Democracia Viva 19

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ALCIONE ARAÚJO

limitou-se a fincar o marco simbólico de propriedade da coroa portuguesa. E nada mais aconteceu até que os jesuítas aportaram por aqui na segunda metade do século.

A discussão sobre cultura passa necessariamente pela religião? Alcione Araújo – É evidente. A cultura começa a ser engendrada no espírito, seara do domínio religioso, que determina valores, princípios e condutas. Recebe influências das relações econômicas, do poder político, das formas de trabalho, da agricultura e das formas de alimentação, da geografia e até das condições climáticas. Justamente para a doutrinação religiosa, a catequese ou evangelização dos gentios, como se dizia, cá estava, pois, a linha de frente da poderosa Igreja Católica. Atravessara o Atlântico para converter índios ao catolicismo. Tarefa ingrata quando se pensa que o indígena era tão integrado à natureza que se sentia parte dela. Sua arraigada cosmogonia, como não podia deixar de ser, fora construída, ignora-se em quantos milênios, no âmbito da própria natureza. Era impossível para o indígena assimilar a visão católica ortodoxa européia. Era difícil para os jesuítas – versados em teologia, mas não em antropologia – compreenderem uma cultura tão diferente da européia. Para um indígena, que só conhecia o tupi-guarani, ouvir conversas em português e missas em latim era um espanto, perplexidade pura. Apesar dos esforços – remember Anchieta, com o seu trilíngüe (português, espanhol e tupi-guarani) Auto de São Lourenço, com o qual se torna o primeiro dramaturgo brasileiro – a catequese do indígena é um fracasso.

Os(As) índios(as) rejeitaram a visão católica do mundo? Alcione Araújo – Sequer entenderam. Havia um evidente choque cultural, e os jesuítas não se deram conta. Índios e padres simplesmente não se entendiam. Os catequizadores fizeram uma mudança de rota e se concentraram no que era a sua real vocação: a preparação da elite, ou seja, a educação do branco europeu, portugueses e outros eventuais imigrantes. Era o branco europeu catequizando o branco europeu. E não apenas do ponto de vista religioso. Os jesuítas incumbiram-se de toda a educação, carregada de profunda densidade humanista e lastreada na cultura universal. Essa é uma tarefa que continuam a realizar até hoje – os colégios religiosos ainda mantêm a reputação de melhores do país –, e eles se tornaram, na verdade, em

eficientes especialistas na educação da elite brasileira, que, por acaso ou ironia, é uma das mais predadoras do mundo. Segundo a professora Vanilda Paiva, especialista na área, os portugueses, sendo poucos, fizeram muitos filhos nas índias e os criaram, sempre que possível, como portugueses. Até hoje, a primeira geração é considerada portuguesa. Foi essa a fórmula que aplicaram para multiplicar seu contingente conquistador, apesar de todas as contradições. Seus filhos não passaram necessariamente por colégios de elites, mas lutaram lado a lado no desbravamento do país e na conquista do território.

Os jesuítas fracassam com os(as) índios(as) e passam a cuidar da educação dos(as) brancos(as). O que aconteceu com os(as) negros(as)? Alcione Araújo – Quando os negros, vindos da África, começaram a desembarcar no Brasil, os jesuítas nem olharam para o lado deles. Não tomaram conhecimento. Sequer cogitaram catequizá-los. Na visão dos jesuítas, seria inimaginável educar negros vindos de outro continente para serem escravos – ou seja, eram uma mão-de-obra baratíssima, de etnia pouco conhecida, oriunda de uma cultura ágrafa. Os negros não eram, portanto, escolarizados. Com eles, houve uma das mais agressivas subalternidades que o mundo já viu. Há pouco mais de cem anos, havia aqui seres humanos que eram propriedade privada dos seus senhores, obrigados à cega obediência e a trabalhos forçados, de dia e de noite, sob castigos de animalesca brutalidade: mutilações, troncos e açoites. As pessoas, nem mesmo as da Igreja, não os reconheciam como seres humanos. Para os jesuítas, o fracasso com os índios ficara como lição bem aprendida. Com os negros, preferiram manter-se coniventes com o poder branco, de cujos rebentos tornaram-se preceptores. Assistiam a tudo em resignado silêncio, quando não indiferença. Esse desprezo pelo negro terá enorme repercussão, então inavaliável, na história social e cultural do país.

Mas isso não mudou com a Abolição? Alcione Araújo – Com o fim gradual da escravatura, por meio de leis sucessivas (Ventre Livre, Sexagenários etc.), o negro alforriado não tinha emprego, não tinha terra, não tinha profissão urbana, não tinha escolarização para si nem para seus descendentes, não tinha o que comer. Assim, nasce a histórica marginalização, a miséria e o abandono. O negro perde a proteção do seu senhor e ninguém mais se interessa pela sua

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