Desterro __ Expedição Etnográfica de Ficção.

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PROJETO DESTERRO

EXPEDIÇÃO ETNOGRÁFICA DE FICÇÃO

Projeto de Ícaro Lira com colaboração de Ana Pato, Ana Luisa Lima, Beatriz Lemos, Clara Domingas, Francine Jallageas, Lucas Sargentelli, Laura Castro, Manoel Silvestre Friques, Pedro França, Paulo Miyada, Paulo Nazareth, Paula Borghi e Sofia Caesar.

CANUDOS - BA

/ 2012

SÃO PAULO - SP / 2014



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Talvez, ao recolher o que se (nos) encontra aquilo que intercepta o caminho e é quase nada talvez, ao deitar o corpo sobre isto que é resíduo da passagem do dia de um percurso talvez, ao estender o olhar que é captura e gesto de abrir e fechar pálpebras como caixas velam e desvelam talvez, nesta reorganização que é também uma edição escreva-se no espaço

, talvez à sombra do movimento do que se (nos) encontra o movimento do que se (nos) perde – o tempo.

Francine Jallageas

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ROMARIA. Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem. Orós - CE. Novembro, 2012.

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UMA PEQUENA HISTÓRIA1

“UM MAPA DO MUNDO QUE NÃO INCLUA UTOPIA NÃO MERECE SER OLHADO.” OSCAR WILDE2

Criar um enorme inventário, uma lista colaborativa, produzir um arquivo com momentos da história do Brasil, em que seja possível enxergar uma força capaz de mudar o rumo dos acontecimentos. Um mapeamento, de manifestações populares, de projetos sociais, de ações comunitárias e individuais. O critério para entrar na lista? A capacidade, mesmo que, por um breve intervalo de tempo, de deixar transparecer que algo está fora da ordem. Buscar, na acumulação obsessiva de projetos utópicos, a ação do Estado contra movimentos libertários, sejam eles a Revolta dos Malês, a Revolta do Buzu, a Guerra de Canudos ou o projeto de Anísio Teixeira para a Escola Parque. Por que Lampião e Marighella foram enterrados no mesmo cemitério, na Baixa de Quintas? Um cemitério para indigentes. Por que nossas ruas, viadutos e avenidas ainda têm nomes de bandeirantes, de torturadores, de ditadores? Sim, eu sei, “Não há saídas, só ruas, viadutos, avenidas”, escreve Régis Bonvicino. Reunir uma lista interminável de projetos populares que tenham como proposta um Brasil outro, um país que mire suas entranhas. “Há urubus no telhado e a carne seca é servida. Escorpião encravado na sua própria ferida. Não escapa, só escapo pela porta da saída.” Ensejo enterrado no umbigo da poesia de Torquato Neto. A hipótese é que, talvez, assim, possamos perceber a falaciosa atmosfera pacífica que nos habita. Violenta é a força de uma docilidade construída, estamos diante de um momento de ruptura, acredito que não haja mais tempo para voltarmos atrás. Seria possível aproximar Lampião, Marighella e Marcola? Corre o boato de que os black blocs se inspiraram na Revolta da Chibata. Mas o que foi mesmo a Revolta da Chibata? Boato ou não, pouco importa! O que me interessa é a atualização das histórias de luta, afinal, não somos mais tão cordiais. Encontrar, na mobilização popular, novas saídas para um problema real; “...empilhar sobre minha cabeça as cabeças do cangaço, empilhar sobre minha cabeça, cabeças dos negros de África y Bahia” é o que propõe Paulo Nazareth como (re)ação.

1. Conversas com Ícaro Lira sobre o projeto Cidade Partida - Controle Social e Isolamento, 2014 2. Apud Tariq Ali no artigo “O espírito da época”. In: Harvey, David et al. Occupy. Tradução João Alexandre Peschanski et al. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012.


Encontro-me, neste instante, numa expedição mental: arquivar o maior número possível de tentativas para aniquilar projetos populares. A expulsão de Lina Bo da Bahia, a interrupção de seu projeto do Museu para Arte Popular. A morte, causada pela ditadura militar, de Anísio Teixeira e o aborto prematuro de seu projeto de escola-comunitária. Hoje, são as grandes avenidas que separam vizinhos, cimentadas da noite para o dia pelo poder da especulação imobiliária. É essa mesma força que promove a perseguição religiosa e que justifica a desapropriação de terreiros de candomblé e a destruição da vida comunitária e de resistência que os terreirosterrenos garantem. Não posso deixar de pensar que o Instituto Médico Legal Nina Rodrigues foi construído em cima de um terreiro. Esse seria outro mapa instigante – desenhar um mapa com todos os terreiros que foram expulsos, desapropriados, soterrados para dar lugar a shopping centers, vales e viadutos.Contudo, é preciso lembrar que a solução não está no mapeamento, nem na coleta, mas no envolvimento de todos em torno dele. Sim, eu também desconfio da força que a arte tem para resistir ao mercado! Porém, jamais de sua capacidade de emocionar, de seu radicalismo suave. A questão talvez não seja desistir, abrir mão, mudar de rumo, mas criar formas de resistir. Seriam mesmo os missionários os primeiros etnógrafos? Ou apenas mais um boato? Mas, de novo, que diferença faz? Sigo, acreditando que o arquivo é uma máquina de pensar e que a única saída para lidarmos com o futuro de nossas listas infindáveis é a possibilidade de transformar o arquivo em ficção! Este seria, então, o ato mais radical, a liberdade de narrar a história de novo, de novo e de novo.

Ana Pato




O MILAGRE

PARA A MÃE DE MINHA MÃE

De tempos em tempos, eles aparecem cheios de parafernálias e perguntas que não sabemos responder. E passam a nos seguir o dia inteiro, fazendo caretas por detrás de suas máquinas engatilhadas. Querem saber do que vivemos, como vivemos, e eu aponto para a carcaça da vaca derradeira que não sobreviveu ao último estio. Nunca nos deu leite, mas nos ajudava a carregar nossas pás, enxadas, baldes, e o pouco de comer que colhemos insistindo em semear nesse pedaço esturricado de terra. A pobre me fazia companhia. Quando os ossos começaram a apontar sua morte por debaixo das peles, nem considerei a possibilidade de nos fartarmos com seus restos de carne antes que lhe fosse o fim. Pensei comigo mesma que ela já tinha feito tanto. Nos acompanhou fielmente em todas as lidas. E é toda nossa a penitência dessa vida seca até a chegada do milagre que o beato profetizou. A vida debaixo desse céu desanuviado não é feita com palavras. Eles deveriam saber. Que nos levantamos quando amanhã ainda é muito perto de ontem, que é para dar tempo de fazer as muitas léguas até a roça e começar a lavra ao primeiro lumiar. Que é o dia todo de pé, sem sombra e sem trégua. É o sol pesando mais do que o jugo. Todo dia é assim. E a gente se esmaga nesse itinerário. Às vezes acho que temos parentesco mais com a enxada que calejou as mãos do que a vaca que todo dia ao me ver me mugia risonha. São muitos esses que de vez em quando vêm por aqui. Quase nenhum volta. Devem ter muitas perguntas para percorrer. Sabe-se lá o que eles fazem com as respostas por dentro das máquinas.

*** Há tanto tempo que não falamos que é capaz dele ter desaprendido. Eu estou besta comigo mesma de ter acordado disposta a essa falação toda. Fazia dias que não saía da cama. Foi uma fraqueza que me deu.

***


Pouco depois da última chuva, um desses curiosos cumpriu a promessa de voltar. Foi o único. Nos trouxe comida dentro de latas que nos aliviou a fome por mais de um mês. Agora somos três. Eu, meu filho mais novo e meu marido. Todos os outros se foram, inclusive minha única filha. O rapaz que voltou estava sem barba, o que me fez notar como eram bonitos os brancos dos dentes quando falava com um sotaque que nunca soube de onde. Ele me deu de presente uma mulher desenhada detrás de um vidro. Disse que era uma foto que tinha tirado de mim. Senti uma aflição que me estremeceu a espinha. Porque a mulher do desenho é minha mãe. É igualzinha, só é diferente o cabelo. Como pode isso? Minha mãe morreu eu ainda era muito nova – e esse nem sonhava ter nascido. Mas eu ainda me lembro dela. Foi isso que o moço quis dizer quando tirou uma foto de mim? Que ele me tirou a memória? Cada vez mais a cidade vai ficando nua. Imaginei que fosse mesmo acontecer assim: tudo em alvoroço antes do milagre. Se é que dessa vez, finalmente, se cumpre o que o beato dizia.

*** Antes de me adormecer, ele segurou minha mão direita e fez uma prece. Quase deixou derramar uma lágrima. Mas a deve ter preservado. Ou a seca também deu conta de estiar seu choro. Além do que, esse magricela sabe de que não gosto de lamento. Inda mais por conta de uma fraqueza. Meu filho logo depois veio se juntar a ele numa ladainha. Achei bonito isso de juntarmos nossa fé toda naquele quarto para agradecer o milagre. Queria ter feito isso na igreja. Mas até o padre saiu de lá. Faz oito meses que foi morar numa cidade vizinha. Disse: vocês devem ir também. A cidade em breve vai se inundar. Nunca vi padre mais besta, fugir com rabo entre as pernas com medo de um milagre. Nunca gostei daquele padre, sempre desconfiei que seu ofício era o da lamentação. Quando a seca castigava, ele inventava uma novena. Mas jamais houve festa e oração para agradecer uma nuvem branca sequer.

*** Parece que ele estava sabendo que minha cabeça doía tanto que me custava ficar de olhos abertos. Ainda segurando minha mão direita, pesou a sua outra mão na minha testa e depois fechou meus olhos pouco depois de eu lhe dizer: – Me leve. O mar.

*** Hoje acordei tão atordoada que não sei ao certo o quanto dormi. Quando dei por mim, já haviam saído com mais tralhas nas costas do que de costume. Eles ainda iam ali quase no fim da vista, que eram mais de quatro léguas de casa, no sentido contrário do roçado.

*** O sol já ia alto quando terminaram a caminhada de quase dezessete quilômetros em direção à praia que não tinha mar. Um, de um lado, resmungava cansaço


e empurrava com mais força do que devia. O segundo, do lado oposto, em silêncio, apenas meneava a cabeça tentando fazer daquilo instruções suficientes. Puseram os dois os pés na água morna e seguiram açude adentro até a altura dos quadris. Com alvoroço, o primeiro, ao subir, rasgou o antebraço na madeira áspera que contornava a embarcação estreita que oscilou bêbada em sopapos bruscos. O segundo esperou o barco se apaziguar antes de alçar-se com firmeza e se colocar na parte inferior onde adormeciam os remos. Nos primeiros quarenta minutos, deixaram-se levar pelo sussurro do vento que os conduzia para norte. Era lá que encontrariam algo que deveria lhes parecer um esquálido rio, disseram. Foi o tempo de se desfazer de algum cansaço e procurar no alforje um pouco de farinha e melaço para calar a fome. Quando as águas começaram a se tornar turvas, o pai, que estava junto aos remos, pôs-se ao centro e os fez descansar sobre suportes de metal, um de um lado, outro de outro. Iniciou seus movimentos compassados, quatro por quatro. Cada pausa era a chance de retomar o fôlego e contemplar, na superfície calma, as circunferências concêntricas que ganhavam diâmetros e se interseccionavam.

