Farois e tempestades anotaçoes

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FARÓIS E TEMPESTADES ANOTAÇÕES SOBRE UM PROCESSO ARTISTICO

Ilidio Salteiro



FARÓIS E TEMPESTADES ANOTAÇÕES SOBRE UM PROCESSO ARTÍSTICO DE PINTURA



FARÓIS E TEMPESTADES ANOTAÇÕES SOBRE UM PROCESSO ARTÍSTICO DE PINTURA

Ilídio Salteiro 2017


Titulo: Faróis e Tempestades: anotações sobre um processo artístico de pintura. Autor: Ilidio Salteiro. Publicação por ocasião da exposição individual, Faróis e Tempestades, na Galeria da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 4 a 29 de janeiro de 2018. Curadoria: João Paulo Queiroz. Edição: FBAUL-CIEBA, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes - Centro de Investigação e Estudo em Belas-Artes. ISBN: 978-989-8771-92-6 Contacto: i.salteiro@belasartes.ulisboa.pt Impressão: Gráfica Digital, Lisboa.

O copyright dos textos e das obras reproduzidas pertence aos autores assinalados. Todos os direitos reservados.

Capa: Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (20), 2017. Óleo sobre tela, 70 cm x 80 cm.


Índice

Prospeção

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Babel

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Mundus novus: algumas cartas para Ilídio Salteiro

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Imagens

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Nota biográfica

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Prospeção Por Ilídio Salteiro

… a ilha está cheia de ruídos sonoros, de sons e de músicas suaves que agradam e não fazem mal. Às vezes, mil instrumentos ressoam-me aos ouvidos; outras vezes, são vozes tão doces que, se estou acordado depois de um sono prolongado, me tornam a adormecer; então, em sonhos, parece-me que as nuvens se abrem e vejo riquezas sem conta que vão chover sobre mim; assim é que, quando acordo anseio por sonhar outra vez…. (Shakespeare, Tempestade)

A Pintura faz-se do ver e do partilhar. Dito deste modo, a Pintura é apenas visão, versão, aparição, desvendamento ou descoberta. E o pintor é aquele que a dá a ver, que a põe a descoberto e a partilha aos outros! 7


Consideramos a Pintura como aquilo que ─ contrariamente ao que “alguns” pensam e argumentam hoje sobre arte ─ cura, revoluciona, rompe e corta! Encaramo-la como aquilo que não pode ser reduzido a coisa cenográfica, temporária! Nem ela mesma como objeto, nem o lento processo de investigação que a originou, nem o arriscado processo de prospeção sucessiva que envolve, desde que não estejamos a falar de um mero exercício de habilidades tecnológicas ou outras. É, acima de tudo a formalização de pensamento vivo, humanista, que reforça a força da esperança que permanece depois de tudo findar ─ com reinícios constantes. O conjunto de óleos e acrílicos sobre tela, composto por paisagens e territórios povoados com sinais de vida, reunido neste livro sob a titulação de Faróis e Tempestades, corresponde a uma seleção de treze obras realizadas durante 2017 em torno de três eixos conceptuais definidos por livro antigo, coleção e biblioteca. Estes “eixos” têm de comum o facto de nos oferecerem possibilidades de ordenação do caótico, do confuso ou do movimentado, ou simplesmente de tudo aquilo que se encontra sujeito a eternas mudanças. Dominam as tempestades (Shakespeare s.d.). A génese da civilização pré-diluviana em Babel, numa torre única e universal, no Génesis (Crumb 2009), marca o início mítico de uma cultura ocidental, onde o desejo de globalização e de centralismo, revelando-se ser desmesurado, conduz a civilização para a multiculturalidade universal que conhecemos. Esta ideia de Babel foi o ponto de partida destas obras, entendida como ascensão e queda, como uma força globalizante em confronto com a diversidade, ou seja, em confronto com as grandes dicotomias que vão tecendo o nosso quotidiano. Uma ideia de Babel como arquitetura numa paisagem com capacidade para simultaneamente agregar e disseminar, tal qual a linha de água e o ritmo das marés junto à costa, umas vezes com grandes amplitudes e outras com amplitudes mínimas. Uma ideia que nos conduziu naturalmente em viagens por paisagens mentais de territórios nunca vistos, terras incógnitas, disponíveis para as múltiplas descobertas. Adquirindo corpo a ideia de ilha, de costa, de maré ─ de linha entre solido e liquido. Uma linha determinante para o desenho de ilhas aparecidas, ilhas de terra sem nome, longínquas, 8


