritores até ganham bem, mas eles são a exceção que confirma a regra de que a população total dos escritores de ficção científica ganha apenas uma fração de seu sustento com a escrita. Quase todos nós poderíamos ganhar bem mais em outro lugar (ainda que todos sonhemos ganhar uma montanha de dinheiro à la Stephen King, já que ninguém jogaria na Sena se não existissem vencedores). O incentivo primordial para escrever tem de ser a satisfação artística, o ego, e um desejo de posteridade. E-books cumprem esse papel. E-books podem tornar-se parte do corpus do conhecimento humano porque são indexados pelas ferramentas de busca e replicados às centenas, aos milhares e aos milhões. Podem ser googlados. Ainda melhor: eles nivelam o campo de batalha entre os escritores e os trolls. Quando a Amazon deslanchou, muitos escritores ficaram acabrunhados com a ideia de que parvenus sanguinolentos estavam enchendo os quadros de mensagem da Amazom com críticas violentas contra seu trabalho — porque, se uma recomendação pessoal é a melhor forma de vender um livro, então, certamente, uma condenação pessoal é a melhor forma de não vender um livro. Hoje em dia, os trolls ainda estão entre nós, porém, agora, os leitores podem decidir por si mesmos. Eis um trecho de uma “resenha” de meu livro Down and Out in the Magic Kingdom que foi recentemente postada na Amazon por “um leitor de Redwood City, Califórnia”:

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Não faço ideia de que droga os críticos estão fumando, ou que tipo de suborno pode estar envolvido. Porém, a despeito do que a Entertainment Weekly diz, ou o que quer que diga esse ou aquele jornal, você não deve gastar seu dinheiro nisso. Baixe de graça no site de Corey (sic), leia a primeira página, e fuja enojado — esse livro é para gente que acha que O código Da Vinci de Dan Brown é uma grande literatura.

Antigamente, esse tipo de coisa teria me jogado realmente para baixo. Uns parvenus sanguinolentos e salivantes desancando meu bom nome! Céus! Mas veja com atenção esse trecho de condenação: Baixe de graça no site de Corey [sic], leia a primeira página

Percebe? Puxa, esse cara está trabalhando para mim! Alguém acusa um autor que eu estou pensando em ler de ter subornado a Entertainment Weekly para dizer coisas legais sobre seu romance, “um escritor surpreendentemente ruim”, não menos que isso, cuja escrita é “dura, amadora e sem inspiração”. Eu vou querer dar uma olhada nesse autor. E eu posso. Com um clique. E então eu posso decidir por mim mesmo. Você não vai muito longe nas artes sem doses saudáveis tanto de ego quanto de insegurança, e a desvantagem de poder googlar tudo o que as pessoas estão dizendo sobre seu livro é que isso pode atacar diretamente suas inseguranças — “todas essas pessoas que não vão dar bola para meu livro porque leram resenhas negativas na web!” Porém o outro lado da moeda é o ego: “se ao menos eles arriscassem, veriam como o livro é bom”. E quanto mais virulentas as resenhas, mais eles tenderão a arriscar uma olhada. Toda propaganda é boa propaganda, desde que eles imprimam sua URL direito (mesmo se eles errarem seu nome!).

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E - B O OK S T Ê M DE A S S U M I R S UA N AT U R E Z A

O valor distintivo do e-book é ortogonal ao valor dos livros de papel, e revolve em torno das capacidades de recomposição (remixing) e envio do texto eletrônico. Quanto mais você restringir as proposições de valor distintivo de um e-book — quer dizer, quando mais você restringir as capacidades do leitor de copiar, transportar e transformar um e-book — mais ele será avaliado com os mesmos critérios do livro de papel. Os e-books fracassam nesses critérios. Os e-books não podem ganhar dos livros de papel em tipografia sofisticada, não podem comparar-se em qualidade de papel ou pelo cheiro da cola. Mas tente enviar um livro de papel para um amigo no Brasil, de graça, em menos de um segundo. Ou carregar mil livros de papel em um pequenino pen-drive pendurado em seu chaveiro. Ou catar em um livro impresso todas as ocorrências do nome de um personagem para encontrar um trecho favorito. Puxa, tente copiar um trechinho de um livro de papel para colocar na sua assinatura de e-mail. E - B O OK S DE M A N DA M U M L I M I A R DE AT E NÇ ÃO ( AT T E N T ION S PA M ) DI F E R E N T E , P OR É M N ÃO M A I S C U RTO

Os artistas sempre se desapontam com o limiar de atenções de seu público. Se você procurar lá atrás, verá rascunhos cuneiformes lamentando o então atual modo de vida apressado dos sumérios, com sua insistência em mitos com enredos e personagens ativos, tão diferente dos “bons tempos”. Como artistas, seria bem mais fácil se nosso público fosse mais tolerante com nossa tendência a entediá-lo. Poderíamos explorar muito mais ideias sem nos preocupar em cobrir tudo com digeríveis coberturas de chocolate em nome do entretenimento. Costumamos achar que os limiares curtos de atenção são produto da era da informação, mas veja só isso:

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É certo que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se necessário algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido — e que exigirá tempo, até que minhas obras sejam “legíveis” —, para o qual é imprescindível ser quase uma vaca, e não um “homem moderno”: o ruminar…

Em outras palavras, se meu livro é entediante demais, é porque você não está prestando atenção suficiente. Os escritores dizem isso o tempo todo, mas a citação não é deste século, nem do anterior. É do prefácio de Genealogia da Moral, de Nietzsche, publicado em 1887. É, nosso limiar de atenção é diferente hoje, mas não necessariamente mais curto. Os fãs de Warren Ellis conseguiram manter o enredo de Transmetropolitan em suas mentes por cinco anos enquanto a história se desenrolava em fascículos mensais. Os livros da série de J.K. Rowling, Harry Potter, ficaram progressivamente mais grossos a cada novo número. Florestas inteiras são sacrificadas para as séries de ficção científica longevas como Wheel of Time, de Robert Jordan, cada livro com aproximadamente vinte mil páginas (posso estar me perdendo nos números exatos). É claro, os debates presidenciais são conduzidos em manchetes e frases curtas, e não com as extravagantes oratórias que duravam um dia, como as dos debates de Lincoln-Douglas, porém as pessoas conseguem prestar atenção às campanhas eleitorais do começo ao fim, e elas duram 24 meses. P R E C I S A M O S DE TOD O S O S E - B O OK S

A esmagadora maioria das palavras que já foram escritas foram perdidas para a posteridade. Nenhuma biblioteca coleciona todos os livros escritos e ninguém poderia pretender mordiscar um pedaço do gigantesco corpus das obras escritas. Nenhum de L I V RO L I V RE

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nós lerá mais que uma ínfima fatia da literatura humana. Porém isso não significa que tenhamos de nos limitar aos textos mais populares e ter uma revolução do e-book apropriada. Para começo de conversa, somos todos casos extremos. Claro, temos todos o desejo comum pelo cânone central da literatura, mas todos queremos completar essa coleção com textos diferentes que são tão distintos e individualizados quanto impressões digitais. Se parecemos estar fazendo a mesma coisa quando lemos, ou escutamos música, ou batemos bapo pela rede, é porque não estamos olhando tão perto quanto deveríamos. O compartilhamento de nossa experiência só está presente no nível mais cru de medição: assim que você começar a observar no nível granular, há tantas diferenças em nossa experiência “compartilhada” quanto há similaridades. Ainda mais intensa é a maneira como uma grande coleção de textos eletrônicos difere de uma pequena coleção: é a diferença entre um único livro, uma prateleira cheia de livros e uma biblioteca. A escala faz toda a diferença. Tome-se a internet, por exemplo: nenhum de nós pode esperar ler sequer uma fração de todas as páginas na web, porém, ao analisar as estruturas de vínculos (links) que unem essas páginas num todo, o Google é capaz de fornecer conclusões geradas por máquinas sobre a relevância relativa de páginas diferentes, para diferentes buscas. Nenhum de nós jamais devorará todo o corpus, porém o Google pode digeri-lo para nós e excretar as pepitas fumegantes de coisas boas que faz da ferramenta de busca o milagre que é hoje. E - B O OK S S ÃO C O M O L I V RO S DE PA P E L

Para dar partida nessa conversa, gostaria de falar sobre as maneiras que fazem os e-books serem mais parecidos com os livros de papel do que você poderia presumir. Uma autoevidência da teoria do varejo é que os consumidores têm de entrar em contato uma boa quantidade de vezes antes de comprarem — sete seria 40

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o número mágico de contatos, como se costuma dizer. Significa que meus leitores têm de ouvir o título, ver a capa, pegar o livro, ler uma resenha e assim por diante, sete vezes, em média, antes de estarem prontos para ler. Há uma tendência a encarar o download de um livro como comparável a levá-lo da loja para casa, mas esta é a metáfora errada. Algumas vezes, talvez a maioria das vezes, baixar um livro é como tirá-lo da prateleira da loja e olhar para sua capa e ler os blurbs (comentários elogiosos) (com a vantagem de não ter de entrar em contato com o DNA residual de todo mundo que folheou o livro antes de você). Alguns escritores ficam horrorizados ao saber que trezentos mil exemplares do meu primeiro romance foram baixados e que “somente” mais ou menos dez mil foram vendidos até agora. Se fosse o caso de que, para livro vendido, trinta fossem retirados da loja e levados para casa, este seria sem dúvida um resultado horroroso. Porém, veja de outra maneira: se uma em cada trinta pessoas que dessem uma espiada na capa do meu livro o comprassem, eu seria um autor feliz. E eu sou. Esses downloads não me custaram mais que espiadelas na capa na livraria, e as vendas foram vigorosas. Também gostamos de pensar nos livros físicos como sendo inerentemente contabilizáveis de uma forma que os livros digitais não podem ser (uma ironia, já que os computadores são justamente craques em contar as coisas!). Isso importa, porque os autores são pagos com base no número de exemplares vendidos de seus livros, assim ter uma boa conta faz toda a diferença. E, de fato, meu relatório de royalties contém números precisos de exemplares impressos, embarcados, devolvidos e vendidos. Contudo essa é uma falsa precisão. Quando a gráfica de fato roda uma tiragem de um livro, ela sempre imprime alguns extras no começo e no fim da tiragem, para garantir que o ajuste da máquina está correto e para substituir os eventuais rasgões, amassos e vazamentos de tinta. O número verdadeiro de livros impressos é aproximadamente o número de livros encomendaL I V RO L I V RE

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dos, mas nunca exatamente — se você encomendar 500 convites de casamento, é provável que receba 500 e poucos da gráfica, e eis a razão. E o número começa a ficar cada vez mais difuso, a partir desse ponto. Exemplares são roubados. Exemplares são danificados. As transportadoras se confundem. Alguns exemplares acabam nas caixas erradas e vão para uma livraria que não os encomendou e não foram faturadas e acabam em uma mesa de liquidação ou no lixo. Alguns exemplares são devolvidos como invendáveis. Alguns são encalhe. Alguns voltam à loja na manhã seguinte porque o comprador se arrependeu. Alguns exemplares terminam naquela gaveta em que repousam as meias sem par. Os números na declaração de royalties são atuariais, não são exatos. Representam um tipo de estimativa provável dos exemplares despachados, vendidos, devolvidos e assim por diante. A contabilidade atuarial funciona bem: bem o suficiente para administrar megacorporações bancárias, securitárias ou de apostas. É bom o suficiente para cotizar os royalties pagos por sociedades de arrecadação de direito sobre execuções ao vivo ou no rádio. É é boa o suficiente para contar quantos exemplares são distribuídos, on-line ou concretamente. As contas de livros de papel têm uma precisão diferente da dos livros eletrônicos, é claro: mas nenhuma das duas é inerentemente contabilizável. E, por fim, é claro, há a questão de vender os livros. Para que uma autora obtenha seu sustento de suas palavras, impressas ou codificadas, ela tem primeiramente de cumprir a tarefa mais difícil, que é a de encontrar seu público. Há mais concorrentes disputando nossa atenção do que poderíamos reconciliar, dispor em prioridade ou compreender. Colocar um livro sob o nariz da pessoa certa, com a comunicação certa, é a tarefa mais difícil e mais importante que qualquer escritor tem de enfrentar. Os livros importam para mim, e muito. Comecei a trabalhar em bibliotecas e livrarias com a idade de 12 anos e me mantive 42

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nesse ambiente por uma década, até que fui seduzido pelo canto da sereia do mundo da tecnologia. Com a idade de 12 anos já sabia que queria ser um escritor e, agora, vinte anos depois, tenho três romances, uma coletânea de contos e um livro de não ficção lançados, dois romances contratados e outro livro a caminho. Ganhei um prestigioso prêmio em meu gênero, a ficção científica, o Prêmio Campbell, e fui indicado para outro, o Prêmio Nebula, para melhor Novela. Eu possuo um monte de livros. São mais de dez mil, guardados em ambas as costas do continente norte-americano. Tenho de os possuir, já que são ferramentas do meu ofício: as obras de referência às quais recorro como romancista e escritor hoje. A maior parte da literatura que eu aprecio tem vida curta, desaparece da estante depois de alguns meses, geralmente para sempre. A ficção científica é inerentemente efêmera. Agora, por mais que eu ame livros, amo também os computadores. Os computadores são fundamentalmente diferentes dos livros modernos da mesma forma que os livros impressos são diferentes das Bíblias monásticas: são maleáveis. Houve uma época em que um “livro” era algo produzido com muitos meses de trabalho de um escrivão, geralmente um monge, em algum tipo de substrato duradouro e sexy como pele de fetos de carneiro. A máquina xerox de Gutenberg modificou tudo, mudou o livro para algo que podia ser simplesmente produzido em uma prensa em alguns minutos, em um substrato mais adequado à higiene dos traseiros que à exaltação em um lugar de honra na catedral. A prensa de Gutenberg permitiu que um membro da classe dominante pudesse reunir uma biblioteca, no lugar de possuir apenas um ou dois volumes; permitiu ainda que, no lugar de restringirem-se ao sagrado, os temas do que se colocava no papel variassem enormemente, e pudessem ser passados de mão em mão. A maior parte das novas ideias começa com pequenas e preciosas certezas e grandes especulações. Venho cavando algumas certezas e encontrando uma porção de especulação, recenteL I V RO L I V RE

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mente, e o propósito deste artigo é expor ambas as categorias de ideias. Tudo começa com meu primeiro romance, Down and Out in the Magic Kingdom, que foi lançado em 9 de janeiro de 2003. Naquela época, falava-se muito em meu círculo profissional sobre, de um lado, o fracasso dos e-books, e, do outro, de uma nova e assustadora prática de “pirataria” de e-book. Era muito estranho que ninguém parecesse notar que a ideia do e-book como “fracasso” não combinava nada com a noção de que a “pirataria” dos livros eletrônicos valesse a preocupação. Quero dizer: se os e-books são um fracasso, então quem é que dá a mínima se algum nerd está escamoteando textos na Usenet? Permitam-me uma breve digressão sobre o duplo significado de “e-books”. Um significado para a palavra trata dos legítimos empreendimentos e-book, vale dizer, edições autorizadas pelos detentores de direito, lançadas em um formato proprietário, de uso restrito, algumas vezes para uso de um PC normal ou de um dispositivo dedicado, como o Kindle. O outro significado para “e-book” refere-se à uma edição eletrônica “pirata” ou não autorizada de um livro, geralmente feita ao se desencapar um livro e escaneá-lo, página por página, e passando então as imagens por um programa de reconhecimento ótico de caracteres para convertê-los em texto ASCII, para ser limpo à mão. Esses livros têm muitos bugs, cheios de erros introduzidos pelo OCR. Uma porção de colegas meus teme que esses livros também tenham erros deliberados, criados por estripadores de livros que cortam, acrescentam ou modificam textos para “melhorar” a obra. Francamente, eu nunca vi nenhuma prova de que qualquer ripador de livro esteja interessado em fazer isso, e, até que veja, acho que essa é a última das preocupações que devemos ter. Voltando a Down and Out in the Magic Kingdom. Bem, não ainda. Quero que vocês tenham uma noção do nível de pânico em minha área de trabalho em face da pirataria do e-book, ou “bookwarez”, como é conhecida no círculo dos ripadores. Alguns 44

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escritores se dão ao trabalho de entrar em grupos como alt.binaries.ebooks (de troca de e-books piratas) com nomes falsos, dizendo ter medo da retaliação de adolescentes hackers que poderiam bagunçar suas avaliações de crédito se forem chamados de ladrões. Meu editor, um blogueiro, hacker e cara-responsável-pela-maior-linha-SF-do-mundo, chamado Patrick Nielsen Hayden, enviou uma mensagem para um desses grupos, dizendo, em parte, A pirataria de e-textos protegidos por copyright na internet vai acontecer mais e mais, pela mesma razão que as pessoas faziam cassetes de LPs e CDs e cópias em VHS de vídeos comprados nas lojas. Em parte é cobiça; em parte é em repúdio aos preços do varejo; em parte é o desejo de Compartilhar Coisas Maneiras (uma motivação muitas vezes pouco levada em conta pelas vítimas dessa pirataria no nível pessoal, de mão a mão). Responder imediatamente com campanhas afirmando que é moralmente comparável a assaltar velhinhas na rua só vai tornar mais difícil prosseguir desta posição quando não funcionar. Nos anos 1970, a indústria fonográfica berrava que “gravar fitas em casa é matar a música”. É difícil para as pessoas comuns evitarem observar que a música não morreu. Por outro lado, a credibilidade da indústria fonográfica nesse assunto não foi exatamente fortalecida.

