CLB Hilda Hilst

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CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA: Pa re c e nos inevitável começar pela figura de seu pai, Apolonio de Almeida Prado Hilst. Implícita ou explicitamente, ele está presente em alguns de seus melhores livros – de dedicatórias aos poemas e textos ficcionais propriamente ditos. De que modo seu pai foi assumindo essa dimensão no interior de sua obra?

três noites de amor”, ele pedia. “Só três noites de amor, só três noites de amor”, ele implorava. Eu ficava muito atrapalhada com tudo isso. CADERNOS: Essa foi a maior temporada em que vocês ficaram juntos?

Hilda Hilst: Eu passei uns três dias com ele. Daí meu pai começou a ir para uns sanatórios. Mas eu sempre separei muito a vida dele como louco da vida que eu conheci através da minha mãe.

Hilda Hilst: Meu pai e minha mãe tiveram uma paixão daquelas de perder mesmo o senso. Meu pai era um homem brilhante, escreveu muitas coisas, publicava textos em jornais (às vezes assinava Apolonio e outras Luís Bruma). O Mário de Andrade escrevia para ele. Mas desde o início minha mãe tinha problemas com a família dele; naquela época um Almeida Prado só se casava com um Almeida Prado. Eles acabaram se separando quando eu era bem pequena. Um dia meu pai, que morava em Jaú, foi para Santos me ver. Eu tinha três anos e vivia lá, na Rua Vicente de Carvalho, 32. Ele chegou e me deu um cavalinho de pau. Era um homem muito alto, fiquei o tempo todo olhando pra cima. Apesar da separação, minha mãe falava dele sem parar, do amor que tinha por ele.

CADERNOS: A presença do seu pai, um poeta talentoso, teve certamente responsabilidade em suas escolhas pessoais no campo da literatura?

Hilda Hilst: Em parte, não. Quase todo o meu trabalho está ligado a ele porque eu quis. Eu pude fazer toda a minha obra através dele. Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim [a voz embarga nas últimas palavras]. Eu estou ficando rouca, não é nada… Então eu me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia basicamente para ele.

CADERNOS: Sua ligação com seu pai é, portanto, uma construção da memória, uma transformação literária da memória?

TELÊ ANCONA LOPEZ: Gostaria que você falasse como vê o Apolonio Hilst em Luís Bruma, enquanto crítico capaz de perceber a importância do modernismo nos idos de 28.

Hilda Hilst: É. Mas eu voltei a vê-lo quando tinha 16 anos. Meu pai estava na fazenda dele e pediu para me chamar. Meu tio Luís, irmão do meu pai, falou com minha mãe que ele tinha dito que queria me conhecer. Na verdade, meu pai já estava louco. Minha mãe me deixou ir. Quando cheguei lá, ele pediu minha carteira de identidade, eu dei. Perguntou se alguém tinha ido me receber na entrada. Meu tio respondeu que ele tinha ido me receber. Meu pai ficou muito agressivo com as irmãs, porque elas não tinham ido me receber. Eu fiquei vermelha demais, era muito jovenzinha. Mas comigo meu pai era diferente. Mandava me servir café da manhã. Às vezes, pegava na minha mão, acho que me confundia com minha mãe, e então dizia para eu dar três noites de amor para ele. Era uma coisa terrível, constrangedora. Eu ficava morta de vergonha, sem jeito, imagine. “Só

Hilda Hilst: Eu acho que meu pai era um gênio. Só que ele vivia em Jaú, você entende? CADERNOS: Sua mãe contava o que ele lia?

Hilda Hilst: Ah, sim. Ele lia muito Nietzsche. Era um homem culto. Autodidata, mas cultíssimo. CADERNOS: Esse sentimento em relação ao seu pai, essa sombra dele em sua obra, começou então muito cedo e persiste até hoje?

Hilda Hilst: É uma coisa da vida inteira. Eu fiz minha obra por causa do meu pai. Eu queria agradar o meu pai. Queria que um dia ele dissesse que eu era alguém. É isso. 26


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