B R I N Q U E D O

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LABIRINTO BRINQUEDO BRINCADEIRA

O uso da cidade pela criança como crítica ao ideário moderno


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BRINQUEDO

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BRINQUEDO “Assim como o mundo da percepção infantil está impregnado em toda parte pelos vestígios da geração mais velha, com os quais as crianças se defrontam, assim também ocorrem com seus jogos. (...) O brinquedo, mesmo quando não imita os instrumentos dos adultos, é confronto, e, na verdade, não tanto da criança com os adultos, mas destes com a criança. Pois que senão o adulto fornece primeiramente à criança os seus brinquedos? E, embora reste a ela uma certa liberdade em aceitar ou recusar as coisas, não poucos dos mais antigos brinquedos (bola, arco, roda de penas, pipa) terão sido de certa forma impostos à criança como objetos de culto, os quais só mais tarde, e certamente graças à força da imaginação infantil, transformaram-se em brinquedos.” (BENJAMIN, 1928)

É dos restos dos materiais utilizados nas produções que os adultos criavam os objetos que iam parar nas mãos das crianças. A construção do brincar dá-se a partir do detrito, do resto. Buscar uma origem para uma história do brinquedo seria buscar diferentes origens da própria cultura do homem, nos diversos lugares e tempos, suas simbologias, nos seus diferentes graus de desenvolvimento. Não é de interesse aqui, encontrar essas origens. Os brinquedos que hoje são aperfeiçoados em fábricas especializadas, descendem da indústria doméstica: das oficinas de entalhadores em madeira, de fundidores de estanho etc. Por conseguinte, a venda ou, pelo menos, a distribuição de brinquedos não era, no início, função de comerciantes específicos. Assim como se podiam encontrar animais talhados em madeira com o marceneiro, assim também soldadinhos de chumbo com o caldeeiro, figuras de doce com o confeiteiro, bonecas de cera com o fabricante de velas. Na segunda metade do séc. XIX, percebe-se como os brinquedos se tornam maiores, vão perdendo aos poucos o elemento discreto, minúsculo, sonhador. Quanto mais a industrialização

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BRINQUEDO avança, mais o brinquedo se tornando cada vez mais estranho às crianças. Afinal, é natural que ela compreenda muito melhor um objeto produzido por técnicas primitivas do que um outro que se origina de um método industrial complicado. Esta “falsa simplicidade dos brinquedos modernos” subtrai a possibilidade de reconstruir o vínculo com o primitivo a questão da técnica e do material, na medida em que ela possa imaginar como esses brinquedos são feitos, numa relação viva com suas coisas. Segundo Walter Benjamin, neste processo, os adultos estão na verdade interpretando a seu modo a sensibilidade infantil. “Madeira, ossos, tecidos, argila, representam nesse microcosmo os materiais mais importantes, e todos eles já eram utilizados em tempos patriarcais, quando o brinquedo era ainda a peça do processo de produção que ligava pais e filhos.” (BENJAMIN, 1928) Os instrumentos de brincar arcaicos - bola, arco, roda de penas, pipa - autênticos brinquedos, “tanto mais autênticos quanto menos o parecem ao adulto”, seriam mais atraentes à criança, pois “quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto mais se desviam na brincadeira viva.” Ao fazer uma classificação filosófica do brinquedo, Benjamin escreve que enquanto vigorava um naturalismo estúpido, não havia nenhuma perspectiva de fazer valer o verdadeiro rosto da criança que brinca, num equívoco básico, que acreditava ser a brincadeira da criança determinada pelo conteúdo imaginário do brinquedo, quando, na verdade, seria o contrário: “A criança quer puxar alguma coisa e tornar-se cavalo, quer brincar com areia e tornar-se pedreiro, quer esconder-se e tornar-se bandido ou guarda.” (BENJAMIN, 1928) Walter Benjamin, judeu nascido em Berlim em 1892, que morreu em 1940, na iminência da invasão de Paris pelas tropas alemãs, é considerado um dos grandes intelectuais da modernidade. Na sua obra sobre uma experiência sombria de História, os seus escritos sobre a criança, juventude e educação (entre 1913 e 1932) constituem momentos luminosos. Este colecionador de

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Construir a cidade construindo blocos

Ladislav Sutnar, americano (1940-1943) De acordo com seu compromisso com os princípios modernistas, Sutnar acreditava no poder cognitivo de uma linguagem visual enraizada em formas e cores elementares. A construção de cidades inteiras com blocos, acreditava ele, seria dar às crianças uma consciência de forma e estrutura que faça referência direta aos volumes simples e geométricas de arquitetura funcionalista, ao mesmo tempo, dando uma sensação de cidade moderna. Ele descreveu esta construção não-verbal, objeto aula, ensinando através da brincadeira, como “vitaminas mentais necessárias para o desenvolvimento direito de uma criança.” Os conjuntos de protótipo visto nas fotos não foram postas em plena produção.


Da coleção de Walter Benjamin: boneca de palha

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brinquedos, com gosto por uma literatura de tendência “popular” e pedagógica, busca nos temas lúdicos e, aparentemente periféricos, ver a criança como indivíduo social, que vê o mundo com seus próprios olhos; não a toma de maneira romântica ou ingênua, mas a entende na história, inserida numa classe social, parte da cultura e produzindo cultura. O brinquedo e o brincar traduzem, nos escritos benjaminianos, o relacionamento entre o adulto e a criança. Enquanto o brinquedo, ao longo da história, representa a proposta pedagógica do educador, o brincar age como resposta da criança. E é na imprevisibilidade da sua reação que a criança preserva a sua autonomia e é, por isso, que em oposição à pedagogia utilitária, o pensador defende a ideia de garantia às crianças da plenitude da sua infância.

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BRINQUEDO “Se as crianças devem tornar-se um dia sujeitos completos, então não se pode esconder delas nada que seja humano. A sua inocência já providencia espontaneamente todas as restriço~es, e mais tarde, quando estas começarem a ampliar-se aos poucos, o elemento novo encontrará personalidades já preparadas. Que os pequeninos riam de tudo, até dos reversos da vida, isso é precisamente a magnífica expansão de uma alegria radiante sobre todas as coisas, mesmo sobre as zonas mais indignamentes sombrias e, por isso, tão tristes.” (MYNONA. In. BENJAMIN, 1928)

Em sua obra, Benjamin vê nas crianças futuros libertadores. Elas não formam, segundo ele, uma comunidade isolada, fazem parte da sociedade, do povo, das classes sociais. São indivíduos sociais que vêem o mundo com os próprios olhos e que formam, ao longo do tempo, sua própria concepção de mundo. O “gesto adocicado”, que corresponde não à criança, mas às concepções distorcidas que se tem dela, muitas vezes contribui para o preconceito de que as crianças vivem uma realidade tão alheia à do adulto, que é preciso ser especialmente inventivo na produção de entretenimento delas. “Jamais são os adultos que executam a correção mais eficaz dos brinquedos - sejam eles pedagogos, fabricantes ou literatos -, mas as crianças mesmas, no próprio ato de brincar. Uma vez extraviada, quebrada e consertada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças.” (BENJAMIN, 1928)

O pensador alemão, autor de Infância em Berlim por volta de 1900, faz ainda um retorno à infância do passado, mas onde se pode perceber os primeiros sinais de um futuro que está por vir. Essas pequenas crônicas são cruzamentos da suas memórias de infância com a história corrente. Benjamin acreditava no papel da infância no que se refere à possibilidade de trazer à tona uma história que nos é íntima e pessoal. Segundo ele, brincar é ressignificar, criar um mundo próprio, libertar-se, colocar-se em outro

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lugar, em outro tempo, teatralizar, virar ao contrário, fazer sempre de novo, não ser útil, ser incerto. Sobretudo, é importante destacar que está na brincadeira a origem de nossos hábitos. Por isso, pode-se ver no ontem o amanhã. Nada mais errôneo que dizer que o brinquedo é criação da criança ou para a criança. Até o século XIX a boneca era apreciada apenas em trages de adultos; as crianças em fraldas ou o bebê, tal como hoje em dia domina o mercado de brinquedos, não existia até então. Entretanto, para a criança que brinca, a sua boneca é ora grande, ora pequena, e certamente pequena com mais frequência, pois se trata de um ser subordinado. “Demorou muito tempo até que se desse conta que as crianças não são homens ou mulheres em dimenso~es reduzidas - para não falar do tempo que levou até que essa consciência se impusesse também em relação às bonecas. É sabido que mesmo as roupas infantis só muito tardiamente se emanciparam das adultas. Foi o séculos XIX que levou isso a cabo.” (BENJAMIN, 1928)

A essência do brinquedo e o brincar como ato criativo tem perdido espaço na sociedade e nas cidades contemporâneas. É uma característica da nossa época o ato de “museificar” esses objetos, como se eles já não fizessem parte da rotina diária das criança. Benjamin já escrevia sobre essas exposições em 1928 a partir das suas visitas ao Museu Alemão em Munique, ao Museu do Brinquedo em Moscou, ou à seção de brinquedos do Musée des Arts Décoratifs em Paris. Hoje, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) possui um dos maiores acervos de peças do design moderno infantil, apresentando visões individuais e coletivas para o mundo material das crianças. Brinquedos e livros, parques infantis e escolas, propaganda política e terapêuticas, produtos de todo o mundo são reunidos numa história internacional de design moderno. Esses brinquedos, cristalizados, perdem a sua essência: a necessidade da ação da criança. Sem o movimento do brincar, o ato criativo é destruído.


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Roupa para brincar

Projeto para uma capa da revista alemã Zijeme Ladislav Sutnar (1931) A roupa de brincar vestido por um menino na revista da Checoslováquia “Zijeme” (Vivemos) significava um espírito de modernização e progresso. Reformadores do modo de vestir destacaram a racionalidade e a versatilidade das roupas para brincar e camisetas para meninos e meninas como adequados à vida moderna. Vestuário, como a arquitetura, argumentou-se, poderia moldar novos modos de comportamento e contribuir para a formação de uma nova sociedade “funcional”.


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BRINQUEDO “’Já não se tem mais isso’, ouve-se com frequência o adulto dizer ao avistar brinquedos antigos. Na maior parte das vezes isso é mera impressão dele, já que se tornou indiferente a essas mesmas coisas que por todo canto chamam a atenção da criança. (...) Não se trata de uma regressão maciça à vida infantil quando o adulto se vê tomado por um tal ímpeto de brincar. Não há dúvida que brincar significa sempre libertação. Rodeados por um mundo de gigantes, as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo próprio; mas o adulto, que se vê acoçado por uma realidade ameaçadora, sem perspectiva de solução, liberta-se dos horrores do real mediante a sua reprodução miniaturizada. A banalização de uma existência insuportável contribui consideravelmente para o crescente interesse que jogos e livros infantis passaram a despertar após o final da guerra. Nem todos os novos estímulos direcionados então à indústria de brinquedos foram-lhe úteis. A melindrosa silhueta das figuras laqueadas que, entre tantos produtos antigos, representam a modernidade, não constitui propriamente nenhuma vantagem para esta; tais figuras caracterizam antes aquilo que o adulto gosta de conceber como brinquedo do que as exigências da crianças em relação ao brinquedo. São coisas meramente curiosas. Aqui são úteis apenas para fins de comparação, num quarto de criança não servem para nada.” (BENJAMIN, 1928)

Mas o gesto de reconhecimento do mundo, da criança, é o brincar. Interferir nesse processo, significaria comprometer o seu desenvolvimento e no adulto que virá a ser. Pensar o brinquedo hoje, como criação da criança, não tão somente como criação para a criança e o brincar numa perspectiva não-adulta, sob o ponto de vista da criação e não da imitação, seria talvez a garantia da “plenitude da infância”, tão questionada por Benjamin.

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BRINQUEDO O brinquedo, para deixar de sê-lo e então trasformar-se em brincadeira, necessita, do movimento da criança. Brincar significa sair deliberadamente das regras e inventar seus próprios códigos, libertar a atividade criativa das pressões socioculturais, projetar ações estéticas e revolucionárias que ajam contra o controle social. Mas onde estão as crianças e esses movimentos na cidade planejada?

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Carlos Drummond de Andrade (1966): A cidade sem meninos

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1 A CIDADE SEM MENINOS

Esta crônica está no livro “Cadeira de Balanço”, de Carlos Drummond de Andrade. Podia estar neste trabalho por mera admiração pelo escritor. Mas não por um acaso, Drummond, além de poeta e cronista, foi uma figura importante na demarcação do cenário moderno no Brasil entre os anos 1920-1930. O ano de 2002 foi marcado pelas comemorações e em homenagens aos centenários de diversos brasileiros que, durante o século XX, contribuíram de maneira fundamental em diversos campos da cultura brasileira. Na política; 27


Drummond entre os pilotis do Palรกcio Capanema em 1973

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BRINQUEDO o Presidente Juscelino Kubitschek, na história e na crítica; Sérgio Buarque de Holanda, na literatura; e o poeta Carlos Drummond de Andrade. No campo da arquitetura e urbanismo as celebrações neste mesmo ano, ocorreram em decorrência dos cem anos de nascimento do arquiteto e urbanista Lúcio Costa. Mas as ligações entre Carlos Drummond e a arquitetura e urbanismo modernos no Brasil não se restringem às concordâncias de datas. A sede do Ministério da Educação (hoje chamado Palácio Capanema), foi exemplar típico e fecundante da arquitetura moderna brasileira e, segundo o próprio Drummond, uma “casa que se tornou famosa no mundo inteiro como expressão de uma estética renovadora”. É preciso ter ideia dos personagens e das ações envolvidas nos bastidores da construção desse edifício.