como aquela que Trezenzónio, um monge galego, avistou do alto da torre de Hercules na Coruña no século VIII e descreveu como sendo a Grande Ilha do Solstício. Uma ilha desenhada no horizonte pelos raios do sol nascente, com um templo-torre, dedicado a Santa Tecla. Uma imagem de um lugar distante, uma ilha paraíso onde tudo é perfeição e harmonia e onde não existe tempo (Lucas, 1991). Partilhamos estas palavras sobre algum do pensamento que acompanhou a execução destas pinturas, íntima e silenciosamente, prospetando naqueles passados assinaláveis e apenas aparentemente longínquos ─ Babel, Grande Ilha do Solstício e Tempestade ─ os caminhos que todos nós vamos percorrendo hoje, como descobridores do futuro, curando a sociedade da doença da incivilidade, revolucionando paradigmas, rompendo preconceitos e cortando e colando as boas coisas em códigos renovados e atualizados.

Referências Lucas, Maria Clara de Almeida (1991). “Insula Solistitionis: uma ilha iniciática”. In Yvette Centeno e Lima de Freitas, A simbólica do espaço: cidades, ilhas, jardins. Lisboa: Estampa, pp. 73-85. Crumb, Robert (2009), The Book of Genesis, Nova Iorque: W.W. Norton &Company Ltd. Shakespeare, William (s.d.). A Tempestade. Porto: Lelo & Irmão Editores.

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Babel Por Ilídio Salteiro

Estas palavras e esta pintura baseiam-se nas palavraschave “biblioteca”, “coleção” e “livro antigo”. A nossa interpretação entende-as como a organização do caótico, do agitado, do confuso, do movimentado ou de tudo aquilo que se encontra sujeito a mudanças. Deste modo desencadeou-se uma participação com dois momentos: por um lado pensamos a biblioteca, a arca e o tesouro enquanto estruturas para a salvaguarda de nós próprios. Por outro lado, fazemos o mapa do território aberto às descobertas dos percursos que nos conduzirão até essas estruturas.

Descobridores do futuro Ao entrar no universo, que outros chamam Biblioteca (Borges 2013), os bibliotecários são interpelados: Quem está aí? Mas ninguém responde, não se vê ninguém, não se houve nada. O 13


chão treme à nossa passagem e o movimento arrasta a vida, cíclica e vertiginosamente pelo espaço, sem nunca parar. Na biblioteca cumpre-se a função de veículo que transporta a energia vital, enquanto caminhamos sem descanso para outros mundos sempre novos, sempre futuros, transformando a atualidade num instante infinito (Kubler 1990). Esta noção de instante e atualidade remete-nos para o sentido de tempo-presente manifesto pelo padre António Vieira de um modo surpreendentemente lúcido e evidente, quando nos traça, com a palavra, o desenho do universo, equiparando claramente o espaço ao tempo, numa adequada semelhança conceptual: … «o tempo como o Mundo tem dois Hemisférios, um superior, e visível, que é o passado, outro inferior, e invisível que é o futuro; no meio de um, e de outro Hemisfério, ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina, e o futuro começa; desde este ponto toma seu principio a nossa história, a qual nos irá descobrindo as novas regiões, e os novos habitadores deste segundo Hemisfério do tempo, que são os antípodas do passado» (Vieira 1718). Uma afirmação que nos transforma em perpétuos descobridores do futuro.

