Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos

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Rodrigo Pinheiro da Silva

Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos

Duque de Caxias 2014


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Rodrigo Pinheiro da Silva

Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado

à

Universidade do Grande Rio “Prof. José de Souza Herdy”, como parte dos requisitos

parciais

obtenção

do

licenciado

para

grau

em

de

Artes

Visuais.

Orientador (a) Prof°. Dr. Alexandre Sá Barretto da Paixão

Duque de Caxias 2014


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Rodrigo Pinheiro da Silva

Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos

Trabalho Curso

de

Conclusão

apresentado

de à

Universidade do Grande Rio “Prof. José de Souza Herdy”, como

parte

dos

requisitos

parciais para obtenção do grau de licenciado em Artes Visuais.

Aprovado em 01 de julho de 2014.

Banca Examinadora

Prof. Dr. Alexandre Sá Barretto da Paixão Universidade do Grande Rio Prof. Me. Anna Corina Gonçalves da Silva Universidade do Grande Rio Prof. Me. Raoni Moreno Rosa de Albuquerque Universidade do Grande Rio


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A todos os seres sencientes.


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[...] Forma é vazio e vazio é forma a forma não existe sem o vazio e o vazio não existe sem forma.[...]

Prajnaparamitra Sutra – O Sutra do Coração


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Resumo Discutir sobre autenticidade e autoria de uma serigrafia através do entendimento das colocações propostas por Walter Benjamin no ensaio A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, da ideia de dispositivo afixada por Giorgio Agamben no ensaio O que é dispositivo? no livro O Que É Contemporâneo? e Outros Ensaios e das convenções do mercado de arte surgidas através de encontros internacionais (III Congresso Internacional de Artistas em Viena e o Concurso Internacional de Obra Gráfica SAGA) utilizando para isso o trabalho artístico próprio denominado Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos. Propor assim que as obras gráficas não necessitem seguir padrões pré-fixados e genéricos para serem consideradas autênticas, mas sim à dispositivos criados pelo próprio artista para a existência da obra.

Palavras-chave Autenticidade; reprodutibilidade.

originalidade;

dispositivo;

serigrafia;

gravura;

autoria;


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Abstract Discuss about the authenticity and authorship of a silkscreen by understanding the proposed placements by Water Benjamin´s essay The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, the idea of device affixed by Giorgio Agamben in the essay What is the device? in the book What Is Contemporary? and Other Essays and conventions of the art market emerged through international meetings (III International Congress of Artists in Vienna and the International Competition of Graphic Work SAGA) using for this artwork called himself Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos. Therefore, suggest how the graphic works need not follow pre-set patterns and generic to be considered authentic, but the devices created by the artist for the existence of the work of art.

Keywords Authenticity; reproducibility.

originality;

device;

silkscreen;

etching;

printing;

authorship;


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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Matriz xilografia em cedrinho

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Figura 2 - Reproduções de matriz xilográfica

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Figura 3 - Xilogravura sem nome

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Figura 4 – Detalhe da primeira aparição de um coração em minhas serigrafias

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Figura 5 - Matriz em linóleo para confecção de matriz serigráfica

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Figura 6 - Matrizes serigráficas para confecção das estampas

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Figura 7 - Serigrafia Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos – frente

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Figura 8 - Serigrafia Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos – verso carimbado

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Figura 9 - Gravuras dispostas sobre a mesa na biblioteca da EAV

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Figura 10 - Uma jovem interessada no trabalho exposto na biblioteca

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Figura 11 - Interferência nº 1 sobre Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos

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Figura 12 - Interferência nº 2 sobre Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................09 2. O Mote...................................................................................................................10 3. A CONFECÇÃO DO TRABALHO.......……………………………..................…….20 3.1. A revelação da imagem......................................................................................20 3.2. A imagem em campo..........................................................................................29 4. Há alguma resposta? Ou Considerações Finais...............................................33 4.1. Respostas...........................................................................................................34 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................37


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1. Introdução Entre as muitas leituras que o trabalho Não me deixe Intacto: Os Ex-Votos me revelou e até mesmo à outros que se debruçaram em algum momento sobre ele, escolhi apenas uma de suas possibilidades de leitura e análise que naturalmente se sucederam após a sua materialização. Por isso, aqui se encontram apenas as reflexões quanto a sua materialidade, isto é, a sua existência enquanto objeto, enquanto gravura, enfim quanto à seu caráter gráfico. Este trabalho surgiu de uma pergunta provocativa sobre um saber/entender afixado como uma verdade há anos: a discrição do que é um objeto original e automaticamente do que é objeto autêntico, além da sustentação de valor que tal julgamento acaba por entrelaçar a tais conceitos. Como dito acima, essas ideias estão afixadas há muitos anos, porém aqui me detive apenas nos últimos para analisar a questão. Obriguei-me a essa pequena fronteira com objetivo de demostrar uma leitura profunda e contudo não aborrecida. Deste modo me pautei apenas na análise da discrição do que é um objeto original e autêntico emitida por Walter Benjamin em seu ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica e também pelas regras estabelecidas no mercado de arte através de encontros internacionais. Como desejei, desde o início, questionar essas verdades e percebi que elas na realidade se encontram muito próximas ao conceito de dispositivo explicado por Giorgio Agamben no ensaio O que é um dispositivo? de seu livro O que é Contemporâneo? E Outros Ensaios e ligados diretamente aos estudos desse sobre o pensamento foucaultiano, acresci à leitura aqui pretendida esse último ensaio.