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BRINQUEDO Foi em 1935, quando houve a realização do concurso para a escolha do projeto arquitetônico para a nova sede do Ministério da Educação, Cultura e Saúde. A proposta vencedora foi de Archimedes Memória, mas o projeto não foi executado. Como naquele momento predominava a influência “modernista”, em circunstância deliberada por Drummond, então chefe de gabinete do ministério, o ministro Gustavo Capanema, convidou Lucio Costa para criar o projeto para a sede do ministério, apostando numa nova estética arquitetônica. Lúcio Costa achou que era uma oportunidade tão importante de estabelecer novos princípios de construção no país, e de organização das cidades, que formou um grupo de arquitetos, dentro dos quais Affonso Reidy, Jorge Moreira, Carlos Leão, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer, que era o caçula da turma. Fizeram o projeto e, o próprio Lúcio Costa, achando que o projeto não estava maduro o suficiente para ser implantado, pediu a vinda de Le Corbusier como consultor. Foi assim que o prédio nasceu e se tornou um marco importante em termos mundiais, e foi assim que nasceu também grande parte da influência da arquitetura e do urbanismo moderno - e monumental - no Brasil. Nesse período, a escola de arquitetura carioca se firma com a construção do edifício do Ministério da Educação e chega à sua consagração e apogeu com a construção de Brasília. Lúcio Costa venceu o concurso da nova capital do país em 1956 apresentando o plano piloto, feito à mão, e o relatório, com 24 folhas de textos e desenhos. Carlos Drummond, parceiro no antigo SPHAN, foi quem revisou esse texto, corrigindo, sem introduzir mudanças de estilo, conforme demonstram as anotações do manuscrito. O 31


Lúcio Costa (1963): Plano Piloto de Brasília

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BRINQUEDO poeta, um dos primeiros a ver os traços da nova capital, comentou “era rabisco e pulsava”.

Carlos Drummond também fez parte do grupo de intelectuais que, a pedido do Ministro de Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em 1936 participou da criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) - atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. Este grupo é o mesmo que participa da implantação da arquitetura e do urbanismo modernista no Brasil, que incluía, além de Drummond, Afonso A. de Melo Franco, Prudente de Morais Neto, Rodrigo Melo Franco e Lúcio Costa. Desta forma os conservacionistas eram também modernistas no Brasil, não havendo disputas ou separação entre estas duas práticas urbanísticas e arquitetônicas. A prática patrimonial brasileira considerava como representativo da cidade antiga e, portanto da identidade nacional, 33


No urbanismo, a noção de tábula rasa como um posicionamento que inclui aço~es, projetos, tomadas de deciso~es, de ruptura em relação às experiências ou concepço~es anteriores, envolve o desejo de abrir espaço para a criação e destruição através da ruptura no que diz respeito a uma ordem existente. Sobre esse assunto, ver o caderno LABIRINTO, desta pesquisa. 1

J. L. Sert, membro fundador do GATCPAC (Grup d’Arquitectes i Tècnics Catalans pel Progrés de l’Arquitectura Contemporànea) e vice-presidente da primeira comissão dos CIAM, publicou, em 1942, a sua versão da Carta de Atenas. A diferença desta, para a versão francesa estava basicamente na leitura que Sert fazia dos problemas das cidades, sobretudo através das imagens das cidades modernas norte-americanas, já em crise. Sobre esse assunto, ver o caderno LABIRINTO, desta pesquisa. 2

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BRINQUEDO apenas os edifícios de estilo colonial e barroco. Assim, a cidade antiga podia ser demolida desde que estes exemplares ou monumentos históricos fossem preservados, e ao lado edificados exemplares de arquitetura moderna. Há, portanto, um paralelismo entre as demolições ocorridas nas cidades brasileiras, decorrentes das idéias do urbanismo tábula rasa1 e a criação da instituição de salvaguarda da cidade antiga. Fazendo um paralelo, assim como as imagens de J.L. Sert2 no seu livro Can our cities survive? [Poderão as nossas cidades sobreviver?] (1942), já se revelam como uma crítica à Carta de Atenas dos CIAM, também as palavras de Drummond na crônica “A cidade sem meninos” em 1966, parecem também apontar uma cidade com ares de moderno em crise. Apenas seis anos após a inauguração de Brasília e já se apura um vazio nessas cidades, “um vazio de que já desconfiávamos: não há mais crianças no centro da cidade.” A crítica se dá, necessariamente sobre o centro da cidade, local que, a partir da setorização de usos, passou a abrigar, prioritariamente, espaços de trabalho na cidade: “escritórios, repartições, lojas, depósitos de atacado, [onde] não residem obviamente crianças nem adultos. “Nessa parte da cidade a vida acaba às 19 horas. Homens e mulheres fogem literalmente para bairros distantes, como se houvesse estourado a revolução ou a peste nos locais de trabalho. Não estourou nada; é a noite. É a noite sem conversa de casal, sem risada retardatária, sem choro de menino com dor de barriga, barulhinhos domésticos de copo d’água, móvel arrastado, pigarro, descarga no banheiro. Noite de casas mortas, elas que se agitam tan-

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BRINQUEDO to de dia. Nos bairros que bem ou mal vivem pessoas, o sono das casas tem respiração suave, ritmo confortador, a vida repousa lá dentro. No centro é lúgubre.” (ANDRADE, 1966)

Como os ornamentos - assim as crianças também são chamadas - que desaparecem da arquitetura moderna, ou como as “desfunções” que sumiram da cidade, também atos corriqueiros, como o de se debruçar na janela para espiar a rua; ou mesmo se lembrar de como é brincar nas ruas. Já não há espaço para os meninos na rua, eles se tornaram um bem excessivo e incômodo, por estarem sempre desvirtuando as imposições da cidade. “’Aqui outrora brincaram meninos...’ A cidade multiplica-se, a casa cede lugar ao edifício, o edifício vira constelação de escritórios, o menino fica sendo excedente incômodo... Onde está o menino, para onde foi o menino? É assim que morrem as cidades.” (ANDRADE, 1966)

Drummond nos fala da ausência de pessoas reais na cidade e, sobretudo, daquilo que faz uma cidade viva: as relações e conflitos inerentes a essa presença. A crônica, vindo de alguém tão próximo aos arquitetos e urbanistas modernos, aponta para uma necessidade de revisão desta - já não tão nova - abordagem do planejamento urbano, do racionalismo, da cidade zoneada. Em seu lugar, ficava o questionamento para uma arquitetura de desdobramento das relações espaciais, observadas nas brincadeiras infantis pela cidade. Quando grande parte do questionamento que se faz hoje, o da não experimentação das cidades pelas pessoas, se faz por conta da violência urbana, da imagem da cidade que se tornou violentamente inacessível às bicicletas e às crianças, Francesco Tonucci, psicopedagogo italiano vai em defesa 37


Mapa do Arroz de Baixo, Miguel Calmon-Ba

O “Modulor” foi um sistema de proporço~es elaborado e largamente utilizado pelo arquiteto Le Corbusier. As medidas modulares foram referenciadas nas proporço~es de um indivíduo imaginário (inicialmente com 1,75 m e mais tarde com 1,83 m de altura). Existem dois “modulores”, o “modulor” de 1,75 conhecido como versão azul e o “modulor” com 1,83, versão vermelha. Eles foram criados a a partir de pesquisas de alturas médias e indivíduos de diferentes lugares da Terra. 3

A partir da década de 60 surgem muitos questionamentos sobre os direitos sociais e estudos sobre as diferentes populaço~es. É nesse contexto que o arquiteto inglês Selwyn Goldsmith (19322011) se torna um dos primeiros autores a introduzir nas medidas antropométricas as variantes de sexo, idade e capacidades das pessoas.

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BRINQUEDO destas, ao afirmar que a cidade é perigosa porque não existem crianças nas ruas, e por isso está abandonada. “Estamos vivendo uma fábula às avessas: se até há pouco tempo havia um papel desempenhado no imaginário infantil pelo bosque - por excelência o lugar obscuro, indecifrável e impenetrável, em que se escondiam coisas e seres terríveis -, esse papel passa a ser desempenhado pela própria cidade, que costumava ser território aberto, dominável e mapeável” (TONUCCI, 2012. In: REGALDO, 2015)

Com pouco mais de um metro de altura, a cidade, definitivamente, não é feita para a criança. Por mais que tenha havido uma preocupação funcional em fazer uma cidade sob medida para o homem moderno, em nenhuma das imagens do Modulor3 corbusiano, ele chega a ser representando nas dimensões de uma criança4. A rua moderna, afinal, não é lugar de criança, a cidade é uma construção adulta e para adultos. Há algumas déca39


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BRINQUEDO das, contudo, crianças andavam à pé por aí, brincavam nas calçadas, corriam para pegar a bola do outro lado da rua. O que pode ser afirmado por simples observação é que as crianças andam cada vez menos, e muitas vezes isso acontece por falta de escolha. Entre aulas de natação e ballet, a rua, a praça ou o campinho transformam-se em espaços absolutamente abstratos entre um edifício e outro. As crianças da classe média brasileira, dificilmente tem a chance de voltar sozinhas para a casa, de se perder num território que não o seu. Há um elemento de liberdade nessa possibilidade de se perder, diretamente ligado à possibilidade de se orientar e, mais do que isso, de se encontrar. O que se perde, aqui, é a própria construção de territorialidade no adulto que ela irá se constituir. Resta a evidência de que vivenciar a rua, para a criança é se entender num lugar de fundamental socialização, trocas e percepções do outro e do espaço. A criança é a primeira a ser afetada por esse modelo de cidade violenta e segregada, já que a sua exclusão, a inviabilidade da sua participação ativa na cidade acontece, em diversos graus, nas diferentes camadas sociais e econômicas da cidade. As crianças mais pobres, entretanto, costumam ter mais contato com a rua, enquanto que o isolamento é mais intenso entre as classes mais altas, que ironicamente logo terão acesso e passarão a reproduzir o modelo a ela antes imposto. Justificada a ausência das crianças nas ruas pela violência, mal sabem os pais que o trânsito - dentro ou fora do carro - é a principal causa de morte de crianças de 1 a 14 anos no país. Foram cerca de 1.793 mortes no trânsito em 2011, segundo dados do DATASUS. Fernando Tonucci fala do paradigma da “cidade mal feita”, essa que passou a ser repro41


O movimento “Cidades Educadoras” começou em 1990, por ocasião do Primeiro Congresso Internacional de Cidades Educadoras, em Barcelona. Representaço~es de várias cidades levantaram o objetivo comum de trabalhar juntos em projetos e atividades para melhorar a qualidade de vida dos habitantes, a partir de sua participação ativa no uso e desenvolvimento da própria cidade e de acordo com o documento de princípios: Carta das Cidades Educadoras. 5

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BRINQUEDO duzida logo após as guerras do século XX, e que “são feitas para os carros. E, se são feitas para os carros, não são feitas para as crianças, nem para os idosos, nem para os descapacitados”. Ou, como costuma repetir Enrique Peñalosa, ex -prefeito de Bogotá, “uma cidade boa para crianças é uma cidade boa para todos.” Basta circular pela cidade, tentar andar pelas calçadas estreitas e esburacadas, ousar andar de bicicleta para perceber que as políticas públicas continuam a priorizar o automóvel nas cidades. É o isolamento espacial criado pelos urbanistas modernos, que promove essa desconexão que tenta romper com a experiência das ruas. Tonucci propõe uma cidade na qual a infância exerça uma cidadania ativa. Afinal de contas, como serão bons cidadãos os meninos que já não saem mais de casa? “É aqui onde faz falta atacar o paradoxo de que “os pais não os deixam sair porque a rua é perigosa”. Tonucci afirma que “a rua é perigosa porque não existem crianças na rua, estão abandonadas”. Se as vias só servem para o trânsito de carros, os carros não cuidam de nada. Mas se o espaço reservado aos carros passam a ser dos pedestres, esses se comunicam, se olham, pedem desculpas, chocam entre si e, “se existem crianças na rua, elas cuidam umas das outras e a rua se converte num espaço mais seguro e mais vivo.” Uma cidade feita para crianças não tem repercussões unicamente urbanísticas, mas também educativas. E não me refiro aqui às famosas Cidades Educadoras5. A cidade educadora não é só o museu, o teatro e as demais instituições. A rua também educa. E é este espaço que o professor utiliza para conduzir a criança até o museu, mas não pode ser pensado apenas como caminho, ele é tão educativo quan43


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BRINQUEDO to, mas passa uma outra educação, outro tipo de vivência, uma outra pedagogia. Se as crianças não vivem as próprias experiências na cidade, não podem viver a experiência da aventura, do descobrimento, da criação, e não terá nada a levar para a escola no dia seguinte. Para Tonucci, “uma boa escola precisa de crianças livres, que passam a tarde brincando.” Uma infância ativa será a protagonista da participação da cidade, seja em questões políticas ou do simples ato criativo. A rua é uma aula, um lugar onde se escreve. Não é apenas parte do caminho percorrido até a escola. A rua também ensina, através de elementos que nos fazem como sujeitos. É preciso analisar a rua como formadora de práticas, experiências, relações e materialidades que vão articulando uma forma de entender a cultura e de se entender como parte dela. Mas ao questionar para quem é feita - ou para quem deve ser feita - a cidade, a resposta nos leva a outro questionamento: como são educados os profissionais urbanos que farão essas cidades? O que era tensionado durante o começo do movimento moderno em arquitetura não era apenas um novo formato, mas sobretudo, um novo método de se fazer urbanismo. As disputas ocorreram, inclusive para se questionar esse método único, a partir da experimentação da cidade. É a partir da vivência, numa aproximação com outras disciplinas fora do campo do urbanismo, que o profissional arquiteto pode construir para si um pensamento, a partir do embate com a cidade real. Com efeito, pôr em crise as poucas certezas alcançadas na academia, permite que se abra a mente às possibilidades antes inexploradas, permitindo a ele reinventar tudo: a ideia que se tem de cidade, a definição que se tem de arte e de arquitetura, o lugar que se ocupa neste mundo. Ocorre a libertação de 45