Patrick e eu temos um longo relacionamento, que começou quando eu tinha 18 anos e ele contribuiu para uma vaquinha para que eu fizesse uma oficina de escritor, e que continuou até um fatídico almoço em Nova York em meados dos anos 1990, quando eu mostrei a ele um bando de textos do Projeto Gutenberg em meu Palm Pilot e o inspirei a começar a licenciar os títulos da Tor para PDAs e adiante, na virada do milênio, quando ele comprou e publicou meu primeiro romance (já comprou outros três desde então — eu realmente gosto de Patrick!). Assim que os grupos de bookwarez começaram a pipocar, fiL I V RO L I V RE

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quei bobo com uma ação legal que um colega impetrou contra a AOL/Time-Warner, por abrigar o grupo alt.binaires.ebooks. O escritor alegava que a AOL tinha a responsabilidade de remover esse grupo, já que ele continha tantos arquivos infratores, e que a omissão tornava-a infratora conivente, e assim deveria receber as penalidades incrivelmente severas que vieram com as legislações recém-impetradas, como a “Lei contra roubo eletrônico” e a odiosa “Lei do Milênio sobre Copyright Digital”, ou DMCA. Eis então um pensamento assustador: havia pessoas que achavam que o mundo seria um lugar melhor se os ISP (provedores de acesso à internet) tivessem a responsabilidade de policiar ativamente e de censurar os sites e canais de notícias a que seus clientes tinham acesso, incluindo um requerimento para que os ISP precisassem determinar, por conta própria, o que seriam as infrações de copyright — coisa que geralmente é melhor ser deixada para os juízes à luz do arbítrio de estimados especialistas em copyright. Essa foi uma ideia espetacularmente idiota, e me ofendeu até a raiz dos cabelos. Espera-se que os escritores sejam defensores da livre expressão, não da censura. Parecia a mim que alguns de meus colegas amavam a Primeira Emenda, mas estavam relutantes em compartilhá-la com o resto do mundo. Puxa vida, eu tinha um livro prestes a ser lançado, e me parecia a oportunidade ideal para aprender um pouco mais sobre esse negócio de e-books. Por um lado, e-books eram um fracasso retumbante. Por outro lado, haviam mais e mais livros postados no alt.binaries.ebooks a cada dia. Isso me levava a duas certezas que tinha a respeito de e-books: 1) Mais pessoas estão lendo mais palavras em mais telas a cada dia. 2) Menos pessoas estão lendo menos palavras em menos páginas a cada dia. Essas duas certezas suscitavam uma porção de observações:

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as resoluções de tela eram insuficientes para substituir o papel; as pessoas queriam seus próprios livros físicos por conta de seu apelo visceral (geralmente isso é acompanhado por um microssermão sobre o cheiro dos livros, ou sobre como eles ficam bonitos na prateleira, ou sobre quantas memórias são evocadas por aquela velha mancha de curry na margem); você não pode levar o e-book para a banheira; você não pode ler um e-book sem eletricidade e um computador; os formatos de arquivo ficam obsoletos, o papel tem durado por um longo tempo. Nenhuma dessas parecia uma boa explicação para o “fracasso” dos e-books para mim. Se as resoluções de tela são insuficientes para substituir o papel, então como é que todo mundo que eu conheço passa mais tempo lendo em telas a cada ano, até e incluindo minha santa avozinha? (Geeks têm uma tendência irritante de argumentar que algumas tecnologias não estão prontas para o público geral porque suas avozinhas não as utilizam — bem, minha avó envia-me e-mails o tempo todo. Ela digita 70 palavras por minuto, e adora exibir os e-mails do netinho para suas colegas em torno da piscina, em seu condomínio de aposentados na Flórida.) Os outros argumentos são bem mais interessantes, no entanto. Parecia-me que e-books são diferentes dos livros de papel, e têm pontos fortes e fracos distintos. Vamos pensar um pouco sobre as transformações pelas quais passou o livro ao longo dos anos. Isso é interessante, porque a história do livro é a história do Iluminismo, da Reforma, dos Peregrinos e até da colonização das Américas e da Revolução Americana. Em termos gerais, houve um tempo em que os livros eram gravados em couro precioso, à mão, por monges. As únicas pessoas L I V RO L I V RE

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que podiam ler eram os sacerdotes, que apreciavam os cartuns maneiros que os monges escreviam nas margens. Os padres liam o livro em voz alta, em latim (para um público que majoritariamente não falava latim) nas catedrais, embrulhados no dispendioso incenso que exalava dos incensórios balançados pelos coroinhas. Então Johannes Gutenberg inventou a imprensa. Martinho Lutero transformou aquela imprensa em revolução. Ele imprimiu bíblias nos idiomas que os não sacerdotes podiam ler, e as distribuiu entre as pessoas que poderiam ler, então, a palavra de Deus por elas mesmas. O resto, como dizem, é história. Eis alguns pontos interessantes a observar em respeito ao advento da imprensa: As bíblias de Lutero não tinham a qualidade manufatureira das bíblias iluminadas. Elas eram comparativamente baratas e não tinham a expressividade tipográfica que só um monge talentoso poderia incorporar quando escrevia a palavra de Deus. As bíblias de Lutero eram intrinsecamente inadequadas para o uso que se fazia então das bíblias. De uma boa bíblia esperava-se que reforçasse a autoridade do homem no púlpito. Tinha de ser pesada, tinha de ser impressionante e, acima de tudo, tinha de ser rara. A experiência de usuário da bíblia de Lutero era um desastre. Não havia incenso, não havia coroinhas e quem é que sabia (tirando os padres) que ler cansava tanto a vista? As bíblias de Lutero eram muito menos confiáveis que as bíblias iluminadas. Qualquer pessoa com uma prensa poderia fazer uma, inserindo qualquer texto apócrifo que desejasse — e como saber se a tradução era fidedigna? Os monges tinham todo o papado por trás deles, conduzindo uma operação de garantia de qualidade que susteve a Europa por séculos. 48

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No fim dos anos 1990, fui a conferências onde os executivos da indústria da música explicavam pacientemente que o Napster estava condenado, porque você não obtinha a arte da capa, nem as letras das músicas ou as informações do encarte; você não tinha como saber se a ripagem era de qualidade, e, algumas vezes, a conexão caía no meio do download. Tenho certeza que muitos cardeais se aferraram às questões acima listadas, com a mesma convicção. O que os executivos da indústria fonográfica e os cardeais deixaram de ver eram os muitos pontos nos quais as bíblias de Lutero arrebentavam:

Elas eram baratas e rápidas. Um monte de gente poderia adquiri-las sem ter de se sujeitar à autoridade a à aprovação da Igreja. Eram em línguas que os não sacerdotes conseguiam ler. Você não tinha mais que depender só da palavra da Igreja quando os padres explicavam o que Deus queria dizer. Deram à luz um ecossistema de impressão-edição no qual os livros floresceram. Novos tipos de ficção, poesia, política, ensaios e assim por diante foram possibilitados pelas prensas cuja popularidade inicial foi alavancada pelas ideias de Lutero sobre a religião. Observe que todas essas virtudes são ortogonais às virtudes da bíblia monástica. Quer dizer, nenhuma das coisas que fizeram da imprensa de Gutenberg um sucesso eram coisas que fizeram a bíblia monástica um sucesso. Seguindo o mesmo compasso, as razões para se amar os e-books têm pouco a ver com as razões porque amamos livros de papel.

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E-books são fáceis de compartilhar. O livro Secrets of Ya-Ya Sisterhood passou de um título em uma posição intermediária nas listas de vendas para um best-seller quando foi passado de mão em mão por mulheres em rodas de leitura. Geeks e outros cidadãos da internet têm uma vida social tão rica quanto os frequentadores de rodas de leitura, mas eles nunca se veem tête-à-tête; o único tipo de livro que eles podem passar de mão em mão é um e-book. E tem mais: o fator mais relacionado à compra é a recomendação de um amigo — ter um livro recomendado por um chapa tem mais influência sobre sua decisão de adquiri-lo do que, por exemplo, ter lido os volumes anteriores da série! São fáceis de fragmentar e analisar. É aí que o MacEvangelista em mim dá as caras — as plataformas minoritárias importam. É uma verdade simples que no universo dos sites de download “piratas” (como o Napster), a maioria dos arquivos de música baixados são os que estão na parada atual de sucessos, cerca de noventa por cento. É fato, todos queremos música popular. É por isso que ela é popular. Porém, o interessante são os outros dez por cento. Bill Gates disse ao New York Times que a Microsoft havia perdido a batalha dos buscadores porque fazia “um bom trabalho nos oitenta por cento das buscas comuns, ignorando o resto. Mas são os vinte por cento remanescentes que contam, porque é neles que reside a percepção de qualidade.” Por que é que o Napster cativou a tantas pessoas? Não é porque podia nos dar as faixas que estavam no topo das paradas, e que poderíamos ouvir simplesmente ligando o rádio: era porque oitenta por cento das músicas jamais gravadas não estavam disponíveis para venda em lugar nenhum do mundo, e nesses oitenta por cento estavam 50

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as músicas que nos emocionaram, todos os chicletes sonoros colados a nossos cérebros, todos os sons que nos fizeram sorrir. Essas músicas são diferentes para cada pessoa, mas elas fazem a diferença entre um serviço atraente e, digamos, ouvir as “Dez mais” de qualquer rádio FM. Da mesma forma, a maleabilidade do texto eletrônico significa que ele pode ter seu propósito agilmente reconfigurado: você pode jogá-lo em um servidor ou convertê-lo em seu formato favorito; você pode pedir a seu computador que o leia em voz alta ou pode procurar por um trecho para citá-lo em um relatório ou obra. Em outras palavras, a maioria das pessoas que baixam um livro o fazem por uma razão previsível, e em um formato previsível — digamos, para ler um trecho em HTML para ver se vale a pena comprar o livro — imprimir alguns capítulos do livro para levar à praia para não estragar aquela edição de capa dura. Os construtores de ferramentas e os designers de software estão cada vez mais conscientes da noção de “affordance” (a qualidade de um objeto que permite que um indivíduo realize uma ação). Você pode enfiar um prego numa parede com qualquer objeto pesado, desde uma pedra até um martelo ou uma frigideira de ferro fundido. No entanto, há alguma coisa no martelo que clama pela tarefa de enfiar martelos, ele tem as affordances que impelem seu usuário a empunhá-lo. E, como sabemos, quando tudo o que temos é um martelo, tudo começa a parecer-se com um prego. A affordance de um computador — a coisa para a qual ele foi projetado — é fragmentar e recompilar coleções de bits. A affordance da internet é mover os bits em alta velocidade ao redor do mundo a custo baixo ou zero. Depreende-se daí que o âmago da experiência de uso com o e-book terá que envolver fragmentação e envio. L I V RO L I V RE

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Os advogados de direitos autorais têm uma palavra para isso: infração. Isso é porque o copyright dá aos criadores um monopólio quase integral sobre copiar e remixar suas obras, praticamente para sempre (em teoria, o copyright expira, porém na prática, o copyright ganha uma extensão sempre que os primeiros desenhos do Mickey Mouse estão para entrar em domínio público, porque a Disney tem bastante força em Washington). Este é um problema enorme. Talvez o maior dos problemas possíveis. E eis o porquê: Os autores entram em pânico. Os autores têm sido educados por seus pares que o copyright é a única coisa que impede que eles sejam selvagemente violentados no mercado. E isso é bem verdade: é um forte copyright que muitas vezes defende os autores contra os piores excessos de seus editores ou publicadores. No entanto, isso não quer dizer que um forte copyright o proteja de seus leitores. Leitores ficam indignados ao serem comparados com ladrões. Sério. Você tem uma pequena empresa. Os leitores são os seus clientes. Chamá-los de ladrões não é bom para os negócios. As editoras entram em pânico. E o fazem porque estão no negócio de abocanhar o máximo de copyrights que puderem e se aferrar a eles por todo o tempo do mundo porque “nunca se sabe”. É por isso que as revistas de ficção científica tentam engambelar os autores para assinar direitos improváveis como uso em parques temáticos ou bonecos baseados em sua obra — é por isso que os agentes literários estão pedindo agora por comissões enquanto durar o copyright dos livros que representam. Copyright que cobre tanto terreno e que permanece por tanto tempo — quem não vai querer um pedaço? 52

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A responsabilidade penal aumenta absurdamente. A infração do copyright, especialmente na internet, é um supercrime. Há penalidades de 150 mil dólares por infração, e acionistas furiosos e seus representantes têm todo o tipo de poderes especiais, como a habilidade de forçar um provedor de serviço a entregar a eles sua informação pessoal antes mesmo de dar provas de sua alegada infração ao juiz. Isso significa que todos que suspeitam de que possam estar no lado errado de uma lei de copyright vão ter enorme aversão a correr riscos: os editores exigem que seus autores os indenizem por qualquer acusação de infração e vão além: forçando os autores a provarem que “limparam” (“cleared”, obtiveram as licenças) de todos os trechos que eles citam, mesmo no caso de rápidas citações de uso justo, como títulos de canções nas aberturas de capítulos. O resultado é que os autores acabam assumindo responsabilidades que têm potencial de destruir suas vidas; são proibidos de citar o material que têm a seu redor, e têm medo de textos de domínio público porque um erro bem-intencionado sobre o status de domínio público de uma obra carrega consigo um preço terrível. A posteridade desaparece. Na audiência Eldred vs. Ashcroft que ocorreu na Suprema Corte Americana em 2006, a corte descobriu que noventa e oito porcento das obras em copyright não estão rendendo dinheiro a ninguém, porém identificar a quem essas velhas obras pertencem, com o grau de certeza exigido quando um erro pode levar ao apocalipse econômico, custaria bem mais do que se poderia ganhar com elas. Isso significa que 98% das obras irá expirar muito antes de que o copyright contido nelas expire. Hoje em dia, os nomes dos pais ancestrais da ficção científica — Mary Shelley, Arthur Conan Doyle, Edgar Alan Poe, Júlio Verne, H.G. L I V RO L I V RE

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Wells — são todos bem conhecidos, e suas obras ainda fazem parte do discurso. Seus descendentes espirituais, de Hugo Gernsback em diante, talvez não tenham tanta sorte — se suas obras continuarem a ser “protegidas” pelo copyright, poderão acabar varridas da face da Terra antes que revertam ao domínio público.