Folhear e desdobrar As palavras, como as imagens, sucedem-se em sintonia com os pensamentos e as circunstâncias que as determinam. Efetivamente, pela arte e pelo pensamento, são produzidas e construídas realidades que se encontram diretamente relacionadas com a paisagem cultural que nos envolve (Honegger 2004). Obras que se disseminam pelo universo, através de um número de construções sem fim, acompanhadas por muitas letras, por muitas palavras, por muitas coisas, por muitos livros, por muitas bibliotecas. As obras são todas as realizações dos homens. Os livros arquivam a linguagem e, por isso mesmo, são preciosos contentores de um número ilimitado de páginas, folheáveis e desdobráveis, repletas de desenhos, letras e mapas, com representações dos mundos conhecidos, hipotéticos ou desconhecidos, que nos orientam sobre que percursos na vida devemos escolher. Estas obras e estes livros são objetos nos quais 14


residem as matrizes que nos formam e nos informam como entidade coletiva, como Humanidade. O livro, com sinais, páginas, encadernações, dentro de estantes e de bibliotecas é um todo compositivo onde conteúdo e forma estão indubitavelmente associados (Peixeiro 2011) Páginas-mapas, colecionadas ao longo do tempo, com capacidades físicas e concretas de poderem ultrapassar em muito a idade do homem, pelos domínios da escrita, do desenho e da leitura, contêm dentro de si o objetivo de virem a ser partilhadas com alguém que deseje partilhar-se também. Esta vontade de partilhar e de penetrar dentro do que está escrito, do que está feito e do que se vê, é um princípio básico para a leitura, para a interpretação e para a edificação interior da fortaleza do conhecimento que, como qualquer fortaleza, quanto mais forte e robusta for, mais proveitos promove.

Génese de Babel A Bíblia é o livro, e os livros são a biblioteca e as bibliotecas são o universo. Numa das muitas parábolas, lendas e histórias fundadoras da humanidade que se encontra no Genesis (Gn, 3:1 a 9) descreve-se a construção de uma cidade na vertical, cada vez mais alta, denominada Babel, feita de terra transformada em pedra pelo fogo, tijolos que, sobrepostos uns sobre os outros, deram forma a uma torre que tocava o céu e onde os homens podiam chegar e comprovarem o seu poder. Essa torre, resultante da força humana, só foi possível porque havia entendimento fácil entre todos devido à única língua que falavam. Mas este empreendimento continha em si dois problemas. Primeiro o homem passou a acreditar excessivamente nas suas capacidades, igualando-se a Deus; segundo, fazia daquele lugar um núcleo aglutinador, não se cumprindo a missão que Deus atribuíra ao homem: o povoamento da terra. A solução encontrada por Deus foi confundir os homens dificultando-lhes a comunicação pela criação de diferentes línguas que os agrupassem e os dispersassem por toda a terra, semeando a multiculturalidade que conhecemos. O objetivo terá sido a multiculturalidade? Poder-se-á dizer que não, mas pelo menos enquadra-a!

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Obra Toda a obra parte de um pensamento estrutural e quando pensamos em livro antigo não podemos deixar de pensar no livro, na obra, na biblioteca, na paisagem, no tempo, em Babel, e em mais cinco questões. A multiculturalidade, o livro como objeto que se pode folhear e desdobrar, a arquitetura de uma biblioteca infinita no tempo e espaço e finita quanto ao número de caracteres, o processo artístico resultando da envolvência e a nossa atualidade que nos atribui a qualidade de eternos descobridores do futuro. É este o enquadramento estrutural da proposta-pintura intitulada Babel, iminentemente visual, como visuais são as palavras de Jorge Luís Borges sobre a Biblioteca de Babel de 1941 (Borges 2013), infinita no espaço hexagonal sucessivamente repetido, mas contida em cada hexágono e no número limitado de carateres, e as palavras sobre um colecionador de livros de Walter Benjamin de 1955 (Benjamin 2007) ou as pinturas de Pieter Bruegel, o Velho (Torre de Babel, 1563). Uma Pintura sob a forma de paisagem com terras naturais de sombra, e queimadas, iluminadas pelo ocre amarelo do ouro e do azul celeste e matizadas pelos dos azuis dos índigos e dos prússias: nada mais do que pigmentos, matéria pura, usada como «tijolo de barro cozido», a matéria primordial que construiu a civilização. Paisagens da terra, da mater, da madeira, da matéria, que também moldam os espaços das bibliotecas, dos centros do mundo, de todos os centros! Agregadores de livros, de obras e de homens. Cada livro, uma cidade mítica, uma paisagem, un pays, um mapa de um território infinito. A biblioteca do livro antigo é uma página desdobrável, que desempenha a função de salvaguardar e preservar o MapaMundo da paisagem conhecida, desconhecida ou hipotética que cada descobridor de futuros traz dentro de si. Uma biblioteca é uma torre de vigilância e uma arca de saberes e contratos entre as coisas e a vida. É a parte superior e visível do Hemisfério do tempo (Vieira 1718 [1354]). Mas depois da confusão, da complexidade, da agitação e