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BRINQUEDO convicções postiças e começa-se a recordar que o espaço é uma fantástica invenção com a qual se pode brincar, como as crianças. Segundo o arquiteto e professor italiano Francesco Careri, para se conhecer esses “outros” espaços, é preciso saber brincar, sair deliberadamente de um sistema funcional-produtivo e entrar num sistema não funcional e improdutivo. É preciso aprender a perder tempo, a não buscar o caminho mais curto, a deixar-se conduzir pelos eventos. “Percebi que, nas faculdades de arquitetura, os estudantes - ou seja, a futura classe dirigente - sabem tudo de teoria urbana e de filósofos franceses, acham-se especialistas em cidades e em espaço público, mas, na verdade, nunca tiveram a experiência de jogar bola na rua, de encontrar-se com os amigos na praça, de fazer amor em um parque, de entrar ilegalmente numa ruína industrial, de atravessar uma favela, de parar para pedir uma informação a um transeunte. Que tipo de cidade poderão produzir essas pessoas que têm medo de caminhar?” (CARERI, 2013)

Um urbanismo que se diz “relacional” ou “participativo”, é feito de processos criativos que só podem realizar-se através do intercâmbio com o outro. Nessas situações, normalmente, atua-se de dois modos: envolve-se o outro nos próprios projetos para assegurar o seu consentimento ou então anula-se a própria criatividade, deixando a realização da obra inteiramente para o outro. O que deve se mostrar é sempre a coerência interna entre as coisas que se encontram e as que se criam, entre aquelas que aconteceriam e as que se faz acontecer, a possibilidade de construir um sentido coerente e compartilhado. Nesse projeto indeterminado, o urbanismo nasce não de um de47


Termo utilizado para designar a divindade organizadora do universo, ‘O Deus arquiteto do universo’. 6

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BRINQUEDO senho, mas de um encontro, de um intercâmbio recíproco de desconfianças e de medos e, depois, de conhecimentos e desejos.

APRE(E)NDER A CIDADE Até por volta de um ano e meio de idade, a boca é um meio de a criança conhecer o mundo, identificando o gosto e a textura dos objetos. Faz parte de seu desenvolvimento “degustar” o ambiente ao seu redor. E é assim que a criança começa a conhecer o mundo. Nos primeiros estágios da vida humana as funções sensoriais, são o principal canal de com o que está a sua volta. Através do corpo, condutas e comportamentos são aprendidas e apreendidas pela criança através das experiências corporais: individuais ou com aqueles que com ela interagem e a estimulam. O contato com o outro e suas referências comportamentais, portanto, são o primeiro meio de apreensão do homem. Esse aprendizado mais próximo, ao tratar da cidade, se faz necessário no campo do urbanismo. O verbo “apreender” tem o sentido de assimilar mentalmente algo, e com profundidade; compreender, captar. Em entrevista à revista Redobra (do grupo de pesquisa Laboratório Urbano - PPG -AU/FAUFBA), Alessia de Biase - arquiteta e antropóloga -, fala do conceito de apreender no sentido de “pegar com as mãos”, de ir até o campo ver como é que é. O sentido de ter nas mãos, entre as mãos - como para a criança é o reconhecimento através da boca -, não tem o mesmo sentido demiúrgico6 do arquiteto que tem as mãos sobre a cidade, mas mais no sentido do artesão que faz as coisas com as mãos, entre as mãos. E ao fazê-lo, compreende o objeto 49


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BRINQUEDO feito. Essa necessidade de espaço, que vem da própria formação do arquiteto, impede que pensemos a cidade como algo que não se pode pegar. “Essa passagem do apanhar entre as mãos, empiricamente, fazer a experiência e o depois, quando se compreende. Então tem esse sentido de que passa pela experiência primeiro e depois é que vem a compreensão intelectual. (...) Mas não sei se é diacrônico. Eu acho que para ter uma compreensão intelectual da cidade tem que passar por uma experimentação, então as duas coisas funcionam ao mesmo tempo.” (DE BIASE, 2012)

Apreender também está relacionada ao medo. E quem poderia negar que todos esses conceitos - desafio, perigo, competição etc. - estão muito próximos do domínio lúdico? A brincadeira perigosa, o risco, a sorte - em todos estes casos trata-se do mesmo campo de ação, em que alguma coisa está “em jogo”. Mas, apreender também faz referência à ideia de aprendizado, o aprender, a compreensão. Esta assimilação da cidade - e aqui é preciso admitir que existe uma diferença clara entre a cidade construída e a cidade praticada - se dá, nesta pesquisa, a partir do entendimento de como se dão essas relações e brincadeiras nesses dois tipos de cidade.

“POR UMA POSTURA ANTROPOLÓGICA” Na busca por este aprendizado, o que se propõe é uma investigação da cidade, no sentido de melhor compreender a sua complexidade, aliada a outros campos de ensino um campo expandido da arquitetura e do urbanismo -, na 53


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BRINQUEDO busca por diferentes experiências metodológicas e propositivas. Esta pesquisa, busca na Antropologia novos métodos rastreadores, passíveis de interpretações e subversões, para que possam ser adaptados ao campo de investigação do urbanismo. Aléssia de Biase nos apresenta a diferença entre uma “Antropologia da cidade” e uma “Antropologia na cidade”. A Antropologia na cidade é uma Antropologia mais clássica, a Antropologia urbana, como é mais conhecida, nela a cidade se comporta como cenografia das ações humanas, onde a forma da cidade não influi necessariamente nas ações. Já na Antropologia da cidade, a cidade é sujeito, não só objeto de pesquisa, mas um sujeito concreto. Esta, trabalha a relação entre espaço e as ações, onde o espaço não é mais cenografia, mas é um sujeito também, numa construção coletiva entre o concreto, os moradores e os demais atores territoriais. A questão temporal, segundo De Biase, é sempre bem trabalhada pelos antropólogos. Já os urbanistas, ao contrário, costumam pensar muito mais a respeito do espaço e menos sobre o tempo. Tensionar as fronteiras entre os dois campos, seria uma forma de trabalhar juntos tempo e espaço. “Duas disciplinas, uma em que o espaço está no centro das preocupações e a outra em que o espaço é o contexto das interações”, mas que devem ser trabalhadas juntas, no sentido de fazer dialogarem as duas abordagens, antropológica e urbanística, de buscar formas para se pensar a cidade e para pensar que os limites colocados muitas vezes entre as disciplinas, seriam apenas uma distância entre diferentes formas de olhar. Dessa forma, o projeto, em qualquer escala, da arquite55


Giancarlo de Carlo foi um arquiteto pioneiros na reflexão sobre a chamada “Arquitetura Participativa”, no desenvolvimento de procedimentos de trabalho que incorporassem a participação dos usuários no processo de elaboração de projetos. Sobre esse assunto, ver o caderno LABIRINTO, desta pesquisa. 7

O método etnográfico é o método de trabalho característico da Antropologia. Na Antropologia Urbana, ele abre para a compreensão do fenômeno urbano, mais especificamente para a pesquisa da dinâmica cultural e das formas de sociabilidade nas grandes cidades contemporâneas. 8

Carlos Nelson Ferreira dos Santos foi um arquiteto urbanista e antropólogo carioca, responsável por trabalhos de habitação popular de grande importância no Brasil. Dentre eles, as aço~es nas favelas do Rio de Janeiro, nos anos 1960, onde se destaca a urbanização participativa na Favela de Brás de Pina. Sobre esse assunto, ver o caderno LABIRINTO, desta pesquisa.

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Sobre o mito do Labirinto de Teseu, ver o caderno LABIRINTO, desta pesquisa.


BRINQUEDO tônica à urbanística, é proposto como um processo onde o habitante, os outros atores envolvidos e o arquiteto urbanista, trabalham juntos. A antropologia começa então a aparecer como uma referência para Giancarlo de Carlo7 em 1977, arquiteto que dedicou-se à etnografias8 e à arquitetura tradicional, e experimentou comparações entre estas e as arquiteturas modernas. Os ensaios de antropólogos, geógrafos, urbanistas ou arquitetos criaram um grande lugar de debate nos cruzamentos disciplinares. “Na verdade as necessidades “transdisciplinares” como poderíamos chamá-las hoje, levantadas pela questão do espaço nos anos 1980, nós as herdamos de muito longe apesar da linhagem mais corrente e reconhecida por diferentes autores passar sempre por três arquitetos que trabalharam com a arquitetura vernácula: Bernard Rudofsky, Paul Oliver e Amos Rapoport. O primeiro com a célebre exposição fotográfica no MoMa em New York, “Architecture without architects” em 1965, o segundo, que escreveu em 1967 The need for the New Approach, que se tornou um dos textos fundadores sobre o habitat vernáculo e a inspiração que este deve ser para os arquitetos; e por fim o terceiro com o livro Pour une anthropologie de la maison, lançado na França em 1972, com um primeiro esboço de uma teoria da casa.” (DE BIASE, 2012)

O problema do produto fechado do urbanista, incapaz de propor uma obra aberta, pode estar ligado à própria resistência ao rompimento com as fronteiras do campo do urbanismo, diluindo-o enquanto disciplina. “Pode um arquiteto virar antropólogo?”, pergunta o “antropoteto” (SANTOS, 1980) Carlos Nelson Ferreira dos Santos9 ao falar das suas ações nos campos da Antropologia e do Urbanismo nos anos 1960. “Quem quiser se aventurar por esses labirintos vai contar com poucos fios condutores. As Ariadnes10 57


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BRINQUEDO são ainda escassas.” dizia ele. Uma possível resposta está na proposição de Aléssia de Biase: a adoção de uma “postura antropológica” do arquiteto urbanista.

REPARA SÓ! Uma mudança de ponto de vista, e sobretudo de postura, o ato de parar para apreender a cidade, é o que Aléssia de Biase denominou de “Insistência”. Percorrer a cidade, se perder por ela, nos possibilita conhecer o desconhecido e, o que aparece como acontecimento é o espaço e o encontro ao acaso com as pessoas e com o que surge. Quando se está parado em qualquer lugar, ao contrário, é o tempo que muda profundamente os lugares, as ações e relações humanas. “Do latim In+sistere, estar fisicamente sobre alguma coisa, lhe dar importância. “Insistir” como escolha de ficar, de se fixar em um lugar, de voltar a cada dia e olhar o que se passa por um período. Na linguagem musical, uma insistência é justamente o ato de voltar ao mesmo lugar durante um período de tempo. Estar parado, fixo, sentado em algum lugar por um longo período é da ordem da insistência, quase da teimosia, com relação à moda de mobilidade e fluidez que caracteriza hoje as maneiras de apreender a cidade.” (DE BIASE, 2013)

A insistência – estritamente herdada da etnografia urbana – entende que na ação de se posicionar em um lugar se inicia toda uma compreensão das situações espaciais e sociais. Um desvio dos ‘quem’, ‘ o quê’, ‘quando’, ‘ onde’ e ‘porquês’ das tradicionais idas a campo, suficientes para que se obtenha a resposta que se quer ouvir. Trata-se de colocar 59


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BRINQUEDO em teste situações urbanas mais aprofundas, “em uma colagem de pedaços de diferentes materiais que não se dá uma ordem, mas um ritmo. A cada dia tudo recomeça e nosso quadro se apaga um pouco, mas não completamente.” O ato de sentar-se em sua cadeira, para começar uma insistência, consiste em achar o melhor local para ficar e, em seguida, ser aceito, para então entrar em contato com aqueles que se tornarão “vizinhos” temporários. À cada dia, tudo recomeça, negocia-se sua própria presença, mesmo se ela é cada vez mais aceita e reconhecida, dá-se bom dia aos vizinhos, e assiste-se calmamente ao passar do tempo. “Específico à insistência é o fato de se sentar sobre sua própria cadeira e não usar o mobiliário urbano. O motivo desta escolha é o de assumir de fato um lugar no espaço público, de afirmar sua presença e assim fazer surgir a curiosidade e o estupor nos outros que podem ser assim levados a vir nos encontrar, mais também para fazer compreender que estamos ali todos os dias fazendo algo e não se insinuando incógnito no espaço público.” (DE BIASE, 2013)

Esses longos momentos permitem aprender os hábitos de um lugar, compreender suas regras de boas maneiras, como se posicionar no espaço público na vida de todos os dias. Sobretudo, aprendemos a olhar o que o tempo faz ao espaço, aos corpos das pessoas presentes e às trocas que acontecem. O que De Biase denomina os “quase-nada” (DE BIASE, 2013) do lugar é que contribuirão para a construção da imagem e do imaginário local, e são as sequências desses pequenos gestos quase inúteis, mas necessários, que preenchem a nossa vida urbana de todos os dias. O curto período não permite perceber e sentir os ritmos cotidianos e semanais, o que só pode ocorrer após um lon61


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BRINQUEDO go período. Se dar tempo consiste, portanto, em buscar vestígios, recompor gestos, posturas, olhares e pedaços de narrativas, para compreender como os lugares funcionam ou as lógicas de certas situações. O lento passar dos dias, permitem começar a apreender como se organiza e quais são os ritmos de um espaço, como as pessoas ficam ali, agem e se apropriam, ou o evitam. “Desarmar nossos olhos para começar a ver” (DE BIASE, 2013); ou, como se costuma dizer em Salvador, quando se quer atenção ao fato contado, é necessário “reparar”.