*** A paisagem por ali nunca se modificava. O odor acre arrefecia quanto mais distante das margens. O sol já estava perto de se pôr. O trajeto se deu num sem diálogo. O pai cada vez mais encorporado aos remos como se fossem seus próprios braços. O filho, em sua inquietude, procurava manter-se ocupado tornando em pequenos rasgos os vestidos da mãe. Um vento quente e seco os abraçou em uma sensação de torpor. Mais um pouco avistariam a bandeira branca. Desenharam um arco sobre a água avermelhada, aproximaram-se da margem, desceram. Arrastaram a embarcação por poucos metros e a fizeram inclinar sobre duas hastes de madeira. Aquela arquitetura lhes serviria de abrigo. A existência dali em diante deveria estabelecer-se por recurso próprio. Os arredores teriam que dar um jeito de oferecer todo tipo de provisão: saciar fome, sede e a necessidade de banho. O filho ficou para trás quando o pai lhe tomou o alforje das mãos e seguiu irresoluto sem parecer se importar com a direção. Não demorou para que as fendas do caminho começassem a se agravar. Parou. Pesou sobre seus joelhos e pôs-se a remendar o solo com os vestidos em farrapos.

*** No mesmo dia em que ganhei o desenho de minha mãe, o rapaz me trouxe também o desenho do mar. Quando o beato profetizou nossa sorte, esqueceu de dizer se seria antes ou depois que as árvores nasceriam em pelotões.

Monte Santo – BA.

Ana Luisa Lima

Junho, 2012.







Cidade Partida. Canudos – BA. Julho, 2013.




A partir do convite de Ícaro Lira para a Expedição Etnográfica de Ficção em Canudos, uma semana antes da inauguração da 3# Bienal da Bahia, apresento esse ensaio a fim de narrar um pouco dessa experiência. Foram sete dias de expedição na companhia de Ícaro Lira e Beatriz Lemos; com a passagem de Manoel Silvestre Friques e Paulo Nazareth; e a presença de Pedro França via pensamento. Chegamos na calada da noite em Canudos, uma cidade que dorme com o sol se pondo e acorda com os berros dos bodes. Nos hospedamos na Pousada Pôr do Sol, situada na casa do DNOCS, Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, construído no ano de 1951 pelo presidente Getúlio Vargas, ano que marca o início da construção do açude de Canudos. Estimulados pela produção de Ícaro Lira, compartilhávamos de uma inquietude ao visitar o Parque de Canudos, a fim de viver um pouco do que está presente nos trabalhos do artista. Essa foi a primeira parada da expedição, e passamos o dia com a consciência de que lá havia muito mais gente nos acompanhando de alguma forma. Euclides da Cunha esteve presente na voz de Manoel Silvestre Friques, que buscava, a partir da literatura, construir a história daquele sítio arqueológico que hoje é o parque. Beatriz Lemos ressuscitava os negros que lutaram durante as batalhas, os mesmos que fundaram a primeira favela no Rio de Janeiro. O Parque de Canudos foi cenário de quatro batalhas que deixaram cerca de cinco mil e duzentos mortos e uma cidade em chamas durante o período de junho a


outubro de 1897. Já a segunda Canudos, construída sobre a primeira, foi coberta pelas águas do açude que hoje abastece a região. A dor de uma memória abafada lateja em meio à paisagem seca que contrasta com o mar artificial. Antônio Conselheiro já dizia “o sertão vai virar mar”, porém, certamente não era isso que ele idealizava. Para onde olhávamos havia destruição. Lembrei-me do poema “Torso arcaico de Apollo” de Rainer Maria Rilke, que fala de um corpo que não tem cabeça, mas que mesmo assim tem um olhar que “salta e brilha”. É esse o corpo de Canudos, destroçado, decapitado, de um povo sofrido, castigado pela seca e pelo Estado, e que até hoje não tem seu devido reconhecimento. Porém, mesmo com todas as dificuldades, trata-se de uma cidade que segue com força para seguir viva e contar sua história para os que não a conhecem. A não delimitação do corpo de Apollo tem a mesma força que os vestígios da primeira e segunda Canudos, e são esses indícios partidos que nos convocam a exercitar nossa capacidade fictícia para pensar e contar histórias. Foram muitas as ficções encontradas nesse breve período de expedição, que envolvem desde uma cidade submersa até a réplica de um meteorito e a aparição de uma santa. No povoado Bendegó, que faz parte do município de Canudos, foi encontrado o segundo maior meteorito do Brasil. O meteorito logo foi removido para a cidade do Rio de Janeiro, onde é exibido no Museu Nacional Quinta da Boa Vista, pertencente a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). O que restou para o povoado é uma réplica de gesso que encontra-se no Museu do Sertão, em Monte Santo, e a história de um dia ter recebido um “milagre” que caiu do céu. E, se pensarmos no poema de Rilke em relação à réplica do meteorito, é possível dizer que ela se assemelha à estátua desfigurada de Apollo, visto que, em ambos, o discurso só é possível pela presença da deficiência da matéria. São imagens que suscitam que a ideação é de quem as vê, o meteorito por não ser o original, e Apollo por não apresentar-se em sua concepção originária.


Já em Euclides da Cunha, a história é outra. A recente aparição de uma santa aquecia a boca do povo, que falava baixo a respeito do assunto, com receio de que o acontecido chegasse aos ouvidos do padre.

Dona Chica foi quem teve a visão, junto de seu marido e algumas crianças do bairro, um bairro de chão de terra vermelha e casas com hortas. Chica da Valentina – como é conhecida – nos contou como sucedeu a aparição, discorrendo sobre a cor do manto, a feição e a posição da santa. Como em “Torso arcaico de Apollo”, Chica narra “sua imagem” a partir do que viu, e não do que vemos. Pois, da mesma forma que o poeta enfatiza a imagem de Apollo a partir da falta, a narrativa da visão da santa tem a mesma força que as palavras escritas por Rilke, ambas discursam sobre aquilo que não vemos. Neste sentido, olhar para a primeira e a segunda Canudos, afogada pelas águas do açude, assim como para a réplica do meteorito de Bendegó e escutar o relato de Dona Chica, passam a mesma sensação descrita por Rilke em seu poema. Não conseguimos ver e/ou andar pelas ruínas de Canudos, da mesma forma que os moradores de Bendegó nunca saberão como é realmente o meteorito que um dia caiu do céu e como é a imagem da santa cuja aparição não presenciamos. São histórias que têm como narradores a própria ficção. Eu vi o sertão virar mar.

Paula Borghi


Torso arcaico de Apollo

Não sabemos como era a cabeça, que falta, De pupilas amadurecidas, porém O torso arde ainda como um candelabro e tem, Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta E brilha. Se não fosse assim, a curva rara Do peito não deslumbraria, nem achar Caminho poderia um sorriso e baixar Da anca suave ao centro onde o sexo se alteara. Não fosse assim, seria essa estátua uma mera Pedra, um desfigurado mármore, e nem já Resplandecera mais como pele de fera. Seus limites não transporia desmedida Como uma estrela; pois ali ponto não há Que não te mire. Força é mudares de vida.

(Poema de Rainer Maria Rilke, 1926 Tradução de Manuel Bandeira)



ROMARIA. Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem. Estrada do Algod達o CE-060. Novembro, 2012.



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ROAD - Residência Móvel. Capacete Entretenimentos. Julho, 2012. Canudos – BA. Lucas Sargentelli.


Mapa 2014. Ă?caro Lira







Pedro Franรงa, 2014. Carvรฃo e nanquim sobre papel.





CANUDOS: UMA E DEZ CIDADES

Mil setecentos e alguma coisa quando uma aldeia ao norte da Bahia nasce como se sem pretensões de futuro ou história. Empresta da fazenda mais próxima seu nome: Canudos.

*** Na última década antes de principiar o século XX, a aldeia cresce vertiginosamente e recebe uma nova alcunha: Belo Monte. Para melhor aguardar uma futura graça divina, despossuídos do nordeste do país decidiam construir o seu presente por si mesmos, longe da guarda dos antigos senhores – de engenho – e dos novos flagelos – tributários. Soberanos em sua submissão a senhores ausentes – Deus e o Rei – aglutinaram-se em torno de Antônio, transformando a terra, trabalhando o homem e vivendo a luta, esta última que se repetiu uma, duas, três e quatro vezes. Conheceram a ira dos novos flagelos instigados pelos antigos senhores. Mais rápido do que cresceu, a cidade foi destruída, deixada como ruína manchada de sangue, cinzas e pólvora.

*** Mesmo com todo o sangue e todas as cabeças cortadas, das mais de vinte mil pessoas massacradas sobrou o que chamamos de sobreviventes – incluindo os soldados republicanos que deixaram-se ficar nos arredores das ruínas. Mais de dez anos depois, refundaram a cidade de Canudos, agora carregada por histórias, mas novamente sem promessa de futuro.

*** Pouco antes da Segunda Guerra Mundial, o sonho desenvolvimentista inundava a imagem populista do país e acabou por prometer inundar, também, Canudos.


O sertão não virou mar, mas a antiga/nova cidade foi substituída, já durante a ditadura militar, por um açude, promessa de abundância para a região. A região, bem, não se tornou tão abundante, mas um novo vilarejo cresceu durante a construção da barragem. Cocorobó era o nome da fazenda que foi emprestado à barragem e depois ao vilarejo, mas, quando este cresceu um pouco e virou cidade, na década de 1980, resolveu exumar o título de Canudos, impregnado com ainda mais história e, aparentemente, menos futuro.

*** Com pouca terra fértil, a Canudos que iniciou o século XXI é magra. Guarda algumas raquíticas lembranças em memoriais improvisados e na conversa fiada dos mais velhos. Pouco planta, pouco produz. A principal fonte de renda para muitos dentre os que não debandaram dali são as bolsas-auxílio do governo federal. O tempo passa enquanto os moradores colhem os frutos secos das decisões de Floriano Peixoto, Getúlio Vargas, Collor, Lula e tantos outros.