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do bulício inicial, o homem dispersou pela terra e fundou múltiplas culturas, afastando-se da Babel venerada e ambicionada de antes – agora abandonada no meio da planície bíblica inicial, das ideias, dos projetos, das ambições, como um vestígio de sucessos e de fracassos.

Referências Almeida, José Ferreira de, trad. (1968) A Biblia Sagrada. Lisboa: Depósito das Escrituras Sagradas. Benjamin, Walter (2007) “Unpacking my Library - A talk about Book Colleting.” In Illuminations. Nova Iorque: Random House Inc, pp. 59-68. Borges, Jorge Luis (2013). “A Biblioteca de Babel.” In Ficções. Lisboa: Quetzal Editores.

Honegger, Gottfried (2004). Homo Scriptor. Paris: Les Press du Réel. Kubler, George (1990). A Forma do Tempo. Lisboa: Vega, 1990. Peixeiro, Horácio Augusto (2011). Reflexões sobre o Livro. Tomar: ed autor. Vieira, António (1718). Historia do Futuro. Lisboa: António Pedrozzo Galram. 17





Mundus novus: algumas cartas para Ilídio Salteiro Por João Paulo Queiroz

Neste texto far-se-á uma digressão pela obra plástica do pintor português Ilídio Salteiro. Parte-se do tema global do território, da viagem, da ilha e da utopia, para se relacionar os significantes materiais com os significados imateriais. Enquadra-se a pesquisa do seu último ano de trabalho nas problemáticas mais amplas como o tema do multiculturalismo ou da sustentabilidade. Também a narratividade, os discursos do nosso tempo são colocados como marcos de um questionamento plástico enraizado num percurso com várias décadas. Os livros, alguns livros, algumas folhas contêm pensamentos que o pintor revela como numa visão de um navegador seiscentista. 1. O Pintor Ilídio Salteiro Ilídio Salteiro nasceu em 1953, em Alpedriz, Portugal. Formou-se em pintura na então Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, prosseguindo depois o seu percurso formativo que inclui o mestrado e o doutoramento, sendo hoje professor de pintura na agora Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Expõe desde 1979, com uma presença constante no panorama artístico português. Sobressai a exposição “o centro do mundo” no Museu Militar de Lisboa, em 2013 (Queiroz, 2013). Salteiro é contemporâneo de uma geração de artistas portugueses que estão na transição entre uma neo figuração “pós 21