Isso não quer dizer que o copyright é ruim, mas que há bom copyright e mau copyright e que, algumas vezes, bom copyright demais é uma coisa ruim. É como pimenta malagueta na sopa: um pouco rende muito, e demais estraga o caldo. Da bíblia de Lutero até os primeiros registros sonoros, do rádio até a edições de bolso, do cabo ao MP3, o mundo demonstrou que sua primeira preferência pelas novas mídias é sua “democratividade” — a facilidade com que pode ser reproduzida. (E, por favor, antes de prosseguir, esqueça todo esse negócio de como “o modelo de cópia da internet é mais destrutivo do que as tecnologias que a precederam. Peloamordedeus, os atores de Vaudeville que processaram Marconi por ele ter inventado o rádio passaram de um regime onde detinham cem por cento do controle de quem entrava no teatro e os escutava para um regime em que tinham zero por cento do controle sobre quem construía ou adquiria um rádio e sintonizava em uma gravação de suas apresentações. Sobre essa questão, veja a diferença entre a bíblia monástica e a bíblia de Lutero — comparado a essa mudança de fase, o Napster é fichinha). De volta à “democratividade”. Cada novo meio bem-sucedido trocou sua “falta de artefato” — o grau com que é populada por descomunais arranjos de átomos, habilmente enfeixados por mestres artesãos — em prol da facilidade de reprodução. Aqueles rolos de música para pianolas não eram tão expressivos quanto bons pianistas, mas tinham uma escala melhor — assim como as emissões de rádio, os livros de bolso e os MP3. Notas 54

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do encarte do CD, iluminuras à mão e encadernações de couro são ótimas, mas não se comparam à capacidade de um indivíduo de obter um exemplar ou cópia para si. O que não quer dizer que o antigo meio morrerá. Os artistas ainda pintam iluminuras em livros, grandes pianistas ainda fustigam as teclas no Carnegie Hall, e as prateleiras estão estufadas de biografias devassadoras sobre músicos, que são muito mais ricas em detalhes do que as notas do encarte. A questão é, quando tudo o que você tem são monges, cada livro toma as características de uma bíblia monástica. Assim que você inventa a imprensa, todos os livros que são mais adequados aos tipos móveis migram para esse formato. O que resta são aqueles produtos que são mais adequados ao velho sistema de produção: as peças de teatro que têm de ser peças de teatro, os livros que ficam especialmente adoráveis sobre papel bege costurado entre capas, a música que é mais agradável de se ouvir tocada ao vivo e em meio a uma multidão de humanidade. O incremento de “democratividade” traduz-se por diminuição do controle: é bem mais difícil controlar quem pode copiar um livro quando há uma fotocopiadora em cada esquina do que quando você precisa de um mosteiro e de vários anos para copiar uma Bíblia. E essa diminuição do controle exige um novo regime de copyright que restabeleça os direitos dos criadores com seus públicos. Por exemplo, quando o VHS foi inventado, as cortes firmaram uma nova isenção de copyright para mudança de tempo; quando o rádio foi inventado, o congresso norte-americano emitiu uma isenção antitruste para as gravadoras para garantir uma licença genérica; quando a TV a cabo foi inventada, o governo apenas mandou que as emissoras vendessem, aos operadores de cabo, acesso à programação por um preço fixo. A lesgislação do copyright está permanentemente desatualizada, porque a última revisão sempre é gerada em resposta à geração tecnológica precedente. A tentação de se tratar a lei do copyright como se ela tivesse descido da montanha gravada em L I V RO L I V RE

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duas tábuas por Deus (ou, pior, “do mesmo jeito que” bens físicos, como os imóveis) é totalmente furada, porque, por definição, a legislação atual de copyright somente considera a última geração de tecnologia. Assim, então a pirataria é uma violação da lei do copyright? Dã! É o fim do mundo? Dã. Se a igreja católica pode sobreviver à imprensa, a ficção científica vai suportar o advento do bookwarez. Estamos quase concluindo aqui, mas antes de encerrarmos, gostaria de apresentar mais uma coisinha. Pense nisso como um “lagniappe”, ou um licorzinho depois da refeição — um pequeno extra como agradecimento pela paciência de vocês. Há cerca de um ano, lancei meu primeiro romance, Down and Out in the Magic Kingdom, na internet, sob os termos da mais restritiva das licenças Creative Commons disponíveis. Tudo o que ela permitia é que os leitores enviassem uns aos outros exemplares (ou cópias) do livro. Eu estava cautelosamente botando a ponta do dedão na água, ainda que, à época, parecesse que eu estava mergulhando de cabeça. Agora, vou mergulhar de cabeça. Hoje, vou re-licenciar o texto de Down and Out in the Magic Kindgom sob uma licença Creative Commons “Atribuição-Uso não comercial-Compartilhamento pela mesma licença”, o que significa que, a partir de hoje, vocês têm minha bênção para criar obras derivadas de meu primeiro livro. Vocês podem fazer filmes, audiolivros, traduções, fan-fictions, paródias (Deus me proteja), paródias enfurecidas, poesia, camisetas — o que quiser —, com duas condições: 1) que você permita a todos os outros estripar, misturar e gerar suas criações da mesma maneira como está fazendo com a minha, e, por outro lado, 2) você faça isso de forma não comercial. O céu não caiu quando botei a ponta do meu dedão. Vamos ver o que acontece quando fico com a água à altura do joelho. Confiram o texto, licenciado, e os detalhes no meu site.1 Ah, estou liberando este texto que você está lendo sob “De56

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dicação ao domínio público” da Creative Commons, dando-o ao mundo para fazer com ele o que desejar. Você pode baixá-lo em meu blog.2

1. http://www.craphound.com/down 2. http://boingboing.net/

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PIRATEIEM MEUS LIVROS

PAULO COE LHO é escritor, membro do Instituto Shimon Peres para a Paz, conselheiro especial da UNESCO para “Diálogos interculturais e convergências espirituais”, membro da diretoria da Schwab Foundation for Social Entrepreneurship, além de membro da Academia Brasileira de Letras. twitter: @paulocoelho


EM MEADOS DO SÉCULO 20, começaram a circular na antiga União Soviética vários livros mimeografados questionando o sistema político. Seus autores jamais ganharam um centavo de direitos autorais. Pelo contrário: foram perseguidos, desmoralizados na imprensa oficial, exilados para os famosos gulags na Sibéria. Mesmo assim, continuaram escrevendo. Por quê? Porque precisavam dividir o que sentiam. Dos Evangelhos aos manifestos políticos, a literatura permitiu que ideias pudessem viajar e, eventualmente, transformar o mundo. Nada contra ganhar dinheiro com livros: eu vivo disso. Mas o que ocorre no presente? A indústria se mobiliza para aprovar leis contra a “pirataria intelectual”. Dependendo do país, o “pirata” — ou seja, aquele que está propagando arte na rede — poderá terminar na cadeia. E eu com isso? Como autor, deveria estar defendendo a “propriedade intelectual”. Mas não estou. Piratas do mundo, uni-vos e pirateiem tudo que escrevi! A época jurássica, em que uma ideia tinha dono, desapareceu para sempre. Primeiro, porque tudo que o mundo faz é reciclar os mesmos quatro temas: uma história de amor a dois, um triângulo amoroso, a luta pelo poder e a narração de uma viagem. Segundo, porque quem escreve deseja ser lido — em um jornal, em um blog, em um panfleto, em um muro. Quanto mais escutamos uma canção no rádio, mais temos vontade de comprar o CD. Isso funciona também para a literatura: quanto mais gente “piratear” um livro, melhor. Se gostou do começo, irá comprá-lo no dia seguinte — já que não há nada mais cansativo que ler longos textos em tela de computador. Algumas pessoas dirão: você é rico o bastante para permitir que seus textos sejam divulgados livremente. É verdade: sou rico. Mas foi a vontade de ganhar dinheiro que me levou a escrever? 60

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Não. Minha família, meus professores, todos diziam que a profissão de escritor não tinha futuro. Comecei a escrever — e continuo escrevendo — porque me dá prazer e porque justifica minha existência. Se dinheiro fosse o motivo, já podia ter parado de escrever e de aturar as invariáveis críticas negativas. A indústria dirá: artistas não podem sobreviver se não forem pagos. A vantagem da internet é a divulgação gratuita do seu trabalho. Em 1999, quando fui publicado pela primeira vez na Rússia (tiragem de três mil exemplares), o país logo enfrentou uma crise de fornecimento de papel. Por acaso, descobri uma edição “pirata” de O Alquimista e postei na minha página. Um ano depois, a crise já solucionada, eu vendia 10 mil cópias. Chegamos a 2002 com 1 milhão de cópias; hoje, tenho mais de 12 milhões de livros vendidos naquele país. Quando cruzei a Rússia de trem, encontrei várias pessoas que diziam ter tido o primeiro contato com meu trabalho por meio daquela cópia “pirata” na minha página. Hoje, mantenho o “Pirate Coelho”, colocando endereços de livros meus que estão em sites de compartilhamento de arquivos. E minhas vendagens só fazem crescer — cerca de 140 milhões de exemplares no mundo. Quando você come uma laranja, precisa voltar para comprar outra. Nesse caso, faz sentido cobrar no momento da venda do produto. No caso da arte, você não está comprando papel, tinta, pincel, tela ou notas musicais, mas, sim, a ideia que nasce da combinação desses produtos. A “pirataria” é o seu primeiro contato com o trabalho do artista. Se a ideia for boa, você gostará de tê-la em sua casa; uma ideia consistente não precisa de proteção. O resto é ganância ou ignorância.

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O FUTURO SINE QUA NON DAS LIVRARIAS O efeito digital sobre como produzimos, distribuímos e consumimos conteúdo

CA R LO CA R R E N HO é economista, editor, foi publisher da Thomas Nelson Brasil, fundador e diretor do PublishNews, um informativo do mercado editorial brasileiro. twitter: @carrenho


EM SEUS PRIMEIROS ANOS DE OPERAÇÃO, a Amazon.com utilizava o seguinte bordão em sua publicidade: “a maior livraria do mundo”. Girando um estoque mínimo, a audácia da empresa de Jeff Bezos em se autoproclamar como tal lhe valeu um processo da Barnes & Noble, a maior rede de livrarias do mundo de facto. A briga jurídica pizzalizou-se com um acordo a portas fechadas entre os envolvidos. Mas a Barnes & Noble tinha razão. Afinal, a maior livraria do mundo é aquela onde é possível a descoberta do maior número de livros e não o estabelecimento com o maior catálogo bibliográfico. Fosse assim, a Avon era a maior loja de lingerie do mundo. Quinze anos depois, o comércio virtual de livros cresceu assombrosamente e é, de fato, uma ameaça às livrarias físicas. Basta olhar para o mercado norte-americano e observar a falência da Borders, a segunda maior rede do país, que falhou notoriamente em construir sua presença on-line, o que muito contribuiu para sua bancarrota. Do outro lado do mundo, a Austrália traz é o exemplo de um país cujo mercado livreiro sofre inteiro com a concorrência estrangeira virtual e que, recentemente, viu sua maior rede de livrarias, a Angus & Robertson, pedir concordata. No Brasil, é nítida a diferença de categoria entre as livrarias que possuem forte presença on-line e as demais. De um lado, Submarino, Cultura e Saraiva. Do outro, Travessa, Vila, Laselva. Com o surgimento do livro digital, as livrarias virtuais ganharam ainda mais força — afinal, lugar de livro digital é quase por definição em uma livraria on-line. Com a Amazon chegando a um milhão de e-books em seu catálogo digital e se expandindo para países de idiomas diferentes do inglês, muitos já acreditam que as livrarias terão o destino das lojas de discos: serão dizimadas a uma meia dúzia de locais frequentados por fanáticos por vinil, ou, no caso, papel. Eu penso diferente. Para mim, o livro não existe sem a descoberta, e ninguém tem conseguido fazer isto melhor que as livrarias. Se a livraria acabar, o livro acaba junto, 64

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seja ele de papel, de pixels ou holográfico. O livro em qualquer formato depende da livraria. Mas afinal, o que é exatamente essa descoberta que a livraria permite com tanta eficiência? Prefiro explicar com um exemplo real. Lembro-me de um certo dia de dezembro no final dos anos noventa em que tinha de comprar vários presentes de Natal. Sem paciência para escolher, fui até a Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, quando ainda não existia a megastore que seria construída no espaço do cinema Astor. Ali, um dos muitos atendentes bem preparados da Cultura escutou uma breve descrição de cada pessoa que eu gostaria de presentear e imediatamente sugeriu dois ou três livros perfeitos. A recomendação é justamente uma das facetas do serviço de descoberta das livrarias físicas e, até hoje, nenhuma livraria virtual conseguiu desenvolver um bom sistema de recomendações. O próprio diretor de livros da Google, Tom Turvey, declarou na Book Expo America de 2011 que “nenhum algoritmo será capaz de substituir um bom livreiro de carne e osso” — e não custa lembrar que sua empresa é a rainha da engenharia de algoritmos. Mas será que só as livrarias podem dar conta das recomendações? Os jornais e revistas também não recomendam livros? As recomendações dos amigos não são agora maximizadas pela mídia social? Na realidade, apenas a livraria física consegue fazer uma recomendação totalmente personalizada, pois ela parte do cliente; ouve primeiro para sugerir depois. Jornais e revistas fazem sugestões baseados ou em gostos e preferências ultrapessoais de seus críticos ou no senso comum e, verdade seja dita, os espaços dedicados a livros vêm desaparecendo das páginas da mídia. Já a nuvem de contatos da mídia social carece do olhar do especialista e ainda continua dependendo dos algoritmos. Portanto, nada, seja algoritmo ou não, será capaz de recomendar livros como um bom livreiro de carne e osso. Outro aspecto da descoberta que uma livraria proporciona acontece sem uma maior interação humana. Trata-se da interaL I V RO L I V RE

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ção que a simples visita a uma bela livraria proporciona ao leitor, interação esta que pode ser visual ou tátil. Faço aqui um desafio. Tente descobrir um livro novo ou um presente para um amigo em uma livraria virtual. Depois, faça a mesma coisa em uma livraria física. É muito mais rápido e eficiente realizar a tarefa no mundo real. Uma simples passada de olhos de meio segundo nas pilhas já vai trazer ideias que demorariam minutos para pipocar na tela. Quer saber um pouco mais do livro? É só virá-lo e ler a quarta capa. Sem nenhum clique. A grande verdade é que com as livrarias virtuais e seus livros digitais ficou cada vez mais fácil encontrar o livro que queremos e cada vez mais difícil descobrir o livro que queremos mas desconhecemos. E, no final, é uma questão de física: qualquer livraria possui uma área tridimensional maior que qualquer tela de computador. Vale aqui um paralelo com o mundo da música. Alguém poderia argumentar que as lojas de música também eram ótimas para se descobrir álbuns e conseguir recomendações e mesmo assim acabaram. Mas a verdade é que a música é muito mais presente no cotidiano do que um livro. Pode-se descobrir música no rádio, no elevador, no restaurante — meu último álbum foi comprado depois de eu perguntar ao dono do restaurante o que estava tocando. Ou seja, o livro depende muito mais da livraria do que o CD dependia da loja de música. Além disso, me parece que o mundo digital é até mais prático para se “folhear” música do que uma loja de CDs, onde apenas uma parcela mínima dos álbuns ficam disponíveis para degustação. Mas se as livrarias têm sua necessidade garantida, o mesmo não acontece com sua receita. A verdadeira ruptura do mundo digital para a livraria está na separação entre o serviço prestado e a receita obtida. Antigamente, o leitor entrava em uma livraria, conseguia recomendações do atendente, descobria livros xeretando as pilhas, escolhia um ou dois livros e pagava no caixa. Agora, o leitor faz tudo isso, menos comprar os livros. Há vários casos relatados de clientes que agradecem as dicas dos atenden66

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tes de livrarias independentes nos Estados Unidos e dizem que vão comprar o livro na Amazon.com ou no próprio Kindle. Não é à toa que proliferam os cafés em livrarias — ainda não é possível tomar café virtualmente ou comprar um “e-capuccino” em leitor digital. O desafio das livrarias do futuro, portanto, pode ser resumido em um só: monetizar o excelente serviço que prestam a leitores e a toda a indústria editorial. Sim, as livrarias do futuro serão show-rooms culturais e precisam descobrir como cobrar por isso. Nos Estados Unidos já existem livrarias que cobram entrada em noites de autógrafos e o ingresso vale para a compra do livro. Outras livrarias já colocam QRcodes junto a seus livros físicos permitindo que o cliente acesse rapidamente o site da própria livraria com seu celular e compre ali seu livro digital. No Brasil, as livrarias já oferecem passeios e viagens culturais com a presença de escritores como guias. Talvez a solução passe por cobrar das editoras ou das próprias livrarias virtuais uma “taxa” pela descoberta. Talvez o caminho seja cobrar do leitor, e confesso que eu pagaria para entrar em uma boa livraria, como pago para entrar em uma boa galeria de arte. Talvez o futuro reserve às livrarias o papel de centros culturais, com cursos, clubes do livro, lounge-bibliotecas e outros espaços e atividades remunerados. De fato, ainda é cedo para dizer. Mas de uma coisa eu tenho certeza: a Amazon.com não seria o que é sem as lojas da Barnes & Noble e da Borders e sem as milhares de livrarias independentes dos EUA. A descoberta, por recomendação ou interação, é condição sine qua non para a sobrevivência do livro e do mercado editorial. E ninguém proporciona interação melhor do que as livrarias. Por isso, elas sempre farão parte do futuro. Só falta descobrir como cobrar a fatura e quem é que vai pagar a conta.