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2. O MOTE O trabalho Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos iniciou-se através de um projeto artístico pessoal de criação e confecção de serigrafias que não recebem intencionalmente numeração, assinatura e não sofre qualquer edição numérica ou plástica do artista criador sobre as mesmas. Os questionamentos que impulsionaram este trabalho surgiram durante a reprodução de uma matriz de xilogravura e também diante de uma pesquisa pessoal realizada durante a realização das Oficinas Gráficas em Xilogravura e Serigrafia entre os anos de 2012 e 2013 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV) no Rio de Janeiro. Após completar a Oficina Gráfica em Xilogravura com o Professor e artista Júlio Castro na EAV, passei a criar minhas matrizes e reproduzi-las em meu atelier. Foi durante a reprodução de uma dessas matrizes, justamente a primeira efetuada e confeccionada em madeira de cedrinho (figura 1) durante a oficina de xilogravura, que me dispus a observar mais atentamente os meus atos ao entintar e em seguida de imprensar a peça de madeira contra o papel de seda (figura 2).

Figura 1: Matriz em cedrinho confeccionada durante Oficina de Xilogravura.

Esses cuidados me remeteram às recomendações recebidas para a produção das estampas quando participei do curso Oficina Gráfica: Xilogravura na Escola de


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Artes Visuais do Parque Lage. A exemplo, cito a necessidade de um cuidado de caráter exigente quanto ao aspecto uniforme e quase homogêneo que deve vigorar na limpeza e acabamento do trabalho e a necessidade de que todas as estampas produzidas estejam extremamente similares entre si para uma posterior edição e consequente finalização com uma assinatura, um título (não obrigatório) e a numeração (número de série) conforme as regras adotadas dentro do mercado de arte de gravura.

Figura 2: Reproduções com a matriz confeccionada no Parque Lage.

Assim, surgiram uma série de questionamentos que impulsionaram, serviram de mote, ao trabalho aqui apresentado. Essas questões são: • Deixariam de ser de minha autoria as cópias ali produzidas se não estivessem intencionalmente assinadas? • Seriam elas autênticas por não obedecerem àquilo que é convencionado por um mercado de arte - um rigoroso controle de similaridade e da produção do


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número de cópias adicionado a esses a existência de uma assinatura - enfim, uma edição? • E se tais atitudes fossem deliberadamente desejadas em um trabalho gráfico? As estampas deixariam de ser consideradas gravuras? Colocando-nos sob as necessidades do mercado, podemos responder diretamente a essas questões apenas aceitando que para que uma gravura seja considerada como tal e também entendida como um objeto de arte autêntico e original, é necessário que possua certificado de autenticidade e carregue uma série de marcas que confirmam que ela é realmente o trabalho realizado por determinado artista. É impossível, no meu entender, não correlacionar tais colocações com o que foi escrito por Walter Benjamin em seu ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica a respeito da natureza dessas reproduções feitas através de aparatos mecânicos. Principalmente sobre o que deve ser considerado original e autêntico. Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a história da obra. Essa história compreende não apenas as transformações que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, como as relações de propriedade em que ela ingressou. Os vestígios das primeiras só podem ser investigados por análises quimícas ou físicas, irrealizáveis na reprodução; os vestígios das segunda são o objeto de uma tradição, cuja reconstituição precisa partir do lugar em que se achava o original. O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica. (BENJAMIN, 1996, p. 167)

O que Walter Benjamin admite na colocação acima é que há transformações que são sofridas por uma obra através da passagem do tempo, mas testes para tal fim são impossíveis - ou assim o eram na época que escreveu seu ensaio - portanto, segundo ele, foram criados critérios, isto é, dispositivos para provar que determinado objeto artístico é autêntico através da criação de uma tradição (um conjunto de


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regras) que assim assegura seu caráter superior em frente a um objeto banal e fruto de um ato puramente mecânico. É importante para prosseguirmos, detalhar o significado da palavra dispositivo conforme entendido nesta monografia. O significado dessa palavra neste trabalho se encontra alicerçada segundo as colocações de Giorgio Agamben no ensaio O que é um dispositivo?: a. É um conjunto heterôgeneo, linguístico e não linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edificações, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. b. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder. c. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber. (AGAMBEN, 2009, p.29)

E mais adiante prossegue: Certamente o termo no uso comum como no foucautiano, parece remeter a um conjunto de práticas e mecanismos (ao mesmo tempo linguístico e não linguístico, jurídico, técnico e militares) que tem o objetivo de fazer frente a uma urgência de obter um efeito mais ou menos imediato. (AGAMBEN, 2009, pp.34,35)

Assim, sob a descrição do significado desse conceito por Giorgio Agamben, o significado dos termos original, autêntico e aura benjaminiano são, em realidade, um conjunto de dispositivos – mecanismos – que são utilizados para qualificar determinada obra de arte, pois o direciona a um entendimento qualificador. Já nas primeiras páginas do ensaio A Era de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica, Walter Benjamin insere um conceito de aqui e agora (hic et nunc). Entretanto, ele não se aprofunda objetivamente sobre o mesmo em momento algum. Apenas faz sugestões de ordem subjetiva do que seria esse conceito, próprio unicamente de objetos produzidos pela mão dos homens. Mesmo ao falar da aura, que poderíamos compreender como um aprofundamento do aqui e agora se assim desejássemos, a sua discrição ainda se mantém superficial e subjetiva: Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar em repouso, numa


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tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. (BENJAMIN, 1996, p. 170)

