António Ramos Rosa's Essays

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Ensaios filos贸ficos ant贸nio ramos rosa

Todo aquele q [livro entra n ou para bebe


Ensaios filos贸ficos ant贸nio ramos rosa




Fotograma de Sara Brito. Reverso Partindo do conceito de sobreposição de camadas pretendeu-se criar uma exploração da forma visual escrita, enfatizando a configuração como um todo, em detrimento do conteúdo em si. Os fotogramas expressam esta mesma exploração visual tendo por base dois cadernos diários de carácter mais pessoal, aqui apresentados por páginas sobrepostas que deixam transparecer os pequenos apontamentos do dia-a-dia. FICHA TÉCNICA DESIGN | PRÉ-IMPRESSÃO | TRATAMENTO DE IMAGENS

Hugo C. Moreira IMAGENS

Sara Brito IMPRESSÃO

Focom XXI Janeiro de 2015


Índice 7

Deus e a natureza humana

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O segredo da morte

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A ambiguidade e os equívocos da existência

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A impossibilidade de ser o que se é e a possibilidade de ser o que não se é

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A arte contra o sistema

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Ver e não ver para ver

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Mimetismo ou contracriação?



Deus e a natureza humana a Maria Teresa Dias Furtado e António Barahona

Deus é o universal e, porque o é, a natureza humana participa da sua divindade. Por isso, o corpo humano é sagrado e nele se encontra a possibilidade de uma relação transcendente ao nível da sua própria imanência. Na plenitude do sensível vibra a integridade primordial do ser e, por conseguinte, de Deus. Mas a presença de Deus não é visível nem evidente. A revelação divina não se sobrepõe à plenitude da relação natural. Deus está integrado na espessura vivencial e, por isso, não se manifesta, embora seja a origem da manifestação. Por isso, Deus não é um interlocutor nem uma presença que se defronta. Ele é no ser o que no ser não é exprimível nem objectivável. Amar Deus não significa amar alguém que está para além da substância viva do corpo humano. A sua essência é inerente à vitalidade do ser e está con-


substanciada na sua naturalidade irredutível. Todavia, Deus não se confunde com a natureza humana porque, embora esteja nela, dela está separado no seu próprio interior. Assim, Ele é inacessível, ausente, imperceptível, etc. Podemos também chamar-lhe inexistente, porquanto existir é vir para fora, como indica o prefixo ex, e Deus não existe, é. É todo em si e não fora de si. Deste modo, Deus é uma imperceptível proximidade e uma longinquidade irredutível. O homem não exerce qualquer poder sobre Deus, porque a fronteira interior que o separa de Deus é intransponível. Por sua vez, Deus não exerce qualquer poder sobre o homem e toda a sua acção, se acção se lhe pode chamar, é um lassen sein. Deus não pode senão ser. Mas este não poder de Deus não significa impotência, porque o ser, o ser em si, é a máxima plenitude. Assim, por duas razões opostas, Deus e o homem não possuem o poder de interferir um no outro: Deus, porque é, o homem porque não é. Que atitude poderá ser a do homem para com um deus que não se manifesta e que, embora inerente à natureza humana, nunca é presente? Como toda a procura de Deus é vã e pretensiosa, uma vez que Ele é insituável, ainda que participe da esfera humana, a não procura de Deus impõe-se como a atitude mais discreta e mais justa em relação à insituabilidade de Deus no domínio interior. Mas será que podemos encontrar Deus sem o procurar? Como Deus não está só no fundo do ser humano mas