pop” e uma expressividade influenciada pela movida latina dos anos 80 - das novas arquitecturas pós-modernistas (Itália, Reino Unido, França, Portugal), ao “regresso à pintura”, com movimentos espontâneos como a trans-vanguardia, ou o neoexpressionismo oitentista. Em pano de fundo, um otimismo gerado pela queda das ditaduras ibéricas e pela integração europeia. Tudo isto se traduziu, em Portugal, numa figuração expansiva, identitária, disruptiva, onde figuras humanas rompem paredes e arames, com elementos figurativos icónicos, revisitando os clássicos com novas espessuras de tinta e novos contrastes. Ao mesmo tempo as dimensões das telas ampliam-se e as matérias ganham peso e textura, conduzem a descobertas significantes. A pintura deseja-se um “Corpo sem Órgãos”, aprendem-se lições de Deleuze, Bachelard, Derrida. As porosidades tornam-se significativas, retomam-se narrativas na forma discursiva. Abrem-se aos artistas perspectivas de mercado, com novas Feiras internacionais de arte, novas Galerias, novas Coleções, novos Museus (como o CAM, o Museu de Serralves, o renovado Museu do Chiado). Em 1984, com Orwell (2007) mais ou menos distante, lançam-se os primeiros computadores pessoais. O “muro” de Pink Floyd cai, na realidade, em Berlim, em 1989. O mundo torna-se global. A pintura sai de prisões ideológicas e decorativas, caminha-se para um novo circuito de turismo rápido. Há sempre espaço para novos pensamentos plásticos. 2. Uma respiração feita de musgo Das vivências no campo, da aldeia onde Salteiro nasceu, alguns jardins, alguns lameiros, alguns riachos. As pedras que se sonham montanhas na imaginação dos pequeninos. A respiração dos pinheiros, o rumor das estradas, a deslocação lenta das nuvens. As brincadeiras de uma criança, que se tornaram o centro de um mundo sonhado, onírico, sem tamanho. As casas, as aberturas, os habitantes, as pontes, os caminhos, as primaveras e o sentir o dilatar dos dias em direção ao verão e ao sul. De todas estas vivências se pressente um Universo de criação (Figura 1) aqui na terra. Do musgo das pedras, numeram-se construções, planos, traçam-se mapas, rotas, imaginam-se ilhas, ora vazias, ora com seres liliputianos, que escondidos desapareceram. Aguarda-se a 22


maré que faz a vida pequenina respirar, na ria de Faro, onde também se explora a pequenez do agir e do imaginar, e as coisas pequenas se fazem grandes (Figura 2). Assim se fazem os pintores. O olhar que brinca com o mundo é o mesmo que constrói o mundo. Sobre o ribeiro imagina-se uma ponte. Sobre a ponte a estrada. Ao longe a montanha. Aqui perto as areias húmidas pela maré. Estas águas sobem e descem numa pulsação lunar. Este é um limo vivo, verdescente, que se apodrece e cresce. 3. As casas vazias Por aqui, nesta e naquela pintura, uma casa lisa, ranhuras por onde se pode espreitar o horizonte, com aberturas por onde se pode espreitar o seu interior. Lá dentro, caixas, salas vazias, onde podemos habitar (Figura 3, Figura 4). Estas construções são nossas, abertas para nós, como Giotto, que nos frescos de Pádua no-las abriu. Brincava com a perspectiva, inventava escadas, pórticos, alpendres, mezzanines, púlpitos, espaços nobres, explicados, mas quase sempre impossíveis. Nós que estamos cá fora sabemos que a casa pode ser nossa, porque já lá habitamos, ou porque para lá as poderemos explorar. Esta arquitetura pintada, é uma arquitetura sonhada, como a de Palladio, como as suas arcadas do centro de Vicenza, ou a sua Villa Rotonda. Lidos os 10 livros de arquitetura de Vitrúvio que explicam as colunas, as escadas, os aparelhos da parede, os aquedutos, as divisões de uma casa, as considerações sobre a pureza das águas e as influências do clima. As águas frias e quentes, os frescos e rebocos, os mosaicos e pinturas, os telhados em águas e uma estrutura virtuosa. Toda a arquitetura se basearia nos três princípios da "utilitas" (utilidade), "venustas" (beleza) e "firmitas" (solidez). Três princípios com que a pintura ilude e brinca: não é útil, não é firme, e ilude a beleza do mundo. 3. Os retângulos Giotto propõe a “perspectiva naturalis” e assim inventa um personagem do lado de fora do quadro: o observador, eu e tu. É a pensar no que o observador vê que as coisas se arrumam, se pintam, se sobrepõem, se podem espreitar. Pendurados destes rebordos, destes retângulos, espreitamos lá para dentro e vemos. São pinturas que mostram a terra, as ilhas e os rios (Figura 5). Mostram-se coisas ora pequenas, ora grandes, ora são matéria tinta, matéria visão, matéria coisa. Apresentam-nos o nosso 23