Quando Walter Benjamin estipula que a aura e a obra artística original é singular e explica – comprova a existência dela – através de fatores e características tão subjetivos quanto a experiência de uma sombra projetada sobre nós, percebo uma escolha pessoal sobre algo pouco palpável. A pergunta que me faço é: estão todos que experienciam determinada circunstância descrita por Benjamin na mesma sintonia descrita por ele e consequentemente disponíveis a vivenciar o momento da mesma maneira da que foi descrita pelo autor? Cada um não compreenderá essa experiência de acordo com suas experiências anteriores e capacidades particulares? Ela está sobre o objeto ou sobre o olhar de seu observador? Se tal comprovação está relacionada a uma experiência desse tipo, ela só poderia acontecer diante de um fenômeno natural ou de um objeto único? Por que não seria possível a um objeto múltiplo que ele carregue os elementos espaciais e temporais do instante e do local em que ele é confeccionado? Ainda assim a compreensão de um aqui e agora é a base sobre a qual o dispositivo de Walter Benjamin é criado para qualificar uma obra como original, autêntica e possuidora de uma aura. Porque uma experiência tão subjetiva deveria ser a prova de algo de aspecto claramente objetivo como a qualidade de um objeto? Entendo que não há como afastar tais colocações benjaminianas da postura política de seu autor. Sua inclinação socialista e consequentemente à visão que tal conjunto de ideias proporciona, acaba por se refletir firmemente no conteúdo de seu ensaio. Podemos perceber isso sem que haja dúvidas logo após descrever o significado do termo aura. Benjamin segue a falar dos movimentos de massa e do caminho que esses seguem na modernidade, desqualificando, ou segundo suas palavras, condicionado o declínio do que ele entende por aura, o que não difere do ato de Giorgio Agamben ao definir a ideia de dispositivo e contradispositivo, esse último também por ele denominado como profanação. Giulio Carlo Argan no livro Arte Moderna, esclarece essa postura em determinados artistas e pensadores. É através desse pequeno excerto que faço aqui a ligação entre socialismo e a ideia benjaminiana de aqui e agora. Um hic et nunc que só é realmente possível, de acordo com esse linha filosófica, fora da reprodução em série típico das fabricas surgidas no século XIX.


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De acordo com esses pensadores os homens estavam alienados de sua essência que só era possível encontrar através de um trabalho manual, um ideal claramente marxista: Pintar significa dar ao quadro um peso, uma consistência maior das coisas vistas: em suma, fazer o que se vê não é o mesmo que imitar a natureza. Qual é a distância e o percurso entre a coisa vista, que logo desaparece, e a mesma coisa pintada, que permanece? Nada mais do que a feitura, o trabalho manual do artista (Marx teria dito: força de trabalho). Assim, o trabalho do artista se torna o paradigma do verdadeiro trabalho humano, entendido como presença ativa ou mesmo indistinção entre o homem social e a realidade. O artista é um trabalhador que não obedece à iniciativa e não serve ao interesse de um patrão, não se submete à lógica mecânica das maquinas. É em suma, o tipo de trabalhador livre, que alcança a liberdade na práxis do próprio trabalho. (ARGAN, 2010, p. 34)

Argan se refere, no trecho acima, exclusivamente ao ato da pintura se eximindo do desenho que era utilizado de maneira prioritária para a formulação de projetos

artísticos

e

da

escultura

que

possuía

a

funcionalidade

da

criação/manutenção de vultos públicos. A pintura havia sido tomada, durante séculos, como o meio principal utilizado, até o nascimento da fotografia, com a nobre função do ato de capturar a imagem e fatos históricos de um presente para relegá-los como herança às gerações futuras. Um agir completamente manual. Com o advento da fotografia esse quadro mudou. Porém, a pintura por ser um trabalho manual, não mimetizava apenas a natureza mas era o paradigma do trabalho humano versus o mecânico alienante que diminuía o homem. Na gravura, a reprodução era feita pela máquina, mas as matrizes, eram criadas de forma manual. Assim, entendia-se que as reproduções dessa que havia surgido muito anteriormente a Revolução Industrial, precisamente por volta do século XV, se prestava a finalidade de divulgação de uma imagem a um número maior de pessoas de maneira similar as cópias pintadas acima citadas por Walter Benjamin. Quando a gravura passou a fazer parte do mercado de arte, foram estabelecidas regras – dispositivos – para protegerem e resguardarem artistas e compradores de fraudes e de eventuais falsificações e determinarem quais era as originais, autênticas e possuidoras de aura.


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Um dos exemplos de acontecimentos dessa natureza foi o III Congresso Internacional de Artistas realizado em Viena em 1960 e até o mais recente e prestigiado concurso internacional de obra gráfica SAGA que foi realizado em Paris no ano de 1996. No SAGA, por exemplo, se afixaram a adoção de parâmetros que são seguida pelo mercado na atualidade. Vejamos esses dispositivos conforme afixados durante o SAGA em 1996: Definição proposta em 1996, na SAGA, elaborada pela Câmara Sindical e o comité de SAGA em forma de disposição constitucional: - A estampa original é uma expressão plástica voluntariamente escolhida pelo artista, como, por exemplo, a pintura, o desenho, a fotografia ou a escultura. - O autor cria uma matriz no suporte, que pode ser de metal, madeira, pedra ou qualquer outro material. - O autor pode utilizar um ou vários suportes diferentes, ou técnicas diferentes para criar uma estampa original. A estampa original é uma obra de arte de que podem existir vários exemplares, de acordo com a vontade do artista. As estampas que não tenham sido realizadas pelo autor da assinatura, ou sob a sua constante supervisão, devem assinalar-se claramente como <<estampas de interpretação>>. - A estampa original e uma criação total do artista, amiúde realizada por conta de um editor, em colaboração com o impressor ou uma oficina. - A estampa original contemporânea é geralmente assinada e numerada, o que a diferencia da estampa antiga (e, também, às vezes da estampa moderna). Contudo, em algumas obras de bibliófilo há estampas que não estão assinadas e que se consideram originais. - A autenticidade da assinatura, a verdade da numeração, a veracidade da documentação são responsabilidade do sócio comanditário da tiragem, do editor e do próprio artista ou do proprietário da obra. Ao vendedor compete, portanto, seja quem for, comprovar a autenticidade e garantir a documentação do trabalho que comercializa. (CATAFAL; OLIVIA, 2003, p. 11).