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também à sua superfície sensível, nós podemos encarar a proximidade das coisas e do próprio corpo como a proximidade divina. Deus continuará a ser ausente, mas nós passaremos a sentir que o nosso espaço é, de algum modo, o seu espaço, ainda que seja o espaço de uma ausência. Assim Deus nos envolve porque é a substância dos nossos sentidos e, por isso mesmo, nos escapa na sua inviolável proximidade. Nós somos ao mesmo tempo a divindade e o que nos separa dela. Não podemos regressar à origem, porque é inerente à imediatez dos nossos gestos sensíveis. Não podemos encontrar Deus porque Ele é a constante inerência à pré-reflexividade dos nossos sentidos. O que nos une a Deus é, precisamente, o que dele nos separa. O que é tão espontaneamente natural que não se pode cindir ou objectivar não permite a distância necessária a uma presença ou a uma figura. Deus não está oculto mas também não é visível, uma vez que a sua essência é a própria participação na natureza humana na sua irreversível espontaneidade. O que nos separa de Deus é a sua inacessível imediatidade, insusceptível de se resolver tematicamente ou constituir uma figura presente. Deus é, por conseguinte… ausente, na medida em que não pode ser determinado como um interlocutor ou como uma imagem viva. Mais precisamente, somos nós que somos ausentes, porquanto nunca podemos retomar o percurso imediato e espontâneo das nossas percepções sensíveis.

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É sobretudo na arte e na poesia que encontramos o espaço originário do Uno ou da unidade perdida, isto é, da unidade que se perde no próprio processo da unidade perceptiva. O artista e o poeta encontram no seio do Real o Uno, ou seja, a unidade fulgurante da percepção recuperada na sua origem pré-reflexiva. É aí que a unidade de Deus é mais sensível e a sua proximidade reconhecida como a inerência da divindade no seio do sensível. O homem não possui o conhecimento da divindade, mas é na sua natureza que ele pode encontrar a unidade com Deus, conquanto nunca transponha a fronteira interior da separação. Mas nunca ele poderá recorrer a Deus como um salvador, porque Deus é e, no seu ser absoluto, Ele só pode ser. Deus não vigia nem acode, a nossa condição é sermos sós e livres sempre na iminência de uma unidade que pré-existe e que no seu processo se cinde deixando-nos no âmbito da separação, mas também no espaço de uma possível reconstrução em que Deus é o que une o que dele nos separa. [1993]

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O segredo da morte A Vergílio Ferreira, que tanto tem meditado sobre a morte

O que nos faz supor que a morte é um segredo ou um enigma é o facto de desconhecermos o que ela é como actualidade do presente efectivo no momento em que ocorre. Todavia, não podemos sequer dizer que ela é uma presença real ou uma experiência da existência humana. Mas não sabe aquele que vai morrer que efectivamente vai morrer? Pode sabê-lo, mas a sua ignorância é absoluta sobre esse momento em que a morte o destitui da consciência ou da possibilidade de experimentá-la como um dado ou uma realidade da sua existência. Parece óbvio afirmar que a morte é o fim de uma vida e, por conseguinte, a sua consumação. Ou, por outros termos, que ela instaura a completude no incessante inacabamento da vida. Que ilusão! A morte é sempre extemporânea e daí a profunda e irremediável decepção ontológica daquele que vai morrer. Daí o ser também ela um escândalo, como diz

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Vladimir Jankélévitch, embora acabe, como diz o mesmo filósofo, por ser o facto que mais naturalmente entra na ordem das coisas. (A citação não é textual.) Assim, como há uma tendência para considerar que a morte é um acontecimento trágico e terrível, também há os que a minimizam ou a justificam como «a lei da vida». Na verdade, viver não é apenas sentir a iminência da morte mas ser trespassado por ela no cerne da própria existência. Ninguém pode ter a experiência da morte como não tem a do seu nascimento, mas se ela não é um dado, uma presença actual para uma consciência viva — é, no plano da existência, um abalo ou sismo que retira à vida a consistência ontológica e ensombra o ser na sua perspectiva existencial. O paradoxo da morte, ou um dos seus paradoxos, reside em ser ela ao mesmo tempo um acontecimento comum e extremamente individual. Ninguém pode morrer em meu lugar, mas se eu morro entro na generalidade da morte como qualquer um. Outro paradoxo da morte é ela ser do domínio do que há de mais íntimo (e inconfundível) num ser humano e simultaneamente o que lhe é mais exterior e acidental. O processo de exteriorização da morte não é a projecção de uma ideia ou obsessão mas a deslocação da morte como inerência da vida para o plano acidental ou circunstancial, isto é, de que, de algum modo, o homem se pode distanciar, mantendo a sua segurança ou tentando mantê-la. Aquele que acredita na imortalidade projecta a sua vida num além-mundo, mas cabe perguntar: quem acre-

