Ficções 19

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dentro de um pote com álcool (vinho?). Ela parecia não sentir dor, terminei a sutura e fui imediatamente tomar um banho frio e não a ajudei a se vestir, manobra que ela não dominava, ainda mais ferida. O dia do casamento chegou. Estava com meu pai ajudando-o com a gravata, ele com um cálice na mão, quando ouvimos um baque surdo que senti subir pelas pernas. Ele desceu correndo a escada, deixando a bebida na minha mão. Carregou a noiva pro quarto, mas ela quase gritava que estava tudo bem. Casaram-se. O vestido branco (nada mais justo) e o gesso contrastavam, esse último já estava amarelado. Alguém teve a ideia, ignorada injustamente, de passar uma mão de látex pra deixar tudo mais assim, parecido. Três dias depois atravessei a rua e entrei animado no banco. Uma senhora de vestido vermelho não teve problemas para passar pro lado de dentro com a permissão da porta giratória. Na minha vez, vi o chão chegar perto de mim, numa queda grotesca com um braço pra frente, preso na porta giratória. Um grandalhão que queria sair forçou a porta (eu era funcionário do banco, vingança?) e o meu braço direito quebrou, o braço de que mais gostava. Fiquei uma hora esperando num hospital que o gerente me levou. Algum idiota brincou comigo por eu ter chorado. Voltei pra casa mais cedo. A porta estava meio aberta, uma garrafa virada deixava vinho cair pelo sofá, isso já tinha acontecido outras vezes. Fui pro meu quarto. De lá ouvi uns barulhos, fui direto pro quarto dos casados. Abri a porta de um jeito que sabia que não faria ruído algum (vai saber o porquê). Meu pai estava em cima da esposa, a cabeça dela pendia pra fora da cama, não fiquei constrangido por que Inácia estava pálida, imóvel e seus olhos sem cor. As mãos do meu pai saíam agora do pescoço dela. Ele tremia, afobado. Inácia estava tão estrábica que parecia ter chorado pra cima, lágrimas ainda desciam dos seus olhos rumo a testa. Fechei a porta, “era a gravidade”, pensei. Entrei no meu quarto, minha cabeça girava. Risquei no meu gesso a data.

35 machucados

Clayton C. ficções19


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