Tais atitudes de Walter Benjamin e do mercado, se correlacionam ao conceito de dispositivo de Giorgio Agamben, que está baseado no pensamento de Michel Foulcaut que em A Arqueologia do Saber nos anos sessenta – conforme as considerações de Agamben em seu ensaio aqui citado – utilizava um termo próximo etimologicamente, positivité e que na segunda metade dos anos setenta adotou definitivamente o termo dispositivo para analisar o governo dos homens, que é na realidade uma atitude puramente política.


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Em seu texto, Agamben prossegue demostrando durante breve genealogia da palavra positivité, a ligação de Michel Foucault com o seu auto denominado mestre, Jean Hyppolite que também havia utilizado a palavra positivité em sua Indroduction à La philosophie de l´histoire de Hegel (AGAMBEN, 2009, p. 30). As ideias de destino e positividade são apontados como conceitos-chave do pensamento hegeliano e são relacionadas a oposição estabelecida entre religião natural e religião positiva. Esses dois conceitos estabelecem que a religião natural é relacionada a relação da razão humana com o divino e que a religião positiva à um conjunto de crenças, regras e ritos que são impostos para governar e gravar intimamente nos indivíduos de uma determinada sociedade em um momento histórico certos sentimentos e comportamentos, uma clara relação de comando e de obediência. Estabelecendo-se assim uma relação oposta entre natureza e positividade, liberdade e coerção, razão e história (AGAMBEN, 2009, pp. 29,30,31). A criação de termos para qualificarem um objeto como autêntico por Walter Benjamin é na realidade esse conjunto de práticas e mecanismos descrito por Giorgio Agamben. O efeito mais ou menos imediato é a valorização ou desvalorização de um objeto, isto é, dizer se o mesmo possui ou não determinadas qualidades – essas escolhidas por Benjamin ou através dos tempos por um mercado de arte – que o estabelecem como tal. [...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. (AGAMBEN, 2009, p. 40)

Não é justamente isso o que as ideias de Benjamin ou os preceitos do mercado fazem com um objeto dentro de suas fronteiras? Essas ideias não estão capturando e orientando o mesmo? Não determinam se eles têm ou não valor? Não o modelam como original ou cópia? Como autêntico ou fraude? Possuidor de aura ou não? Não asseguram assim as condutas e opiniões das pessoas em um determinado sentido? Retornando ao momento em que me fiz os questionamentos acima citados, surgiu o desejo da criação de um trabalho que não seguisse essas regras e que não deixasse de ser uma gravura. Foi assim que surgiu o mote para Não Me Deixe


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Intacto: Os Ex-Votos que estaria sob uma égide diversa da que se encontram geralmente outras gravuras no momento. Assim foram criados contradispositivos próprios, unicamente meus que agiriam como métodos para a realização deste trabalho e que seguem agora abaixo relacionados: • Não assinar a cópia alguma; • Não numerar as cópias; • Não excluir nenhuma reprodução que apresente qualquer falha durante sua confecção, e • Fazer quantas reproduções desejar e a qualquer momento.


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O bom de trabalhar em arte é que vamos procurando uma outra lógica, outro tipo de associação, e que tem que ter algumas regras, só que essas regras ninguém nos dá, o que temos são exemplos de outras pessoas que seguiram essas regras. (...) Acho que o discurso que interessa é o discurso da conjunção: arte seria então essa capacidade de criar ligações entre coisas, conjunções essas que nós dão sentido. Quando você liga uma coisa com outra, acontece um fenômeno de radiação, uma coisa que está num sentido e outra num outro, ao se juntarem, produzem um terceiro sentido. E é a partir desse terceiro sentido que devemos começar a pensar. Tunga


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3. A Confecção do Trabalho O capítulo que segue surge para descrever como aconteceu a criação das gravuras deste trabalho e o processo artístico e mental que se seguiram para a confecção plástica da ideia de um contradispositivo. 3.1. A revelação da imagem

Figura 3: Xilogravura sem nome confeccionada durante a Oficina Gráfica: Xilogravura

Logo após as questões que geraram o desejo de criação do trabalho, surgiu a necessidade da elaboração de uma imagem exclusiva para o mesmo e posterior lançamento ao público das ideias e estampas discutindo plasticamente sobre o limite da gravura original e do objeto artístico. Isso significa que a estratégia que devemos adotar no nosso corpo a corpo com os dispositivos não pode ser simples, já que se trata de libertar o que foi capturado e separado por meio dos dispositivos e restituí-los a um possível uso comum. (AGAMBEN, 2009, p. 44)

Conforme mostrado no último parágrafo do capítulo anterior e em forma de tópicos, eu havia criado um contradispositivo que serviria como um método na execução do trabalho. Tal atitude é na realidade um ato de profanação conforme