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dita verdadeiramente na imortalidade? Eu creio que alguns acreditam, mas, mesmo para esses, a morte é um aniquilamento total, mesmo para os que crêem que a alma pode sobreviver. A radicalidade da morte é irredutível, e morrer, seja qual for a religião ou a filosofia do que vai morrer, é entrar na negatividade absoluta, ou seja, na pura inexistência. Todavia, a morte não é, na maioria dos casos, o momento mais crucial do transe que é a aproximação da morte. É esta aproximação que é trágica, é o morrer e não a morte, quase sempre imperceptível, que constitui a temporalidade trágica e contraditória de ainda estar vivo e morrer. O que a interrogação suplicante de Cristo: «Pai, porque me abandonaste?», significa é o abandono absoluto do ser, a que Deus não pode valer, ainda que ele seja seu Filho. A razão desse abandono por parte de Deus poderá explicar-se porque Deus não conhece a morte. Tal é a interpretação, aliás pouco ortodoxa, de um poema de Paul Celan, «Tenebrae». A importância desta extraordinária interrogação de Cristo reside em ela exprimir a radicalidade da destituição existencial, quer ela seja ou não a destituição do morrer na sua impossibilidade temporal. Quando se questiona a morte, há uma tendência natural, demasiado humana, para dissimular o que acaso se sabe ou não se sabe acerca da morte ou do morrer. O filósofo Hans-Georg Gadamer, num magnífico estudo, «La mort comme question» (incluído no livro de

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homenagem a Paul Ricœur, Éditions du Seuil1) põe em causa o conhecimento da morte: «Haverá alguém entre nós que saiba o que sabe, quando sabe que tem de morrer? O nosso questionamento sobre a morte não é sempre necessariamente uma maneira de dissimular o que se conhece, de dissimular alguma coisa de impensável, o não ser?» A morte, efectivamente, só pode ser objecto de conhecimento para a ciência, que determina a sua causa objectiva. Mas a esta escapam as determinações subjectivas da temporalidade do doente, como existente único… A fatalidade da morte é considerada natural porque ela é inevitável, ou seja: porque obedece a uma lógica fisiológica inegável. Se, porém, a morte é natural como consequência de factores físicos e psicológicos que rigorosamente conduzem ao seu desenlace fatal, a verdade é que a morte não é natural no plano da existência humana. Ela é obscuridade irredutível que o homem não pode afastar da sua trajectória temporal, incluindo a sua actualidade, uma vez que a morte não é só a inevitável tragédia que ocorre num futuro indefinido, mas o que desde já destina o homem para a morte em qualquer momento da sua vida. Heidegger criou o conceito de «ser para a morte» e assim pôs em evidência a inerência da morte na tessitura da existência humana.

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Sens et existence: en hommage a Paul Ricœur, ed. Gary Brent Madison, Paris, Éditions du Seuil, 1975.