interior, parecendo ora dentro, ora fora, de ti, que espreitas. É uma terra de bons selvagens, que se escondem nas torres, perdidos por faróis antigos, encantados pelos ventos de Ariel, de A Tempestade. Os selvagens destes novos mundos pintamse com urucum e terra de siena, com azul prússia e terras da úmbria (Rousseau, 1959). 4. As visões ao preço da lepra Em entrevista (dezembro 2017) Ilídio Salteiro fala-me das visões de um monge no cabo da Finisterra, na Torre de Hércules. Que vira o paraíso para oeste, numa ilha verde, e para lá tinha ido na condição de ser só por sete anos. Era uma ilha perfeita, um paraíso testemunhado aos olhos do clérigo. Tão doce era a visão e a sensação, que findo o prazo, o monge quis ficar. O preço a pagar foi a lepra, o apodrecimento lento de um corpo no paraíso. A lenta maré que se esvazia, e se renova em sofrimento diário, agora Prometeu. As visões do monge são mostradas, uma a uma, ao longo desta série. Ora com pressa, nos desenhos, ora com vagar e demora, na pasta das pinturas. O monge contempla o paraíso pagando um preço carnal, preço que é também pago por todos os vivos nas terras verdes e húmidas (Figura 6, Figura 7). 5. As viagens de Rafael Hitlodeu Eis uma viagem, a do primeiro homem, e a do último homem. Daqui, talvez, o veterano marinheiro Americo Vespucio (1992), que descreve a Lorenzo di Medici uma carta sobre a descoberta de mundos novos: "…. na frota a expensas deste Sereníssimo rei de Portugal, corremos e descobrimos, as quais terras nos deve ser permitido chamar Novo Mundo, … a maior parte dizem que, além da equinocial, para a banda do meio-dia, não existia terra continental, mas somente o mar Atlântico, e os que afirmaram haver ai terra negaram que fosse habitada de racionais. Mas o ser esta opinião falsa, e a verdade o contrário, se provou nesta minha última viagem…". Ora acompanhou sempre Américo Vespuccio um português, Rafael Hitlodeu, que depois de anos deixado à sua sorte, terá uma conversa com Tomás Moro. Uma vez publicada, mudará o mundo. Ilha de lugar nenhum, a primeira "Utopia". Sítio de aberturas, pontos de vista para o exterior. Ou, de aberturas para 24


um interior. Todo um território pensado, representado, cartografado. É um paraíso humano, lugar instável, área de passagem entre mundos, construções sem interior nem exterior, lugares para olhar como visões. De livros, de mapas, de terrenos, terras húmidas onde a natureza respira, onde a linha da maré agita os vivos, os que já foram, os que virão a ser (Figura 8). 6. Discussão Esta é uma viagem adentrada de óleos, de cores azuis cobalto e terras argilosas e túrgidas de limo (Figura 9). A viagem é infinita, pelo mundo fora, mundo mais real que o real “pois naqueles meridianos encontrei terra continental habitada de mais povos e animais que a nossa Europa e a Ásia ou África, e os ares mais temperados e amenos que em qualquer outra região conhecida conforme direi, tratando do que vi ou ouvi digno de notar neste Novo Mundo, segundo se verá mais abaixo…” (Vespucio, 1992). Ou podíamos estar na ilha de Próspero, aguardando entre cogitações e livros, os náufragos que poderão ser mortos ou salvos. Entre Ariel e Miranda, um engenho de vento e mar, uma Tempestade urdida. O pintor é animalesco e serve para contar a história, como Caliban (Shakespeare) no-la vai contando, um homúnculo cheio de terra, e sulfuroso. Já Próspero, essa mente da ilha, não o vemos, apenas as suas manifestações temporais. E a ilha não existe, não lugar: a Utopia contada a Tomás Moro pelo mesmo Rafael Hitlodeu. De todos estes mundos novos no-los ilustra e traz Ilídio Salteiro, um Caliban atarefado, sujo de tinta, mas com uma condição para nós: a condição dos vivos.

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Referências Deleuze, G. & Guatari, F. (2010) O anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Editora 34. ISBN 978-857326-446-3.

Orwel, G. (2007) 1984. 9789726081890.