*** Contra os prognósticos mais prováveis, Canudos adentrou a segunda década do século XXI como uma promessa de futuro. Com os planos do novo governo federal – interessado em reestabelecer uma imagem populista e desenvolvimentista no país após todo o sofrimento dos jogos olímpicos – a cidade possui uma obra arquitetônica de excelência em construção (o Museu da Seca projetado pelo escritório da mais famosa arquiteta iraquiana na história), um sítio de grande potencial turístico (o Parque Canudos, antiga Estação Biológica aprimorada com duas montanhas russas e um teleférico) e um setor produtivo em ascensão: a agricultura industrial promovida com o aproveitamento da água do açude (após as intervenções técnicas que transformaram o pH básico da água na região). A população tem crescimento positivo após muitos anos de envelhecimento e retração, o que incentiva também novos lançamentos imobiliários ao pé do açude, sobre as ruínas de Canudos Velho.

*** A crise econômica dos anos 2070 fez-se sentir por todo o nordeste do país, deixando a cidade de Canudos em suspensão. Com a quebra da indústria de agricultura e a retração do turismo, entraram em colapso as linhas de crédito e financiamento onipresentes nos novos lançamentos do Bairro Novo de Canudos Velho – foi o que desencadeou o fechamento do principal banco da região e a demolição de diversas obras em construção.

*** Alguns anos antes de encerrar o milênio, no aniversário da destruição de Canudos/Belo Monte, um grupo de jovens idealistas resolve promover uma nova peregrinação à cidade. Eles passam direto pelas cidades fantasmas deixadas em torno do açude e constroem um deck flutuante sobre as águas, em torno da torre da igreja submersa que ainda se via em épocas de seca. Aplicando todos os saberes aprendidos nas grandes cidades sobre viver e comer de forma saudável e contando com um sistema de autogestão, os jovens conseguem implantar


CANUDOS: UMA E DEZ CIDADES

Mil setecentos e alguma coisa quando uma aldeia ao norte da Bahia nasce como se sem pretensões de futuro ou história. Empresta da fazenda mais próxima seu nome: Canudos.

*** Na última década antes de principiar o século XX, a aldeia cresce vertiginosamente e recebe uma nova alcunha: Belo Monte. Para melhor aguardar uma futura graça divina, despossuídos do nordeste do país decidiam construir o seu presente por si mesmos, longe da guarda dos antigos senhores – de engenho – e dos novos flagelos – tributários. Soberanos em sua submissão a senhores ausentes – Deus e o Rei – aglutinaram-se em torno de Antônio, transformando a terra, trabalhando o homem e vivendo a luta, esta última que se repetiu uma, duas, três e quatro vezes. Conheceram a ira dos novos flagelos instigados pelos antigos senhores. Mais rápido do que cresceu, a cidade foi destruída, deixada como ruína manchada de sangue, cinzas e pólvora.

*** Mesmo com todo o sangue e todas as cabeças cortadas, das mais de vinte mil pessoas massacradas sobrou o que chamamos de sobreviventes – incluindo os soldados republicanos que deixaram-se ficar nos arredores das ruínas. Mais de dez anos depois, refundaram a cidade de Canudos, agora carregada por histórias, mas novamente sem promessa de futuro.

*** Pouco antes da Segunda Guerra Mundial, o sonho desenvolvimentista inundava a imagem populista do país e acabou por prometer inundar, também, Canudos.


Cabeças de Lampião e Maria Bonita Acervo do Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima. Salvador – BA


um sistema de piscicultura no açude. Forma-se uma cidadela alternativa e esperançosa sobre seu futuro, decidida a sustentar-se como uma comunidade autossuficiente, isolada dos desmandos de um país dividido pelos incessantes conflitos civis.

***

Com o passar dos anos, Canudos Sobre as Águas, como foi chamada, cresceu e consolidou-se como lugar de encontro para toda a juventude do Brasil e da América do Sul desejosa de construir suas próprias condições de soberania. Agora, além do deck flutuante sobre o açude, a cidade conta com a ocupação intensiva do esqueleto de concreto e ferro deixado pela obra nunca concluída do Museu da Seca e, também, das infraestruturas antes abandonadas do Parque Canudos. Trabalho, habitação e lazer, respectivamente, transformaram esses lugares com o mínimo investimento e a máxima concatenação de esforços. Em toda parte, fala-se de Canudos e seu ideal. A imagem de Antônio Conselheiro foi reinventada como símbolo gráfico, estampando a nota de maior valor da nova moeda única da América do Sul.

*** Mais uma vez, há luta, agora entre as famílias fundadoras da nova cidade. O crescimento econômico na quarta década do século XXII alimentou conflitos ideológicos e financeiros entre as linhagens responsáveis pela maior rede de produção de proteína animal do nordeste brasileiro. Após centenas de processos legais, os conflitos tomaram as ruas, resultando em uma balbúrdia que poderia ser identificada como princípio de uma guerra civil. Em uma atitude desesperada, a frente mais idealista do conflito resolveu implodir as barragens que mantinham represadas as águas do açude original de Canudos e dos outros oito açudes construídos com apoio do governo estadual. A inundação tomou toda a região, matando mais de trezentas mil pessoas e criando o maior lago artificial do planeta onde outrora havia apenas o solo seco do sertão.

*** Cinquenta anos depois da tragédia, as famílias dos sobreviventes transformam um povoado em uma nova cidade, chamada, simplesmente, Canudos. Há mais de duzentos quilômetros e quatrocentos anos do assentamento original, vive-se com recursos paupérrimos, graças aos programas de suporte à miséria promovidos pelas agências humanitárias internacionais. Sem futuro, a população só teme uma coisa: estar destinada a guardar mais história.

Paulo Miyada



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Nova Jaguaribara - CE. Julho, 2012.


CANUDOS E A INVISIBILIDADE DOS SERTÕES

UMA VEZ ERGUIDA, NENHUMA PONTE PODE DEIXAR DE SER PONTE SEM DESABAR. FRANZ KAFKA

Elege-se aqui quatro imagens de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que servem de provocações ao novo trabalho de Ícaro Lira. A estratégia subjacente à empreitada parte de uma inversão de valor de algumas imagens utilizadas pelo engenheiro para descrever o sertão brasileiro. Sendo assim, retoma-se algumas metáforas euclidianas a fim de potencializá-las poeticamente – tal movimento suscita desafios com os quais, na minha opinião, o artista cearense deverá lidar.

1. EUCLIDES, O FAZEDOR DE PONTES OU “PONTES HISTÓRICAS EM UMA CULTURA DA MEMÓRIA”

“Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se, impacientes, em roda. Nada veem.” (CUNHA, 2001, p. 357).

Dentre as atribuições profissionais de Euclides da Cunha, encontra-se uma sugestiva, a de construtor de pontes. Talvez a mais famosa seja aquela sobre o Rio Pardo, no interior de São Paulo, cujo projeto de reconstrução foi, em 1898, paralelo ao término da escrita de “Os Sertões”. O engenheiro, no entanto, não construía apenas pontes concretas, mas também estruturas discursivas e enquadramentos historiográficos. Pontes, a bem dizer, que, a despeito de não serem físicas, resistem ao tempo tanto quanto aquelas. Os recursos empregados para tal filiam-se a um projeto civilizatório positivista no qual impera uma abordagem determinista. Ora, se o autor é capaz de construir uma ponte histórica daquele que é um dos eventos mais marcantes do processo identitá-


rio brasileiro, esta ponte – partindo da barbárie rumo à civilização – é incapaz de suportar a complexidade das transformações culturais contemporâneas. A falência da razão iluminista manifesta nos horrores do Holocausto, dos neocolonialismos, do apartheid e de outras guerras e manifestações mais recentes obrigou a ponte progressista a ruir. Isto é, em Euclides da Cunha, se o conflito ainda poderia pressupor a ilusão de uma civilização ideal, em progresso, a partir de uma abordagem comtiana (não esqueçamos o que está escrito em nossa bandeira nacional), a mesma opção só poderia ser atestada atualmente à custa de uma total ausência de sensibilidade e de uma cegueira (ana)crônica. Não é possível elaborar uma história-literatura como fizera Euclides da Cunha. Se o discurso histórico não está mais a serviço de um projeto civilizatório, a que ele estaria vinculado? Para tentar responder a esta questão, é preciso considerar o caráter barroco de nossa era, povoada por imagens-cópias sem original, signos de signos que se repetem ad infinitum. Neste contexto, sublinha-se a vocação memorialista, traduzida na emergência de uma cultura e de uma política da memória totalmente atreladas à aceleração do tempo resultante das obsolescências programadas e do instantaneísmo das chamadas novas tecnologias. Caracteriza a condição contemporânea a tentativa de suprimir os vácuos resultantes da incessante aceleração do tempo por meio da produção de memória. Em muitos casos, esta é reconstituída pela história, entendida aqui como a vontade de contar e expor tudo, nos mínimos detalhes, sem que nada fique ausente. À angústia e ao vazio do tempo acelerado, respondemos com a abundância memorialista. Em termos gerais, os mínimos detalhes e os fatos exaustivamente relatados são entrelaçados em uma narrativa sintética e compacta, configurando um neo-historicismo manifesto, sobretudo, em remakes, biografias e histórias onde qualquer semelhança não é mera coincidência. Um fato incontestável à disseminação da cultura da memória é a presença das operações da história no mercado simbólico do capitalismo tardio; estas proliferam nos diversos canais televisivos, nas telas de cinema, nos memoriais e nas estantes das livrarias, disneyficando o passado. A memória está na moda, sendo a sua principal característica a síntese, a inteligibilidade do sentido. Há sempre uma moral estampada no cartaz, oferecendo-nos a liberdade de comprar pronto e, assim, não pensar. De certo modo, esta abordagem do discurso histórico, com sentido unívoco e teleológico, assemelha-se à ponte de Euclides da Cunha. Neste último caso, proliferam descrições minuciosas de batalhas, floras e faunas. Estabelece-se uma linha divisória entre republicanos e seus opositores; entre bárbaros e civilizados (“Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos.”, diz o autor (2001, p. 157); reprova-se a mestiçagem (“A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior” (2001, p. 199), “O mestiço – mulato, mamaluco ou cafuz – menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores” (CUNHA, 2001, p. 200)). Seria possível esta história completa? Seria mesmo factível tal ponte em pleno século XXI? Como produzir história com pensamento? À abundância de detalhes, devolve-se a ausência; esta sim parece respeitar o tempo distendido do pensamento. E mais, a memória dos mortos. Aqui, adentramos no terreno do novo trabalho de Ícaro Lira. Não que Canudos sofra de uma ausência de relato: o que Os Sertões inauguraram foi, indubitavelmente, o discurso historiográfico