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Mas poderá este conceito significar que a morte é natural, isto é, uma consumação, um final ou um destino que nos cumpre assumir como revelação do que na vida há de essencial? Se procurarmos determinar o comportamento íntimo do homem (se é que esta expressão tem algum sentido), isto é, se nos basearmos na sua percepção de existente, verificamos que não há nele uma defrontação com o que há de mais negativo e terrível na existência. A defrontação implica uma oposição e esta uma separação entre o ser na sua afirmação vital e a morte na sua realidade objectiva e, por conseguinte, natural na sua estrutura. São dois conceitos que se entrechocam em torno do que será natural ou não na morte e na consciência dela. Tanto do ponto de vista científico como no da fenomenologia (por maior que seja a sua oposição), a diferença entre o «ser-lançado no mundo» e o «ser para a morte» (conceitos heideggerianos) apresenta-se como algo que é um processo num destino e numa consumação final. Em Heidegger há uma predeterminação da morte pela qual o homem se lhe destina e é essa inerência que constitui «naturalidade» da morte. Não é este o termo que o filósofo alemão emprega para caracterizar o que há de mais específico na relação ou não relação com a morte. O que ele nos diz é que a relação do homem com a morte é a relação que revela o que há de próprio ou de mais próprio nele. Ora, será essa característica do próprio uma determinação natural e, por conseguinte, uma determinação

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ontológica? Por um lado, temos de compreender que se a morte é inerente ao homem, naturalmente faz parte da sua natureza. Apesar de compreender essa inerência da morte à natureza humana, oponho-me à ideia da morte natural como final de uma temporalidade que assim se consuma e se perfaz. O que há de mais próprio no homem pode ser determinado pela morte, mas o que o erige como existente é a sua capacidade de criar e viver contra a morte. O conceito da naturalidade da morte tem a sua justificação lógica no plano físico ou até filosófico, mas a morte de um homem é sempre um escândalo e uma perda. Se no corpo humano tudo está predeterminado, e, por isso, destinado à morte, o que nele morre é a vida insubstituível de um sujeito para o qual a morte é uma ruptura absoluta e não um acontecimento natural. [1994]

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Ae os ambiguidade equívocos da existência Para o positivismo e outras tendências filosóficas afins a ambiguidade é uma imperfeição da consciência ou uma consequência dos limites do conhecimento humano, por conseguinte, susceptível de ser reduzida ou anulada por uma elucidação coerentemente objectiva. Alguns pensadores atribuem a ambiguidade da existência à imperfeição da linguagem. Mas outros filósofos denunciam esta hermenêutica optimista e consideram a ambiguidade inerente à existência e à sua estrutura mesma. Por exemplo, Merleau-Ponty, Jean Paulhan, Georges Bataille, Raymond Aron. Para estes o conhecimento histórico é relativo porque se origina no equívoco do devir espiritual e no inacabamento da evolução. Para Bataille, a ignorância do futuro define não uma imperfeição, mas a forma mesma da experiência histórica. Porque a existência não é uma realidade acabada mas um devir permanente, engloba-se num futuro imprevisível, e é devido a essa instabilidade e tensão existencial que a ambiguidade é uma estrutura da existência e que

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os seus equívocos são irredutíveis. Na verdade, o pensamento é uma constante tensão no presente porque este escapa em grande parte à apreensão racional e mesmo no plano dos dados imediatos, uma vez que a sua natureza é insondável. O homem não vive o presente como uma presença estática, mas no seu contínuo devir, em que o por-fazer é a dimensão essencial do comportamento do homem como ser livre e contingente. A ambiguidade é inerente à iniciativa, e se esta aparentemente é uma decisão que a anula, na verdade subsiste no próprio impulso da decisão e das suas consequências. Toda a relação intersubjectiva comporta a ambiguidade, ou seja a «mancha cega» que não pode ser reduzida, porque se o fosse os interlocutores teriam uma transparência tal que coincidiriam em absoluto sem terem necessidade de comunicar. No plano histórico, os historiadores pensam em geral que os seus pontos obscuros e os seus equívocos poderiam ser esclarecidos por completo, se uma investigação exaustivamente objectiva conseguisse determinar a realidade aparentemente obscura. Ora, esta epistemologia optimista não corresponde à irredutibilidade da maioria dos equívocos e obscuridades da História. A impossibilidade de conhecer de uma maneira inteiramente objectiva a realidade histórica não provém do facto de ela ser em parte inacessível, como passado que é, mas de ter sido um presente com toda a ambiguidade e obscuridade que o caracteriza.