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MĂşsica cantada, acompanhada de movimentos certeiros, na brincadeira do elĂĄstico.


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2 “DENTRO, FORA, DENTRO, PISA, FORA, CRUZA”11 “Percorrer as ruelas e becos das favelas é uma experiência de percepção espacial singular, única; a partir das primeiras quebradas se descobre um ritmo de andar diferente, uma ginga sensual, que o próprio percurso impo~e. A ginga seria a melhor representação da experiência de se percorrer os meandros de uma favela, desse espaço gingado, que é o oposto mesmo da experiência urbana modernista, sobretudo das ruas retas e monótonas das cidades formais projetadas racionalmente.” (JACQUES, 2002)

A favela não tem plano, não é construída a partir de um projeto. Não é fixa, acabada: está sempre sendo feita e em constante transformação. Na escala do conjunto de abrigos, dos espaços deixados entre os barracos, que forma as ruelas e os becos das favelas, como não há sinalização, placas, nomes ou números, qualquer pessoa de fora ali se perde facilmente. Neste espaço confuso, difícil de ser apreendido, quem entra, só se dá conta da sua espacialidade, mesmo de maneira fragmentária, quando entra. Sua própria arquitetura enviesada - as chamadas “quebradas” - nunca seguem um caminho linear, transformando-se num labirinto. Para não se perder, é preciso ter um guia - um morador - ou um mapa instantâneo, já que as favelas estão em constante movimento e mudança. Os favelados, entretanto, nunca se perdem numa favela, quem se perde é sempre quem não a conhece, o estrangeiro. O que está questão é a experiência desse espaço, e é essencial experimentá-lo, 67


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Segundo o censo de 2010, Salvador possui a segunda maior população morando em favelas, do Brasil, com 33,07% dos seus habitantes (IBGE, 2010).

PRÓXIMAS PÁGINAS: A favela do Calabar Salbador.Ba (PÁG. 70-71) O Calabar na ciade (PÁG. 72-73)

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BRINQUEDO para poder compreendê-lo. Conhecer uma favela exige nele penetrar e se perder, para descobrir as armadilhas e incertezas do caminho. Para desatar a complexidade do percurso, é necessária uma ausência de objetivo. Quando mais queremos sair de uma favela, mais nos perdemos. A experiência do labirinto-favela se liga à ignorância ou à incerteza de ser estar dentro ou fora deste. O labirinto está, ao mesmo tempo, no interior e no exterior.

O CALABAR E A CIDADE COMO CAMPOS DE AÇÃO Quilombo dos Kalabari, formado por negros nigerianos, escravos refugiados de seus senhores e recém chegados à Bahia, a região do Calabar, como é chamada atualmente, é símbolo da organização e resistência do povo negro. Hoje favela, mantém sua tradição de luta quando se encontra oprimida por regiões nobres da cidade de Salvador (Federação, ao Norte; Jardim Apipema e Ondina, ao Sul; Centenário e Barra, a Oeste), que o circundam e fazem limites. Sua ocupação intensa se deu no início dos anos 1960, quando a Bahia passava por um processo de êxodo rural e do Recôncavo Baiano, e da consequente favelização da capital12, cujo processo se deu a partir do desenvolvimento da instalação da Petrobrás e outras estatais em Salvador, aos programas de construção de rodovias, à expansão da administração estadual nos anos 1950 e pelo estabelecimento de centros industriais na cidade.

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PRÓXIMA PÁGINA: O Calabar e limites entre bairros vizinhos (PÁG. 76-77)

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BRINQUEDO A favela do Calabar é dividida em dois lados: o Camarão e a Bomba. Divisão que é anterior à chegada do tráfico de drogas, mas que foi intensificada por ele. Intensificada porque as pessoas envolvidas com o tráfico e seus familiares, de qualquer idade, não andavam por todo o Calabar, apenas onde os “seus” atuavam. Durante este processo de ocupação, na década de 60, o Calabar foi alvo de diversas investidas do Estado, visando a desapropriação das posses dos seus moradores, com a justificativa de irregularidades no uso do solo e construções. Também durante esse período sofreu com ações tácitas de planos elitistas para afastamento dos favelados e limpeza do entorno das regiões nobres que o circundam, citadas anteriormente. Estas ações também condicionaram o crescimento da população do Calabar, quando a região acolheu famílias expulsas de favelas vizinhas desapropriadas, como o Bico de Ferro, em Ondina e, mais tarde, a favela do Mirante (que deu lugar ao bairro do Jardim Apipema). Nesse contexto, organizações populares emergem na região para reinvidicação do direito de ocupação do lugar e outros direitos básicos de educação, saúde e higiene. O Grupo de Jovens Unidos do Calabar (JUC), fundado em 1977, se torna um representante popular protagonista neste cenário de lutas. A partir dele, gincanas e brincadeiras foram organizadas, com o intuito de organizar e motivar os jovens do local e favelas vizinhas (Alto das Pombas e São Lázaro). A principal revolta, neste período, eram pelas matérias de jornais locais, onde o Calabar era citado como “antro” de marginais. É, também, em 1977 que inicia ali, o Movimento de Luta e Permanência no Calabar e a Associação dos Moradores. 75


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Obras de reurbanização feitas pela RENURB (PMS, 1985)

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BRINQUEDO No dia 11 de maio daquele ano, os moradores fizeram uma grande caminhada até a prefeitura da cidade e, após muitas resistências e prisões foi dado o decreto que garantia a permanência das família já assentadas na região por cinco anos. Com esse decreto, dá-se início a um processo de urbanização da favela.

Em decorrência desta conquista, inicia-se no Calabar um processo de ampliação dos instrumentos de luta e resistência e formação de uma identidade. Assim, surge o Jornal Kalabari (1981-1987) e a rádio comunitária A Voz do Calabar, fundada em 1986, e, entre o discurso da grande imprensa soteropolitana e o contra-discurso elaborado pelos jovens do Calabar, a população daquela favela ganhava, aos poucos, uma voz mais grave e o lema “a essência do ser é existir, a nossa é persistir no Calabar”. Surgem, também durante esse período, a Escola Aberta do Calabar, a creche e o Pavilhão Multiuso, onde também foi criada, pelo JUC, a Biblioteca Comunitária do Calabar. 79


Posto de Saúde do Calabar (década de 90)

Biblioteca Comunitária do Calabar

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Escola Aberta do Calabar

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Atualmente, no Pavilhão Multiuso, criado para abrigar as necessidades e atividades dos moradores do Calabar, mesmo lugar onde funciona a Biblioteca Comunitária, a Associação dos Moradores e a Sociedade Beneficente e Recreativa do Calabar - SBRC, funciona a 1ª Base Comunitária de Segurança de Salvador, instalada pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) em 2011. Seguindo o mesmo modelo das UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora), projeto da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (SESEG), instaurado pela primeira vez no final de 2008, no morro Santa Marta. Muito similar ao caso do Rio de Janeiro, onde a UPP entrou na favela com o intuito de retirar os pontos de tráfico de drogas, a fim de abrir acessos às favelas cariocas e para acomodação e segurança de bairros nobres que estão próximos, assim acontece em Salvador. Fazendo limite com a favela do Calabar, está o Jardim Apipema, bairro nobre que surge de um loteamente no início 83


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Governo antecipa instalação de ‘UPP baiana’ em bairro violento de Salvador

23 de março de 2011 A Secretaria de Segurança Pública da Bahia antecipou a instalação da primeira Base Comunitária de Segurança em Salvador, conhecida como versão baiana das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), implementadas no Rio de Janeiro desde 2008. O programa teria início previsto para o segundo semestre deste ano, no Nordeste da Amaralina, mas vai começar em 25 de abril, no Bairro Calabar, considerado um dos mais violentos da capital. O secretário da pasta, Maurício Barbosa, visitou o posto da Polícia Militar no Bairro Calabar, na tarde desta terça-feira (22), e anunciou que o local será reformado para receber 150 policiais militares. O efetivo tem treinamento em policiamento comunitário, inspirado em técnicas da polícia japonesa. “O Bairro Calabar, em Salvador, fica perto de bairros mais estruturados, considerados nobres, como a Barra e a Ondina”, afirmou Barbosa.


Inauguração da Base Comunitária do Calabar (2011)

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da década de 1970 quando, antes, passou por um processo de desapropriação de favela. Na mesma região onde hoje, estão os enormes prédios, situava na década de 60, a favela do Mirante. Ironicamente, a topografia do Calabar e Jardim Apipema, já cumpre a função que os policiais militares da Base de Segurança são desempenhados em fazer: enquanto o Calabar está localizado em um vale, o Jardim Apipema fica em uma cumeada. Além do mais, as construções do bairro nobre são, via de regra, muradas ou cercadas, e, em quase todas, seguranças e porteiros vigiam suas entradas. Dito de maneira simples, a iniciativa da SSP-BA é uma estratégia de garantir a presença da polícia nas favelas soteropolitanas, usando de um discurso agregador e pacificador, e um “estado de segurança” nos bairros nobres vizinhos. Além das ações comuns da profissão militar, quando dentro de uma favela, os policiais se posicionam dentro das escolas, em atividades culturais locais. 87


Corte esquemático: topografia Jardim Apipema, Calabar e Alto das Pombas Camila Ferraz (2011): Placa da PM Comunidade na Rua Professor Aristides Novis Um outro motivo importante para a escolha do Calabar foi a presença de grupos organizados dentro da favela: a Associação de Moradores, a Biblioteca Comunitária e o Grupo de Jovens do Calabar. Esta questão era fundamental no começo da pesquisa, considerando que intencionava realizar, como produto final, um projeto de cunho participativo. Os motivos que me fizeram abandonar a primeira proposta de trabalho nas favelas da Comunidade do Solar e Gamboa de Baixo, foi justamente a presença marcante de grupos de artistas grafiteiros, que insistiam em transformar a favela num museu de arte a céu aberto. A presença do grupo não era bem vinda por maior parte dos moradores, que acabaram expulsando-os. Por entender que a minha aproximação poderia ser entendida de maneira similar, passei a buscar um outro campo, mas com grupos ou associaço~es organizadas, como o Calabar. 13

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Até agora ficaram explicitados alguns dos motivos e justificativas pela escolha do Calabar como campo de trabalho13. Numa proposta de apreender este espaço urbano de outra forma, a partir de um outro olhar, o olhar diferenciado, não viciado a uma experiência de cidade homogeneizada, e o protagonismo dos espaços públicos e privados atuan89


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BRINQUEDO tes nestas inter-relações me levaram a este lugar. Pretendia, ainda, buscar compreender a afetação da criança no espaço público em presença da instituição polícia, mas sobretudo de que forma as questões urbanísticas interferem nessas ações. Tal compreensão se deu pela possibilidade de uma coexistência de espaços-tempos diferenciados, dos seus distintos limites e a partir destes, aquele que entendi como o de maior conflito entre bairro-favela, como campo de ação/transbordamento. Entender a presença (ou ausência) da criança na cidade e a apreensão de práticas da “criança rueira” no Calabar, descobrir seus percursos labirínticos e dos adultos através de suas memórias, o que proporcionam estes espaços, de que forma podem ser promotores de sociabilidade e se deparar numa viela, com quatro ou cinco meninos a brincar ao redor de um ovo posto no chão, para então “distinguir detalhes no que, visto à distância, podia ser descrito com o recurso a uma só cor, a uma só forma e a uma só textura.” (SANTOS, 1980). Apreender essa geografia, seus limites e até onde vai - ou já foi - a criança do Calabar, e em seguida comparar com os limites de cidade e vivências de uma criança do condomínio do bairro ao lado. São algumas das tentativas - entre acertos e erros - a que se propõe esta pesquisa.

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PRÓXIMA PÁGINA: Principais avenidas, ruas, entradas e becos que aparecem nestes relatos (PÁG. 94-95)

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Caderno de campo (e de pequenas criaรงo~es)

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DENTRO

Penetrar no labirinto. SerĂŁo narrados aqui, os meus primeiros contatos e as experiĂŞncias posteriores dentro do Calabar: seus movimentos, as pessoas envolvidas, as maiores dificuldades e o encontro com o desconhecido, encontro de estranhamentos, mas sobretudo de partilhas. Um encontro com o Outro, para se encontrar e reconhecer dentro do labirinto.

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DESCOBRIR O LABIRINTO A primeira vez que estive no Calabar, estava bêbado. Era carnaval de 2013 e, para quem conhece a festa em Salvador, um dos circuitos termina no bairro da Ondina, exatamente onde começa o Calabar. Voltava pra casa com uma amiga de Aracaju (SE) e entramos naquela rua estreita, mas iluminada pelas gambiarras, que todos os anos são instaladas demarcando os caminhos possíveis para se “fugir” dos lugares mais abarrotados do circuito. - Você sabe onde está me levando? - Claro que sei. Vamos sair do outro lado. Estava claro que não tinha noção do que estava fazendo, para onde estava indo. Até porque, naquele momento, aquele espaço também me parecia bêbado. Nunca saímos onde eu imaginava. Consigo me lembrar das curvas, das ruas estreitas, dos olhares para o casal de desconhecidos, lembro até de uma certa apreensão, pelo medo de ter entrado bêbado num labirinto. Uma outra memória ébria, mas essencial para querer voltar àquele lugar: às 3h da manhã, de um sábado de carnaval, haviam crianças perambulando e brincando nos becos daquela favela. Experimentar o labirinto-favela está indissociável à desorientação. Ficar embriagado é também querer se perder. É por isso que o carnaval - época do ano em que todas as bebedeiras são toleradas - se torna símbolo desse desejo de se perder, um momento de loucura autorizada, a loucura ou a embriaguez de estar deliberada e alegremente num labirinto.