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O FUTURO DA BIBLIOTECA Para que serve uma biblioteca pública?

S E T H GOD I N é escritor best-seller e criador do Projeto Domino, que pretende mudar a forma como os livros são feitos, vendidos e disseminados. twitter: @ThisIsSethsBlog


ANTES DE MAIS NADA: como chegamos onde estamos. Antes de Gutenberg, um livro custava mais que uma pequena casa. Como resultado, somente os reis e os bispos podiam possuir seus próprios livros. Isso levou naturalmente à criação de livros compartilhados, de bibliotecas onde estudiosos (todos os outros estavam ocupados demais tentando não morrer de fome) poderiam vir para ler os livros que eles não possuíam. A biblioteca como um armazém para livros que valiam a pena compartilhar. Somente depois disso inventamos o bibliotecário. O bibliotecário não é um balconista que calhou de trabalhar em uma biblioteca. Um bibliotecário é um cão de caça de dados, um guia, um sherpa e um professor. O bibliotecário é a interface entre resmas de dados e o usuário que não tem treinamento, mas está motivado. Depois de Gutenberg, os livros ficaram muito mais baratos. Mais indivíduos podiam montar suas próprias coleções. Ao mesmo tempo, no entanto, o número de títulos explodiu, e a demanda por bibliotecas cresceu da mesma forma. Passou a ser indispensável um armazém para guardar toda essa abundância, e mais do que nunca precisamos de um bibliotecário que nos auxiliasse a encontrar o que procuramos. A biblioteca é um lugar para o bibliotecário. Capitães de indústria (em particular Andrew Carnegie) fundaram a moderna biblioteca norte-americana. A ideia era que, em uma era anterior à dos meios eletrônicos, o trabalhador precisava tanto de entretenimento quando de uma camada de educação. Trabalhar o dia todo e tornar-se um membro mais civilizado da sociedade ao ler à noite. E vocês, rapazes? Vocês precisam de um lugar com enciclopédias e cheio de livros divertidos, que, espera-se, irão inculcar um amor pela leitura por toda a vida, porque ler faz de todos nós 70

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mais considerados, reflexivos, mais bem informados e mais produtivos como membros da sociedade civil. O que era ótimo. Até agora. Quer assistir um filme? O Netflix1 é um bibliotecário melhor, com uma biblioteca melhor que qualquer biblioteca no país. O bibliotecário da Netflix sabe tudo sobre todos os filmes, sabe o que você já assistiu e o que você provavelmente vai gostar de assistir. Se o objetivo é conectar os espectadores aos filmes, a Netflix vence. Isso vai além de um mero movimento em paralelo que a maioria dos bibliotecários despreza, de qualquer modo. A Wikipédia e os imensos bancos de dados basicamente eliminaram a biblioteca como melhor recurso para qualquer pessoa fazer uma pesquisa amadora (ensino médio ou mesmo universitário). Resta alguma dúvida de que os recursos on-line ficarão ainda melhores e mais baratos à medida que os anos passarem? Os jovens não se abalam às bibliotecas para usar uma enciclopédia desatualizada para escrever um trabalho sobre um fato histórico. Você até pode querer que eles façam isso, mas só o farão se forem coagidos. Esses jovens precisam de um bibliotecário agora mais do que nunca (para descobrir formas criativas de localizar e usar os dados). Não precisam de uma biblioteca, nem um pouco. Quando os jovens vão ao shopping, em vez de irem à biblioteca, não é que o shopping tenha ganhado. É que a biblioteca perdeu. E temos de levar em conta o crescimento do Kindle. Um e-book custa cerca de U$ 1,60, em dólares de 1962. Mil e-books podem caber facilmente em um dispositivo. Fáceis de guardar, fáceis de achar o que se quer, fáceis de passar para seu vizinho. Daqui a cinco anos, os leitores eletrônicos serão tão caros quanto aparelhos de barbear, e os e-books custarão menos que as lâminas. Os bibliotecários que estão clamando ou fazendo campanha por soluções mais inteligentes para empréstimo de e-books não estão percebendo nada. Estão defendendo as bibliotecas como L I V RO L I V RE

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armazéns, em oposição à lutar pelo futuro, no qual o bibliotecário é um produtor, concierge, conector, professor e promotor de eventos. Pós-Gutenberg, os livros finalmente são abundantes, dificilmente escassos, dificilmente dispendiosos e dificilmente valem a pena serem armazenados. Pós-Gutenberg, um recurso que será escasso e raro é o conhecimento e o insight, não o acesso aos dados. Uma biblioteca já não é um armazém para livros mortos. Bem a tempo para a economia da informação, a biblioteca deve ser o centro nervoso local para a informação. (Por favor não diga que sou antilivro! Acho que, por meio de minhas ações e opções de carreira, já demonstrei minhas escolhas pró-livro. Não estou dizendo que quero que o papel suma, estou apenas descrevendo o que está ocorrendo inevitavelmente). Todos nós amamos a imagem do menino ou menina pobre que consegue se arrancar da pobreza por meio dos livros, porém agora (a maior parte do tempo), o insight e a alavancagem virão da capacidade de ser ágil e esperto com os recursos on-line, não de se esconder atrás das pilhas de volumes. A próxima biblioteca ainda será um lugar físico. Um lugar onde as pessoas se reunirão para colaborar e coordenar e inventar projetos que valham a pena trabalhar em conjunto. Auxiliados por um bibliotecário que compreenda a Malha2, um bibliotecário que possa trazer conhecimento do meio e conhecimento de pessoas e acessar a informação que ela contém. A próxima biblioteca será uma casa para o bibliotecário com coragem para convidar os jovens a ensinar-lhes como conseguir notas melhores e ao mesmo tempo fazer menos trabalho enfadonho. E também ensinar-lhes como usar um ferro de solda ou desmontar algum mecanismo para ver como é por dentro. E mesmo a desafiá-los a darem aulas sobre o que os apaixona, somente porque é divertido fazê-lo. O bibliotecário assume a res-

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ponsabilidade/culpa por qualquer garoto que conseguir se formar na escola sem ser um perito escavador de dados. A próxima biblioteca está tão entupida de terminais da internet que sempre haverá ao menos um deles vazio. E as pessoas que dirigem a biblioteca não verão a combinação de acesso aos dados e conexão com seus pares como uma distração — e sim como o propósito. Você não gostaria de morar e trabalhar e pagar impostos em uma cidade que tivesse uma biblioteca como essa? A vibração da melhor cafeteria combinada à paixão do contador, não de histórias, mas de informações? Há milhares de coisas que podem ser feitas num lugar como esse, todas construídas em torno de uma missão: tomar o mundo dos dados, combiná-lo com as pessoas de sua comunidade e criar valor. Precisamos de bibliotecários mais do que nunca. O que não precisamos é de meros balconistas que guardam papel morto. Bibliotecários são importantes demais para serem uma voz minguante em nossa cultura. Para o bibliotecário certo, essa é a oportunidade de suas vidas.

1

Fornecedor norte-americano de conteúdo em streaming pela internet ou de envio postal de DVDs.

2

meshing.it/book

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POR UMA IDEIA DE LITERATURA EXPANDIDA

C R I ST I A N E C OSTA ĂŠ coordenadora do curso de Jornalismo da UFRJ, uma das criadoras do curso de Publishing

Management da FGV-Rio e curadora de projetos especiais da Nova Fronteira. literaturaexpandida.wordpress.com


APESAR DE INFLAMAR CORAÇÕES E MENTES, a discussão sobre o fim do livro é apenas a ponta do iceberg de outra revolução em curso: a das novas possibilidades de narrar e ler abertas pelas tecnologias digitais. Essas inovações convergem de tal forma que, no futuro, as experiências de ler, ouvir e ver não serão mais distintas. Uma nova semântica já começa se a instaurar a partir da web. Os próprios conceitos de livro e literatura já não parecem mais tão claros diante das novas mídias. Ao explorar a tecnologia digital já na sua concepção, a literatura eletrônica se distingue das versões digitalizadas de trabalhos impressos comumente oferecidos nos e-books. Na confluência entre a música, o cinema e o design, os novos livros, também chamados de enhanced books, podem ser reescritos por seus leitores, em experiências interativas e colaborativas que colocam em questão o conceito de autoria e propriedade intelectual. Romances epistolares passam a ser e-pistolares, em que símbolos do SMS podem substituir os travessões. Até mesmo coordenadas geodésicas, como as marcações do Google Maps, podem oferecer estruturas narrativas jamais usadas antes. Games, blogs e chatbots (programas de computador desenhados para similar uma conversação normal entre personagens e leitores) abrem espaço para um nível de interatividade inédito com o leitor, que sai de seu papel passivo, podendo interferir nos rumos da história, colaborar, jogar games que decidirão o destino dos personagens, trocar comentários e críticas com autores e outros leitores. Até mesmo criar e compartilhar suas próprias histórias a partir dos personagens, como os autores de fan-fiction, que já existem aos milhares no Brasil. Mas poucos instrumentos são capazes de desconstruir a aura do autor como textos gerados por computador. Boas gargalhadas são garantidas por esses karaokês das letras, que simulam certos estilos e gêneros literários. No Brasil, o mais conhecido é o Mundo Perfeito que, entre outras coisas, permite a “constru76

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ção” de textos de Jorge Amado, novelas de Manoel Carlos e letras dos Tribalistas. Outro muito divertido é o gerador de textos pós-modernos do americano Andrew Bulhak. O Fabuloso Gerador de Lero-lero v2.0 também é capaz de gerar qualquer quantidade de texto vazio e prolixo, ideal para engrossar uma dissertação de mestrado. Românticos sem inspiração podem usar o Love Poems Generator. Se preferirem hai kais, a escolha pode variar entre o Instant Haiku Generator, Haiku-O-Matic, e o Random Word Haiku, entre outros. Nestes sites, a elaboração dos textos pode ser randômica (quando as palavras são embaralhadas ao acaso) ou contar com a participação do leitor/autor. Basta escolher algumas variáveis (um par de adjetivos e o nome de uma pessoa) e apertar a tecla enter. Em poucos segundos estará pronta uma história nos moldes de algum autor conhecido (até mesmo Shakespeare). Outra experiência radical de questionamento do conceito de autoria é o do remix, em sites que sampleiam trechos de outras obras em busca de uma nova história. Nem sempre essas narrativas são capazes de formar um “livro” no exato sentido do termo. O próprio livro deixa de ser um modelo absoluto, uma vez que esses novos gêneros narrativos se utilizam de vários suportes para sua “publicação” (no sentido original de “tornar público” e não no do senso comum: imprimir). Embora alguns já encontrem aplicações comerciais, como as apontadas pela Penguin, muitas destas estratégias não foram desenvolvidas necessariamente para suprir uma necessidade da indústria editorial. E, sim, para viabilizar necessidades de seus autores de se expressarem de uma forma mais coerente com o mundo contemporâneo. Ainda é cedo para medir o impacto na criação literária dessa literatura sem papel. O livro eletrônico poderia desenvolver novas formas expressivas, assim como o livro impresso possibilitou o boom do romance e a câmera do cinema? Boa parte das obras produzidas em novos formatos ainda é experimental e não têm L I V RO L I V RE

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mais de 10 anos. Sua produção pode ser conferida em sites internacionais como o da ELO (Eletronic Literature Organization) e o portal dedicado à ciberliteratura da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, que trazem obras de autores brasileiros desconhecidas em seu próprio país. Tudo isso parece muito novo, experimental demais, sem qualidade literária que possa ser apreciada pelo leitor comum. No entanto, o hipertexto é forma de leitura/escrita anterior ao computador. Há décadas lemos obras que permitem criar combinações entre suas partes, assemelhando-se à escritura multilinear do hipertexto digital. Entre elas, clássicos que já na sua época revolucionaram a estrutura narrativa. Por exemplo, O livro de areia, de Jorge Luis Borges; O jogo da amarelinha, de Júlio Cortazar; e Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino. Do livro-labirinto de Borges às construções hipertextuais de Cortázar, experimenta-se uma outra ordem de leitura. Assim como o hipertexto digital, que tenta romper com a linearidade da página impressa. O hipertexto, a multimídia e a interatividade são as principais características dessa literatura eletrônica, que abrem caminho para novos gêneros e novas estratégias narrativas que ainda não foram encaradas pela crítica literária tradicional. Seriam os tablets “killer technologies”, capazes de deixar transformar o livro impresso em objeto de museu, ao lado dos daguerreótipos, dos gramofones e até dos primeiros Kindles? Três historiadores do livro, das técnicas de leitura e das bibliotecas, nos guiam neste labirinto tecnológico: Robert Darton, Umberto Eco e Roger Chartier foram pioneiros ao traçar um panorama das mudanças por que o conceito de livro vem passando ao longo dos séculos até chegar ao momento presente. Para os três, vive-se hoje uma revolução nas formas de produzir, transmitir e armazenar informação. Essa revolução que torna incerto o futuro do livro e das li78

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vrarias, questiona a noção de autoria, abala as bases da indústria editorial, e promete mudar completamente a forma com que o leitor se relaciona com os livros já é chamada pelos especialistas de “A Quarta Tela”. Quais as três primeiras? A tela da televisão, a do computador pessoal e a do telefone celular. A quarta tela com que vamos nos acostumar a interagir diariamente será a do tablet. O iPad, criado pela Apple com base na bem-sucedida tecnologia do iPod, é a estrela desta nova geração de computadores, mas nem de longe a única. Nascidos digitais, os novos livros podem prescindir da leitura linear, integrar-se à internet, misturar palavra, vídeo, foto, som e animação, como o vook, e literalmente explodir em 3D nas telas com cenários em realidade aumentada. Neste novo universo literário, real e virtual não são mais mundos separados. Objetos tridimensionais saltarão das páginas para interagir com movimentos do leitor e cenários reais. A tecnologia que promete quebrar estas barreiras mostra que tanto a realidade pode ser aumentada quanto a virtualidade diminuída. No futuro, tudo será uma questão de gradação, assim como abaixar e aumentar o som da televisão. Cientistas da computação preveem que se a web 1.0 foi dirigida para a comunicação, e a 2.0 pela interatividade, a realidade aumentada e o 3D darão a tônica da internet 3.0. Já surgem dúvidas sobre como classificar as obras produzidas a partir das estratégias narrativas abertas pelas novas tecnologias. Seriam livros ou alguma forma nova, que conviverá em separado com o mercado editorial tradicional? Assim como a fotografia não é pintura, mas toda uma nova linguagem, produzida a partir de uma nova tecnologia, estaríamos diante de uma nova arte? Apesar de toda a excitação provocada pelos tablets, não faltam leitores que não pretendem abandonar o papel por nada. Seus argumentos são pertinentes. Ler em um computador não é tão confortável como ler uma obra impressa (por outro lado, uma biblioteca inteira cabe num e-reader, que pesa muito menos do que um livro normal). É difícil ler um livro na tela porque L I V RO L I V RE