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sobre o fato, retomado diversas vezes, como comprova filmes de época (Guerra de Canudos, dirigido por Sérgio Rezende, assumindo José Wilker o papel de Antônio Conselheiro), disciplinas escolares (nas escolas do sertão baiano, há uma disciplina voltada especificamente ao tema, A História de Canudos), livros didáticos e empreitadas teóricas (como, por exemplo, Terra Ignota, de autoria de um de nossos maiores intelectuais, o maranhense Luís Costa Lima). Canudos está inundada de discursos e reconstituições históricas, portanto. Fala-se sobre a Guerra; escreve-se tal história; reconhece-se Antônio Conselheiro, como louco ou líder preocupado com a justiça social. Qual, então, seria o motivo para mais um trabalho sobre o tema? Justamente aquilo que escapa ao discurso, aquilo que as palavras não podem jamais expressar. A experiência de uma história ausente de que se comenta aqui parece possível, por exemplo, em uma visita ao Parque Estadual de Canudos, onde, de fato, não há nada para ver, a não ser a tirania opulenta da caatinga brasileira. Neste sentido, deve ser ressaltada a impertinência dos imensos painéis com fotografias instalados, em suportes de vidro, nas extensões do parque, visto que eles vão de encontro ao grito mudo que se busca delinear. O terror da Guerra, os milhares de feridos e mortos, a resistência do movimento conselheirista: tudo está invisível. Está, todavia, lá, presente, enraizado na paisagem. Inundada, destruída, desaparecida, Canudos esconde-se em uma paisagem que solicita a experiência. Para entendê-la, é preciso estar a pé sob sol escaldante, perder-se em meio à paisagem deslumbrante em pleno sol a pino, sentir faltar o ar, lançar o olhar até os limites da visão, resistir à sede e à fome em pleno deserto semi-árido, deixar que os espinhos arranhem os caminhos, iludir-se com os sinos de vacas e cabras camufladas na vegetação. A bela paisagem sobrevive graças aos terrores dos que ali batalharam. Na insignificância do visível reside uma história pesada e ausente, evocada a cada passo, a única capaz de propor uma imagem adequada à situação, justamente por, através da experiência, solicitar a nossa imaginação. Só assim é possível ouvir os mortos. É ainda mais significativa a solicitação de uma história ausente para a história da arte brasileira que, segundo os nossos melhores críticos, é fantasmática, modesta e até mesmo inexistente. Não que tenhamos que pavimentar as fissuras, de modo a criar um meio de arte estruturado. Propõese, na realidade, pensar essa história da arte ausente de modo positivo (e não positivista).


2. INSULAMENTO

“Ora, toda essa população perdida num recanto dos sertões lá permaneceu até agora, reproduzindo-se livre de elementos estranhos, como que insulada, e realizando, por isso mesmo, a máxima intensidade de cruzamento uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido, completo [...] Causas muito enérgicas determinaram o insulamento e conservação autóctone” (CUNHA, 2001, p. 195). “Insulado deste modo no país que o não conhece, em luta aberta com o meio, que lhe parece haver estampado na organização e no temperamento a sua rudeza extraordinária, nômade ou mal fixo à terra, o sertanejo não tem, por bem dizer, ainda a capacidade orgânica para se afeiçoar à situação mais alta” (CUNHA, 2001, p. 237 - 238). “Insulado no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico só podia fazer o que fez – bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas” (CUNHA, 2001, p. 502).

Em “Os Sertões”, a imagem do insulamento caracteriza o modus vivendi do sertanejo. Geograficamente, os habitantes de Canudos estariam isolados devido à incomunicabilidade imposta pelo clima e pela vegetação. Historicamente, estes brasileiros estariam fora do tempo, na medida em que representavam um ponto fora da curva progressista. Mas nem mesmo brasileiros poderiam ser; pois, distantes dos princípios federativos que caracterizavam os centros urbanos, os sertanejos estariam também fora do Brasil. Propõe-se aqui a retomada da imagem do insulamento, enxergando nela um poderoso procedimento poético. Neste sentido, articula-se a imagem científico-literária de Euclides da Cunha com o conceito de “desfamiliarização” do formalista russo Viktor Chklovski. Tal noção prevê uma distinção entre a língua prosaica e a língua poética, na medida em que a primeira aposta no reconhecimento do objeto enquanto a segunda aposta em sua visão. Presente sobretudo na comunicação cotidiana, a língua prosaica caracteriza-se por um processo de automatização perceptivo. Neste contexto, a singularização dos objetos só é possível via procedimentos poéticos capazes de devolverem às coisas a originalidade do vivido. Ora, a singularização nada mais é que a proposição de um insulamento. Sendo assim, insular o objeto é retirá-lo da esfera rotineira, situá-lo fora do tempo-espaço habitual de modo a renovar percepções, preservar diferenças e gerar enigmas. A imagem do insulamento, compreendida pelo conceito de “desfamiliarização”, parece atuar de modo a pôr em xeque a própria prevalência do conceito. Pois, se é fato irrefutável que precisamos de conceitos, eles, por sua vez, acarretam em certos prejuízos devido à redução que propõem frente à inesgotabilidade do real. Com o intuito de salvaguardar a vivacidade das coisas, devemos insulá-las, sublinhando a insubordinação do singular frente ao universal (note-se que o insulamento não se refere ao deslocamento para o ambiente asséptico do cubo branco).


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3. ÍNDICE

“O sertão de Canudos é um índice sumariando a fisiografia dos sertões do Nordeste” (CUNHA, 2001, p. 109). “A sua religião é, como ele – mestiça. Resumo dos caracteres físicos e fisiológicos das raças de que surge, sumaria-lhes identicamente as qualidades morais. É um índice da vida de três povos. [...] Não seria difícil caracterizá-las como uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização” (CUNHA, 2001, p. 238 - 239).

Mestiço insulado: é esta a imagem paradoxal proposta por Euclides da Cunha para caracterizar os jagunços nordestinos. A tensão aqui advém da mistura, por um lado, e do isolamento, por outro. Pois, como seria possível a miscelânea no seio de um retraimento? A solução talvez venha justamente da noção semiológica do índice. O índice é um rastro. Como tal, ele funciona como a presença do ausente. A fumaça que aponta para o fogo; a pegada que sugere o passo; a sombra projetada; o registro fotográfico de um evento passado. Se assim é, há no índice uma relação direta, de derivação física, conforme teorizou Charles S. Pierce. No contexto sertanejo, o índice surge na terra, na religião e na raça. Ele está, com isso, em todo lugar. Sem, todavia, propor um movimento de síntese entre os elementos, há que se considerar a imagem do índice ao se abordar Canudos. Pois, a fim de respeitar a sua especificidade semiológica, é preciso apostar na lógica dos sintomas que, apesar de apostar em uma contiguidade, se contrapõe, por sua vez, à pretensão à totalidade de uma obra completa, de uma história compacta. Um trabalho sobre Canudos talvez deva considerar, portanto, a natureza indicial do objeto investigado.


4. FÉ: RELIGIÃO E CIVILIZAÇÃO Abundam, no épico euclidiano, imagens de Antônio Conselheiro como o messias insano capaz de provocar desordens sertanejas. Tido como um documento vivo de atavismo, o líder religioso é retratado como falso apóstolo reinando em um ambiente marcado pelo obscurecimento da razão. É possível escusar o autor pela sua fé positivista, dado o seu contexto histórico anterior às grandes catástrofes do século XX. Até mesmo porque Euclides da Cunha, já na parte final de seu relato, trata de estabelecer um paralelo entre o messias religioso e o messias republicano, nivelando a crença republicana e a fé religiosa:

“A luta pela República, e contra os seus imaginários inimigos, era uma cruzada. Os modernos templários, se não envergavam a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz aberta nos copos da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável. Os que daquele modo se abatiam à entrada de Canudos tinham todos, sem excetuar um único, colgada ao peito esquerdo, em medalhas de bronze, a efígie do marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória – com o mesmo entusiasmo delirante, com a mesma dedicação incoercível e com a mesma aberração fanática com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus misericordioso e milagreiro...” (CUNHA, 2001, p. 617).

Depreende-se daí o caráter místico da empresa republicana, igualando-se esta à religiosidade dos conselheiristas. Tal paralelo conduz à constatação de uma mudança de ênfase de seu autor, propondo-se ele, por sua vez, a relativizar a perspectiva progressista a partir da equiparação entre religião e civilização. Ao lado disso, deve-se levar em conta, conforme Benjamin, que “a história da arte é a história das profecias”. Sendo assim, o artista seria também um indivíduo acometido por visões de outros mundos possíveis. O trabalho de arte seria então uma profecia, tanto religiosa quanto civilizatória. Sob tal perspectiva, caberia, por fim, indagar: qual a pertinência de imagens provenientes, não dos grandes veículos publicitários (que nos condicionam à Civilização das Imagens), mas das cosmologias pessoais? Que espécie de validade teriam estas ficções, construções pautadas em sonhos, visões e até mesmo alucinações? Referência Bibliográfica CUNHA, Euclides da. Os Sertões – Campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001

Manoel Silvestre Friques


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As Prisioneiras, Flávio de Barros. Canudos – BA. 1897.

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ROAD - Residência Móvel. Capacete Entretenimentos. Julho, 2012. Canudos – BA. Lucas Sargentelli.



ROAD - Residência Móvel. Capacete Entretenimentos. Julho, 2012. Canudos – BA.


Vetor — Atelier Subterrânea Bojuru – RS. Março, 2013.



DE QUANDO APRENDEMOS A RESISTIR

Neymar tem cinco anos. Menino pequeno, negro, magricela. Tão tímido que se fosse possível ainda estaria escondido debaixo da saia de sua avó, como fez até uns três anos, mais ou menos. Mas o menino franzino chama a atenção de quem o vê. Para seu azar, seus olhos brilham tanto, tanto que parecem duas jabuticabas molhadas. Não passa despercebido de jeito nenhum um olhar que leva a pessoa ao longe. Parece até que para um tempo futuro. Seu melhor amigo se chama Tiago e é um pouco mais velho, tem sete anos. Este, de maior estatura e corpo mais forte, aparenta uns nove, quase dez. Ao contrário de Neymar, Tiago gosta de falar, conversador, conta uma história como ninguém. De sorriso grande, consegue tirar umas boas risadas do amigo quieto. E é seu protetor quando as outras crianças cismam em implicar com o pequeno. Os dois meninos se divertem jogando futebol. Queriam colecionar as figurinhas da copa, mas brincam de decorar os nomes dos jogadores de todas as seleções que vieram para o Brasil. Assistem aos jogos quando encontram uma televisão na rua. A seguem pela gritaria dos vizinhos. Se juntam à festa, dão boas risadas, torcem, mas na verdade, gostam mesmo é de empinar pipa. Eles falam que com a pipa podem voar e não entendem porque as pessoas ficam felizes se essa Copa do Mundo fez tanta gente chorar. Neymar foi batizado assim por causa do craque. Lógico, pois antes da fama do jogador, com sua viagem aos 14 anos para Barcelona, quase ninguém se chamava assim. Agora parece um nome comum nas maternidades de toda América do Sul. Tiago já não. Foi um nome dado por sua prima mais velha. Mas, pela coincidência de ter o sobrenome Silva, se tornou também uma homenagem, só que ao capitão do time da seleção de 2014. Quando estão juntos, escutam de um tudo, até de que são heróis nacionais. Não entendem muito, pois na escola aprenderam que o herói cuida do povo. Ficam sempre na dúvida do que aquilo quer dizer, mas se gabam, pois deve ser coisa boa ser herói, ainda mais do país inteiro.




