REVISTA ORIENTE OCIDENTE - IIM MACAU - N. 37 2020

Page 45

O Ocidente profundo e o Oriente (re)emergente na Era da confrontação geopolítica

veram um processo de globalização sem freios, objetivando derrubar barreiras ao comércio de bens e serviços e a propagar a ideologia da redução do papel indutor do Estado no desenvolvimento nacional – sem reduzir, contudo, ao contrário, ampliando, seu próprio Poder nacional. No plano do poder duro, as eras Bush e Clinton trataram de consolidar posições preparatórias ao que alguns denominariam como novo século americano, ou seja, ao prolongamento, por um novo periodo histórico, da hegemonia sistêmica norte-americana emergida ainda ao final da primeira guerra mundial, com o declínio inglês e a troca de guarda no sistema internacional. A primeira Guerra do Golfo, em 1990-1991, a inaugurar o pós guerra fria, marcaria também o início da desestabilização de regimes laicos e seculares no Oriente Médio, em linha com o idealismo cosmopolita-liberal que embalava o Ocidente anglo-saxão e seus aliados europeus por impor cópia de seus sistemas políticos e econômico a todo o globo. Os genocidios de Ruanda em 1994 e em Srebrenica em 1995, intensificaram essa cruzada, caracterizando uma espécie de imperialismo humanitário durante o periodo de Bill Clinton. Contudo, o periodo expansivo da pax americana, podemos dizer, após seu auge na última década do século XX, sofreu duas contestações de vulto em episódios ocorridos em 2001 e em 2007-2008. A virada de século, assim, trouxe as primeiras consequências de vulto à “eternização” pretendida na vitória anglo-saxã na guerra fria. Os atentados de 11 de setembro de 2001 no coração dos EUA acabaram por

marcar uma reorientação da geoestratégia da superpotência para o combate ao terrorismo, intensificando assim, sua campanha de desestabilização de governos no vasto cinturão geográfico que vai do Norte da África às bordas da China a Oeste. A crise financeira de 2007-2008, eclodida ao final da presidência de George W. Bush impactaria fortemente o início do periodo de Barack Obama, cuja eleição, aliás, teria dado novo alento à narrativa cosmopolita-liberal. Contudo, a gravíssima crise financeira, produto da financeirização sistêmica representada pelo crescente hiato entre riqueza fictícia e produção material, demonstrou-se como uma segunda grande contestação à euforia liberal inaugurada ao terminio da guerra fria. Nesse mesmo periodo, mais precisamente em 2008, outro episódio de vulto, a chamada guerra da Georgia, marca o início da reação da Rússia à tentativa de cerco e aniquilamento que seguiu ao fim da URSS. Como se lê em Brzezinski e é sugerida por outros estrategistas norteamericanos, a balcanização do território russo e de sua área geográfica de influência seria o golpe final na grande Rússia. Aqui é preciso compreender uma questão tão profunda quanto perene no pensamento geoestratégico estadunidense. Desde Mackinder, passando por Spykman e seu discipulo Kennan, até Bzezinski, o receio de expurgo da presença estadunidense na Eurásia por uma coalizão de potências hostis e o consequente isolamento insular dos Estados Unidos1 constitui o núcleo da preocupação do pensamento geopolítico clássico anglo-saxão.

Não por acaso, imediatamente ao final da guerra fria, em 1992, o documento Defense Guidance Planning anuncia ser o impedimento à conformação de grandes potências potencialmente hostis, objeto geoestratégico prioritário no periodo que se abria após a vitória na guerra fria. Não por acaso: desde os inssucessos das invasões holandesas e francesas no Brasil colônia ainda no século XVII, passando por Napoleão e depois de Hitler no assédio à grande Rússia, e depois na impossibilidade do agressor japonês efetivamente ocupar a China na segunda guerra, a experiência geoestratégica demonstra que grandes massas territoriais, com grande população, não possibilitam domínio e ocupação colonial convencional. Por isso, dividir e fraturar grandes massas territoriais foi objetivo de grandes potencias rivais ontem, hoje e também o será amanhã. A segunda década do século XX Efetivamente, as duas grandes contestações à pax americana na primeira década do novo século (2001 e 2007/2008), prenunciariam as mudanças de vulto que seguiriam na segunda década do século XXI. Desde 2006, o surgimento de um fórum de dialogo entre quatro “países-monstro” (monster countries) – para utilizar de consagrada expressão de George Kennan –, os BRICs, inicialmente de uma forma (relativamente) discreta à margem da Assembléia Geral da ONU, soaria um sinal de alerta ao dito acima quanto a prioridade geoestratégica da grande superpotência vitoriosa na guerra fria.

_________________ 1

E antes, da Inglaterra em relação ao continente europeu.

ORIENTEOCIDENTE

43


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.