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os olhos se cansam da luminosidade (aparentemente não os das novas gerações, habituadas desde cedo às telas do computador). As baterias acabam, enquanto a dos livros não (em compensação os livros impressos não podem ser baixados para o seu e-book justamente quando se está horas esperando na antessala do médico). Para praticamente todo argumento contra um tipo de livro há um a favor. Mas isso impedirá que o livro de papel seja gradativamente substituído pelo leitor eletrônico? Nessa área, as mudanças têm sido cada vez mais rápidas. Da descoberta da escrita até o codex (que é o formato atual do livro), passaram-se 4.300 anos; do codex ao tipo móvel, 1.150 anos; do tipo móvel para a internet, 524 anos; da Internet para os mecanismos de busca, 17 anos; deles para o Google, 7 anos. Mais do que o prazer da leitura, a questão diz respeito a um mercado mundial que movimenta bilhões de dólares, produzindo mais de 1 milhão de exemplares novos por ano. Se boa parte for substituída por livros eletrônicos, qual será o impacto para a indústria do livro? Ela pode simplesmente mudar de mãos ou diminuir até setenta porcento de seu tamanho, como a indústria fonográfica encolheu a partir dos anos 1990? Os e-readers prometem revolucionar os hábitos de leitura, assim como o codex fez com os rolos de papiro. Em vez de duas páginas lado a lado, teremos uma única página, que também servirá para exibir vídeos, acessar a internet e nos comunicar com os amigos. Nossos próprios comentários e links armazenados em mídias sociais podem servir de base para novos livros. Podemos retomar o hábito de fazer anotações nas margens, sublinhar e usar tags para catalogarmos os que nos interessam. Em vez de comprar livros, poderemos baixá-los numa livraria virtual imediatamente. E, depois de lidos, eles não irão mais ocupar as prateleiras de casa. Teremos bibliotecas gigantes ao alcance de um clique. Vamos poder também interferir nos rumos da história,

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colaborar, jogar games que decidirão o destino dos personagens, trocar comentários e críticas com autores e outros leitores. Criar e compartilhar nossas próprias histórias, como os autores de fanfiction. Buscar palavras-chave num grande volume de textos e assim destrinchar em poucos minutos a obra de um grande pensador sobre determinado assunto. Ou mesmo de vários pensadores ao mesmo tempo. Poupar muitas árvores de serem abatidas à toa, para a publicação de livros sem importância. Mas qual será o custo disso para o universo da leitura tal como conhecemos hoje?

B I B L IO G R A F I A AARSETH, Espen. “Literatura ergódica”. hf.uib.no/cybertext/Ergodic. html BEIGUELMAN, Gisele. Link-se (arte/mídia/política/cibercultura). São Paulo : Peirópolis, 2005. O Livro depois do Livro. São Paulo : Peirópolis, 2005 “Incorporações e Mudanças”. In: Rumos [do] Jornalismo Cultural. São Paulo : Summus Editorial, 2007, v.1 “Falso, Pirata, Apropriado”. In: net_cultura 1.0. – Digitografia. (R. Rosas e G. Vascocelos, orgs.). São Paulo : Radical Livros, 2006. New Media Poetics (Contexts, Technotexts, and Theories). Cambridge : MIT Press, 2006. (Adalaide Morris e Thomas Swiss, orgs.) CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo : UNESP, 1997. DARTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. Companhia das Letras, 2010. ECO, Umberto et alii . Não contem com o fim dos livros. Rio de Janeiro : Record, 2009. HAYLES, N. Katherine. Literatura eletrônica: novos horizontes para o digital. São Paulo : Global, 2009. L I V RO L I V RE

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JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo : Aleph, 2009. MANOVICH, Lev. Software takes comand. Cambridge : MIT Press, 2010. MURRAY, Janet. Hamlet on the Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo : UNESP, 2008. TAPPSCOTT, Dan. A hora da geração digital. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2010. WARDRIP-FRUIN, Noah. Expressive Processing: Digital Fictions, Computer Games, and Software Studies. Cambridge : MIT Press, 2009.

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L I V RO S D O F U T U RO Penguin youtube.com/watch?v=0QCAPv-IKuU&feature=related The elements youtube.com/watch?v=kdiIaIUTBEc&feature=related Alice no País das Maravilhas youtube.com/watch?v=gew68Qj5kxw Lobato youtube.com/watch?v=eXfhl7OTT44 Vook youtube.com/watch?v=x1rxuoUMzO4&feature=related

NOVA S E S T R AT É G I A S N A R R AT I VA S Crowdsorcing ou wikiliteratura amillionpenguins.com/wiki/index. php?title=Main_Page#Les_reflections_dans_l.27oeil_d.27un_ chien:_Or_How_I_Learnt_French_to_Please_My_Daddy Narrativa hipertextual badosa.com/bin/obra.pl?id=n052-i10 literatronica.com/src/Nuntius.aspx?lng=BRITANNIA &nuntius=OPUS_ ABOUT_1&opus=1 Romance hipermídia javeriana.edu.co/golpedegracia inanimatealice.com/index.html Webnovela prodigia.com/clientes/webnovela/nueva/principal.htm Literatura e-pistolar youtube.com/watch?v=zUe3sbtqI2Q Fan-Fiction

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cartomantes.art.br/ fanfiction.nyah.com.br/ Gerador de texto mundoperfeito.com.br/index.php?option=geratexto Remix remixmylit.com mixlit.wordpress.com/ Chatbots chatbots.org/directory/search_results/797c3d350fee426ec8 c30056ba38f943/ Coordenadas geodĂŠsicas tinyurl.com/yjk9pvp Realidade aumentada youtube.com/watch?v=eV36Gs5-nxw

M Ă? DI A S S O C I A I S Storyfy vimeo.com/13950163 MYegobook apps.facebook.com/my-egobook/

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A NARRATIVA KRAPOTKIN

C .S . S OA R ES é escritor, editor e desenvolvedor de software. Atualmente é e-publisher da Singular Digital e escreve Krapotkinware, uma narrativa baseada em mídias sociais. twitter: @cssoares krapotkinware.com.br


Escrevo sobre a narrativa para permanecer ocupado e assim evitar a narrativa . N I KOL A I K R A P OT K I N

I

O mundo: teoria de práticas religiosas e mágicas, cujos fatos divergem de sua interpretação. A realidade retorna em fluxos, narrada: presente, mensagem, corpo. Um meio é sempre outro. Um romance, como nossa mente, começa e termina? O livro: declínio de uma forma de ler. Narrativas baseadas em redes sociais, concluiríamos (não da maneira convencional). II

O mundo — que existe para ser narrado, que só existe, aliás, porque narrado — se constrói sobre a base da linguagem. Há uma teoria de espaço, tempo, matéria e causalidade na forma que usamos as palavras. É fundamento de várias práticas religiosas e mágicas, a crença de que as palavras sejam dotadas de uma realidade concreta e atuante. Todas as páginas impressas e eletrônicas serão insuficientes para apresentar os diversos exem86

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plos da narrativa como construtora da realidade. Os fatos, não poucas vezes, divergem de sua interpretação. A realidade retorna às origens, virtualiza-se, digitaliza-se, liquefaz-se, dilue-se em fluxos. Usamos as narrativas para compreender e explorar o mundo. A realidade existe porque narrada, e o que se narrou, existe. Em breve, interromperemos esta exposição para que possamos entender Nikolai Ivanovich Krapotkin, o escritor, o núcleo de uma narrativa intitulada Krapotkinware. Antes, três proposições: pode-se fazer Narrativa com o Presente; o meio é a mensagem; cada romance deve selecionar sua forma específica, cada história pode procurar e encontrar seu corpo adequado. A primeira se refere à ideia simples e intratável de que a literatura se faz com a vida. Já da segunda, poderíamos subentender que o conteúdo de um meio é sempre outro meio. Chegamos à terceira: a hiperficção nos mostra que um romance pode se mover como nossa mente em todas as direções. Quando e onde, em que parte do texto a leitura de uma narrativa começa e termina? A crise do livro talvez mascare outra maior, que diz respeito ao declínio de uma forma de se ler. Uma ideia semelhante poderemos encontrar em Krapotkinware, uma narrativa baseada em redes sociais. Aqui, neste ponto, concluiríamos a exposição sobre o tema narrativas baseadas em redes sociais, exemplificando-a com uma apresentação de Krapotkinware. Não o faremos. Pelo menos, não da maneira convencional. III

[01] O mundo — que existe para ser narrado, que só existe, aliás, porque narrado — se constrói sobre a base da linguagem individual e social que a cada instante se torna, ao mesmo tempo, instituição atual e produto do passado. Nenhum material, afirmou Leon Trotski,1 se move com mais facilidade do que a linguagem, que está em toda a parte, ora informal, ora rigorosa.

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[02] Para Steven Pinker,2 há uma teoria de espaço, tempo, matéria e causalidade na forma que usamos as palavras, o que de forma alguma refuta a conclusão de Michel Foucault3 sobre a fabulosa e perturbadora zoologia proposta por uma certa enciclopédia chinesa exumada dos mapas mentais de John Wilkins e Jorge Luis Borges: onde mais poderiam esses animais serem enumerados e se justaporem senão no não-lugar da linguagem? [03] Na mesma época, Louis Pauwels e Jacques Bergier4 afirmaram que é fundamento de várias práticas religiosas e mágicas, a crença de que as palavras sejam dotadas de uma realidade concreta e atuante. Ao pronunciarmos certas palavras sua ação se exercerá (para os cabalistas, por exemplo, a virtude mágica da ordem divina, “Faça-se a luz!” emana das próprias letras que a compõem). [04] Todas as páginas impressas e eletrônicas serão insuficientes para apresentar os diversos exemplos da narrativa como construtora da realidade (“Dividió el universo en cuarenta categorías o géneros, subdivisibles luego en diferencias, subdivisibles a su vez en especies.”).5 [05] Os fatos, não poucas vezes, divergem de sua interpretação e de como as pessoas se comprometem com uma compreensão comum de realidade (que só existe, se narrada). Eis a magia da linguagem. Através dela, a mente humana é capaz de interpretar o mundo de várias formas e cada interpretação é construída em torno de ideias básicas como ocorrência, causalidade, intenção e transição. [06] Com o advento da internet, essas considerações atingem patamares (espaciais, temporais, materiais e causais) interessantes. A realidade (que nasce da narrativa) retorna às origens, virtualiza-se, digitaliza-se, liquefaz-se, dilue-se em fluxos que, 88

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contextualizados, tornam-se experiências que intermediam nossa consciência do mundo. Em resumo: só encontramos no mundo o que colocamos ali, nada mais. [07] Usamos as narrativas (aqui, tratamos de descrevê-las, não de analisá-las ou explicá-las) para compreender e explorar o mundo. Ao começar a narrar, minha narrativa será uma narrativa sobre algo inarrado, logo, eu não poderei ignorar essa narrativa, ela mesma, como um acontecimento narrável (toda expressão abstrata oculta uma metáfora, e toda metáfora é um jogo de palavras). [08] A realidade existe porque narrada e o que se narrou, existe. O próprio homem e todos os mundos que ele habita, dentro e fora de sua cabeça, só existem a partir do momento em que são narrados e toda redução fenomenológica é transcendental e eidética (nossa percepção do mundo é submetida ao olhar filosófico sem que deixemos de nos unir a essa tese de mundo).6 O interesse da fenomenologia não está no mundo que existe, mas no modo como o conhecimento do mundo se dá para cada indivíduo que experimenta o fenômeno da narrativa. [09] Em breve, interromperemos esta exposição (que se faz necessária) para que possamos entender Nikolai Ivanovich Krapotkin, o escritor, o núcleo de uma narrativa intitulada Krapotkinware e sua modesta contribuição à teoria fenomenológica do romance (ou hiper-romance) brasileiro contemporâneo. Antes, porém, quero lembrar três importantes proposições que poderiam ser classificadas de meras falácias por alguns desavisados: [10] Primeira proposição: pode-se fazer Narrativa (Romance) com o Presente […] Presente: ter o nariz colado à página; como escrever longamente, correntemente (de modo corrente, fluido, L I V RO L I V RE

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seguido), tendo um olho sobre a página e outro sobre “aquilo que me acontece”. [11] Segunda proposição: o meio é a mensagem. Isto é apenas para dizer que as consequências pessoais e sociais de qualquer meio – ou seja, de qualquer extensão de nós mesmos – resulta da nova escala que é introduzida em nossos assuntos por cada extensão de nós mesmos, ou por qualquer nova tecnologia. [12] Terceira proposição: cada romance deve selecionar sua forma específica, cada história pode procurar e encontrar, seu corpo adequado. Os computadores estão nos ensinando que é possível. Mas se você não gosta de computadores, olhe para o que a arquitetura está nos ensinando. [13] A primeira é de Roland Barthes7 e se refere à ideia simples e intratável de que a literatura se faz com a vida, principalmente a presente, já que a passada está agora sob o jugo da memória e da imaginação. Pode-se escrever o Presente anotando-o. Que diferença há entre o notatio de Barthes e os status updates, conceito fundamental das mídias sociais? [14] Já da segunda, anotada em 1964 por Marshall McLuhan,8 poderíamos subentender que o conteúdo de um meio é sempre outro meio, o conteúdo da escrita é o discurso, a palavra escrita é o conteúdo da palavra impressa, e a impressa, da palavra digital: o que farão os escritores, quando os computadores aprenderem o seu ofício? [15] Chegamos à terceira, do sérvio Milorad Pavić,9 cujos romances tentaram mudar a forma (não a realidade) da leitura, aumentando o papel e a responsabilidade do leitor no processo de criação literária. Se há uma crise do livro, a hiperficção nos mos-

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tra que um romance pode se mover como nossa mente em todas as direções, ao mesmo tempo, e pode ser interativo. [16] Quando e onde, em que parte do texto, a leitura de uma narrativa começa e termina? Aliás, deve a narrativa ter um fim? Aqui falamos da possibilidade de se fazer da literatura uma arte reversível, ou seja, uma arte que permita ao destinatário abordá-la de várias formas e perspectivas, inclusive a da coautoria. [17] A crise do livro talvez mascare outra maior, que diz respeito ao declínio de uma forma de se ler, pois é do poder das massas que uma nova figura emerge, o leitor-reescritor, aquele que lê (criativamente) e reescreve, que preenche os espaços e constrói por si só sua narrativa e experiência pessoal de leitura. [18] Uma ideia semelhante poderemos encontrar em Krapotkinware, uma narrativa baseada em redes sociais. Agora, a interrupção. Vamos efetivamente à obra e ao segredo de seu devir. [19] Aqui, neste ponto, concluiríamos a exposição sobre o tema narrativas baseadas em redes sociais, exemplificando-a com uma apresentação de Krapotkinware ou banco de dados literário sobre a vida e a obra de Nikolai Krapotkin, precursor do hiper-romance no Brasil. Antes, em destaque, apareceria um aviso: o texto a seguir contém spoilers (a expressão, hoje bastante comum, não deixa de ser engraçada, pois duvido que ela impeça alguém de ler o que vem a seguir, na verdade, serve até de estímulo à curiosidade). [20] Não o faremos. Pelo menos, não da maneira convencional. A justificativa, nos lembra Nikolai Krapotkin,10 não é a causa, mas a consequência. Assim, pouparemos o tempo do leitor, apressado e ansioso de explicações, desculpas e outras conjecturas. A vida é essencialmente feita de escolhas. L I V RO L I V RE

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[21] Este texto termina aqui ou continua em http://krapotkinware.com.br. Se por um lado, escritores escrevem suas escolhas, por outro, leitores também leem as suas, e são estas que, no final, se sobrepõem. Que seja feita a sua vontade, meu caro e onisciente leitor, desde o princípio, agora e sempre.