Já é tradição na família do menino Neymar os nomes de heróis: seu pai Ronaldo, tio Romário, bisavô Kenedy, tio-bisavô Juscelino, tataravô Getúlio, pentavô Baltasar com seus irmãos Gaspar e Belchior, e o poliavô, o primeiro da linhagem dos famosos, se chamava Antônio e chegou ao Rio de Janeiro ainda na barriga da mãe. Vieram do interior da Bahia para morar na capital, pois seu pai, Arquimedes, foi soldado de guerra. Muito católico, mesmo lutando contra o arraial de Canudos, batizou seu primeiro filho carioca com o nome do beato Conselheiro. Dizia que traria bonança pra vida nova. Essa história de Canudos os meninos sabem de cor, pois adoram conversar com o tataravô de Neymar, Seu Getúlio, que é o contador de histórias da região e durante o dia, cuidador de muitas crianças da vizinhança. Com quase 80 anos, Seu Getúlio, quando jovem, trabalhou como pedreiro na construção da cidade em forma de avião, a nova capital do Brasil, onde seu filho Juscelino nasceu – o único parente que não é da gema. Como se acidentou logo cedo, decidiu voltar com a família para sua cidade natal, e desde então se dedica ao estudo da História do país. Muito simpático e falador, tinha o sonho de ser professor em escolas, mas como não conseguiu completar os estudos, fica por aí ensinando as crianças através de seus contos. Seu maior orgulho é ser neto de Seu Antônio, um dos fundadores do Morro da Providência, antigo Morro da Favela, onde toda sua família nasceu e cresceu. Por saber de História, não se orgulha tanto assim de seu nome, diz que ele representa só uma parte do ex-presidente. A parte do homem que um dia sonhou mudar seu país para os trabalhadores. Do conhecido político não gosta muito de falar, só indaga a quem pergunta: “O que você acha de uma pessoa que pensou ter o poder de apagar com água, com uma desculpa esfarrapada de açude, a memória de uma luta pela terra? O que você acha de um senhor governante que inventa, da cabeça, que pobre, nordestino, fugindo da seca, tinha que morrer pior do que bicho naquelas fazendas do Ceará para não chegar à capital?” E sempre finaliza rindo de deboche: “Ainda bem que eu não corro o perigo de consciência de me suicidar!” Seu Getúlio sabe de muitas histórias sobre o povo nordestino por admiração a seus bisavôs. São essas que Neymar mais gosta de ouvir. Os olhos do menino brilham tanto ao escutar o avô que parece que são eles que conduzem a memória e voz do velhinho. Seu Getúlio nunca viajou além de Brasília, mas sabe como poucos daqui do Sul das mazelas da seca, dos episódios de insurgência popular-religiosa, como o Caldeirão de Santa Cruz, no interior do Ceará, que foi muito similar a Canudos, e dos personagens que surgiram da opressão como o jagunço e o cangaceiro. Até estudou um pouco de botânica para identificar a vegetação do sertão. Explica que o Nordeste possui três grandes heróis conhecidos: Antônio Conselheiro, Lampião e Padre Cícero, mas que ele, por ser um estudioso do assunto, tem a modéstia de acrescentar outros nomes, como o Padre José de Anchieta, a beata Maria do Juazeiro, Maria Bonita, Zé Rufino... chegando até a Glauber Rocha e os tropicalistas! Se sente vaidoso de ser tão moderno, dando uma risada que vem da boca do estômago. Mas é quando conta sobre a história da Providência, seu Morro, que Seu Getúlio chora. Primeiro, é de emoção, enche o peito e pergunta: “Você sabia que o termo favela, como a gente conhece hoje, nasceu aqui porque veio de Canudos?” Tiago é o primeiro a sentar para ouvir, pois já conhece todas as palavras do velho e sabe contar as histórias de cabeça, e quando está junto ao eloquente orador, reconta tudo só pra si, em seu pensamento. “E, sabia que é uma palavra sem tradução em nenhuma outra língua?” Seu Getúlio continua:


“Um francês veio aqui e me mostrou no dicionário dele. Tinha lá escrito do mesmo jeito que falamos aqui.” “Alto da Favela era o morro que dava pra avistar a vila de canudos do alto e foi de lá que os soldados atacaram o povo. Tinha esse nome por causa da planta chamada favela, muito comum lá no sertão. E foi muita troca de tiros entre eles e os jagunços, viu? Foram quatro missões de guerra para conseguir destruir todinha a cidade. Mais de cinco mil casas! E aí, foi quando os soldados – um deles era meu bisavô Arquimedes. Eita, homem corajoso! – vieram pro Rio esperando receber as casas prometidas pelo governador. Foi por isso que meu bisavô lutou, pra ter uma casa aqui no Rio. Da mesma maneira que aquele povo todo lutou e morreu para garantir suas casas na terra sagrada... Mas aí é que tá, né? Chegando aqui, não tinha nada de casa prometida não... Tudo mentira de político, como é até hoje. E foi assim que foram ocupando essas encostas aqui tudo e deram o nome de Morro da Favela, pois era onde eles lutaram lá no sertão. E depois virou Morro da Providência – que aí já tem duas versões: uma é que tinha um rio em Canudos chamado providência, que até aparece no livro do Euclides da Cunha, e a outra história é que o nome veio da providência que os soldados tomaram, se instalando com suas casas. Eu mesmo gosto das duas versões! E foi a primeira favela do Rio de Janeiro! Hoje já tem mais de 700! Meu bisa Arquimedes e seus companheiros fundaram bem lá pra cima a Capela das Almas, uma igrejinha pequenina, para os combatentes mortos na guerra. Tinha até uma cruz trazida do arraial de Conselheiro. Hoje já não existe mais, como muita coisa por aqui... E é aí que a história se repete, né, minha filha? A história do mundo é assim, todinha assim. Os soldados lá eram os opressores. Mas também lutavam por sobrevivência. Cada um buscando o seu. E aqui a vida os torna os oprimidos e assim vai por muitas gerações, até hoje, sempre a luta por terra e vida digna. São nossos direitos, né mesmo?” O velho Getúlio costuma dizer em voz alta que só quem viveu tanto assim como ele pode entender as crueldades do homem. Porque, segundo ele, as bondades são gestos que sempre esperamos do outro e que nos afaga, por isso acabamos esquecendo rápido. As coisas ruins marcam como fogo e a sabedoria vive nas cicatrizes. Esse ensinamento do vô Getúlio parece ser um dos maiores legados aprendidos pelos meninos Neymar e Tiago, pois é quando o velho começa a chorar, não mais por emoção, mas agora por impotência, que os meninos correm para o seu lado e seguram sua mão, parecem o envolver em uma espécie de cobertor de carinho, compaixão e empatia. Os meninos sabem bem o que o avô conta. Agora não é mais história do passado. Faz parte também da história de suas vidas. “Eu vivi aqui toda a minha vida. Eu vivo ainda só pra contar as histórias do meu povo. Isso que me faz forte ainda. Mas querem me tirar daqui como fizeram com muitos vizinhos. Toda aquela parte ali debaixo, da Rua da Grota, era coberta de casebres. Gente honesta, não tinha bandido não. Tinha era muita criança e velho como eu. Vieram aqui com trator, na frente de todo mundo. Esses meninos aqui – aponta para Tiago e Neymar – choravam como bebês. Todo mundo chorou, na verdade. Muita humilhação, impotência... Bateram em todo mundo, criança, mulher, uma tristeza só.” Nessa hora, o menino Neymar começa a chorar e é abraçado por seu amigo Tiago. Os dois permanecem de cabeça baixa e só complementam confirmando que foram dias de muita gritaria, lamentando a partida forçada de vários amigos.


Cnidoscolus Quercifolius. Popularmente chamada de favela, faveleira, faveleiro ou mandiocabrava.


Seu Getúlio emenda: “Eu já não consigo dormir direito. Fico atento, pois as casas são marcadas de manhã bem cedinho, às vezes, antes do sol aparecer. Eles marcam as casas com uns números e depois daí, a pessoa já sabe que tem que ir embora. Mas ir pra onde? Eu não sei viver se não for aqui, no meu morro! Eu daqui não saio não. Vou lutar até o fim, assim como fez o povo de Canudos. Se eu morrer, não tem problema. Ja vivi muito, já vi muita coisa ruim nesse mundo. E também, ia morrer de qualquer maneira se tivesse que ir pra longe daqui, não é mesmo?” Neymar e Tiago abraçam o velho, agora de verdade, e pedem para ele parar de falar bobagem. Morrer ele não pode não. Os corações dos meninos, já pequeninos, se retorcem ao pensar em sentir a perda do avô. Para tranquilizá-los, Seu Getúlio, sábio como ele só, solta uma de suas frases célebres: “Calma no Brasil, que a Europa tá em guerra!” e, rapidamente, arruma um jeito de engolir aquele chororô e mudar o tom da prosa. Conta que tudo isso anda acontecendo na providência há uns três anos, chegou como rumores de desapropriação por conta dos mega eventos mundias (Copa do Mundo e Olimpíadas) e aos poucos veio a UPP, com a justificativa de combate ao tráfico. As UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) entraram à força em muitas favelas do Rio, o que deixou a classe média e rica do Rio mais tranquila em relação a diminuição da criminalidade na cidade. Mas, para as pessoas que vivem na favela, esta medida foi como voltar à ditadura militar. “Liberdade não é pra pobre não. Ir e vir é direito de quem mora lá embaixo, no asfalto.” “PM é bicho ruim. Os policiais podem até ter um ou outro bom, mas quando veste aquela farda, parece que vira demônio. O ser humano não sabe lidar com poder não. A crueldade tá em todos nós e quando tem alguma coisa em que podemos nos escorar para ser mal, aí é que somos malvados dez vezes mais.” – explica Seu Getúlio. “Com a UPP, a tranquilidade que a TV mostrava era só de teatro, mas pelo menos a gente tava aqui, com nossas casas em pé, e não tinha mais o risco dos meninos que ficam por aí entrarem pro tráfico, isso é verdade. Os tiroteios que eram muitos, às vezes a gente tava assim conversando tranquilo, e, de repente, saía todo mundo correndo fugindo dos tiros. Muita gente morreu assim. De bala achada! Perdida nada, né? A bala acertou, então é achada, não é mesmo?!” As leis em uma favela são próprias. Na teoria, deveriam funcionar da mesma maneira como é para o restante da população, porém, na prática, manda quem assume o poder através da violência. Pequenos feudos urbanos. O que acontece no morro muitas vezes fica somente por ali, sem a menor reverberação social. E é de dentro deste contexto que Seu Getúlio relaciona história e política de sua cidade. Recorda que a Revolta da Vacina, que aconteceu em 1904 nas ruas do Rio de Janeiro, foi uma insurgência que teve início por conta da obrigatoriedade de vacinação, mas se transformou em levante popular contra o projeto urbanístico (leia-se, também, de higienização) que deu origem à Avenida Rio Branco. Muitos cortiços da época foram destruídos e seu moradores, sem ter onde morar, fundaram outras favelas ou se instalaram na Providência. Segundo ele, toda a população pobre se uniu, inclusive muitos dos ex-soldados de Canudos, participando na queima de bondes, lojas e na construção de barricadas contra o governo. A área de conflito foi ao pé do Morro da Providência, centro da cidade, mais para o lado da zona portuária. Localidade que hoje abriga o projeto Porto Maravilha, revitalização urbana do atual Governo do Estado do RJ, e que, não por acaso, é a escusa de muitas