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A favela do Alto das Pombas, localizada na Federação, faz fronteira com o Calabar e é vizinho do Cemitério do Campo Santo. O nome do bairro, segundo relatam alguns moradores, se deve ao fato de que muitos caçadores procuravam o local, que fica num alto, para caçar pombos. O bairro possui uma única entrada para carros, sendo que as demais ruas possuem saídas, para o Calabar e Sabino Silva, apenas para pedestres. Neste mesmo ano de 2014, conheci o Alto das Pombas ao participar do “Workshop Que Cidade é Essa?”, promovido pela Faculdade de Arquitetura. 14

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DIA 01 . Brincar de ovo No ano seguinte, já com uma proposta de trabalho definida, mas não sistematizada e fechada, voltei ao Calabar para “conhecer” o lugar onde faria o que pretendia um “projeto participativo”. Resolvi tomar um outro caminho, diferente daquele do Carnaval: entrei no Calabar pela favela do Alto das Pombas14, tomando um caminho já conhecido. Era dia 1º de maio, feriado do dia do trabalho, mas o lugar estava movimentado, com lojas abertas e pessoas nas ruas, num ritmo muito diferente da rua principal do bairro da Federação, por onde cheguei. Era feriado na cidade, mas não era feriado no Alto das Pombas. Usei a desculpa de precisar atravessar até a Ondina para conversar com Dona Maria, moradora do Calabar, que foi até o bairro vizinho fazer compras durante o feriado. Foi difícil acompanhar seus passos, que desciam as escadas íngremes e tortas como se andasse numa rua plana. Dona Maria era de poucas palavras e não quis falar muito sobre brincadeiras de infância ou sobre como seus filhos costumavam se divertir. Resolvi apenas observar. No caminho, passamos por um beco estreito onde um grupo de meninos de 4 a 6 anos brincavam com um ovo. Um círculo de garotos curiosos, em volta de um ovo posto no chão. Com receio de me perder e me perder de Dona Maria, optei por não parar e conversar com os meninos. Ao final do percurso, depois de muitos desvios, fui deixado pela moradora, que me mandou seguir em frente, que logo chegaria no bairro da Ondina. Me pareceu então, que para além dos limites com o Alto das Pombas, o Calabar 101


Pode um ovo ser um brinquedo?

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se resumia àquela rua principal, com umas poucas transversais. Achando que “já conhecia o Calabar”, fui pesquisar no mapa da internet o tamanho daquele meu percurso e descobri que, na minha grande aventura entre as quebradas, não havia percorrido nada além da sua rua principal (a Rua Nova do Calabar). Naquele dia, retornei, fazendo o caminho inverso, mas pelo Jardim Apipema e percebi, num olhar de passagem, a grande diferença de ambiências, tipologias e classes entre essas duas ruas quase contíguas. A rápida busca na internet me deu ainda uma outra informação importante para a pesquisa. Havia na favela uma escola comunitária: a Escola Aberta do Calabar. Nesta etapa da pesquisa, este trabalho pretendia uma abordagem da rua – não somente da instituição escola – como um espaço de educação, capaz de desviar das práticas direcionadoras da pedagogia, entender a rua como o espaço de brincar, espaço este promotor de uma outra forma de educar. O método de abordagem seria entender as relações que se 103


Registro de passos gingados

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BRINQUEDO dão na rua, a partir da presença (ou ausência) da criança na favela e a apreensão dessas práticas de “criança rueira” no Calabar. Era preciso voltar e encontrar a Escola.

DIA 02 . O PERCORRER DANÇADO Refiz o percurso Alto das Pombas - Calabar. Desta vez sem um guia que me fizesse o “atravessamento”. Acreditei que reconheceria o caminho, mas voltei a me perder. Na descida de uma das escadarias, encontrei Daniela, Rian e Danilo, que brincavam na porta de casa. Perguntei sobre a tal escola e Danilo logo se apressou a me mostrar o caminho até onde ele achava que deveria ser. Lugares suspeitos e caminhos um tanto assustadores, não alcançava o ritmo do menino que descia não pelas escadas, mas “pinotando” na rampa de escoamento da chuva.

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Uma passagem para o labirinto

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BRINQUEDO O caminho não era aquele. Danilo me levou até uma outra escola, que ficava numa das saídas para o Jardim Apipema. Optei por sair, já que o menino havia dado as costas e sumido, enquanto pedia informações à professora. Tentaria a entrada seguinte. Fui olhando curioso, tentando reconhecer o caminho. - Se eu descer por aqui, chego até a Escola Aberta? - Não. Melhor você não ir por aqui, disse um Senhor no caminho. - Por que? É perigoso? - Não, não é isso... Você vai se perder. Já cansado de não encontrar o que pretendia, desci pela Rua Ranulfo Oliveira ate a Av. Centenário, para encontrar a entrada que me aconselharam. Neste percurso, fui percebendo que todas as entradas para o Calabar eram fechada com grades. Encontrei um pequeno “hall” de entrada com

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Registros de gestos desviantes

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registros de brincadeiras: garatujas de giz no chão, bonecas e outros brinquedos, bambolês e amarelinhas riscadas. Mas não haviam crianças. A biblioteca comunitária do Calabar ficava bem na entrada “oficial” da favela. Depois de uma conversa sobre os trabalhos da Associação e do Grupo de jovens, fui levado por Yuri, líder do grupo, até a Escola. A Escola Aberta do Calabar tem 32 anos de existência, é pública e comunitária. “Tem como objetivo o letramento amplo para a cidadania. Sua metodologia consiste em trabalhar a auto-estima das crianças e adolescentes, da reflexão do contexto sócio-cultural/político e a conexão destes com a realidade do lugar. São incluídos nas suas atividades, temas que favoreçam a cultura brasileira. O projeto pedagógico é iluminado pelas teorias de Paulo Freire e Celestin Freinet.” Este espaço foi construído pelos moradores do Calabar em sistema de mutirão, em 1982. Atualmente há 130 crianças 109


A Escola Aberta e o balanรงo preso

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BRINQUEDO estudando. A escola atende o ensino infantil (3-5 anos) e o ensino fundamental I (6-15 anos). Os seus educadores são moradores do próprio Calabar. Entre uma aula e outra, consegui ter pequenas conversas com alguns deles. “Criança é assim: o que acontece na rua, no outro dia leva para o ambiente da sala de aula.”, respondeu a diretora da Escola, quando questionada sobre o sistema de ensino da instituição. Entre brincadeiras na rua, acontecimentos na casa dos pais e casos do bar, o policiamento ostensivo nas ruas do Calabar é um assunto constante nas aulas. “Passou a ser papel da escola a desconstrução do medo nas crianças.” Mas desconstruir passa a ser difícil, já que a escola havia acabado de fazer uma parceira com a Base Comunitária local, e crianças de 4 e 5 anos começavam a ter aulas de informática com estes policiais, dentro do ambiente escolar.

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BRINQUEDO Entre tentativas de um educar sensível e contradições como esta, ao sair pelo pátio escolar, me deparei com um balanço preso, com suas correntes enroscadas na sua própria estrutura, impedindo que as crianças brincassem. Ao sair, tentei retornar pelo Alto das Pombas e, em meio aos conselhos de “é só ir em frente”, voltei a me perder. Mais uma vez, precisei da companhia de outro morador, o Seu Jorge, para me levar até a saída.

DIA 03 . A SÍNDROME DA CRIANÇA PERDIDA Cada tentativa de percorrer o Calabar, era uma certeza que iria me perder entre os becos sem nome. Era certeza também, sempre encontrar as crianças nas portas de casa, brincando do que quer que fosse: amarelinha, futebol, elástico, gude, andando de bicicleta, correndo, subindo escadas com uma maestria de quem lhe é íntimo aquele lugar. Precisava, entretanto, observar os espaços-limites com a favela. Parei para observar um tempo a entrada que fica na Av. Centenário. Logo em frente, a prefeitura instalou um parque infantil. Durante o tempo que observei, nenhuma criança usou aquele espaço, à exceção de alguns adultos que sentaram para conversar enquanto seus filhos soltavam pipa logo mais à frente. Ao entrar no Calabar, tive a sensação de que emergiam crianças de todos os lados. Percebi que elas voltavam da escola, mas o caminho se transformava numa grande brincadeira de pega-pega, enquanto uma das meninas corria e gritava numa patinete e algumas crianças faziam uma roda de capoeira em frente à Base Comunitária da Polícia.

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BRINQUEDO Cheguei até a Biblioteca e conheci Rosana, uma jovem simpática, com quem conversei e voltei a conversar até o final desta pesquisa. Expliquei o que pretendia e Rosana logo se apressou a contar que “brincava de tudo que você sonhar: de futebol na quadra, de elástico no “meio da rua”, gude, soltava periquito com os meninos, fazia corrida com carrinhos de lata, costumava roupar pedaços de carne em casa e fazer churrasco com as meninas...”. Rosana se definia possuidora da “Síndrome da Criança Perdida”, já que não era Peter Pan, porque isso “era mal de menino”, nem Cinderela, “coisa desse povo que quer ser princesa”. “Eu quero entrar na minha comunidade sem correr riscos”. Segundo Rosana, a Base Comunitária foi instalada no Calabar sob muito protesto e resistência. Os moradores não podiam chegar à noite em casa, que precisavam entregar os documentos, sob ameaças, xingamentos e violência física. Fizeram protestos para a saída da polícia e a Associação organizou reuniões com a Base - diferente de como aconteceu nos outros bairros - e estas relações melhoraram. “A polícia está saindo. Antes passavam os carros pra lá e pra cá, hoje você quase não os vê”. Rosana contou que certa vez, a prefeitura instalou um parquinho na praça que fica ao lado da Biblioteca, e as crianças passaram a brincar muito no lugar, o dia todo, até tarde da noite. Os moradores retiraram os brinquedos, deixando apenas os banquinhos, com a justificativa de que não estavam conseguindo dormir.

INSISTIR O pequeno tempo que permaneci parado na entrada da Av. Centenário me deu poucas informações sobre aquele limite. Precisava testar os limites entre bairro e favela. Numa tarde de quarta-feira, fui insistir na Rua Ranulfo Oliveira, limite entre o Calabar e Jardim Apipema.

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Entradas das casas e becos da favela

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Subindo a ladiera, a partir da entrada pela Ondina (Av. Oceânica), até o primeiro cruzamento, as relações entre o bairro e a favela ainda pareciam ser muito próximas. Há ali algumas casas, oficinas de carros, espaços que não parecem pertencer nem a um lado, nem a outro. Entretanto, fui notando que todas as entradas do lado da favela são separados por grades (tanto de casas, quanto entradas coletivas), mas que naquele dia e horário, em sua maioria, permaneciam abertas. Mais a frente, do outro lado da rua (o Jardim Apipema), grandes muros cobertos de trepadeiras fechavam um dos lados dessa passagem, criando um meio-corredor verde uniforme. Essa rua, que não pertence a um lado nem a outro é claramente dividida entre o muro formal e a favela. Entretanto, a ocupação da “ci-

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Versatili Jardim Apipema ou Versatili Calabar?

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dade formal” tem tomado aos poucos os terrenos do Calabar. Naquele período, um “stand” e um enorme “outdoor” anunciavam a construção do prédio que, mesmo estando do lado Calabar, chamava-se Versatili Jardim Apipema. Mas, estando do lado de lá, porque não Versatili Calabar? Parei para escolher um lugar, próximo a uma oficina de carros a céu aberto e já fui abordado por um dos trabalhadores: “Tá procurando alguma coisa, amigo?”. Respondi que não e me sentei na calçada, do lado do Apipema. Estava exatamente em frente àquele pequeno “hall” de entrada com registros de brincadeiras, que conheci no outro dia. O lava carros, que pertencia a um morador do Calabar, atendia predominantemente, carros dos moradores do Apipema. Carros, por sinal, que não paravam de chegar, muito menos de passar. Por duas vezes, motos subiram a calçada ao meu lado, num cruzamento ou tentando desviar de um quebra-molas. Buzinas e engarrafamento momentâneos não paravam de acontecer. Um caminhão travou na rua e engarrafou tudo.

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Lava-carros no lado-Calabar

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Mas às vezes, sem explicação, a rua era silenciosa. Os carros pararam de passar, dando espaço ao casal, que passava de mãos dadas exatamente pelo meio da rua. Ninguém, além dos lavadores e mecânicos, permaneciam no local e o ritmo de passagem era sempre lento. O meu lado, a calçada tem piso tátil. Do outro lado, quase não tem calçada. A moça, aparentemente moradora do Calabar passa do outro lado. Já o pai com a criança, aparentemente morador do Apipema, passa pelo meu lado. Mas a gente sabe que “regras” são quebradas a todo tempo. - E ai, jovens, tão fazendo pesquisa aí? Veio questionar de modo muito simpático, o dono do lava-carros. - A gente faz um trabalho aqui com a Biblioteca... - Ah, com Dona Edith? Fiquem tranquilos aí, então. Os “ziguezagues” surgiram momentaneamente. De repente, as

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Em Salvador, cadeiras na calรงada no lado-Apipema

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grades do prédio, cuja calçada eu estava sentado, se transformaram em varal de tapetes dos carros lavados. Um casal com três crianças saiu do quintal gradeado, carregando duas cadeiras plásticas, colocou na calçada que eu estava e sentaram para observar o movimento da rua, enquanto observavam as meninas brincando. Já era hora de ir embora. Fim de tarde e um pouco mais à frente, dois velhinhos também põe as suas cadeiras do meu lado da calçada.