1

TROTSKI, Leon. Literatura e revolução, 1924.

2

PINKER, Steven. Do que é feito o pensamento, 2007.

3

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, 1966.

4

PAUWELS, Louis e BERGIER, Jacques. O homem eterno, 1970.

5

BORGES, Jorge Luis. Otras inquisiciones, 1952.

6

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, 1945.

7

BARTHES, Roland. A preparação do romance, 1978-1979.

8

MCLUHAN, Marshal. Understanding Media: The Extensions of Man, 1964.

9

PAVIĆ, Milorad. “Beginning and the End of the Novel”. khazars. com/en/end-of-novel/

10 KRAPOTKIN, Nikolai. El libro de los juegos, 1978.

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LIVROS PÓS-ARTEFATO E PUBLICAÇÃO O efeito digital sobre como produzimos, distribuímos e consumimos conteúdo

C R A I G MOD é escritor, designer de livros, publisher, desenvolvedor e palestrante. twitter: @craigmod


Roger Bacon sustentava que três classes de substância eram capazes de mágica: a herbal, a mineral e a verbal. Com suas folhas feitas de fibras, suas tintas feitas de vitríolo e fuligem, e suas palavras, o livro é uma amálgama das três. — M AT T H E W

BAT T L E S , A conturbada história das bibliotecas1

O QUE É UM LIVRO, agora e no fim das contas?2 Sempre iremos debater: a qualidade do papel, a densidade em pixels da tela; o tecido usado nas capas, a interface para anotar; a localização por página, a localização por parágrafo.

Porém, francamente, quem se importa?3 Caçar analogias superficiais entre o livro impresso e o digital é uma armadilha atraente e perigosa. Há uma compulsão em acreditar que a mágica do livro reside em sua superfície. Na realidade, o livro que merece ser considerado consiste tão-somente de relacionamentos. Relacionamentos entre as ideias e os receptores. Entre o escritor e o leitor. Entre os leitores e outros leitores — como tem sido desde o começo dos tempos. O livro do futuro — o livro digital — já não é um tijolo imutável. É etéreo e interconectado, emergindo pública e esporadicamente. Um artefato que é “completo” somente por breves instantes. Movendo-se deliberadamente. Sendo revestido por nossa marginália4 comunitária. E exigindo o engajamento com a promessa de comunidade implícita em seu formato.

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O livro do passado revela sua experiência individual unicamente. O livro do futuro revela nossa experiência coletiva unicamente. Para aqueles entre nós que estamos olhando para a conformação futura dos livros e da publicação, por onde começamos? Colocando de forma simples, eis nossas premissas:

A maneira com que se escrevem os livros já não é a mesma. Os suportes para os livros já não são os mesmos. A vida pós-publicação do livro já não é a mesma. Pensar sobre o futuro do livro é compreender os vínculos entre essas mudanças. Pensar sobre o futuro do livro é pensar sobre o futuro de todo conteúdo. Tão imbricadas estão nossas palavras e imagens e plataformas, que considerar as partes do processo editorial isoladamente é deixar de ver as conexões transformadoras. Essas conexões que estão conformando o livro e a publicação vivem em sistemas emergentes por trás das palavras. Entre o escrever e o editar, o publicar e o consumir, entre o consumir e o compartilhar. Temos uma oportunidade agora de conformar esses sistemas. E, ao fazê-lo, podemos refinar as relações entre autores, editores, leitores e textos. Que ferramentas vamos implementar em artefatos digitais para sinalizar esse relacionamento modificado com a literatura? Para fazer vir à tona nossa experiência compartilhada? Para fazer a ponte entre os espaços pré e pós artefatos que assim definem o futuro da edição? Para construir o livro do futuro?

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O L I V RO , U M S I S T E M A

A Publicação Clássica Dois anos ou mais entre a ideia e o leitor. Um sistema solitário e isolado pré-artefato. Um artefato imutável, não conectado. Um sistema pós-artefato quase inexistente.

Livros são sistemas. Emergem de sistemas. São por eles mesmos, sistemas — os melhores dentre esses têm o grau de complexidade necessário, e nem um pouco a mais. E, assim que completados, novos sistemas se desenvolvem em torno de seu conteúdo. Para compreender para onde os livros e a edição estão se dirigindo, é fundamental compreender os três sistemas seguintes: o sistema pré-artefato o sistema do artefato o sistema pós-artefato O sistema pré-artefato é onde é feito o livro ou conto ou artigo. É um sistema cheio de (e preenchido por) uísque, insegurança, confusão, chacota e um sentimento geral de desespero. Classicamente, é um sistema de isolamento, envolvendo muito poucas pessoas. Os indivíduos-chave na manifestação clássica

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desse sistema são o autor e o editor de texto. Um editor-publicador, talvez. Uma musa. Mas, geralmente, nenhum leitor. O produto fim desse sistema é o que costumamos definir como “o livro” — a ideia tornada tangível. O artefato — o livro — é, também, um sistema. Classicamente, uma ilha em si mesmo. Imutável. Um sistema autocontido. Um que requer grandes esforços para ir além da sua encadernação. Quando terminado, torna-se um suvenir de uma jornada particular.5 Por fim, o sistema pós-artefato. Esse é o espaço em que engajamos o artefato. Mais uma vez, classicamente, esse é um espaço relativamente estático. Isolado. Amigos podem se reunir para discutir o artefato. Cursos localizados podem ser constituídos em universidades em torno do artefato. Porém, geralmente, há um sentimento avassalador de desconexão com os outros sistemas. O digital muda isso. Mais fundamentalmente, o digital remove o isolamento. O remove dos sistemas pré, artefato e pós. Os corolários: incremento na conectividade. Mutabilidade do artefato. Engajamento contínuo com os leitores. E, mais animador, um registro potencialmente público de alterações, comentários e discussões — a marginália digital — sobreposta ao artefato, acrescentando a ele, e redefinindo o que seja “completo”. Com a conexão desses sistemas, nossa definição clássica de um artefato literário não tem mais cabimento. E nosso entendimento comunal do que sejam os sistemas de edição está inapelavelmente corrompido.

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S I S T E M A S P R É - A RT E FATO

A entrada dos leitores mais cedo no processo de autoria.

Com a emergência e a crescente adoção do Kindle e do iPad, os editores, escritores, leitores e desenvolvedores de software preocupam-se em transpor (ou forçar) a imagem da antiga mídia “livro” na nova mídia. Todos se perguntam, “Como podemos transformar os livros para podermos lê-los digitalmente?” Porém a pergunta mais interessante é: “Como o digital transforma o livro?”. E, de modo similar, “Como o digital altera o processo de autoria”?6 Essa mudança na autoria é crítica para a compreensão do novo sistema pré-artefato. Com a impermanência digital (um novo tipo de efemeridade) vêm dois conceitos-chave para o futuro da narrativa e dos livros: 1. Podemos desenvolver continuamente um texto em “tempo real”, apagando a “preciosidade” inerente na impressão. E, em decorrência disso… 1. O tempo em si torna-se um ingrediente ativo na autoria (em comparação com a autoria acontecendo em um lugar aparentemente atemporal, um produto finalizado que emerge subitamente).

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A Wikipédia é um exemplo completamente realizado de como o digital afeta drasticamente a autoria. Ao criar um sistema que permite edição coletiva em tempo real, a Wikipédia tomou por sua base a escrita interativa. Nada nesse site é precioso. Não há letra, palavra, frase ou artigo que esteja imune à reconsideração. E ainda assim, ao rastrear as alterações em microescala, construiu a confiabilidade em torno de um sistema em mutação contínua. Compare-se à análoga física da Wikipédia — a Enciclopédia em volumes. No começo do milênio, seria difícil imaginar que um site escrito e editado por centenas de milhares de pessoas, em constante mutação, poderia constituir o substituto para aquela coleção de livros encadernados em couro vermelho que pegavam poeira em sua estante. E ainda, assim, a Wikipédia não somente substituiu a enciclopédia impressa para muitos de nós, como também a ultrapassou em termos de utilidade, qualidade, atualidade7 e, talvez de forma mais significativa, conveniência. O !"#$%&editorial da Enciclopédia ainda é a gênese da Wikipédia, porém as maneiras pelas quais o conteúdo é criado, compartilhado e editado, nascem do digital. Tome uma enciclopédia completa e se pergunte “como posso tornar isso digital?” O que você obtém é a Encarta CD da Microsoft. Tome a filosofia por trás da constituição da Encliclopédia e pergunte “como pode o digital modificar nosso engajamento com isso?” O que você obtém é a Wikipédia. Quando pensamos nos efeitos do digital na narrativa, nos contentamos em agarrar os frutos mais baixos no grau imaginativo. O clichê é que o digital vai “dar vida às histórias”. As palavras vão se mover. As figuras se tornarão filmes. As narrativas serão ao estilo “escolha sua aventura”. Ainda que o digital realmente possa tornar tudo isso possível, estas são as mudanças menos importantes e radicais trazidas pela digitalização do texto. São respostas à pergunta: “como mudamos os livros para torná-los L I V RO L I V RE

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digitais?” A essência do efeito digital na publicação exige uma mudança sutil em direção à questão “como o digital pode mudar os livros?” A LG U N S E X E M P LO S

Por mais que possa doer aos puristas literários a admissão, os blogs têm pavimentado o caminho desse tipo de escrita de livros instantânea por mais de uma década. A publicação da 37Signals, Getting Real, foi composta ao longo dos anos em seu blog Signal vs. Noise.8 Quem assinava o RSS da Signal vs. Noise estava lendo Getting Real sem se dar conta. Até mesmo a 37Signals estava escrevendo Getting Real sem se dar conta disso. Observe que eles venderam 30 mil PDFs por 19 dólares, cada. Isso dá mais de meio milhão de dólares de receita (na verdade, lucro, já que não há custos de distribuição ou outros intermediários). Para um livro de autoria pública. E isso em 2006. Frank Chimero9 vem rascunhando um livro ao vivo. É seu blog. Ele vem trabalhando duro para dar corpo a ideias sobre criatividade e design, já há alguns anos. E agora ele construiu uma comunidade tão sólida de apoiadores, que pagou a ele 100 mil dólares em fevereiro de 2011 para se aprofundar no tema. O livro The Shape of Design promete continuar explorando os enlaces narrativos de seu site. Formalizá-los. No começo de 2010, Ashley Rawlings e eu conduzimos uma campanha de levantamento coletivo de fundos (“crowdfunding”) para viabilizar a segunda edição de Art Space Tokyo.10 Arrecadamos 24 mil dólares em um mês. E compartilhamos todo o processo, nos mínimos detalhes, para que outras pessoas possam replicá-lo.11 Robin Sloan12 vem escrevendo e lançando contos em formato digital para muitos de nós, seus fãs agradecidos. Ele agora voltou-se para o aprofundamento nos textos que encontraram uma 100

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ressonância particular entre seu público — está encorpando os contos e transformando-os em romances mais extensos. Amanda Hocking13 escreve um blog. Ela também publica seus romances, de forma independente, na plataforma Amazon Kindle. E eles têm feito uma boa carreira. No ano passado, ela vendeu mais de um milhão de livros Kindle. John, do I Love Typography14 vem escrevendo uma publicação ao vivo. Trata-se — surpresa! — de seu blog. E agora, ele, também (com o auxílio da editora Carolyn Wood15 e de seus amigos) está formalizando suas ideias no periódico genuíno, Codex. Lindamente produzido, e editado com maestria, Codex16 é uma coleção de artigos bem curados sobre tipografia. Um compêndio do amor de John pelos tipos, embrulhado, comercializado e precificado de forma a tomar partido de sua sensacional comunidade. Usa as mudanças do sistema clássico de publicação para alavancar-se, tornar-se autossustentável. Seth Godin foi tão profundamente impactado pela extensão e forma da comunidade de leitores de seu blog que arregaçou as mangas e partiu para montar sua própria editora. O projeto Domino17 vem de ideias que emergiram em face ao público que ele estava tentando alcançar. É um lindo exemplo de um ecossistema emergindo de uma conversação integral. A lista prossegue indefinidamente. Para ser ainda mais hiperbólico: estamos diante de mudanças inegáveis e fundamentais para o processo de autoria. A fricção e a distância entre você e seus leitores? Já não existe mais.18 A “interação ao vivo” nascida dessas mudanças liberta os autores do isolamento (mas ainda permite que escrevam em isolamento). O público e o autor tornam-se interlocutores mais cedo. Os escritores podem conduzir o interesse do leitor à medida que a história se desenrola e decidirem que tópicos merecem ser mais explorados. Assim como 77Signals, Frank, John, Robin, Amanda e L I V RO L I V RE 101


Seth reviram sua filosofia do que seja autoria, diante de uma plateia de dezenas (se não centenas) de milhares de leitores, é fácil imaginar o sutil empurra e puxa editorial pelo número de páginas vistas e comentários que recebem a cada entrada de seu blog. O que equivale a dizer que essas ações sem fricção e muitas vezes indireta por parte dos leitores trazidas pelo digital ao sistema pré-artefato podem manifestar-se no resultado final da autoria. Richard Nash, conhecido pela editora Soft Skull19, e mais recentemente fundador do startup literário Cursor20, está enfocando esse sistema pré-artefato. Perguntado se a interrupção do sistema pré-artefato é necessária — ou se chega a ser mesmo uma exigência moral — ele diz:21 Tendemos a falar do modelo de edição dos últimos cem anos como se fosse um modelo perfeito, mas olhe para todas essas editoras independentes que brotaram nos últimos vinte anos, publicando ganhadores do National Book Award, do Pulitzer, e até do Prêmio Nobel. O que acontecia a esses livros anteriormente? Não eram publicados! Eles. Não. Eram. Publicados. É claro, alguns deles eram, mas a maioria? Nada. Não podemos saber quanta cultura magnífica passou sem ser publicada pelos homens brancos de paletó de tweed que dirigem as editoras neste século, mas, só porque eles publicaram alguns grandes livros não quer dizer que não tenham ignorado uma porção de outros… Assim, estamos restaurando o que achamos ser o equilíbrio natural das coisas no ecossistema da escrita e da leitura.