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colocado por Giorgio Agamben na parte oito de seu ensaio, pois o conceito de dispositivo acaba se encontrando entre uma esfera religiosa e uma de direito romano (AGAMBEN, 2009, p. 44). É importante ressaltar que durante o ensaio O que é dispositivo?, Giorgio Agamben utiliza a palavra em grego oikonomia para designar a profundidade de seu conceito de dispositivo e sua correlação com a história da teologia. Explica o significado dessa palavra em grego como “a administração do oikos, da casa, e mais geralmente, gestão, management” (AGAMBEN, 2009, p. 35). Segue exemplificando como tal significado foi importante na história da Igreja para a resolução (administração) de alguns problemas teológicos que surgiram e como se tornou assim um dispositivo regulador que acabou deixando uma herança à cultura ocidental: [...] a fratura que os teólogos procuram deste modo evitar e remover em Deus sob o plano do ser reaparece na forma de uma cesura que separa em Deus ser e ação, ontologia e práxis. A ação (a economia, mas também a política) não tem nenhum fundamento no ser: esta é a esquizofrenia que a doutrina teológica da oikonomia deixa como herança à cultura ocidental. (AGAMBEN, 2009, p.37)

O desenrolar dos acontecimentos históricos citados por Agamben no seu ensaio segue para mostrar o desenvolvimento do termo em outros de igual natureza regulatória. Esses subsequentes procuravam governar e guiar os seres para um caminho de retidão. Tal conjunto acabou por ser traduzido por padres latinos como dispositio. O significado foucaultiano para o termo carrega consigo essa herança teológica que divide o divino entre o ser e a práxis, a essência e a forma como essa age (AGAMBEN, 2009, p. 38). Comum a todos esses termos é a referência a uma oikonomia, isto é, a um conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens. (AGAMBEN, 2009, p.39)

Como exposto anteriormente segundo uma compreensão própria para este trabalho, o dispositivo benjaminiano capturava, orientava, determinava, modelava e controlava, dentro do pensamento desse pensador e daqueles que o seguem, o caminho das obras de arte e a qualidade de um objeto artístico similarmente ao ato


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religioso que purifica, separa, consagra, santifica alguma coisa ou pessoa. Esta é a principal similaridade e proximidade do ato benjaminiano com a teoria de dispositivo de Giorgio Agamben e o motivo de considerar como dispositivo a atitude de Walter Benjamin e também a do mercado de arte ao denominar uma gravura como original, como um objeto com algum valor, um real objeto de arte. A diferença principal entre o meu dispositivo e o dispositivo benjaminiano está assim, na profanação própria do meu contradispositivo. Com o meu contradispositivo (não numerar, não editar, não assinar e não definir em momento algum que já se alcançou o número de cópias necessárias) eu procuro instigar o pensamento e estimular a atenção ao reconhecimento dessa série de dispositivos que capturaram e separaram nossas ideias e julgamentos de objetos e experiências artísticas. Sobre o que tem ou não algum valor, do que possui ou não alguma aura. Não cabe a mim – minha subjetividade – determinar se algum objeto tem valor, mas sim ao personagem que entrar em contato com o trabalho. Foi justamente no momento em que eu pensava intuitivamente sobre o desejo de elaboração desse trabalho, e isso ocorreu por volta do ano de 2013, que iniciei uma nova etapa de aprendizado na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Iniciava a oficina de serigrafia com a Professora e artista Evany Cardoso. As técnicas serigráficas já me atraíam pela sua maior velocidade e pelos seus mecanismos utilizados para a multiplicação de imagens previamente criadas em várias cópias. Quando iniciei meus estudos nessa técnica acabei optando por ela para a execução do projeto anteriormente pensado justamente por tais peculiaridades. A velocidade de reprodução serigrafica foi pessoalmente ligada a ideia de Walter Benjamin sobre a reprodução serial própria dos movimentos de massa que faziam as coisas ficarem mais próximas e que foi desenvolvida logo após a sua definição do que é a aura: Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura. Ele deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. (BENJAMIN, 1996, p. 170)


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Curiosamente, a história da serigrafia é colocada como surgida e desenvolvida durante o período compreendido entre a Primeira e Segunda Guerra Mundial, justo o mesmo período em que Walter Benjamin escreveu o ensaio que aqui discutimos. Vi nesse fato algo tão interessante quanto aquilo que para mim era a prova de um aqui e agora após o surgimento dos primeiros objetos fruto de meus exercícios serigráficos na Oficina de Serigrafia do Parque Lage. Embora as estampas que surgiam fossem produto de uma matriz que pode ser considerada como a única peça realmente autêntica e original, durante sua confecção aconteciam circunstâncias únicas no lugar em que eu as produzia. O tempo e espaço onde estávamos não se repetiria e tal visão pode ser compreendida no meu fazer artístico como o ato poético de encapsular na imagem o momento que surge durante uma produção. Durante a produção das cópias pequenos incidentes sempre acontecem e comprovam que mesmo aparentemente iguais, as imagens dali decorrentes são no máximo semelhantes entre si. Assim, pela paixão que emergiu durante essas primeiras experiências serigráficas e percepções seguintes, foi reforçada a escolha da serigrafia como técnica para ser a utilizada no trabalho que seguiria sob as regras do meu contradispositivo supracitado. Aparentemente, o artista funciona como um ser mediúnico que, de um labirinto situado além do tempo e do espaço, procura caminhar até uma clareira. Ao darmos ao artista os atributos de um médium, temos de negar-lhe um estado de consciência no plano estético sobre o que está fazendo, ou porque o está fazendo. Todas as decisões relativas à execução artística do seu trabalho permanecem no domínio da pura intuição e não podem ser objetivadas numa autoanálise, falada ou escrita, ou mesmo pensada. (Duchamp in: BATTOCK, 1986: 72).