remoções e desapropriações de favelas e ocupações de moradores sem-teto. Ações, estas, coordenadas em comunhão entre Estado e polícia militar. Seu Getúlio pergunta novamente como se fosse para ele mesmo, pois é sua maneira peculiar de afirmar o que pensa: “Você percebe a beleza que é a história? Tudo sempre se repete e aquela ideia de que não se erra duas vezes é tudo mentira, sabe por quê? Porque errar é do humano! Não podemos fugir disso. É nosso destino, fazer o quê? A humanidade nunca vai aprender com os erros do passado porque vivemos no presente e vamos sempre lutar pelo nosso futuro melhor, seja terra, casa, vida digna para nossos filhos ou mesmo dinheiro no bolso ou poder. Cada um de seu lado, pois tudo, tudo, tudo no mundo, tem por trás a tal da luta de classes. Mas o mais incrível é que a história gira, gira e o que aconteceu lá em 1897, na Bahia, se liga a esse povo jovem que se manifesta hoje nas ruas de todo Brasil. Pode ter tristeza por trás, mas é bonito de se ver.” Tiago e Neymar, mais descontraídos, escutam toda a história, mas se distraem rapidamente com outros meninos brincando lá fora. Saem para espiar. E a gente, dentro de casa, só escuta os chamados na rua: – Tiago! Neymar! Vambora jogar bola! – E os meninos saem correndo com as outras crianças entre as bandeirinhas verde e amarela.

Beatriz Lemos


CorrespondĂŞncia. Acervo Pessoal







MANDIOCA BRAVA, Paulo Nazareth

Máscara Mortuárias, Ícaro Lira e Paulo Nazareth, 3a Bienal da Bahia. Departamento: Arquivo e Ficção. Salvador - BA 2014.





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Faca Amolada

Clara Domingas


vulgo

afinal de contas, estamos mesmo falando de origem, de região? de ponto de partida, de ponto de chegada, de itinerário com data e hora? afinal de contas, que horas vamos nos perder? que horas vamos entender que podemos estar perdidos mesmo espalmando esse pad, esse mapa nas mãos? que fio solto é esse que liga tudo isso, que nos atravessa? que partida jogam esses nomes? que pesquisa pode chegar num risco final, num desenho definitivo? afinal de contas, ficou tudo provisório demais, meu amor? por que a ficção sempre e a qualquer custo, permitindo que nenhuma palavra nome nenhum diga tudo e mais nada?

relicário de perguntas sem resposta. sertão.

daquilo que corta, sem volta nenhuma, ora, não me digam que vocês voltaram. que um pedaço da gente não ficou ali.

Laura Castro


ANOTAÇÕES NO LIVRO OS SERTÕES, Manoel Silvestre Friques


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ISTMOS - UMA POÉTICA ENTRE A CRISE DA HISTÓRIA E A TENTAÇÃO ETNOGRÁFICA1

A BATALHA DA ARTE É COM A CONSTRUÇÃO DE SISTEMAS ROBERT NISBET1

Os últimos trabalhos de Ícaro Lira apresentam, salvaguardadas diferenças e especificidades pontuais, um roteiro comum. Em geral, o artista cearense participa de residências e/ou traça percursos em locais rurais e periféricos ao circuito artístico, durante os quais coleta imagens e objetos de diferentes naturezas, dispostos, por fim, no espaço expositivo. Desterro (Galeria Ibeu, 2013), Náufrago (Atelier Subterrânea, 2013), Istmo (Galeria A Gentil Carioca, 2013), Romaria | Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem (Galeria Sesc-Crato, CE, 2012) exemplificam tal estratégia, sendo essas exposições – posto que tais trabalhos furtam-se a ser denominados obras de arte – o ponto de partida desta reflexão. Não que aventuras e viagens sejam a novidade trazida por Lira para o ambiente da arte. Recordem-se os artistas-cronistas viajantes que desembarcaram na América Latina no século 19, como Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas; mais recentemente, os itinerários de artistas-etnógrafos ou, ainda, antropologia-filos (para utilizar o estranho neologismo de Thierry Dufrêne2) que buscam o conhecimento do fato humano em suas relações com as outras espécies, com a natureza e com o ambiente urbano, interessando-lhes as diferenças e semelhanças culturais. Aquilo que chama atenção no gesto de Lira não é a viagem nem mesmo o relato; é, antes de tudo, a maneira como o artista enfrenta a crise da história e a emergência da antropologia sem cair na tentação de criar sistemas etnográficos que substituam o enquadramento historiográfico. Tome-se, por exemplo, Istmo, constituído por objetos variados: uma rede de pesca; uma caixa de charutos cubanos – Flor de Tabacos, de Partagas (Havana); uma sacola de plástico azul com um punhado de folhas secas, ostras e conchas do mar; o negativo de uma mulher de braços abertos em primeiro plano, seus olhos cortados, ausentes do enquadramento. Em segundo plano, talvez um homem, não se pode ver nitidamente; quatro fotografias: um cachorro morto em uma estrada de terra; um osso, sobre uma folha branca, pousado em uma mesa; Lira criança de gravata borboleta e conjunto azul, de pé em um sofá estampado vermelho: bocas abertas, mão babada, dentes crescendo; uma mu-

3a Bienal da Bahia. Departamento: Arquivo e Ficção. Salvador – BA. 2014.




Acervo do Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima. Salvador – BA.

lher na paisagem agreste, nela quase se camuflando. Um cartão-postal (caçadores terrestres que habitavam o pampa chileno Terra del Fuego, o chamado Fim do Mundo), um saco de soja, anzóis e pregos completam o conjunto de objetos. Se tal descrição parece conduzir mais a uma desordem do que a um esclarecimento do trabalho, talvez seja por não haver um sistema unívoco – tal qual um quebra-cabeça – que os reúna. O que se deve notar é a diferença radical entre os objetos e sua justaposição que esconde, na realidade, abismos e saltos. Nesse sentido, o espaço expositivo, incluindo aí as paredes, atua de modo a ilhar as coisas, em uma espécie de nivelamento operado por isolamento (isso não acontecia, por exemplo, na assemblagem que o artista apresentou no Parque Lage em 2012 – ali, havia uma densidade de objetos que, nos trabalhos posteriores, se rarefez). O espaço, com isso, não funda uma unidade visual, mas um campo de vetores semânticos assistemáticos. Nele, os elementos naturais e registros urbanos, em geral diminutos e fragmentados, são coletados segundo um mesmo impulso que descarta a diferença entre o objeto etnográfico e o objeto artístico, entre natureza e cultura. Se os objetos que Ícaro leva ao espaço expositivo são, em sua maioria, usados, antigos e descartados, o tempo os atravessa conferindo-lhes visível desgaste. Nada é novo; tudo possui sua história invisível e se impõe como enigma semiológico. Isolado temporalmente, cada coisa abriga-se espacialmente em relação aos demais. E aqui devemos nos perguntar qual a natureza da relação entre os elementos que Lira elege para o espaço expositivo. Como se associam essas unidades, essas ilhas sígnicas? O artista diz que as fotografias, as caixas e os demais fragmentos selvagens se associam por montagem. E, desse modo, estaríamos em terreno cinematográfico. A desconfiança, porém, é de que seja também uma composição. Na realidade, há uma tensão entre montagem – enquanto encadeamento temporal – e composição – entendida como inter-relação espacial. Tal intensidade surge justamente na decisão de Ícaro de tornar visível espacialmente o isolamento temporal a que os objetos estão submetidos, isto é, seu caráter obsoleto, o desgaste operado pelo tempo. Cada coisa exposta então apresenta uma condição temporal própria, e a montagem-composição (sempre precária, pois caso não o fosse, haveria uma contradição berrante entre o último parágrafo e este aqui) que o artista realiza no espaço expositivo lhe impede a unificação. Ocorre, com isso, uma multiplicação das possibilidades narrativas, surgidas das combinações entre os diversos elementos. Institui-se a impossibilidade de se delinear lógica sistemática que circunscreva uma interpretação unidirecional do mundo (lembre-se sempre de que os conflitos possuem variadas versões – em contraposição às histórias oficiais). Mais acima, afirmou-se que a potência da obra de Ícaro reside em seu embate com a crise da história, sem que ele se renda aos sistemas etnográficos. Esclareçamos. Não é novidade o processo curioso que caracteriza a arte contemporânea a partir da década de 1960, distinto por duplo movimento inversamente proporcional: à medida que a história da arte – enquanto disciplina organizada em torno de uma narrativa mestra – enfraquece devido a sua incapacidade de adequar-se ao experimentalismo artístico, suas áreas irmãs, em especial a antropologia e a sociologia, emergem como práticas a ser exploradas intensamente por criadores e teóricos. O fato de que o discurso do fim da história funcione ele mesmo como uma narrativa hegemônica da arte contemporânea torna tal processo ainda mais ambivalente. Se a crise do enquadramento (tanto dentro quanto fora da obra de arte) é imperativo imposto pela prática artística, não deixa de soar também contra-