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O monumento que virou brinquedo Na semana seguinte, estive em viagem a Brasília e lá me deparei com a mesma imagem das crianças brincando nos aparelhos de ginástica para idosos, onde as placas indicavam: “equipamento não recomendado para crianças”, apesar de somente as crianças usarem. As imagens registradas estão no vídeo “Não recomendado para gente grande”, que encontra-se publicado no link: <vimeo.com/127987968>. 15

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FORA Era 07 de setembro, quando voltava pra casa por dentro da praça do Campo Grande. A praça demarca o final do percurso do desfile durante este feriado e, naquele dia, brotavam crianças por todos os lados, onde poderiam e não poderiam estar. O monumento central, com suas estátuas duras e cinzentas, agora era colorido. As grossas correntes viraram balanços; os leões de ferro eram cavalinhos, onde cavaleiros revezavam o galope; os homens de tridentes até pareciam sorrir ao carregar crianças nas costas; e as águias, provavelmente, animais mitológico capazes de viajar bem longe com os pequenos nas suas costas.

Do outro lado da praça, enquanto não conseguia parar de admirar aquela invasão, uma menina escalava os aparelhos de alongamento que ficavam no caminho15. Estava no meio daquele processo de apreensão entre o Calabar e Jardim Apipema e me reconheci naquelas cenas desviantes: a invasão das crianças na

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Crianças desviantes entre Brasília e Salvador, entre o permitido e o não recomendado

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O trampolim do Porto da Barra + Museu de Arte Moderna da Bahia: os meninos da Gamboa + Travessia Ilha de Itaparica, Salvador: carona de barco e pulos no mar

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Banho de mangueira no Gant贸is + Antonello Veneri: banho na Fonte da Pregui莽a + Mem贸ria da Pra莽a da Piedade: meninas tomam banho na fonte

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Comunidade do Solar: futebol sob os arcos da Av. Contorno + Rampa para deficientes físicos vira escorrega na Igreja do São Lázaro + Antonello Veneri: futebol na Ladeira da Preguiça

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Isabela Seifarth: crianças soltam pipa na Via Expressa aos domingos (o dia da manutenção) + Ana Luísa Freitas: bicicletário (sem bicicleta) vira brinquedo na “Nova Orla da Barra” + Memória na “Nova Orla da Barra”: criança incendeia caixa de lixo, próxima a caminhão de obras e correm dos funcionários em seguida

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BRINQUEDO cidade. Percebi, já no meio da pesquisa, que precisava desviar um pouco a atenção do meu “campo de apreensão”. Era preciso estar atento a todo tipo de gesto da criança na cidade, que desviasse da ordem predominante: a do “aqui pode” e “aqui não pode”. Passei a observar mais, em todos os lugares que frequentava, essas subversões. Mas o que elas desviavam? Como e para que catalogar e identificar estes desvios? A área trabalhada, passou a ser, a partir de então, tudo na escala conveniente, a do bairro, a da rua, a da praça, na terra e no mar, a da gente de verdade, praticantes das suas formas de interpretar a cidade. Atos de todos os dias, que, vistos com o devido distanciamento crítico, põem em cheque idealizações sobre o espaço e as formações sociais que comporta. Esses desvios ou subversões são registros meus, outros, ainda, foram emprestados ou doados por amigos atentos às incansáveis conversas sobre a criança na cidade. Toda ação e gesto infantil transformava-se em sinal. Não tanto, como agrada ao psicólogo, sinal do inconsciente, das latências, repressões, censuras, mas antes sinal de um mundo no qual a criança vive e dá ordens, cria o seu e no seu próprio mundo. O “empirismo impertinente”, que nos fala Aléssia de Biase, me foi útil mais uma vez. Assim como fizeram Le Corbusier e J. L. Sert, que para explicar as suas precisões ideológicas, buscavam os problemas na cidade consultando os jornais, assim o fiz. E passei a buscar possibilidades: nem problemas, nem respostas, apenas possibilidades. “As ‘notícias cotidianas’ martelam diariamente o drama que se passa em toda parte e à nossa porta; exploso~es de ciência, de história; a economia, a política. Há um ano vejo inserir-se na ordem do dia a questão do Urbanismo. Galpão, depósito, abrigo dos “enjeitados” de sérias questo~es: natalidade, equilíbrio social, organização

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BRINQUEDO industrial e comercial, alcoolismo, criminalidade, moralidade especial da grande cidade, civismo, etc. (...) Há um ano vemos o urbanismo inserir-se cada vez mais nas colunas compactas dos jornais. Juntei, ao acaso das descobertas, estes recortes de jornais que apresento aqui numa ordem sumária; a mais modesta linha dá um testemunho tão explícito e expressivo como os grandes artigos titulados. O jornal dá a temperatura. A temperatura da cidade é a febre.” (LE CORBUSIER, 1925)

Como fez Le Corbusier, era preciso desenhar a curva registrada pelas notas oficiais, para entender o que dizem crianças e adultos brincantes, em relação à cidade e ao Urbanismo.

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BRINQUEDO Crianças são flagradas em cima da passarela do Iguatemi

20 de março de 2012 Fonte: Bahianoticia Três crianças foram flagradas na manhã desta terçafeira (20) em cima da cobertura da passarela que liga o Shopping Iguatemi à Rodoviária de Salvador. A imagem mostra dois meninos e uma menina a caminhar sobre o teto da plataforma. A altura chega a vinte metros e está localizada em uma das avenidas mais movimentadas da capital baiana.

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BRINQUEDO Motorista flagra grupo de crianças em cima de ônibus na Bahia. Motorista registrou imagens em seu celular.

09 de setembro de 2011 Fonte: G1 Crianças estavam penduradas na janela e cima do veículo. Na tarde desta sexta-feira (9) um motorista que trafegava pelo bairro da Fazenda Grande do Retiro, em Salvador, flagrou um grupo de garotos em cima de ônibus. Nas imagens gravadas através de um celular, as crianças aparecem penduradas na janela e em cima do veículo. O ônibus seguiu por quase toda a rua antes que as crianças fossem retiradas.

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BRINQUEDO Imprevisto caráter lúdico de teto é ativado em um escorregão

Parque do Ibirapuera, São Paulo, 2005 Desde sua construção, em 1954, o Pavilhão Lucas Nogueira Garcez, edifício projetado por Oscar Niemeyer no Parque Ibirapuera, tem sido utilizado como playground por jovens aventureiros. Conhecido como Oca, o pavilhão contém um museu e espaço expositivo, mas recebe mais atenção por seu teto, ideal para escorregar – apesar de avisos proibirem os visitantes do parque de escalar a estrutura e a polícia viver de prontidão para impedi-los, a superfície de concreto é irresistível. Próximo dali está a marquise projetada por Niemeyer, um teto de concreto enorme cujo design tem a intenção de conectar os pavilhoes do parque, que é um oásis para patinadores in-line, skatistas e ciclistas.

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NOTĂ?CIAS Adultos desviantes

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BRINQUEDO Com tráfego bloqueado por protesto, moradores jogam futebol na BR-324

27 de abril de 2015 Fonte: Bahianotícias Moradores do entorno da BR-324, na altura do bairro de Pirajá, jogam futebol na pista direita após o tráfego ser bloqueado na região, por conta de um protesto que ocorre no local. Na foto, enviada por leitores do Bahia Notícias, é possível perceber que o asfalto está molhado. Segundo informações da ViaBahia, concessionária da rodovia, a manifestação está relacionado às obras do metrô de Salvador, mas não há detalhes sobre as reivindicações do grupo. O ato é monitorado por equipes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e, de acordo com a ViaBahia, ainda não havia encerrado até às 10h10. O Bahia Notícias não conseguiu contato com a polícia.

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BRINQUEDO Morador transita de caiaque na R. Dr. Adroaldo Soares de Albergaria, na Cidade Baixa, em Salvador.

27 de abril de 2015 Fonte: Correio da Bahia Diversas ruas na região da Cidade Baixa estão alagadas nesta segunda-feira. Na rua Doutor Adroaldo Soares de Albergaria, um morador usou um caiaque para transitar pelo local. Segundo Daniel Valverde, 22 anos, que registrou a imagem, o vizinho alegou que saiu com o caiaque para ajudar quem estava tentando salvar os pertences em meio ao alagamento. Ainda na Cidade Baixa, nos bairros da Calçada, Comércio, na rua Manoel Barros de Azevedo, no Uruguai, e rua Machado Monteiro, no Caminho de Areia, a situação também é complicada por causa da chuva que atinge a cidade desde a madrugada.

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BRINQUEDO Outro usou uma bóia de praia para “nadar” pelo alagamento

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BRINQUEDO Com rua alagada na Cidade Baixa, morador circula usando prancha

27 de abril de 2015 Fonte: Correio da Bahia Na rua Manoel Barros de Azevedo, em Caminho de Areia, um morador usou uma prancha de surfe para circular pelas ruas. O registro foi feito por volta das 6h30 desta segunda. Segundo relatos da moradora Edilmara Fernandes, as pistas amanheceram alagadas por causa do temporal que atinge a capital baiana.

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Balançaê: cartografias de um movimento qualquer

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Thairo e seu balanรงo

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“BALANÇAÊ” Entender a cidade por diferentes ângulos, perspectivas e pontos de vista, na tentativa de desfazer a ideia de que a cidade é um “corpo” único, ou partes separadas sem conexões umas com as outras. A proposição lúdica, na desconstrução do sujeito passivo no espaço urbano, passa a ser, portanto, ato político. Ações, jogos e brincadeiras que se compõem e que, postos no espaço público, tensionam, protestam e provocam o urbanismo hegemônico que configura a cidade contemporânea e às questões que a atravessam. Ocupar, na tentativa de provocar questionamentos a cerca das possibilidades de atuação e modificação do espaço compartilhado, transforma cidadãos em membros ativos do seu próprio habitat. Nesse contexto, o projeto “BalançaÊ!”, do Laboratório de Imagens da Subjetividade (LIS-CNPQ/ UFES), enxerga, nos balanços e outras brincadeiras, “linguagens, carregadas de significados distintos, que provocam ruídos, diálogos entre cidade e pessoas.”

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Giz para fazer atravessar

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BRINQUEDO Thairo Pandolfi, capixaba e membro do projeto “BalançaÊ”, em Mobilidade Acadêmica na FAUFBA, em 2014, atuou com seus balanços na cidade de Salvador, na tentativa de conhecer e se aproximar da cidade desconhecida. Em nossas primeiras experiências juntos, um passeio de trem pelo subúrbio soteropolitano se tornou um vagão de descobertas. De pedaços de gesso que achamos jogado em um entulho, uma faixa de pedestres foi desenhada no asfalto de uma rua da Ribeira, onde tivemos dificuldades de atravessar até o ponto de ônibus.

Do contato com Thairo, os balanços do “BalançaÊ!” chegaram até esta pesquisa. E em um dia de Sol forte, saímos (Thairo, Léo e eu) na direção do Dois de Julho, no centro da cidade, à procura de lugares estratégicos para a fixação dos brinquedos de madeira, feito de restos de obras e doações de pedreiros amigos. Em um dos largos do Dois de Julho encontramos um pergolado de metal, ideal para colocar um dos balanços que carregávamos na mochila. Depois de montado e testado, algumas pessoas, que já “curiavam” a amarração dos balanços, chegaram mais perto.

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As imagens registradas estão no vídeo “Balançaê: Cartografias de um movimento qualquer”, que encontra-se publicado no link: <vimeo.com/113216270>.

Todos os balanços que colocamos na cidade, nestas e nas demais tentativas , foram retirados dias depois. O tempo de retirada dependia do lugar em que colocávamos. O balanço que mais permaneceu pendurado ficou cerca de três semanas e foi instalado no viaduto da Av. Cardeal da Silva, ao lado da Faculdade de Arquitetura da UFBA. 17

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BRINQUEDO Para nosso estranhamento, todos eram adultos. A única criança que, ao passar, se interessou pelo balanço, logo foi “arrastada” pela mãe, que andava em outro tempo16. Algumas questões surgiram a partir desse vai e vem dos balanços. As crianças quase não apareceram na proposição, mas os adultos brincam e se propuseram a vivenciar a brincadeira, o jogo no espaço urbano. Diferente das crianças, que vêem no balanço um brinquedo pronto, finalizado, perdendo, portanto, grande parte do seu potencial criativo, para os adultos, era brincadeira e o estranhamento era maior, pois a memória lhe era ativada. Além disso, ao observar os processos que se davam a partir de cada balanço colocado, aquele instrumento, aquele brinquedo, pode ser entendido como um elemento catalisador de ações (a brincadeira), num sentido similar ao da química, onde o catalisador é a substância que modifica a velocidade de uma reação, acelerando-a. “O balanço é a possibilidade. Ele é a proposta de uma nova visão, mas também é o ponto no tempo, o momento agora, o contra-fluxo.” O balanço propõe às pessoas, adultos e crianças, uma inversão do papel que lhe é instituído na cidade, deixando de ser consumidor urbano, se tornando uma espécie de ator ou, até, construtor, executando e experimentando projetos sobre o espaço habitado, experienciando o desvio, a brincadeira17.