A colocação duchampiniana revela perfeitamente o ato criador que se seguiu no meu processo de trabalho. Ele foi completamente cego e assumo que até um tanto mediúnico mesmo que eu já soubesse objetivamente a direção que deveria e queria seguir: a efetivação do trabalho de acordo com as regras de profanação dos dispositivos previamente estabelecidos pelo mercado de arte e também por Walter Benjamin na sua concepção pessoal do que é um objeto artístico original, autêntico e possuidor de uma aura. Contudo, ainda não havia eleito uma imagem que deixasse

tais

pensamentos

de

dispositivo

e

contradispositivo

ao

menos


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sugestionados. O que eu necessitava era transpor para a forma gráfica a dualidade desse conceito e do trabalho pretendido. O sim e o não, o seguir e o não seguir determinado caminho etc. que era sua natureza básica, o seu ser. Eu não havia chegado ainda, conforme dito por Marcel Duchamp na citação acima, até a clareira pretendida. Os exercícios que se seguiram foram a minha maneira de tatear a procura de uma resposta, uma solução e não foram racionalmente programados para que gerassem o resultado obtido. Admito que, conforme dito por Duchamp, não agi de maneira racional, mas similar a um médium me abri intuitivamente para o desconhecido e deixei que ele se manifestasse. Entre os muitos exercícios efetivados na Oficina de Serigrafia, a simples forma não detalhada de um coração (figura 4) me chamou a atenção por representar duas leituras. Uma delas é a de um lugar onde reside a alma, os sentimentos, o ser e a outra é a de um órgão responsável pela distribuição do sangue a várias partes do corpo humano, uma característica prática.

Figura 4: Detalhe da primeira aparição de um coração nas minhas serigrafias.

Ao visualizar o coração bombeando o sangue para outras partes do corpo, lembrei de meu trabalho xilográfico que poderia ter entre uma de suas interpretações


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as veias do corpo humano (figura 3). Assim novamente de maneira intuitiva, uni o novo trabalho (figura 4) em serigrafia ao anterior em xilografia (figura 3). Juntei as ideias do coração estilizado às ramificações xilográficas através de uma matriz em linoleogravura (figura 5) - gravura feita sobre um material originalmente fabricado para ser utilizado como revestimento de pisos - que se encaixou dentro da forma não detalhada do coração e terminou se transformando em matriz serigrafica (figura 6) e mais a frente nas estampas ( figura 7).

Figura 5: Matriz em linóleo para confecção de matriz serigráfica.

Tal imagem não estava apenas unindo os meus dois primeiros momentos no universo gráfico: As ramificações (galhos, raízes, raios etc.) da xilogravura (figura 3) e o contorno das formas utilizadas na serigrafia (figura 4). O coração ao ser duplicado e espelhado parecia reforçar a um sugestionamento anteriormente desejado, a um estímulo ao questionamento. Parecia atender figurativamente ao desejo de representação de profanação de um dispositivo por um contradispositivo. Pois, conforme escrito por Agamben ““Profano”, podia assim escrever o grande jurista Trebazio, “diz-se, em sentido próprio, daquilo que, de sagrado ou religioso que era, é restituído ao uso e à propriedade dos homens””. (AGAMBEN, 2009, p. 45)


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Figura 6: Matrizes serigráficas para confecção das estampas.

Mas ainda restava o desejo de inclusão de mais um elemento. Se a ideia de dispositivo e contradispositivo aparentemente funciona como a cara e a coroa de uma mesma moeda, por que não utilizar o verso do papel que levaria a estampa dos corações espelhados? Depois de pensar em como utilizar o outro lado do papel e de perceber que em sua face haveria uma estampa figurativa e fruto do surgimento das últimas técnicas de gravura (litografia e serigrafia), me perguntei porque não incluir no verso algo que remetesse as primeiras técnicas de gravura (xilogravura e calcogravura)?


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Porque não utilizar a linguagem escrita para fazer contraposição a figurativa? O relevo de uma matriz para contrastar com a planaridade da técnica mais recente de sua face? Foi desta maneira que escolhi apenas uma frase de um dos meus muitos textos escritos para se tornar o verso da imagem: Não Me Deixe Intacto. E essa frase passou a ser o nome do trabalho.

Figura 7: Gravura em serigrafia - Não Me Deixe Intacto: Os Ex-votos - frente.

Figura 8: Gravura em serigrafia - Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos – verso carimbado.


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A escolha da confecção de um carimbo, que é uma gravura em relevo, obedeceu ao desejo de utilização de uma outra técnica de gravura (relevo) e de um outro tipo de linguagem no trabalho (figura 8). O início de confecção das cópias exigiu um grande esforço físico e empenho emocional, pois ocorreram durante o mês de janeiro de 2014, durante um verão de temperaturas elevadas, na casa dos cinquenta graus, que me faziam sentir como se estivesse pagando uma promessa por alguma graça recebida (a revelação da imagem). A escolha de duas cores para compor a imagem em sua frente e uma única cor para o seu verso, reforçam a utilização do colorido e do preto e branco em gravuras no decorrer das épocas. O preto no verso representa o passado, o tradicional e o colorido em sua frente o mais moderno. O tradicional é o literal e o moderno é o gráfico. As tintas serigráficas escolhidas foram nas cores amarelo ouro, que infelizmente é muito diferente do amarelo ouro desejado para remeter ao sagrado das iluminuras bizantinas porém o único disponível no mercado de tintas serigráficas na época e vermelho intenso para remeter a paixão que pode ser tanto de ordem sagrada e espiritualizada como também secular e irracional. O complemento ao nome do trabalho: Os Ex-Votos, obedeceu a ideia de graça recebida (a revelação/descoberta da imagem) e a compreensão de que a produção das estampas foi similar ao pagamento de uma promessa através de um sacrifício – produção durante um calor sobre-humano – pela graça obtida: Não há religião sem separação, mas toda a separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso. O dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício: por meio de uma série de rituais minuciosos, diversos segundo a variedade das culturas, que Hubert e Mauss pacientemente inventariaram, o sacrifício sanciona em cada caso a passagem de alguma coisa do profano para o sagrado, da esfera humana à divina. Mas aquilo que foi ritualmente separado pode ser restituído pelo rito à esfera profana. A profanação é o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado e divino. (AGAMBEN, 2009, p. 45)

