os primeiros conseguiram transformar-se nas segundas. Pelo menos é o que parecia, levando-se em conta que os originais datiloscritos de Grande sertão: veredas tinham seu paradeiro conhecido entre os herdeiros, sendo possível examiná-los e até copiá-los. Devia-se pensar que as etapas intermediárias (manes de Flaubert e Joyce!) se perderam, ou, ao contrário, que o método de trabalho do escritor não as incluía? Que dos fragmentários prototextos ao primeiro jato de escrita executava um salto? Só bem mais tarde, como se verá, algumas lacunas seriam preenchidas. Guimarães Rosa mesmo foi de pouca ajuda para a compreensão de seus métodos de trabalho. Avesso a entrevistas, entre as poucas que deu, a mais completa nesse tópico é aquela concedida a Günter Lorenz (1965)21, e assim mesmo porque se destinava de início exclusivamente à publicação na Alemanha. Segundo o testemunho dos que com ele conviveram, fazia declarações que cercavam de mistério sua escrita e a atribuíam à inspiração. Todavia, nessa entrevista fala de muita labuta e suor. As melhores pistas, como vimos, encontram-se nas cartas em que respondeu a consultas de seus numerosos tradutores, enriquecidas por seu talento de poliglota que se deleitava no potencial praticamente inesgotável demonstrado pela espécie humana para a diversidade lingüística. Entretanto, essas cartas, se soerguem o véu de um mistério cultivado, têm o inconveniente de terem sido escritas a posteriori: os livros já estavam publicados e a reflexão do escritor ia mostrando influência da recepção crítica, à medida que esta se desenrolava. Ainda assim, devemos a elas esclarecimentos preciosos, como o da formação do nome da personagem Moimeichego, em “Cara de Bronze”, de Corpo de baile.22 Conforme adiantou a Edoardo Bizzarri, seu tradutor para o italiano, trata-se de um somatório de pronomes de primeira pessoa em francês, inglês, alemão e latim/grego (moi + me + ich + ego), os quais, telescopados, com os grafemas respeitados nas línguas de origem mas os fonemas desfigurados pela prosódia brasileira, ficam irreconhecíveis. A propósito, não parece inteiramente alheia a essa composição o Mamalujo – da primeira sílaba dos nomes dos quatro evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João – do Finnegans wake de Joyce. Devemos à mesma fonte luzes sobre o neologismo “abocabaque” em “Uma estória de amor”, do mesmo livro, advérbio de modo inexistente em nosso idioma, criado pelo escritor mediante a naturalização da frase feita latina ab
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24/11/06 – 18h