ditório o fato de muitos criadores, diante desse fato, formularem suas poéticas tendo por base sistemas ainda totalizantes. Nos ambientes das Bienais, em que essas práticas parecem multiplicar-se tanto formal quanto tematicamente em retorno ao desejo enciclopédico, a incongruência salta aos olhos, seja na 30a Bienal de São Paulo (2012), em que artistas como o holandês Hans Eijkelboom ou o alemão Hans-Peter Feldman utilizam práticas antropológicas (fotografias que evidenciam padrões de comportamento em muitas cidades do mundo e coleções de roupas de mulher ou a exposição de todos os objetos que se encontram em bolsas femininas, respectivamente) em obras marcadas pela nostalgia de um ordenamento totalizador e redutor; ou na 55a Bienal de Veneza (2013), na qual a norte-americana Sarah Sze propõe uma instalação em que refaz o universo a partir de um conjunto numeroso de objetos organizados no espaço expositivo. Tais práticas, em especial as duas primeiras, parecem apresentar um narcisismo etnográfico que Hal Foster3 em importante ensaio soube indicar. Sob outra perspectiva, o trabalho de Ícaro Lira, assim como os dos brasileiros Fernanda Gomes, Luciana Paiva, Paulo Nazareth e Rodrigo Braga, parece enfrentar a crise da história, sem, no entanto, sublinhar o ímpeto sistematizador por meio da prática etnográfica. Se Lira viaja por muitos municípios, não deseja documentar as comunidades pelas quais passa em um suposto trabalho de campo pautado pela distância entre sujeito-analista e objeto analisado. Ao deslocar-se por cidades que estão fora do eixo artístico, Ícaro propõe um embate com a narrativa histórica oficial, colocando-se ao lado, ou além dela, como o etnógrafo desconfiado das intepretações historiográficas evolucionistas do mundo. Sob esse prisma, a deriva do artista assemelha-se à incapacidade do antropólogo de sentirse em casa, de abrigar-se em algum terreno, até mesmo sua casa. Tal impossibilidade marca não apenas a figura aqui mencionada, mas, de fato, impõe-se como impulso espiritual transversal a muitos pensadores e artistas, e que Susan Sontag4 denomina intelectual homelessness. Esse impulso resulta de uma sensibilidade moderna nauseada pelas aceleradas transformações tecnológicas derivadas de um demônio chamado história. Com a publicação de Tristes trópicos em 1955, Lévi-Strauss inventava o antropólogo como ocupação total, aquela que envolve um compromisso espiritual semelhante ao do artista e do aventureiro. Uma compreensão dessa invenção passa necessariamente pelo fato de, até as vésperas da guerra, a etnologia francesa ser realizada por antropólogos de gabinete, que organizavam considerável massa de dados à disposição, a fim de resolver um problema ou explicar uma instituição. Enquanto Marcel Mauss integra este grupo, Lévi-Strauss, por sua vez, atualiza a função por meio da centralidade concedida ao trabalho etnográfico, sob o prisma estrutural. Se o artista pode ser considerado etnógrafo, é porque este último, em sua reinvenção operada por Lévi-Strauss, assemelha-se àquele em seus mergulho e entrega ao trabalho de campo. Ambas as figuras convergem em sua condição humana de exilados; condição que independe do local em que se encontram e que permeia o trabalho de Ícaro Lira, explicitada em seus títulos. Há uma atmosfera característica em seus trabalhos, nítida por meio dos nomes que os batizam; eles anunciam, sem maiores floreios, a condição errante do imaginário do artista. Instiga o fato de Ícaro pouco acumular os elementos; ele não é um colecionador. Os objetos expostos na galeria podem desaparecer na mesma velocidade em que nessa situação foram colocados. Não há obra pronta, fechada, apenas um salvamento temporário do objeto de seu pleno esquecimento; tudo é transitório e se abre para as ações do tempo. Se estamos certos, ocorre então uma identificação entre artista e objeto: ambos estão expatriados e se mo-


vem, nômades, por estradas, portos, aeroportos e espaços expositivos. A condição do criador é a mesma da criatura. Abandonados de seus contextos natais, artista e objetos estabelecem frágeis relações entre si – istmos – que os obrigam a navegar pelo mar (ou deserto) cultural a fim não de achar um abrigo, mas de confirmar a sina do caminhar.

Referência Bibliográfica 1 Nisbet, R. A. A sociologia como forma de arte. Plural, São Paulo, 7, primeiro sem. 2000: 111-130. 2 Dufrêne, Thierry. Art contemporain et Antropologie. Anais do XXXII Colóquio CBHA (Comitê Brasileiro de História da Arte). Direções e sentidos da história da arte. Campinas, 2012. 3 Foster, Hal. The return of real: the avantgarde at the end of the century. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, October, 1996. 4

Sontag, Susan. Against interpretation

and other essays. New York: Picador/Farrar, Straus and Giroux, 2001.

Manoel Silvestre Friques


PAULO MIYADA ENTREVISTA ÍCARO LIRA. CIDADE PARTIDA. PAÇO DAS ARTES - USP. MAIO, 2014. SÃO PAULO-SP



Para reunir esses objetos e imagens, foi importante para você ir até Canudos? Foi fundamental, minha pesquisa está diretamente ligada com o trabalho de campo e o contato com os moradores da região. Estive lá três vezes nos últimos três anos e estou indo novamente agora em maio para a 3a Bienal da Bahia - inicialmente ficarei em Salvador pesquisando no arquivo público e depois algumas semanas vivendo em Canudos. Tenho vontade de num futuro próximo sair de São Paulo e viver definitivamente nessa região.

Quais outros lugares são importantes para sua pesquisa? O sertão do nordeste de uma forma geral me interessa. Não separo essa investigação de Canudos de outras que venho fazendo nos últimos três anos na região. Todas têm em comum a questão dos movimentos de migração forçada e de exclusão social. Destaco as cidades de Juazeiro do Norte, Crato e Quixeramobim no Ceará e Feira de Santana, Euclides da Cunha, Monte Santo, Bendegó e Canudos na Bahia.

Os trabalhos reunidos nesta exposição foram coletados/montados no curso dessas viagens? Sim, boa parte dos materiais são dessas viagens pelo sertão da Bahia e do Ceará. Alguns foram pensados durante a viagem, outros já de volta para casa (São Paulo) e a maioria foi finalizada no próprio espaço expositivo do Paço das Artes.


Cidade Partida, nome desta exposição, refere-se a Canudos apenas ou a várias cidades? E a ideia de fratura que esse nome sugere – cidade dividida, rompida, fragmentada – diz respeito apenas aos conflitos históricos ou fala também do presente? Cidade Partida é uma tentativa de aproximação entre a destruição de Canudos com a destruição-gentrificação que as cidades do Brasil passam hoje. Uma tentativa de higienização social que vai das UPPs cariocas ao Pinheirinho paulista, passando pelas desapropriações em Fortaleza para a Copa do Mundo e para construção de uma cidade turística: uma cidade-mercado.

Aproveitando: o quanto você estudou a história de Canudos? É algo que você conhecia bem antes de ir para lá? Meu primeiro contato foi com os filmes do Glauber Rocha e, depois, com o livro Sertões, de Euclides da cunha. Antônio Conselheiro é de Quixeramobim, no sertão central do Ceará – meu estado natal - e sempre tive um contato muito próximo com a sua imagem. Trabalhei inicialmente com materiais de arquivo da biblioteca de Fortaleza, da Biblioteca nacional e da Fundação Joaquim Nabuco e agora em maio estou indo para Salvador pesquisar nos arquivos de lá, mas minha pesquisa é fundamentalmente de campo, com os moradores da região, com os sobrevivente e seus descendentes. Que parte da história de Canudos te interessa mais? A ideia utópica de fundar uma cidade no meio do sertão, onde tudo era dividido nos moldes de um comunismo cristão. E o presente de Canudos, como se relaciona com essa história? A canudos atual é uma cidade bem parecida com qualquer cidade do sertão nordestino. Vive do comercio local, da feira livre, do bolsa família, da água do açude. Penso que a formação atual do Nordeste e devedora dessa politica oficial do Estado de esquecimento e apagamento das historias de confronto e resistência. Entender canudos é fundamental para nossa construção e formação de Brasil.


Pensando agora no que o visitante encontra na sua exposição no Paço das Artes, podemos dizer que são “coisas” reunidas e articuladas: tecidos, caixas, bancos, pedras, sinos, pedaços e até fotografias mais ou menos velhas. De onde elas vieram? Minha formação como artista vem do cinema: da montagem, da edição e da cinefilia. Acho que isso explica um pouco minha forma de pensar esses objetos, fotos, vídeos etc... Elas vem da minha memória desses lugares. Gosto muito da parede com os textos é o lugar onde posso falar mais diretamente.

Essas coisas na verdade aparecem quase sempre em relação uma com a outra. Caixas, tecidos e papéis acolhem objetos menores, mais ou menos como um paninho faz as vezes de toalha de centro de mesa sob o bule de ferro em uma casa simples de interior. Essas são relações já fixadas ou elas se resolvem de forma diferente a cada vez que você mostra o seu trabalho? Penso que esses elementos isoladamente não tem muita força. Eles ganham uma potência quando estão em conjunto, articulados entre si, criando relações. E o espectador também cria suas próprias relações e seu próprio caminho dentro da exposição. Esses elementos se apresentam de formas diferentes e estão sempre sendo modificados. Não existe uma forma final do trabalho, que sempre cresce para todos os lados.

Você precisa “saber encontrar” essas coisas e, então, “saber associá-las”. Você consegue identificar seus critérios para cada um desses momentos? Como um momento se relaciona com o outro? Quase sempre essas escolhas acontecem durante a montagem do trabalho. Costumo ficar dias dentro do espaço colocando e tirando... e esse processo de montagem continua após a abertura da exposição. Os critérios são variados. Eu sei aonde não quero ir: existe um cuidado para não cair em alguns lugares fáceis, como o mero panfleto ou o fetiche do objeto.


E é importante que o público saiba exatamente de onde veio cada elemento? Você tem vontade de explicar a história deles ou prefere que formem uma nova paisagem, mais sugestiva de rastros de memória do que explicativa de valores documentais? Esse é um dos cuidados que estou falando. Os dois caminhos me interessam. Tenho pensado o lugar da fala – da conversa – como algo muito importante dentro desse trabalho. Em algum momento de junho iremos fazer uma conversa aberta, não para falar do trabalho, mas do que está a sua volta. Essa conversa, junto com a publicação que está disponível na recepção do Paço, me parece que fecha melhor o trabalho.

E quanto ao conjunto da exposição? Você o entende como uma espécie de compêndio, livro aberto e/ou narrativa? Um livro aberto. Que ainda está sendo escrito e que pede para ser escrito junto.

Em todo caso, acredito que há abertura para leituras as mais variadas. É possível se apegar ao conjunto como uma arqueologia das ruínas de um passado marcado por destruições ou como uma astrologia cifrada das construções e conflitos futuros. Que cidades e/ou contextos sociais te interessam mais hoje em dia? Onde estão aparecendo novas “cidades partidas”? No centro de são paulo com as ocupações. E na tentativa de uma direita-PSDB de barrar o Plano Diretor e o novo IPTU. Nas UPPs do PMDB no Rio De Janeiro. No aquário na praia de Iracema em Fortaleza do Cid Gomes. Nas remoções para a Copa Do Mundo.