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| ENTRE | Amarelinha, elástico, chicotinho queimado, coelho sai da toca, bambolê, futebol, garrafão... são muitas as brincadeiras que tensionam o dentro e o fora em suas regras. Estar um passo fora da linha é motivo para que a brincadeira acabe, se passe a vez ao outro ou que tudo recomece. Bordas e limites também são elementos constantes no urbanismo. Normalmente, sair das delimitações de uma “poligonal”, já é um sério problema a um estudante de arquitetura. Mas como é possível quebrar essas linhas e brincar com essa possibilidade de estar dentro e fora, ao mesmo tempo? A borda se refere ao extremo ou margem de algo, onde se verifica um limite, a linha que fecha uma forma e a configura. Define uma área fechada ou um espaço. No campo disciplinar da arquitetura, o termo se associa não só à idéia de fechamento, como também à situação intermediária entre duas áreas ou regiões adjacentes. A borda no espaço arquitetônico é uma área ou espaço sem necessariamente, ser um contorno físico, mas que separa áreas diferentes. Elas atualizam, expressam e significam diferentes espacialidades e temporalidades da cidade. Estas alternâncias e variações definem não só uma característica do espaço público da cidade contemporânea como também uma de suas problemáticas mais agudas: a da cisão, a segregação, a interrupção da cidade como totalidade. Em tal sentido as bordas físicas da cidade se associam com fronteiras, margens, limites, passagens, transições, etc. Essas cisões, provocam e constroem uma cidade dividida e segregada. Ações desviantes no espaço público são, portanto, desestabilizadoras nesse sentido. Provocam articulações e deslocamentos de fronteiras entre bairro-bairro, favela-favela, bairro- favela, espaços públicos-privados. “As favelas continuam a ir além de seus limites por meio das relaço~es que estabelecem com a cidade, sobretudo, por

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BRINQUEDO meio de elos que se estabelecem de maneira mais sutil e penetrante, de um modo mais “subterrâneo”: em relaço~es individuais, já que a maioria dos favelados trabalha nos bairros formais da cidade.”(JACQUES, 2001)

Essa inquietude em relação à interioridade e à exterioridade, que está ligada à ideia de labirinto, constitui a própria experiência, a de não saber se estamos no começo ou no meio. Mas poderíamos ver e representar a cidade sem fronteiras, com manchas ou borrões, no lugar das bordas. A representação do dentro e do fora, influencia completamente a maneira de olhar a cidade. É preciso pensar a proposição de espaço labirínticos, não fechados.

CARTOGRAFAR O MOVIMENTO Segundo Walter Benjamin, “brincar é ressignificar, criar um mundo próprio, libertar-se, colocar-se em outro lugar, teatralizar, virar ao contrário, fazer sempre de novo, não ser útil, ser incerto. Sobretudo, é importante destacar que está na brincadeira a origem de nossos hábitos. Por isso, pode-se ver no ontem o amanhã.” (BENJAMIN, 1928) Presente, passado e futuro, são tempos diferentes, mas que se envolvem mutuamente, estão entrelaçados. O passado é ainda presente na memória, assim como o futuro, sempre começando a se realizar. As crianças costumam misturar os tempos ao narrar situações. Outro dia, meu primo de 4 anos me disse: “Amanhã eu comi pizza aqui com minha mãe”. Porque então, não podemos fazer como elas nos ensinam e misturar os tempos na cidade ou nas suas formas de representação? A rua é uma paisagem caracterizada pela mudança, e é nas contiguidades desses caminhos de comunicação que se realizam os encontros e as trocas. Mas como cartografar esse “espaço vivido”, esse espaço em constante movimento de ações e tem-

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BRINQUEDO pos? Espaço esse que contrapõe-se ao espaço geométrico do mapa ou plano, ao espaço euclidiano racional, homogêneo e mensurável. Contra a prática do planejamento urbano, a ideia do labirinto nos sugere uma volta à cartografia, que reflete uma situação, acompanhando os movimentos de transformação da paisagem. Um tipo de mapa, pelo qual se pode entrar (cartografia afetiva), um mapa vivido, cartografias da experiência do espaço, cartografias subjetivas, do próprio movimento. Cartografias da temporalidade. No processo de construção destas cartografias, o o pesquisador é um tradutor, não só da narração do habitante, mas do desenho numa forma legível a todos os leitores. Se queremos uma ferramenta que se compare às cartografias clássicas, temos que representá-las sem desenhar uma biografia das pessoas, mas o que elas nos dizem, o conteúdo das suas falas, que nem sempre é claramente representável. É fundamental, ainda, na construção das cartografias, a comparação do qualitativo com quantitativo. Segundo Aléssia de Biase, “a tradução é tudo que o pesquisador entende da entrevista com o morador, então o habitante não marca no mapa sozinho, este é um momento muito importante com o pesquisador, então o pesquisador precisa entender o que o morador está marcando no mapa para depois o pesquisador poder redesenhar o mapa para torná-lo mais legível.” Por isso ela defendo que os arquitetos e urbanistas podem ter uma postura antropológica, se quiserem, abrir para a possibilidade de ver que o mesmo lugar, se temos que falar de espaço, pode ser interpretado, visto e sentido de maneiras diferentes, e que essas outras maneiras participam da construção desse lugar, e constroem também a nossa maneira de olhar a cidade “É como quando os moradores entram no processo e depois saem, tem uma certa blindagem dos arquitetos e urbanistas

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PRÓXIMA PÁGINA: Mapa síntese das memórias de brincadeiras no Calabar e Alto das Pombas (PÁG. 176-177)

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BRINQUEDO que defendem o projeto como algo que tanto do lado da criação quanto do lado da técnica seria só para os ‘iniciados’. Não seria nem participação o termo, porque quando você participa tem sempre alguém que lhe chama para participar, por isso acho que é melhor falar em implicação, que é se sentir, ser ator do processo.” (DE BIASE, 2012)

A MEMÓRIA E O “TELEFONE-SEM-FIO” Das conversas com Rosana - a moça da Biblioteca - sobre as brincadeiras no Calabar e experiência de colocar balanços pela cidade, me trouxe a inquietação de trazer à tona a memória que os adultos tem de “uma cidade que não existe mais”. Do que, com quem e aonde brincavam essas crianças? Como se davam as relações de apropriação da cidade - na escala da casa, da rua, do bairro/favela e da cidade? Numa tentativa de recuperar brincadeiras e espaços que estão guardados na memória e estratificados na cidade. Conversei com moradores do Calabar, Alto das Pombas e Jardim Apipema, apresentando um mapa, onde pudessem me mostrar suas casas, os lugares onde brincavam quando criança, as casas dos amigos e do que brincavam em cada um desses lugares. Das conversas sobre brincadeiras, escolhi três de cada território para trazer ao trabalho. Pretendia construir uma rede, como numa brincadeira de telefone-sem-fio, onde pudesse ir atrás da pessoa com quem o entrevistado brincou. Tecer relações dentro dos territórios percorridos, através dos contatos, brincadeiras e conflitos.

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Mapa s铆ntese das mem贸rias de Agnaldo

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MEMÓRIAS DO CALABAR E ALTO DAS POMBAS AGNALDO, o pequeno marceneiro (45

anos)

Agnaldo trabalha com seu pai na marcenaria que fica ao lado da Biblioteca do Calabar. Começou bem cedo, aos 8 anos. Entre a escola e o trabalho, lhe restava brincar à noite ou durante o final de semana. Mas ele diz que não brincou muito. Além dos afazeres do dia-a-dia, a sua mãe era muito rígida e o “segurava em casa”. A maior diversão de Agnaldo era ver as outras crianças

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BRINQUEDO brincarem, principalmente o seu primo Flávio, mais novo que ele, mas bem mais “rueiro”. Costumava acompanhar o seu primo durante os campeonatos de futebol no campo da Baixa do Bispo e Camarões e ir à praia, que fica a 5 minutos da sua casa. “Chegou uma época que estávamos perdendo muito as nossas crianças. Aqui nessa marcenaria, formamos muitos marceneiros e tiramos meninos das ruas”. Hoje, Agnaldo ainda brinca com seu primo: costumam subir até o Alto das Pombas todos os sábados para jogar vídeo-game. Andando comigo até a casa de Flávio, Agnaldo ia me apresentando as mudanças que viu acontecer no Calabar: “Aqui, nessa rua que a gente está pisando, vira um rio quando chove. E era um rio antes, depois foi tamponado. Mas basta chover, que vai ter sempre rio!”

FLÁVIO, o primo “arteiro” (43

anos)

Brincou de bola, gude,arraia, fura-pé, guiador. Aventuras pela rua do Riacho, na frente da Escola Aberta, rua Nova do Calabar e próximo ao cemitério do Campo Santo. Flávio era um menino “arteiro”, como ele mesmo define. Depois que cresceu, tornouse músico e passou a “brincar de tocar cavaquinho”. Segundo ele, a regra era a seguinte, meninos brincavam com meninos e meninas brincavam com meninas, cada um na sua brincadeira. Quase todos os dias, filava as aulas na escola, para passar de casa em casa, chamando os meninos para brincar. “A criança hoje não joga gude, não empina arraia. Já quer o vídeo-game.” Enquanto listava as inúmeras brincadeiras, lembrou que o primo Agnaldo o ajudava a carregar suas latas de gude e era seu companheiro no futebol que acontecia no campo da UFBA. Mas diferente de Agnaldo, Flávio não brincou somente no campinho que fica ao lado, ele jogou também no campo oficial. Privilégio de poucos.

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Mapa síntese das memórias de Flávio

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Nessa época era só brincadeira, até mesmo as brigas eram “na mão”, segundo ele. “Na outra semana, já éramos amigos novamente.” Era a mãe do menino quem ia na casa do vizinho resolver o problema e ficava tudo certo. “Hoje a gente já não reconhece todos os moradores. Andamos pela rua e já não sabemos saber quem é quem. As amizades aqui estão muito fragmentadas.” “É muito difícil você conseguir fazer ‘essa raiz’ aí, porque as amizades foram cortadas.” Me disse, perguntando e tentando entender o que anotava naquele mapa. Flávio conta que antes do bairro se tornar violento, brincava livremente na rua, mas sua filha já não faz mais isso, principalmente por ser “mulher”. Seus melhores amigos, uns 10 ou 12 meninos da favela moravam no Camarões e foram mortos trabalhando no tráfico. Outros simplesmente sumiram ou foram embora. É por isso que na sua época, os campeonatos e jogos eram tão importantes. Eram eles

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Mapa s铆ntese das mem贸rias de Sandra

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BRINQUEDO que juntavam os grupos. Sobre os lugares de brincar na favela, Flávio conta que no fim de linha da Sabino Silva iriam construir uma área de lazer do Calabar, mas mesmo depois de muitos protestos, perderam a área, que hoje construíram mais um prédio.

SANDRA, “minha memória é aqui em cima” (36

anos)

Já estava indo embora, subindo pelo Alto das Pombas, quando encontrei Sandra cuidando da filha e da filha da vizinha, enquanto brincavam de elástico na porta de casa. Para ela, essa diferença de brincadeiras de menino e menina não existe. Sandra brin-

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PRÓXIMA PÁGINA: Mapa síntese das memórias de brincadeiras no Jardim Apipema (PÁG. 188-189)

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BRINQUEDO cou de tudo, apensar da mãe não gostar que ela saísse de casa: baleado no largo do Alto das Pombas, de bola no largo e na Avenida, jogou muita gude no terreno baldio que existia do lado da sua casa, soltou Arraia na laje da tia, brincou de picula “em todo lugar”, adorava pular corda, elástico, esconde-esconde, amarelinha, peão, 5 pedrinhas, cozido e fazia até desfile com as vizinhas. “Se você fosse fazer isso com ele (o seu filho), só ia ter vídeo-game e escola.” Todas as amigas daquela época, mudaram e foram morar em conjuntos e favelas longe do centro da cidade. Os amigos eram da própria rua e era lá que se dava a maioria das brincadeiras. Quando questionada se brincou também no Calabar, gritou orgulhosa: “Não. Minha memória é aqui em cima!”

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Mapa s铆ntese das mem贸rias de Manuela

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MEMÓRIAS DO JARDIM APIPEMA MANUELA, a “Indiana Jones” da Ondina (27 anos)

Manuela não brincava na rua, por não existir um espaço apropriado para isso. As ruas eram movimentadas e havia o risco de atropelamento. Mesmo estudando numa escola que ficava na própria quadra, a cinco minutos, ela não ia sozinha até uns 9 anos, e ainda assim com sua mãe observando da varanda do apartamento. Ela brincava muito nas áreas comuns do prédio, com as crianças da sua idade. O lugar era espaçoso suficiente para andar de bicicleta, brincar de esconde-esconde, pega-pega,

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BRINQUEDO e brincar de guerra de água com arminhas de brinquedo que vinham em promoções de salgadinho. “Explorávamos as passagens que interligavam os dois blocos, como uma aventura de Indiana Jones.” Era difícil descer a bicicleta pelos 6 lances de escadas, mas uma menina do outro bloco costumava bater na sua porta para ajudá-la a descer. Ficavam bem à vontade no prédio, sem interferência dos pais ou do zelador, mas Manuela lembra que certa vez, recebeu uma bela bronca por jogarem papel higiênico molhado nos carros que passavam pela rua, da varanda do apartamento. Quando saía do prédio para passear era sempre acompanhada dos pais e irmão. Iam muito à praia, na Ondina. “Durante a maré baixa as pedras formavam poços de água com peixinhos aprisionados e perfeitos pra ficarmos brincando dentro. Meu pai ia nessas pedras quando era criança com a tia dele, ela chamava o lugar de piscina das moças.” Manuela lembro também uma época em que reformaram a orla, instalando uma área pública com quadras e outros equipamentos. Mas só jogou basquete lá uma vez, pois era um território ocupado por outro grupo. Ela também costumava ir muito ao zoológico de Ondina, mas em vez de visitar os animais, percorriam uma parte do bosque com trilhas e faziam piqueniques. Até que um dia foram afugentados por um bando de macacos nervosos que, provavelmente, acharam que estavam invadindo seu território. “E onde hoje é um Banco do Brasil, era uma livraria imensa e passei horas por lá lendo de graça. “Me lembro bem de um homem que dormia nas ruas e andava pelo bairro usando uma capa e uma coroa feita de anéis de latinha de refrigerante, Samuca. Eu observava ele com uma mistura de curiosidade e medo, mas ele nunca fazia nada de mal para ninguém. Acho que todos que moraram em Ondina naquela época devem se lembrar dele.”