Sua nova editora, Red Lemonade, foi construída para fomentar o diálogo em torno do livro. Muitas vezes antes mesmo de os livros serem concluídos. Esta é certamente uma noção aterradora para muitos, porém também é um produto inevitável da abertura do sistema pré-artefato. E, assim como tantas coisas inevitáveis na evolução das metodologias estabelecidas e arraigadas 102

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— você pode tanto lamentar e ficar lembrando de como era bom o passado, ou tornar-se um participante ativo na reconfiguração do futuro. Evidentemente, nenhum autor será obrigado a embarcar ou engajar-se nessas mudanças. Porém essas mudanças tornam urgente a pergunta: onde é que o artefato digital se inicia e termina? Quando está “completo”? A QU E DA D O G R A N DE E I M U TÁV E L A RT E FATO O livro digital é um animal estranho. É intangível, porém completamente mutável. Em todos os lugares e em lugar nenhum. Nós o temos, porém não o possuímos.22 Suas qualidades mimetizam os livros físicos somente no metanível. Para compreender de verdade o quanto eles são estranhos e especiais, podemos usar nossa experiência com seus primos analógicos. Você já fez um livro físico antes? Quero dizer, você já editou e enviou arquivos para uma gráfica para serem reproduzidos milhares de vezes? É aterrorizante. Há um desespero que permeia todo o processo. Você sabe que deve haver erros. Pode verificar a numeração das páginas e a pontuação por cem vezes e ainda assim, pela assombrosa magnitude das moléculas que compõem um livro, você vai deixar alguma coisa passar. Assim, enviar aquele arquivo para ser impresso é depositar a fé definitiva no livro. Acreditar — '$()*!&+$,-&"!.&/!&012-34$&'1(1& 56$&!54$*)*!,!(&7&que aquilo foi o melhor que você pôde fazer, dadas as restrições. E você vai ter que viver para ver os resultados, para sempre.23 É isso que torna o físico tão pesado. Tão precioso. Não importa o quanto você se prepare, se você não executar bem, qualquer passo mal dado será reproduzido milhares de vezes. Quando alguém fala em “livro”, é isto no que pensamos (porém, curiosamente, talvez sejamos a última geração a pensar asL I V RO L I V RE 103


sim). Uma fisicalidade bem específica. Imaginamos a capa dura. O bloco interior bem definido. Sentimos a presença do objeto. No interior, as palavras estão imbuídas no papel. O que estiver impresso hoje permanecerá a mesma coisa amanhã. É confiável. Com o digital, essas qualidades dos livros impressos acima listadas tornam-se artificiais. Não há uma capa dura delimitando a extensão. Não há custos gráficos adicionais para impressão em cores. Não há permanência: a natureza do texto, uma vez sagrada e imutável já não é mais sagrada. Atualizar um texto digital é trivialmente fácil. Quando você olhar para o mesmo livro digital, amanhã, pode bem ser uma versão diferente da que você lê hoje. Além dessas diferenças superficiais evidentes, há duas qualidades dos artefatos digitais que os fazem drasticamente diversos dos artefatos físicos: 1. Eles têm uma conexão profunda e imbricada com os sistemas pré e pós; 2. existem na forma clássica “completa” somente durante breves instantes. A conexão com o sistema pré-artefato é óbvia. Por exemplo, uma impressão “artefato” de um verbete da Wikipédia é uma interação continuada — o produto de um sistema pré-artefato altamente especializado. Os artefatos que emergirem da Domino devem quase tudo à existência de um sistema pré-artefato — a triagem de ideias em um blog, o diálogo com os leitores. Uma vez que o artefato físico esteja “completo”, impresso, encaixotado e embarcado, ele termina. Não pode ser mudado.24 Podemos rabiscar notas nas margens de nosso exemplar, mas a próxima pessoa que pegar para ler um exemplar diferente não verá tais notas. Receberão a mesma edição completa “em branco” que temos. Por somente um brevíssimo instante — talvez segundos, no 104

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caso de autores populares — a edição digital de um livro existe na forma “completa”, clássica e imaculada. Assim que uma edição Kindle for baixada e tiver um trecho seu marcado, já será alterada. A próxima pessoa que for baixar um exemplar desse livro estará baixando a forma “completa” mais toda a marginália associada. E quanto maior for a integração dos sistemas com a marginália, maior será o impacto que o diálogo subsequente em torno do livro terá sobre os futuros leitores. O artefato digital, portanto, é um andaime entre os sistemas pré e pós artefato. F OR M ATO S

Esse andaime entre sistemas é definido por formatos. Aplicações ePUB, HTML, MOBI e iOS são as mais populares. O mais disseminado formato de livro digital é sem dúvida o HTML. ePUB e MOBI são de fato subconjuntos do HTML. E, embutida no ePUB3 está a promessa de capacidade de operar HTML5, CSS3 e JavaScript. Os mais populares formatos digitais cabem em três categorias bem claras. São elas: Amorfa: ePUB, MOBI, HTML Definitiva: PDF, ePUB3 (HTML5/CSS3) Interativa: iOS / Android, ePUB3 (HTML5/CSS3) “Amorfa” e “Definitiva” são conceitos que delineei extensivamente em Books in the Age of the iPad [“Livros na Era do iPad”].25 “Amorfa” refere-se ao conteúdo que não tem estrutura visual inerente, e na qual o sentido não se modifica quando as palavras refluem. Pense em romances de edições populares. “Definitiva” refere-se ao conteúdo para o qual a estrutura da página — a justaposição dos elementos — está imbricada com o sentido do texto. Pense em: livros didáticos.

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“Interativa” é, obviamente, para obras que necessitam de algum componente interativo: vídeo, narrativas não lineares etc. Há uma sobreposição entre as categorias. É por isso que vemos alguns formatos aparecendo mais de uma vez — o ePUB3, por exemplo. Você talvez precise controlar tanto a estrutura visual de uma página quanto a interatividade que ela sugere. As aplicações iOS podem ocupar todas as três categorias, mas não é a ferramenta mais adequada ao trabalho. Vimos isso no design e na distribuição de revistas em iPad em 2010. A maioria dessas revistas poderiam ter sido documentos PDF ou HTML5. E isso renderia vantagens aos leitores (downloads mais enxutos; texto selecionável, buscável, reescalonável etc). O ePUB3 parece ser o formato que destronará todos os outros. Por quê? 1. O ePUB já é leve e bem definido. 2. Documentos produzidos com ele são inerentemente compostos de texto real e naturalmente integram-se a sistemas de distribuição acessíveis como iBooks, Kindle ou como downloads diretos dos editores. 3. Seguindo adiante, vai alinhar-se com as mais recentes capacidades de layout do HTML5 e permitir embutir de funcionalidades javascripts robustas para interatividade. Se o sistema pré-artefato incuba o artefato e o artefato digital une os sistemas pré e pós sistemas — então de que é composto, exatamente, o sistema pós-artefato?

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O sistema de publicação digital pós-análogo Marginália aposta ao artefato “Completude” do artefato evoluindo ao longo do tempo

Ler é, se mais não for, telepatia. Stephen King, em seu livro On Writing,&depois de descrever uma mesa com pano vermelho, uma gaiola, um coelho e um número oito em azul diz: Enviei para sua mente uma mesa com um pano vermelho sobre ela, uma gaiola, um coelho e o número oito em tinta azul. Você viu tudo isso, especialmente o oito azul. Engajamo-nos em um ato de telepatia. Não estou falando de nenhuma babaquice mitológica, falo de verdadeira telepatia.

Porém — e aqui reside a mágica&— é uma telepatia compartilhada. Uma telepatia de uma pessoa para várias, e, assim, muitos tem sobreposição de experiências. A matéria impressa aferra essa experiência à polpa do papel. Com o digital, há a promessa de interconectar essa experiência compartilhada.

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Damos forma à nossa telepatia particular através da marginália — marcas, destaques, notas nas margens. Anos atrás, lembro-me — antes dos Kindles e dos iPads e antes de que qualquer pessoa falasse em ePUB — de tomar conhecimento sobre a marginália encontrada nos livros da biblioteca de Paul Rand. Lembro-me de ter pensado em como seria excitante poder vasculhar seus pensamentos. Classificá-los. Dar-lhes ordem e compartilhá-los. Usá-los como base para debates. Comentar sobre esses comentários. Traçar linhas entre eles e os livros aos quais estavam conectados, a outros livros e aos pensamentos de outros designers. Destravar, por assim dizer, as marcas de suas experiências telepáticas. Este é o sistema pós-artefato. Um sistema de destravamento. Um sistema voltado ao engajamento. Compartilhamento. Marginália. Propriedade. Comunidade. E, é claro, leitura. É o sistema que transforma os livros de vasos não comunicantes para textos em uma interface compartilhada. É um sistema que está começando a aparecer, aqui e ali, em aplicações de leitura que empregamos hoje. É o sistema mais diretamente conectado aos leitores. E é um sistema que, quando bem executado, faz com que a volta aos livros impressos seja completamente impensável. Estruturalmente, a marginália representa um revestimento potencialmente infinito sobre o conteúdo. Manifestada de modo apropriado, cada nova pessoa que participa na produção da marginália digital altera a experiência de leitura do livro para a próxima pessoa. A marginália analógica não toma conhecimento de outra marginália analógica. A marginália digital é um diálogo coletivo, stratum acumulado. Marginália, na verdade, não é nenhuma novidade. Assim como o saudoso Paul Rand, desde que passamos a conviver com livros, vimos rabiscando neles. Derramando café sobre ele. Co-

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brindo-o com a terra e a poeira das viagens. Algumas vezes deliberadamente. Algumas vezes inconscientemente marcando-os com memórias. Uma manifestação clássica dessa acumulação mental é o caderno geral (“commonplace book”).26 Liz Danzico explica: Quando John Locke começou a tomar notas em 1652, ele o fez de uma forma tão elaborada que um editor chamado John Bell publicou um caderno chamado Bell’s Common-Place Book [“O caderno geral de Bell”], formado por base geral sobre os princípios recomendados e praticados pelo senhor Lock. Este caderno, com oito páginas de instruções e um método de indexação, foi pela primeira vez uma maneira de tornar mais fácil a navegação do que parecia um amontoado confuso de notas e pensamentos.27

Delineei vários requisitos para o livro interconectado em notas e marginália de meu ensaio de abril de 2010, Embracing the Digital Book [“Aderindo ao livro digital”].28 “Mostre-me a sobreposição das passagens destacadas por 10 mil leitores em um livro digital”, exigi. “Deixe que Stefan Sagmeister compartilhe publicamente as passagens que ele destacou no novo romance de Haruki Murakami”. E prossegui: Quando eu terminar de ler e marcar um livro, eu tenho que poder criar minha cópia resumida pessoal. Mostre-me apenas meus destaques com notas. Deixe-me exportar esta edição. Deixe que eu possa enviá-la por e-mail para mim mesmo. Ou, se você ousar, componha-a automaticamente e permita que eu possa comprar um exemplar impresso sob demanda para minha biblioteca pessoal.

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Pouco depois de eu publicar esse ensaio, a Amazon lançou sua funcionalidade de “Destaques populares” (“Popular Highlights”).29 De todas as grandes potências no mundo dos livros digitais, poucos estão avançando tanto e com tal constância quanto a Amazon. Já construíram a infraestrutura de nossos cadernos gerais interconectados. Você pode ler o meu, e o de Seth Godin, por exemplo. Precisa ser melhor trabalhado, é claro, mas é um começo. A L É M D O S L I V RO S

Esse espaço pós-artefato não precisa ser oferecido somente a livros. As noções de comunidade e engajamento revolvendo em torno do conteúdo podem ser aplicadas a qualquer coisa — revistas, postagens de blogs, jornalismo investigativo. Duas coisas são necessárias para que a verdadeira inovação e o engajamento aconteçam nesse espaço: 1.

Um protocolo bem definido e aberto. É nele que todo o software e as ferramentas construídas para engajar o espaço pós-artefato podem conectar-se.

2.

A habilidade de construir ganchos independentes de suportes além do espaço de leitura.

A respeito desse protocolo, James Bridle com sua iniciativa Open Bookmarks30 está levando a discussão adiante a respeito da forma que esse protocolo deve tomar. Imagine um futuro onde, no lugar de emprestar um livro para alguém, você lhe empreste suas marcações [bookmarks]. Onde suas notas, anotações e referências estejam sincronizadas entre as plataformas e aplicações. Onde seus bookmarks pertencem a

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você, e um registro de cada livro que você tenha lido é feito e armazenado com segurança, não importando como ou onde você o tenha lido.

E prossegue: Open Bookmarks é um projeto para discutir e desenvolver padrões para salvar, guardar e compartilhar bookmarks, anotações e dados de leitura em e-books. O Open Bookmarks irá defender esses princípios e dar apoio à ampla adoção.

O ePUB3 parece conter a maioria das promessas para se construir livros além do espaço de leitura (excetuando-se Kindle ou iBooks ou Nook). Particularmente no espaço do livro. É justo dizer que construir aplicações dependentes de aplicações, numa base livro a livro (ou edição a edição) não funciona muito bem. É uma solução paliativa enquanto as plataformas de distribuição e produção amadurecem e estabelecem-se.31 O ePUB3 traz consigo a promessa de padronização em permitir soluções de autores e editores transplataformas. Em outras palavras: permitindo a leitores compartilhar diálogos sobre seus livros, em seus livros, porém independentes de qual serviço adotado. Perguntei a Keith Fahlgren, da Threepress32 e cocriador do Ibis Reader33 — para onde está indo o ePUB em relação ao livro interconectado. E especialmente sobre esses ganchos externos em JavaScript. Segundo ele, a situação atual em 2011 é: A Apple já tem suporte a JavaScript no iBook hoje (para ePUB pré-3), porém eles impedem deliberadamente o acesso à rede por questões de segurança. Duvido que mudem de posição tão cedo.

Porém:

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Esperamos que alguns sistemas de leitura de ePUB3 permitam acesso JavaScript para documentos ePUB3 de “parceiros de confiança” (é isso o que as versões licenciadas do Ibis Reader farão). Não faço ideia se isso extrapolará de um pequeno número de editores a médio prazo.

Ainda assim, que oportunidade! Podemos definir como o ePUB3 e o espaço pós-artefato se alinhará: …O ePUB3 é, ao menos até a próxima semana ou algo assim, uma abençoada tela em branco. Se algum editor bacana e um Sistema de Leitura sentir que há uma oportunidade de mercado para um JavaScript mais sério e trabalhasse junto com alguma coisa que eles promovam amplamente, acho possível que eles possam tocar a maioria dos Sistemas de Leitura ePUB3 (que estão começando a ser construídos) para outra direção. Ainda que as questões de segurança JavaScript para os e-books sejam bem verdadeiras, também há inovação séria na seara do JavaScript hoje em dia, e, você sabe, de alguém (talvez distante do mundo do e-book) pode vir um subconjunto do JavaScript (ou algo assim) que possa dar acesso interconectado sem arruinar tudo.

Robin Sloan na postagem de seu blog, Inventing Books,34 nos recorda a inovação da publicação nos séculos 15 e 16 e conclui com: Está acontecendo tudo de novo, neste momento. Certamente, a História não é uma espiral, e nossa situação é nova — a internet não é a imprensa e a Kindle Store não é a Feira de Frankfurt. Porém se os detalhes são diferentes, a sensação é a mesma. A grande oportunidade, a confusão maior ainda — e, maior que tudo, a chance de invenção.

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São tantas as perguntas: quando haveria outra chance para que geeks e amantes da literatura (re)inventassem nosso relacionamento com os livros? Ainda que o ePUB3 traga promessa para os livros, o que dizer do resto do conteúdo? Quem vai fornecer a plataforma para o diálogo em torno dos artigos de revistas? Jornalismo narrativo? Blogs? Como esses espaços se conectarão? Haverá soluções mais interessantes que as atualmente utilizadas ferramentas de comentário nos blogs? Há uma vasta oportunidade para consolidar nossa miríade de marginália em um caderno geral ainda mais robusto. Uma que seja buscável, prontamente acessível, facilmente compartilhável, e embutida no texto digital que consumimos. Uma evocação — a aplicação de calor na nossa carta escrita com tinta invisível feita de suco de limão — de nossa telepatia compartilhada.

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O S L I V RO S D O F U T U RO QU E FA Z E M O S Então — o que é um livro, agora e no fim das contas? Para responder a isso, é preciso olhar para as mudanças em nossos sistemas de publicação. Partimos desta situação:

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Para esta:

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Lendo as mudanças, da esquerda para a direita:

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O engajamento com leitores (a construção de comunidade e diálogo) começa imediatamente no sistema préartefato!" A desconexão de dois anos entre Ideia!e Leitores!é minimizada a horas, dias ou semanas. A linha divisória entre Editor/Publicador e Autor é dissipada.35 Se você escolher imprimir, o Grande e Imutável Artefato é agora somente O Imutável Artefato.36 O tempo de produção (do manuscrito terminado até as mãos dos leitores) de um artefato digital é significativamente menor do que a de um livro físico. A clássica autoridade de acesso à distribuição é gravemente atenuada no digital. Canais de distribuição digital como a Kindle Store da Amazon e a iBooks Store (agora incorporada à iTunes Store) da Apple são acessíveis universalmente. Qualquer pessoa com um arquivo ePUB pode alcançar pontos de venda críticos, globalmente.37 Um sistema pós-artefato verdadeiramente interconectado de diálogo acumulativo e marginália existe somente digitalmente. Dito isso, Como declarei antes, sempre debateremos: a qualidade do papel, a densidade em pixels da tela; o tecido usado nas capas, a interface para anotar; a localização por página, a localização por parágrafo.