Projeto Terra, Juraci D贸rea.



ÍNDICE

PROJETO DESTERRO EXPEDIÇÃO ETNOGRÁFICA DE FICÇÃO 2012 / 2014

Talvez, Francine Jallageas

6

Uma Pequena História, Ana Pato

10

Levar em minha cabeça as cabeças do cangaço, Paulo Nazareth

13

O Milagre, Ana Luisa Lima

14

Cidade Partida, Ícaro Lira

18

Meteoro de Bendegó, Paula Barghi

24

Santa Ceia, Lucas Sargentelli

32

Desenhos, Pedro França

36

Canudos: Uma e Dez Cidades, Paulo Miyada

44

Te escrevo pra falar de uma curva que existe na estrada para Canudos, Sofia Caesar

52

Canudos e a Invisibilidade dos Sertões, Manoel Silvestre Friques

60

De quando aprendemos a resistir, Beatriz Lemos

78

Mandioca Brava, Paulo Nazareth

90

Máscaras Mortuárias, Ícaro Lira e Paulo Nazareth

92

Ossos, Ícaro Lira

95


Faca Amolada, Clara Domingas

104

Relicário de perguntas sem resposta, Laura Castro

105

Anotações no livro Os Sertões, Manuel Silvestre Friques

106

Istmos - uma poética entre a crise da história e a tentação etnográfica, Manoel Silvestre Friques

112

Entrevista, Paulo Miyada com Ícaro Lira

118

Fotos das páginas 5, 7-8, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 27, 31, 35, 50-51, 54, 56-57, 58, 72, 74, 76, 77, 79, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 119 e 125 de Ícaro Lira

Imagens das páginas 24, 26, 28-29, 43, 46, 49, 80, 83, 113, 114, 117 de Autores Desconhecidos.

ANEXO: Jornal, Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima. Texto Ana Pato e fotos Ícaro Lira. 3a Bienal da Bahia. Departamento: Arquivo e Ficção. Salvador – BA. 2014.


COLABORADORES

Ana Luisa Lima (Recife, 1978)

Crítica de arte e Pesquisadora. participou da concepção e desenvolvimento do projeto Carta de Intenção, residência de experimentação da escrita em artes visuais, (2013). Cocuradora do projeto “Poemas aos homens do nosso tempo – Hilda Hilst em diálogo”, (2013). Editora da revista Tatuí (PE) desde 2006. Atualmente, faz parte do grupo de crítica do Centro Cultural São Paulo.

Ana Pato (São Paulo, 1972)

Pesquisadora. Curadora-chefe da 3º Bienal da Bahia (2014), foi diretora de projetos da Associação Cultural Videobrasil. É autora do livro Literatura Expandida –arquivo e citação na obra de Dominique Gonzalez-Foerster (2012).

Beatriz Lemos (Rio de Janeiro, 1981 )

Licenciada em História da Arte pela UERJ e mestra em História Social da Cultura PUC-RJ. Dedica-se à curadoria e pesquisa voltada para as artes visuais contemporâneas e articula projetos de intercâmbios entre cenas de arte na América Latina e idealizadora do projeto Lastro – Intercâmbios Livres em arte (www.lastroarte.com). Atua como professora em cursos livres de arte e curadoria.

Clara Domingas (Salvador, 1983)

Artista. desenvolve artes e tecnologias do corpo . A formação e a experiência de trabalho em Dança e em Educação Somática vêm transformando-se desde 2007 numa pesquisa autoral que envolve desenho, pintura, stencil, vídeo, fotografia, animação, performance. Atualmente vive e trabalhe em Itapuã, bairro de infância, onde desenvolve o projeto “Nativa Relativa”.

Francine Jallageas (Marília, 1983)

Artista e Pesquisadora, mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) com a dissertação aventura Artaud - crueldade como obra, gestos para uma linguagem no espaço, fratura como fatura.

Ícaro Lira (Fortaleza, 1986)

Artista Visual, Editor e Investigador. Estudou Cinema e Vídeo na Casa Amarela-UFC, Fortaleza-CE, Montagem pelo Instituto de Cinema Darcy Ribeiro e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro. Em 2014 Participou da 3ª Bienal da Bahia com Pesquisa sobre Projetos Populares. Recebeu o Prêmio Arte e Patrimônio do IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o Prêmio de Residência Artistica da Fundação Joaquim Nabuco(Recife). Participou de Residências de Arte no Brasil e na América Latina entre elas do Capacete Entretenimentos(RJ), Terra UNA(MG), La Ene(Argentina).


Laura Castro (Salvador, 1984)

Escritora. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, da Universidade Federal da Bahia, desenvolve atualmente pesquisa sobre experiências de performance em literatura. É autora dos livros “Fio condutor”, de 2013 e “Cabidela: bloco-de-máscaras”, de 2011. Atualmente é assistente de curadoria do Núcleo de Arquivo e Ficção, da 3ª Bienal da Bahia, organizada pelo Museu de Arte Moderna da Bahia.

Lucas Penido Gonçalves Sargentelli (Rio de Janeiro, 1989)

Artista Plástico.

Manoel Silvestre Friques (Rio de Janeiro, 1982)

Curador Independente e Professor de Engenharia de Produção da UNIRIO Teórico do Teatro (UNIRIO) e Engenheiro de Produção (UFRJ). Faz Doutorado no Programa de História Social da PUC-Rio e é Mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO.

Paula Borghi (São Paulo ,1986)

Crítica de arte, curadora da Residência de Arte da Red Bull, idealizadora do PROJECTO MULTIPLO de arte impressa, foi integrante do grupo de crítica do CCSP (Centro Cultural São Paulo) de 2011-2013 e do Paço das Artes São Paulo 2012-2013. Desenvolve desde 2010 trabalhos e pesquisas em espaços independentes e residências de arte na América Latina.

Paulo Miyada (São Paulo, 1985)

Coordenador do Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake desde 2011. Arquiteto e urbanista pela FAU-USP, onde realizou seu mestrado na área de História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo. Trabalhou como assistente de curadoria da 29a Bienal de São Paulo (2010), compôs a equipe curatorial do programa Rumos do Itaú Cultural 2011-13.

Paulo Nazareth (Governadores Valadares, 1977)

Vive e trabalha ao redor do mundo. aprendeu entalhe em madeira com Mestre Orlando - artista polular baiano radicado em Belo Horizonte. Bacharel em gravura e desenho pela EBA-UFMG. iniciou a formação linguistica na FALE / UFMG em 2006. -------- caminha por onde há terra.

Pedro França (Rio de Janeiro, 1984)

Artista e integrante da Cia Teatral Ueinzz. Fez mestrado em História pela PUC-Rio, deu aulas de história e teoria da arte da Escola de Artes Visuais (RJ) entre 2006 e 2011, e atualmente dá aulas regulares no MAM – SP e no Instituto Tomie Othake. Em 2010 foi curador da programação dos Terreiros na 29a Bienal de São Paulo (filmes, debates e performances). Em 2011, foi curador, juntamente com Fernando Cochiaralle, da exposição “Cavalos de Tróia” na mostra “Caos e Efeito” no Itaú Cultural. Sofia Gerheim Caesar (Norwich, Inglaterra, 1989)

Estudou dança na Faculdade Angel Vianna e artes visuais na EAV Parque Lage. Atualmente finaliza mestrado no Sandberg Instituut, em Amsterdam.

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AGRADECIMENTOS

Para Paula Borghi, Alice, Emília, Nara, Norma, Lira e Darcy.

Andrés Boero Madrid, Bernardo Mosqueira, Bianca Bernardo, Bruno Jacomino, Carmen Palumbo, Claudia Rodriguez Ponga, Daniela Castro, Frederico Filippi, Gustavo Torres, João Modé, Joselina Rabelo, Juraci Dórea, Kelsen Bravos, Lisette Lagnado, Lucas Parente, Lucia Santalices, Luiz Rosemberg Filho, Luciana Paiva, Luísa Nóbrega, Mariana Mordente, Marisa Flórido, Marcio Harum, Marta Mestre, Natacha Rena, Nino Cais, Pontogor, Rafael Campos Rocha, Renata Lucas e Sergio Guerra.

GT Narradores, Arquivistas e Mediadores da 3a Bienal da Bahia.

Ana Pato, Ana Luisa Lima, Beatriz Lemos, Clara Domingas, Francine Jallageas, Isadora Brant, Lucas Sargentelli, Laura Castro, Martina Brant, Manoel Silvestre Friques, Pedro França, Paulo Miyada, Paulo Nazareth e Sofia Caesar.

Capacete Entretenimentos, Terra UNA, Ateliêr Subterrânea, Galeria Central, Fase 10, LA ENE, Fundação Joaquim Nabuco, Arquivo Público do Estado da Bahia, MAM - Bahia, SESC Ceará, Centro Cultural Banco do Nordeste, Biblioteca Pública do Ceará, Centro Cultural Dragão do Mar e Editora Vibrant.


DESTERRO + VIBRANT

O projeto se desenvolveu a partir do próprio processo, foi no caminho que encontramos a direção. Reunir todo o material nos remeteu a memória, mas também nos levou a compreender como pequenos objetos são grandes territórios nessa ficção, permeada pela História, que deseja se refazer.

Em cada texto, desenho, imagem existem fragmentos de um mundo próprio, a peculiaridade de cada autor para construir a narrativa de Desterro. Estivémos neste espaço entre os trabalhos, trazendo a ideia de um caderno de viagens como suporte do livro. Neste sistema de relações, procuramos mostrar as urgências contidas da pulsão investigativa das expedições.

Agradecemos pela parceria e confiança.

Isadora Brant & Martina Brant


PROJETO DESTERRO

EXPEDIÇÃO ETNOGRÁFICA DE FICÇÃO

Projeto de Ícaro Lira com colaboração de Ana Pato, Ana Luisa Lima, Beatriz Lemos, Clara Domingas, Francine Jallageas, Lucas Sargentelli, Laura Castro, Manoel Silvestre Friques, Pedro França, Paulo Miyada, Paulo Nazareth, Paula Borghi e Sofia Caesar.

Edição e Projeto Gráfico de Isadora Brant e Martina Brant

Uma publicação Vibrant

Primeira edição São Paulo, 2014

O texto do livro foi composto com as famílias tipográficas Adobe Garamond Pro e Gotham. A capa foi impressa em letterpress sobre Papelão Paraná e o miolo em offset no Papel Pólen Bold. O livro foi impresso na Gráfica Cinelândia, em uma tiragem de 300 exemplares.

COPYLEFT


PROJETO REALIZADO PELO EDITAL ARTE E PATRIMÔNIO 2013

APOIO

REALIZAÇÃO

PATROCÍNIO


Departamento: Arquivo e Ficção. Salvador – BA. 2014.

300




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