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BRINQUEDO Sua mãe costumava levá-la para passear no campus da UFBA, só por ser arborizado e ter espaço para correr. Ela tinha alguns amigos que moravam perto, mas nas visitas, brincavam sempre dentro das casas e apartamentos. Depois com a popularização do computador e da internet, “aí que não saiamos mais de casa! Eram horas com a cara grudada nos monitores. Trocamos bastante das brincadeiras por jogos virtuais ou programas de tv à cabo.” “Se brinquei muito na rua, foi no interior, onde minha ‘vó’ morava. E tinha também uma amiga que morava numa favela, subindo para o São Lázaro. “Era um lugar um pouco mais humilde, mas que não passava carro. Dava para brincava na ‘rua’ em frente às casas. É bem engraçado, por que lembro da minha impressão quando fui da primeira vez e me senti em outra cidade, mesmo estando no mesmo bairro.”

BEATRIZ, “o Calabar é alí do lado” (21 anos) Quando criança, Beatriz brincava muito em casa. No playground ou na piscina do próprio prédio. Seu pai morava no bairro do Caminho das Árvores e lá também a cena se repetia. Mas ele também a levava ao “Playland” do Shopping Iguatemi e ao cinema do Shopping Aeroclube. Na companhia do seu pai, também costumava andar de bicicleta no Parque de Pituaçu, andar de “pedalinho” e pescar no Dique do Tororó. Ia, sempre com os pais, à casa de praia em Itacimirim, num condomínio fechado, onde brincava com os vizinhos, sempre em companhia dos pais. Beatriz fez ballet dos 4 aos 7 anos, dança dos 7 aos 17. Mas só a partir dos 12 passou a ir andando até a escola, que ficava a poucos quarteirões de casa. Antes disso, ia de carro com a mãe, com mãe de amigas ou transportes escolares. Só depois dos 11 anos é que passou a ir passear sozinha

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Mapa s铆ntese das mem贸rias de Beatriz

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com as amigas nos shoppings da cidade, onde a maior diversão era ir ao fliperama ou correr na pista desenhada no piso da loja da Centauro. Beatriz tem lembrança de, aos 9 anos, ter morado em Florianópolis (SC), mas lá as coisas eram diferentes: dava para andava e brincava na rua - que não passavam carro algum -; de amarelinha, desenhada com tijolo no asfalto; e foi lá que pela primeira vez fez se aventurou numa trilha. Para ela, Florianópolis “parecia interior”.

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Mapa s铆ntese das mem贸rias de Adele

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BRINQUEDO A menina Beatriz nunca saia de casa sozinha. Nas suas lembranças, seus únicos contatos com a rua que passava em frente do seu prédio, era quando, aos 9 anos, tentava vender pelo portão, as pulseirinhas e cartões que fazia com sua irmã. A Beatriz, estudante de arquitetura e urbanismo, diz que a rua é perigosa, e que já foi assaltada na própria rua. “Tenho medo de assalto, porque o Calabar é alí do lado. Brincar na rua, só em Florianópolis.”

ADELE, “era como se a rua não existisse” (20 anos)

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PRÓXIMA PÁGINA: Cruzamento dos mapas-síntese das memórias de brincadeiras no Calabar, Alto das Pombas e Jardim Apipema (PÁG. 202-203)

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BRINQUEDO Adele também estuda arquitetura e urbanismo. Quando novinha, brincava apenas em casa, depois passou a percorrer o prédio com as outras crianças, de várias idades. O parquinho, a piscina e playground eram cenários para o pega-pega, polícia e ladrão, futebol e bandeirinha. Entre casa de primos e das do grupo de amigos da escola, Adele não faltava às aulas de piano, ballet e inglês. E era na casa da sua avó, no bairro da Vitória, que ela ia praticar o piano. Era entra a Vitória e a Graça, também, que Adele adorava poder andar. Até porque, morando próximo à Av. Centenário, para qualquer coisa, era preciso ir ao Shopping Barra. Adele nunca brincou na rua. Só às vezes, aos domingos, quando ia na companhia dos seus pais ao Farol da Barra, quando a rua era fechava para as corridas. “Praia nunca! Só no Yacht Clube ou na casa de praia em Vilas... parque não, zoológico, muito pouco, praça não, nem rio.” Para Adele, “era como se a rua não existisse, era só um lugar de circular. Era como se tudo que eu precisasse,estivesse dentro do meu prédio, mas hoje eu não vejo nem as crianças brincando no ‘play’.

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PRÓXIMA PÁGINA: Mapa de fissuras, bordas e apropriaço~es (PÁG. 206-207)

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UM OUTRO MODO DE FAZER CIDADE Ouvir e produzir os mapas com as memórias dos adultos - os que brincaram mais ou menos nesses espaços - já é um transbordar pelos lugares das memórias. A partir dessa cartografia síntese, e das apreensões anteriores, onde os movimentos e percursos das crianças apareciam entre bairros e favelas, passei a reconhecer de forma mais clara essas fissuras entre essas duas cidades. É preciso reconhecer que, além de um limite físico (topografia) claro entre o Calabar e o Jardim Apipema, há um psicológico ainda mais forte. Este limite fica claro quando observamos as direções com que se dão os usos e apropriações: na maioria das vezes do Calabar para o Apipema, raramente o contrário. O mesmo limite físico, mas não tão acentuado, já não ocorre com a mesma intensidade entre as favelas do Calabar e Alto das Pombas. A diferença de topografia também existe, mas ao estar na favela, já não sabemos de estamos de um lado, de outro, ou no meio. Mesmo com as brigas presentes entre os bairros, entre as divisões internas no Calabar, ainda assim, essas distâncias são muito menores. O labirinto não é um espaço seguro; é o espaço desorientado de quem perdeu o caminho, seja por ter tido a oportunidade de transformar em dança, o passo de sua caminhada, seja por ter deixado desviar, seja por uma embriaguez do espaço: quem está no labirinto não se perde, pois o próprio espaço já está bêbado. A riqueza das experiências possíveis numa rua não pode ser assimilada por nenhuma instituição pedagógica, sobretudo apreendida em sua totalidade. A rua é, para a criança 205


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BRINQUEDO que brinca, um espaço de liberdade. Os menos dispostos a reconhecê-la como tal, no entanto, chegaram à conclusão que brincar na rua é perigoso. Algo poderia acontecer às crianças; a rua poderia afetar a sua integridade física; há ainda o fantasma dos atropelamentos; outros acidentes possíveis podem resultar das brincadeiras, pois, como se sabe, os maiores nem sempre são tão delicados com os menores. A questão mais séria, no entanto, é a dos perigos que uma criança pode sofrer na sua integridade moral, abrange desde as eventuais perversões dos adultos até os maus exemplos dos colegas. É por isso que o senso comum pedagógico vê a rua como um ambiente pouco sadio para a socialização dos menores. Mas a rua promove o contato com o outro, problematiza o outro. A partir daí se colocam duas questões que decorrem do próprio contato: a da segurança e a da socialização. Ambas constituem dimensões inerentes ao contato e conflito. É preciso saber como evitá-lo ou geri-lo quando se apresenta como incontornável. Quando nos defrontamos com o outro no espaço público, ou trocamos algo com ele, ou evitamos fazê-lo, ou entramos em conflito. Na troca reforçamos o contato; no ato de evitar procuramos neutralizá-lo; no conflito, regras são quebradas ou novas são estabelecidas. Nas favelas, resguardar a integridade física do outro na rua é um assunto de todos. Isso não quer dizer que haja uma interferência contínua nas brincadeiras, divertimentos e atitudes dos pequenos usuários da rua. Ao contrário, não só a vigilância exercida pelos adultos se mantém limitada às necessidades mais urgentes, mas as próprias crianças maiores observam e avisam da aproximação de algum perigo.

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BRINQUEDO As crianças maiores se afastam muitas vezes de casa, ou da própria rua, em busca de lugares convenientes para soltar pipa, jogar bola ou outras brincadeiras. Pulando de trampolins no mar ou andando sobre passarelas de avenidas movimentadas, sob arcos da grande avenida, surgem espaços capazes de se transformar em campos de futebol. O distanciamento físico da casa ou da rua cria um espaço menos controlado, sem entretanto resultar numa “terra de ninguém”. Os que utilizam essas áreas têm uma autonomia maior do que as crianças que brincam nas proximidades imediatas da própria casa. O terreno urbano foi ficando escaço, as casas começaram a ser construídas de modo a poupar espaço. Sacrificandose o quintal e o jardim, colando-se um prédio ao lado do outro. Ao mesmo tempo, reduziu-se ao mínimo a distância física entre as famílias, e cresceu o afastamento social entre ela. As favelas continuam a ir além de seus limites por meio das relações que estabelecem com a cidade, mas extravasam, sobretudo, por meio de ligações sutis e penetrantes na cidade, em relações individuais, já que a maioria dos favelados trabalha nos bairros formais da cidade. A favela acaba por adquirir o estigma da violência, quando poderia ser lembrada pelas suas apropriações espontâneas, riqueza de diversidades e relações. No caso do Calabar, há ainda o agravante da aproximação da instituição polícia. A exemplo da Base de Segurança Comunitária, que criou, dentro da Escola Aberta, uma sala da informática, equipada com computadores. Ali, os Policiais Militares dão aulas e se aproximam das crianças e, consequentemente, das famílias na favela. Segundo alguns moradores, a instalação da sede da BSC trouxe para a favela uma realidade diferente. Distanciando211


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BRINQUEDO se dos discursos pacificadores, e deixando de lado o fato claro de que o tráfico de drogas e homicídios “diminuiu” com a presença dos militares na favela, as abordagens e perseguições se dão de formas violentas e corriqueiras. Todas as ações da polícia são vistas pela população, sem dispensar as crianças. Nas salas de aula da Escola Aberta, algumas das cenas se repetem, em inocentes encenações e brincadeiras de meninos arteiros. Observar desvios nas ruas, as matérias de jornais sobre esses atos sinuosos e, sobretudo, a atenção aos acontecimentos diários, esse conjunto de olhares e percepções me permitiram perceber o quanto ações corriqueiras da Prefeitura e/ou do Estado, tais como fechamento de ruas para manutenção ou criação de ciclovias aos domingos, são capazes de catalizar ações passageiras e desviantes; observa-se também a resposta das crianças aos grandes projetos urbanos impostos à cidade, como a implementação da Nova Orla da Barra ou a existência absoluta da Avenida Contorno. A criança precisa de “quase nada” para desviar fazem uso dos restos, para fazer brinquedo e brincadeira. A criança faz da cidade o seu brinquedo, brinca com o determinado. Desvia às divisões funcionais, funções que nesta pesquisa serviram como uma maneira de perceber, identificar e/ou catalogar uma outra forma de também viver a cidade. As brincadeiras que atravessam à cidade, desviam suas funções, as ordens preestabelecidas. Entre o “aqui pode” e o “aqui não pode”, ou o “isto pode” e o “aquilo não pode”, existem infinitas possibilidades e a criança está na cidade para descobri-las e desvendá-las. E por mais que os adultos digam “isso aí não existe mais”, os pequenos sempre estarão por aí a fazer do trabalho, da circulação e da habitação, 213


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BRINQUEDO lazer. Mas não o lazer “encaixotado” e produtivo, como pretendia os modernos. Até porque, as crianças não respondem a pretensões.

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BRINQUEDO O BRINQUEDO (legenda figurinhas)

Debate por proximidade Debate por oposição A

Carlos Drummond (1966): A cidade sem meninos

A B

Mapa do Arroz de Baixo, Miguel Calmon - BA

B C

Pode um ovo ser um brinquedo?

CD

Registro de passos gingados

D E

Uma passagem para o labirinto

E F

A Escola Aberta e o balanço preso

F G

Entrada das casas e becos da favela

G H

Em Salvador, cadeiras na calçada no lado-Apipema

H I

O monumento que virou brinquedo

IJ

Crianças desviantes entre Brasília e Salvador

J K

Recortes de Jornais - Crianças desviantes

K L

Recortes de Jornais - Adultos desviantes

L M

Balançaê: cartografias de um movimento qualquer

M N

Cruzamento dos mapas-síntese das memórias de

N O

brincadeiras - Calabar e Jardim Apipema

PO

Mapa de fissuras, bordas e apropriações

Q R S T U V

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BRINQUEDO

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Igor Queiroz ThaĂ­s de B. Portela Orientadora FAUFBA . TFG . 2015


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