Lisboa: Antígona. ISBN:

Queiroz, João Paulo (2013) "Propostas para ‘o centro do mundo:’ as pinturas de Ilídio Salteiro" Revista: Estúdio. ISSN 16476158, e-ISSN 1647-7316. Vol. 4 (8) pp. 310-319. Rousseau, Jean-Jacques, (1782), 2001. Rêveries du promeneur solitaire. Col. "Les Classiques de poche". Paris : Livre de Poche. Shakespeare, de William (2001) A Tempestade. Lisboa: Campo das Letras. Isbn: 9789726104728. Vespucio, Americo (1992) "Mundus Novus." In Ribeiro, Darcy & Neto, Carlos. A fundação do Brasil: testemunhos 15001700. Petrópolis: Vozes, pp. 101-106. 26


Imagens

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Fig. 1. Ilídio Salteiro, Babel (2), 2017. Óleo sobre tela, 150 cm x 200 cm. Coleção B.E.


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Fig. 2. Ilídio Salteiro, Babel (3), 2017. Óleo sobre tela, 70 cm x 90 cm.


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Fig. 3, Ilídio Salteiro, Ilhas e territórios nunca vistos, 2017. Óleo sobre tela, 70 cm x 90 cm

Fig. 3. Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (22), 2017. Óleo sobre tela, 80 cm x 60 cm.


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Fig. 4. Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (9), 2017. Óleo sobre tela, 100 cm x 70 cm.


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Fig. 5. Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (26), 2017. Óleo sobre tela, 80 cm x 60 cm.


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Fig. 6. Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (20), 2017. Óleo sobre tela, 100 cm x 70 cm.


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Fig. 7. Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (5), 2017. Acrílico sobre tela, 70 cm x 90 cm.


42


Fig. 8. Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (24), 2017. Acrílico sobre tela, 70 cm x 90 cm.


44


Fig. 9 Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (17), 2017. Óleo sobre tela, 60 cm x 80 cm.


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Fig. 10. Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (30), 2017. Óleo sobre tela, 60 cm x 80 cm.


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Fig. 11. Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (20), 2017. Óleo sobre tela, 60 cm x 80 cm.


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Fig. 12, Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (32), 2017. Acrílico sobre tela, 70 cm x 90 cm.


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Fig. 13, Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (14), 2017. Acrílico sobre tela, 70 cm x 90 cm.


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Nota biográfica

•Ilídio Salteiro (Alpedriz – Alcobaça, 1953) •Pintor, investigador e professor de Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa desde 1998. Doutoramento em Belas-Artes Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa em 2006. Mestre em História da Arte pela Universidade Nova de Lisboa em 1987. Licenciado em Artes Plásticas-Pintura pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa em 1979. •Realizou trinta exposições individuais, das quais se destaca «O Centro do Mundo» no Museu Militar de Lisboa em 2013. •Expõe regularmente desde 1979, participando em 1981 na LIS’81-2ª Bienal de Desenho, e em 1986 na III Exposição da Fundação Calouste Gulbenkian. •Está representado na Coleção Culturgest e em outras coleções públicas e privadas. •Participa desde os anos 80 em projetos de intervenção social, cultural e artística: A Barca – cooperativa de dinamização cultural: uma associação de artistas plásticos. O restauro de uma fragata do Tejo: um projecto de dinamização cultural e artístico das duas margens. Casa de Santa Bárbara de Nexe: um espaço entre Faro e Lisboa designado para produção e a divulgação artística. The Centre of the world is here é um projeto artístico que se iniciou em 2007 com uma exposição na Galeria da Câmara Municipal de Albufeira e que continuou em 2013 com uma exposição no Museu Militar de Lisboa. Evocação da Grande Guerra - arte contemporânea - Museu Militar de Lisboa, 2016-2018. •Curador de onze de exposições: Museu Militar de Lisboa, Instituto Superior de Economia e Gestão, Casa das Artes de Tavira e Associação 25 de Abril •Membro da comissão de curadoria das GAB-A, Galerias Abertas das Belas-Artes, um evento que atualmente tem uma periodicidade anual e onze edições realizadas desde 2011. •Contactos: i.salteiro@belasartes.ulisboa.pt / www.salteiro.arte.com.pt www.salteiro.blogspot.pt / www.arte.com.pt 55


Impresso na Grรกfica Digital, Lisboa.


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