Não é isso que importa. A superfície é secundária. O cavar as bases, Erguer o aço, Derramar concreto para a fundação do livro futuro. L I V RO L I V RE 115


É isso que requer nossos esforços. Um escopo claramente definido desses sistemas, protocolos abertos claramente definidos. Esses são os que requerem nossa discussão. Ferramentas com interfaces simples, limpas Dando uma superfície orgânica a nosso relacionamento modificado com o texto. É isso que devemos construir. Todos os nossos esforços combinados, esses sistemas integrados, essas ferramentas bem-feitas e com propósito. Esse é o livro futuro. Nossa plataforma para livros pós-artefato e sua publicação.

1

Se você estiver curioso sobre a história das bibiliotecas, recomendo com entusiasmo o livro de alta erudição de Matthew sobre o assunto, pintado com belíssima prosa.

2

Enquanto eu penava no processo infinito de editar este ensaio, com uma machadinha, Kevin Kelly postou What Books Will Become, kk.org uma adorável meditação sobre as mudanças na forma do livro.

3

Não é a densidade do mostrador, é o efeito da tela na qual o mostrador está embrulhado; não é a interface para marcação, é onde essas marcações viveram e o que faremos com elas; não são as unidades de medição, é o sistema pelo qual podemos localizar um trecho do texto, de forma consistente e universal.

4

Do latim, marginália é o termo geral que designa as notas, escritos e comentários pessoais ou editoriais feitos na margem de um livro.

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A sacada de James Bridle para produzir suvenires físicos de nossa CRAIG MOD


experiência digital de leitura. Bookcubes: Souvenirs of Digital Reading, booktwo.org 6

É verdade — as motivações por trás das perguntas “como tornamos os livros digitais?” e “como o digital afeta os livros?” não são necessariamente as mesmas. Mas isso não importa. “Como tornamos os livros digitais?” é, na melhor das hipóteses, uma pergunta de transição. É a pergunta mais rasa que nos fazemos quando tentamos compreender as macromudanças. Há somente um caminho para se encontrar o verdadeiro futuro do livro, e este é abstrair a ideia de livro que temos de antigos modelos de publicação e consumo. Meu caro amigo Rob Giampetro lembrou-me do ensaio basilar de Clay Shirky’s sobre esse assunto: Newspapers and Thinking the Unthinkable, shirky.com.

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Sem dúvida, há inúmeros exemplos de verbetes inovadores na Wikipédia, porém, em nível profundamente pessoal, fiquei fascinado com a velocidade (e consistência) com que o verbete 2011 Tōhoku earthquake and tsunami apareceu.

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É em parte design de livro, em parte script de captura de tela, em parte escultura On Wikipedia, Cultural Patrimony, and Historiography, booktwo.org

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Signal vs. Noise, 37signals.com/svn/

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blog.frankchimero.com/

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Art Space Tokyo: An Intimate Guide to the Tokyo Art World, artspacetokyo.com

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Kickstartup: Successful fundraising with Kickstarter and the (re) publishing of Art Space Tokyo, craigmod.com, agosto de 2010

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robinsloan.com/

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Amanda Hocking’s Blog amandahocking.blogspot.com/

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I Love Typography, ilovetypography.com

16 pixelingo.com/ 17

Codex: The Journal of Typography, codexmag.com

18 The Domino Project, thedominoproject.com 19 E não estou só falando em postar um ensaio em um blog. Estou falando de ter um livro feito — caprichado, com capa dura revestiL I V RO L I V RE 117


da, se assim desejar. Estou falando em ter seu livro distribuído em plataformas de venda que podem alcançar dezenas de milhões de leitores (iBooks, Kindle etc.). Estou falando tanto das ferramentas que permitem uma democratização igualitária da escrita e da publicação quanto das ferramentas que permitem a monetização e a sustentabilidade. 20

Softskull Books

21 Red Lemonade 22 Red Lemonade Goes Live, rnash.com, May 2011 23

Amazon zaps purchased copies of Orwell’s 1984 and Animal Farm from Kindles, Boingboing.com, julho 2009

24 Forever, A Working Library, janeiro 2011 25 A não ser que você seja Jonathan Franzen. 26 Books in the Age of the iPad, craigmod.com, março de 2010 27 Verbete “Commonplace Book”, Wikipedia 28 The Social Life of Marginália, Bobulate, maio de 2011 29 Embracing the Digital Book, craigmod.com, abril 2010 30 Kindle Popular Highlights. Não é que eu tenha qualquer ilusão sobre meu ensaio ter alguma relação com o lançamento, mas é legal saber ao menos que estávamos todos “na mesma página” à época. 31 openbookmarks.org 32 Será interessante observar como livros altamente especializados — em termos de interface, interatividade e especificidade de design, como Our Choice, da Push Pop Press vão evoluir nos próximos anos. 33 threepress.org/ — Uma empresa de software para empréstimo de e-books e consultoria. 34 ibisreader.com 35 Inventing Books, robinsloan.com, maio 2011 36 Qualquer autor pode publicar sua obra, porém nem todos os autores disporão dos recursos, do tempo, da energia ou mesmo do simples desejo de tornarem-se editores. Falam hoje do papel diminuído dos editores em face dos livros digitais, mas a realidade é que os editores são indispensáveis como sempre foram. No entanto, seu

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papel foi alterado. Seu valor reside agora na construção de comunidades, na curadoria e no aconselhamento editorial. Não são mais donos do portão (gatekeepers) cheios de grana e financiadores da mítica terra da página impressa, dos sistemas de distribuição e das lojas físicas. 37 E além: se não está interconectado, não é tão grande assim. Acho que continuaremos a ver um declínio geral na exaltação da página impressa. E tudo bem, porque a maioria do que é impresso é impresso de forma tosca. O efeito das capacidades de interconexão em nossa experiência de leitura será (e já é, realmente) tão poderoso, que a única razão para procurar a primeira edição de alguma coisa será porque ela foi sumamente bem produzida. Ou que, uma edição digital simplesmente não existe. 38 Distribuir um livro físico é uma das partes mais caras, demoradas e angustiantes do processo editorial e da publicação. Há livros demais perdidos e danificados. Tanta energia e confusão só para conseguir alguns dias de vitrine.

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O FUTURO DO LIVRO Novos mundos, novos leitores

J OS É LUI Z GOLD FA R B é professor doutor da PUC-SP (História da Ciência e Tecnologia); consultor de projetos de incentivo à leitura e gestor de presença no Twitter. twitter: @jlgoldfarb

M ARÍ GI A M AD JE TE R T ULI A N O D OS SA N TOS é economista, professora e doutoranda em História da Ciência na PUC-SP.


QUAL O PRIMEIRO LIVRO DA HUMANIDADE? O corpo humano? Paredes de cavernas? Pedras? Totens? Monumentos? Tabletes de cerâmica, argila? Papiros? Pergaminho? Certeza nunca teremos, mas sabemos que, em muitos lugares no planeta, em tempos longínquos, nossos antepassados aprenderam a registrar sinais (figuras, figuras-códigos, códigos) em suportes variados que foram se alternando ao longo de muitos milênios. A relação desta prática e a elaboração de uma complexa vida cultural sempre foi percebida como essencial. Os códigos de conduta de cada tribo, agrupamento, sociedade foram estabelecendo-se e inscrevendo-se em suportes para que, de geração em geração, fosse possível transmitir os valores, crenças, experiências e conhecimentos do grupo. O Livro nasce, assim concebido no seu sentido mais amplo, como suporte para inscrições, e é talvez a ferramenta que mais permitiu desenvolver o pensamento humano. Os livros permitem, por exemplo, que os tempos e espaços dialoguem sem barreiras, sem fronteiras. Decifrando códigos antigos podemos conhecer saberes e sabores que se haviam, na aparência, desaparecidos do mapa há muito tempo. O livro imortaliza as culturas. Dentre tantos suportes que já existiram, o Livro Impresso foi o que mais colaborou para uma questão muito importante quando falamos de fontes de conhecimento, é dizer, a democratização do saber. Com o Livro Impresso, e consequente organização de Bibliotecas Públicas, vimos o acesso ao conhecimento ampliar-se pelo Planeta. O livro impresso e catalogado numa Biblioteca tornou-se acessível a milhares e milhares de pessoas. A riqueza de uma singela biblioteca pública numa pequena cidade interiorana pode oferecer novos e amplos horizontes a seus cidadãos. No entanto, quando comparamos os acervos destas pequenas bibliotecas públicas espalhadas pelo mundo afora, com os acervos de grandes bibliotecas nas grandes cidades e instituições (públicas ou privadas, educacionais ou não) percebemos que a revolução do Livro Impresso tem mostrado muitas limitações na 122

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capacidade de oferecer um acesso ampliado. Poucas bibliotecas têm fôlego, organização e estrutura para a necessária atualização e renovação do acervo, devido às limitações impostas por questões da produção e distribuição dos Livros Impressos. Além do mais a aquisição de obras raras, exatamente por serem raras, impõe rígidas barreiras financeiras às pequenas bibliotecas. O Livro do Futuro parece ser uma grande esperança para um novo salto no acesso ao conhecimento para amplas parcelas da população. Com a popularização dos celulares e dos tablets, começamos a observar o aumento exponencial na oferta de obras digitalizadas. Grandes bibliotecas do planeta começam a oferecer seu acervo on-line. As possibilidades que se apresentam com esta feliz conjunção (que seguramente não é uma coincidência) — popularização de ferramentas de acesso e disponibilização de Livros Eletrônicos on-line — indicam que vivemos uma democratização potencialmente muito mais profunda. As melhores e mais atualizadas coleções de Livros Impressos começam a ser oferecidas como Bibliotecas Digitais disponíveis para cada cidadão conectado na internet. Na verdade, a rede mundial da internet, entre muitas missões que fogem agora ao tema deste ensaio, torna-se também uma enorme Biblioteca Digital alimentada diariamente com um volume inacreditável de novas obras. Os poderosos instrumentos de busca já disponíveis na rede voltam-se agora a percorrer estantes virtuais. Este um aspecto muito interessante e otimista do Livro do Futuro: por ser digital poderá estar na mão de quase todo cidadão com o rápido movimento dos dedos, que lhe permitirá encontrar a obra desejada, seja ela rara ou não! Há ainda uma questão que gera dúvidas para aqueles que estão a refletir sobre o surgimento do Livro Eletrônico. Com as possibilidades do hiperlink (agregar vídeos, mapas, comentários, músicas, outras obras, fóruns etc.) o Livro do Futuro poderá ser L I V RO L I V RE 123


bastante diferente do Livro Impresso. A verdade é que ainda não sabemos bem o que será este novo Livro Digital. Mas sabemos sim que a digitalização do Livro Impresso permitirá um acesso que desconhecíamos até hoje. Uma outra questão que também preocupa a muitos é saber se o Livro Impresso desaparecerá. Obviamente haverá muita transformação, especialmente pelo fato de que muitas obras já aparecerão diretamente em forma digital, o que já é percebido pelas publicações na rede via autoedição, blogs, jornais etc. Mas há uma outra grande possibilidade em que muitos apostam. Há quem defenda que a forma de se ler no Livro Impresso possui peculiaridades inexistentes no Livro Eletrônico, devido exatamente à característica da não conectividade da maravilhosa leitura solitária. Assim, quando uma obra encontrada nas Bibliotecas Digitais despertar o interesse especial do leitor, provocando a necessidade de uma leitura diferenciada feita no Impresso, a obra pode ser obtida pela Impressão sob demanda. Nesta direção empresas organizam estruturas pelo mundo para tornarem-se Impressores sob demanda locais de obras disponíveis digitalmente na rede. Um livro raro da Biblioteca Britânica digitalizado (com alta definição) e acessível para leitura digital no iPad (serviço lançado recentemente, em junho de 2011), poderá ser impresso individualmente, por exemplo, no Rio de Janeiro e entregue em qualquer residência ou biblioteca pública do Brasil. A aposta é que a grande biblioteca digital em que a rede também se transforma, será ao mesmo tempo um catálogo de títulos para Impressão sob Demanda que nunca nenhuma livraria física ou virtual pode oferecer. É dizer, para concluir este ensaio empírico-especulativo, nunca tivemos acesso a tantas obras pelo meio digital, que poderão, se assim desejarmos, estar em nossas mãos para o deleite da leitura no impresso em poucas horas ou dias. O livro esgotado, raro ou não, deixará de existir para a felicidade geral das nações. Se esta aposta estiver correta, a convergência entre o impresso e o digital terá resolvido as limitações na produção e distribuição 124

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do Impresso. Concluindo, impresso ou digital, os horizontes são extremamente otimistas! Novos mares se abrem para todos. Perece que poderemos navegar agora num planeta de cidadãos leitores. Será sem dúvida uma experiência interessante e quem sabe a formação de um mundo em que Educação e Cultura sejam finalmente patrimônio de todas as pessoas do Planeta, sonho de todos os movimentos libertários na História. Vale a pena participar desta investida. Novas aventuras se abrem para os amantes dos Livros. Como afirmaram os navegantes nos tempos do surgimento do Livro Impresso: Terra à vista!

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Agradecemos aos autores pelo licenciamento dos textos individuais. Esta obra foi licenciada sob regime Creative Commons Não-Comercial. Seus textos podem ser compartilhados (copiados, distribuídos e transmitidos), sob as seguintes condições: 1) que seja dado o crédito da obra original, da forma especificada pelo autor ou pela Ímã Editorial (mas não de maneira que sugira que estes concedem qualquer aval a você ou ao seu uso da obra) e 2) que esta obra não seja empregada para fins comerciais.

Tradução Julio Silveira Revisão Patrícia Sotello

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO [ CIP ]

Livro Livre : novas possibilidades do digital para a escrita, a leitura e a publicação | Organização e apresentação de Julio Silveira — Rio de Janeiro : Ímã editorial, 2011. ISBN

978-85-64528-06-2

1. Comunicação 2. Leitura 3. Linguagem 4. livros e leitura 5. Tecnologia CDD

2011 Todos os direitos desta edição reservados a LIVROS DE CRIAÇÃO

www.imaeditorial.com Edição 1.0.0, junho de 2011

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como novas possibilidades à leitura, à escrita e à publicação? Como os livros escritos, produzidos, distribuídos e lidos de forma digital — livres de restrições de estoque, ponto de venda, matérias-primas e território — afetam (contribuem ou ameaçam, de acordo com o ponto de vista) nossa relação com o texto, a produção e a difusão da cultura? E quais as implicações — econômicas, sociais e morais — do digital na cadeia produtiva do livro e na reconfiguração de seus agentes: autores, editores, livreiros, bibliotecários, professores? Em 10 ensaios, profissionais da palavra, entre autores, livreiros e editores, comentam sobre as transformações pelas quais estamos passando e apontam tendências, oportunidades (e riscos) para as novas formas como iremos escrever, disseminar e ler nossas ideias. Da redefinição do papel do bibliotecário na era da informação imediata às novas plataformas para a criação literária; da relação das livrarias com o produto digital à pirataria de textos e à dissipação da autoria individual — análise, reflexão e considerações práticas feitas por quem vive pela palavra escrita, para um futuro que já chegou. Publicado sob licença Creative Commons Não-Comercial

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O QUE AS TECNOLOGIAS DIGITAIS PODEM OFERECER

CRISTIANE COSTA CORY DOCTOROW PAULO COELHO SETH GODIN PLINIO MARTINS FILHO

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