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Se meditarmos no mais simples gesto, na mais simples coisa ou no mais transparente acontecimento, verificamos que ele constitui um conjunto de relações em parte perceptíveis, em grande parte inextricáveis e por isso a realidade pode causar uma sensação de vertigem. Freud deu o nome de «sobredeterminação» ao conjunto das determinações que podem gerar um só acto. Este conceito constitui uma verificação irrefutável da irredutibilidade da ambiguidade existencial. Tanto a filosofia espiritualista como a filosofia positivista consideram a ambiguidade como um obstáculo removível pelo conhecimento e implicam assim a transparência do real ou a perfeita coincidência com ele. Perante a contingência, que Heidegger e outros filósofos existencialistas consideram incontornável, não se deve subestimar o que nela há de negativo e insuperável. Se a existência fosse constituída por determinações, unívocas e claras, o homem como viveria num só elemento perfeitamente transparente. Tal é o mito racionalista e o paraíso inequívoco a que ele nos conduz. Pelo contrário, a existência é o difícil e doloroso confronto com a sua negatividade irredutível. Se esta condição é trágica, é a condição que permite tanto a atitude estóica ou heróica como o cepticismo lúcido, e tanto aquele como este podem ser a resistência ao absurdo, ao mal e à morte, e assim a resposta da liberdade humana ao destino irrevogável. Os que negam a irredutibilidade da contingência e da sua decorrente ambiguidade não têm em conta o que

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determina fundamentalmente a condição humana e a torna permanentemente trágica e heróica. É claro que esta condição não anula as potencialidades do espírito e a liberdade de as enfrentar com coragem e determinação. O que é falso, porém, é o mito de uma consciência que supera todas as dificuldades e contorna o que é incontornável. Perante a ambiguidade o conhecimento deve procurar elucidar o que nela é determinável, mas, por outro lado, tem de constatar o que nela é irredutível e estruturalmente inerente à existência. [1994]

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A impossibilidade de ser o que se é e a possibilidade de ser o que não se é O homem possui uma identidade que lhe permite ser o mesmo ao longo da sua vida, embora sendo também o outro de si mesmo. Essa dualidade não afecta a sua identidade e, pelo contrário, fortalece-a. Se o homem fosse plenamente idêntico não poderia reconhecer-se nem identificar-se com ela, uma vez que ela o preencheria de tal modo que a consciência e o espírito não poderiam reflecti-la. É mediante essa separação interna que a consciência possui o espaço necessário para a sua afirmação e para a afirmação da identidade que é a própria consciência ou o próprio espírito. É porque o homem é outro que ele é um eu, e é a sua alteridade que sustenta a sua identidade. Todavia, esta, que lhe permite ser ele mesmo, é o que o separa de si e lhe impossibilita a unidade que ele deseja alcançar. Tal é o paradoxo da consciência do espírito ao mesmo tempo identificante e alterativo. Para que a consciência fosse plenamente identificante seria necessário que o absoluto inerente ao homem fosse a

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revelação originária da sua unidade com o espírito. Tal só é possível em determinados momentos privilegiados em que a consciência alarga o seu domínio à totalidade do ser. Contudo, a consciência está virada sobretudo para o que se separa do ser, ou seja, para as coisas e os seres do mundo. O espírito não alcança a plenitude porque ele próprio não faz mais que unificar, analisando depois de sintetizar, as relações do mundo e não apreende o que possibilita essa operação, ou seja, ele próprio como operador do universo. Embora o espírito se possa reflectir e apreender a si mesmo, essa reflexividade e essa apreensão são secundárias, porque não apreendem o núcleo verdadeiro do espírito, que se insere na totalidade do ser. O homem vive assim como um ser amputado, porque não vê mais que as suas projecções e não vai além da sua própria projecção. É certo que todas as prodigiosas invenções técnicas do homem e tudo o que o seu espírito tem criado no domínio da ciência, da arte e da literatura são obra de um espírito superior, que vai além das aparências do real. Mas se isso fosse ainda muito pouco ou não fosse nada perante o que o homem poderia ser quando liberto de todos os entraves à plenitude do ser? Mas poderá o homem alguma vez alcançar, no plano da sua existência, essa plenitude? Será talvez um optimismo ontológico crer nessa possibilidade e a ela poderia contrapor-se um pessimismo igualmente ontológico.