Por meio da minha profanação, através do meu contradispositivo, eu procuro restituir ao uso comum aquilo que o rito (o dispositivo) objetivado pelo mercado de arte através dos congressos e encontros internacionais de artistas e uma


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compreensão benjaminiana de originalidade haviam tornado sagrado e alienado do convívio direto do ser humano. 3.2. A imagem em campo Após terminar a confecção das estampas, solicitei por e-mail à diretoria da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde também sou aluno, a possibilidade de disponibilização de um pequeno espaço para colocar as cópias a disposição gratuita do público. Depois de uma semana, recebi a autorização para pôr as estampas na entrada da biblioteca da escola, em uma mesa entre folhetos informativos de espetáculos, cursos e etc. e sob a qual se encontram arquivadas publicações variadas (figura 9).

Figura 9: Gravuras dispostas sobre mesa na biblioteca da EAV.

Se analisarmos a disposição do trabalho tão próxima a informações de cunho visual e literário, poderíamos argumentar que ele se torna invisível e ao mesmo tempo visível dependendo do ângulo de análise escolhido. Invisível por estar entre informações de diversos formatos mas visualizável devido a seu tamanho diferenciado dos demais (figura 9).


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Sem assinatura e edição ele poderia não ser identificado imediatamente como uma gravura mas apenas como um poster, um objeto de comunicação transmissor de informações. Porém que poster seria esse que não cumpre sua natureza utilitária? Que não foi objetivo com a mensagem que desejou transmitir? Desse modo percebemos que as estampas estão mais próximas em seu formato de uma linguagem artística do que de uma linguagem comunicativa. Como não perceber certa potência perene? Pois sua visualidade é fruto de uma sintonia apenas possível por um estar mais aberto e menos automático no cotidiano. Por um estado tão calmo e receptivo quanto aquele descrito por Walter Benjamin quando explicou o seu conceito de aura. Contudo ainda há aqui a percepção de que mesmo quando não se deseja seguir as regras estabelecidas por um dispositivo e ao se criar outras contrárias a essas e que são entendidas como um contradispositivo porque visa religar o homem com aquilo que ele perdeu: o contato manual, a experiência não direcionada por um conjunto de regras qualquer etc. Ao continuar seguindo durante algum tempo o contradispositivo criado, esse pode vir a se tornar um novo parâmetro dentro de um sistema. E se isso ocorrer, surge a pergunta: ele continuaria a ser compreendido como um contradispositivo? Ou passaria a ser um dispositivo tão direcionador quanto o benjaminiano e outros criados ao longo dos anos pelo mercado de arte?

Figura 10: Uma jovem interessada no trabalho exposto na biblioteca.


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Coração 01: Sem um único instrumento científico, o príncipe Siddhartha sentou-se sobre o chão coberto de capim kusha, debaixo de uma árvore ficus religiosa para investigar a natureza humana. Após um longo período de contemplação, ele chegou à compreensão de que todas as formas, inclusive nossa carne e ossos, assim como todas as nossas emoções e todas as nossas percepções, são compostas: são o produto da junção de duas ou mais coisas. Quando dois ou mais componentes se juntam, surge um novo fenômeno: pregos e madeira se transformam numa mesa; água e folhas se transformam em chá; medo, devoção e um salvador se transformam em Deus. O produto final não tem existência independente de suas partes. Dzongsar Jamyang Khyentse


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Coração 02: Ex-voto Na tarde clara de um domingo quente, surpreendi-me Intestinos urgentes, ânsia de vômito, choro Desejo de raspar a cabeça e me por nua no centro da minha vida E uivar até me secarem os ossos Que queres que eu faça Deus? Quando parei de chorar, o homem que me aguardava disse-me: Você é muito sensível, por isso tem falta de ar! Chorei de novo porque era verdade e era também mentira, sendo só meio consolo Respira fundo, insistiu! Joga água fria no rosto, vamos dar uma volta, é psicológico Que ex-voto levo à Aparecida se não tenho doença e só lhe peço a cura? Minha amiga devota se tornou budista. Torço para que se desiluda e volte a rezar comigo as orações católicas. Eu nunca ia ser budista! Por medo de não sofrer, por medo de ficar zen Existe santo alegre ou são os biógrafos que os põem assim felizes como bobos? Minas tem coisas terríveis. A serra da piedade me transtorna. Em meio a tanta rocha de tão imediata beleza, edificações geridas pelo inferno, pelo descriador do mundo. O menino não consegue mais, vai morrer, sem força para sugar a corda de carne preta do que seria um seio, agora às moscas. Meu coração é bom mas não aceita que o seja. O homem me presenteia. Porque tanto recebo quando seria justo mandarem-me à solitária? Palavras não, eu disse. Eu só aceito chorar! Porque então limpei os olhos quando avistei roseiras e mais o que não queria, de jeito nenhum queria aquela hora, o poema, meu ex-voto. Não a forma do que é doente, mas do que é são em mim. E rejeito e rejeito premida pela mesma força do que trabalha contra a beleza das rochas. Me imploram amor Deus e o mundo. Sou pois mais rica que os dois. Só eu posso dizer a pedra: És bela até a aflição! O mesmo que dizer a ele: Sois belo, belo, sois belo. Quase entendo a razão da minha falta de ar Ao escolher palavras com que narrar minha angústia, eu já respiro melhor. A uns, Deus os quer doentes, a outros quer escrevendo. Adélia Prado


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4. Há alguma resposta? ou Considerações Finais Obtive de alguns colegas artistas e não artistas com quem estudei e que frequentam a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, imagens de interferências feitas sobre as estampas que os mesmos obtiveram na biblioteca do Parque Lage (figura 8 e figura 9). É a partir de duas dessas imagens-resposta recebidas desses colegas que eu responderei as seguintes questões: • Quais foram as angústias sobre o resultado do trabalho e de seu processo? • Há um resultado advindo do trabalho? • A ideia de dispositivo é mantida quando o trabalho chega ao público?

Figura 11: Interferência nº 01 sobre Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos


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Figura 12: Interferência nº 02 sobre Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos

4.1. Respostas Obter uma resposta de um trabalho complexo como Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos é uma tarefa hercúlea. Muitas foram as angústias sentidas durante o seu processo e ainda sentidas enquanto seus resultados continuam a se apresentar paulatinamente para mim. O primeiro tópico-pergunta pode ser correlacionado com o segundo e o segundo também ao terceiro. Conforme colocado perfeitamente por Marcel Duchamp, o trabalho do artista é realmente um trabalho mediúnico. Durante todo o processo de criação do trabalho eu precisei eclipsar as ideias que eram apenas racionalizadas e que por essa razão acabavam aparentemente não funcionar. Precisei também acreditar no que chamamos de intuição e que essa terminou se revelando mais objetiva do que as ideias aparentemente concebidas em um estado desperto da mente.


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Apenas ao me submeter a um tatear que fui capaz de seguir integralmente ao contradispositivo criado a princípio e que foram as diretrizes que direcionaram a realização deste trabalho. Os resultados são interferências públicas e únicas sobre a imagem, mas há também quem escolheu levar o mesmo para casa e guardá-lo em uma gaveta ou emuldurá-lo e pôr como enfeite em um cômodo ou qualquer outro ambiente. É natural a disparidade de respostas e consequentemente a angústia que eles me causam como criador (ou melhor seria dizer propositor?) do trabalho. Isso é fruto de uma perda de controle sobre o mesmo. E esta perda de controle não deixa de ser também uma não edição e direcionamento da gravura. A gravura em Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos está mais aberta a se tornar livre e a ser experienciada a quem assim se permitir quando em contato com ela. A omissão proposital de uma assinatura e de uma numeração, tanto quanto a não exclusão de cópias que não fossem rigorosamente similares às suas coirmãs acabaram por profanar o trabalho dos dispositivos rituais adotados pelo mercado de arte e que poderiam estabelecer as mesmas como originais, autenticas, possuidora de uma aura. Enfim, um mínimo julgamento de valor de obra de arte. Ao escolher um caminho diverso, consequentemente elas se tornaram livres e mais próximas, entretanto não alienadas. Tornaram-se dispostas a receber respostas, qualquer interferência, através do convite formalizado em um simples carimbo em seu verso: não me deixe intacto. Angustiante para um artista-propositor é ser visualizado ou ignorado como o trabalho é, ser achincalhado ou ver reconhecido o fruto de suas considerações e esforço. Assim, o resultado do trabalho pode ser também entendido como um crescimento desse mesmo artista-propositor para desdobramento em trabalhos futuros. Podemos igualmente dizer que a ideia de dispositivo ou se preferirem de contradispositivo é mantida quando chega ao publico tanto quanto não é mantida através dessa mesma visualidade ou indiferença que se materializa. Dessa maneira, faço um paralelo da duplicidade dos coração espelhados (tanto quanto do uso das cores e das técnicas na estampa utilizadas) com uma possível resposta positiva e outra negativa do trabalho. Assim como nas leituras que o pautaram essa tensão entre uma coisa e outra sempre existiu, nele também não existe uma resposta única mas ramificada. Ele é original ainda sendo indefinidamente multiplicado, a qualquer instante. Se sua matriz


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serigrafica se destruir, ela poderá dar origem a outra exatamente igual, pois foi finalizada durante o processo de criação de sua matriz através de uma ferramenta digital, do uso de um computador pessoal, que utilizou o escaner de trabalhos manuais anteriores para criar o que agora consideramos como original: a matriz. Ele não é original justamente por ser fruto de uma série de retalhos de pensamentos e técnicas. Sujeito a reprodução indefinidamente e sem carregar nenhum símbolo tradicional de autenticidade (assinatura, numeração). E também por não excluir de seu conjunto as pequenas imperfeições surgidas no momento em que eram confeccionadas. Mas tais colocações correspondem justamente aos contradispositivos que o originaram e portanto, corresponde ao que se pretendia. Logo são um tipo diferente de imagem gráfica, pensadas para não obedecerem as convenções e é isso que as tornam autênticas.


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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS AGAMBEN, Giorgio. O Que É O Contemporâneo? e Outros Ensaios. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Editora Argos, 2009. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução de: Denise Bottmann e Frederico Carotti. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010. BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica. Tradução de: Sérgio Paulo Rouanet. Magia, Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Volume 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp, Engenheiro do Tempo Perdido. Tradução de António Rodrigues. Lisboa: Assírio & Alvim Editora, 1990. CATAFAL, Jordi; OLIVA, Clara. A Gravura. Lisboa: Editora Editorial Estampa, 2003.


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