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Na verdade, se na sociedade actual como nas sociedades anteriores, exceptuando as civilizações primitivas, o homem é um ser dividido e asfixiado, não será porque o que o impede de ser plenamente o ser que ele é e não é, não é susceptível de ser removido, uma vez que é inerente à sua condição humana? A existência não será a separação irrevogável da consciência e do ser? Será possível que o homem atinja a unidade primordial do ser continuando a ser um existente? Perante esta contradição o espírito não se inibe e na sua liberdade essencial projecta a sua audaciosa síntese em que a separação é superada pela consciência da totalidade do ser. O que o homem não é é ainda o ser de um poder ser, uma virtualidade infinita e, por conseguinte, a possibilidade de ser um outro ser que é ele mesmo para além da sua consciênia e que requer a consciência unida ao ser. Os grandes poetas e místicos falam acaso de outra coisa? O que quer que seja a que se dá o nome de Deus é a virtualidade infinita da realidade humana que é a realidade do ser, oculto mas não inacessível. A sociedade reduz o homem e separa-o de si mesmo, não lhe possibilitando o desenvolvimento completo do seu espírito, a plenitude da sua liberdade, o encontro com o absoluto que é a virtualidade de todos os possíveis e o gérmen de todas as conquistas. O homem desconhece as suas potencialidades e se por ventura as quer desenvolver não encontra na sociedade o ambiente propício para as actualizar. Até que ponto não se con-

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funde o que na existência é incontornável com o que há na sociedade de asfixiante e mutilador? Quando esta for uma verdadeira comunidade, como nas civilizações primitivas, o homem poderá sentir a plenitude cósmica, a integridade espiritual e física, a fraternidade social. Assim a libertação histórico-social do homem condiciona a libertação espiritual, assim como esta pode determinar aquela. A impossibilidade de ser o que se é inerente a esta sociedade, mas também característica da situação existencial do homem, poderá tornar-se uma possibilidade correlativa da possibilidade de ser o que não se é. Esta é a possibilidade estética, o fingimento criador e ela liberta o homem no sentido de assumir não só o que ele não é mas também o que ele é. E esta é a possibilidade ética.

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A arte contra o(umasistema moral do instante?) Poésie, révolution commencée. Révolution, poésie réalisée. Pierre Dhainaur

A experiência constante de cada indivíduo, na sua vida quotidiana, é a de uma resistência do real que, só excepcionalmente, se oferece como matéria flexível a que a sensibilidade adere num contacto total. A existência: é a experiência permanente de uma continuidade excessiva e interminável de acontecimentos, de gestos, de sons, de palavras, de imagens, de contrariedades, de mal-entendidos, de decepções, de angústias, tensões, de tudo, enfim, que constitui o incessante tecido da existência nos seus dados irremediáveis e não raras vezes insuportáveis. Ça ne peut pas durer. Ça dure. A frase: é de Samuel Beckett e define exemplarmente a insustentável tensão da existência como duração insuperável. No mundo em que vivemos são raros e sempre marginais os oásis da contemplação, a consonância com o tempo ou com o instante, o êxtase perante uma paisagem ou uma obra de arte. Os momentos de felicidade dos amantes são

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momentos à margem desta corrente existencial e, por isso mesmo, interrompem-na e, inversamente, a realidade quotidiana interrompe os momentos de plenitude amorosa. Se o homem não pode fugir à determinação essencial do tempo, que rege toda a sua existência e determina a sua finitude irredutível, como poderá ele libertar-se da negatividade do tempo e viver a vida como totalidade na plenitude do presente ou do instante? O homem moderno não encontra a totalidade na fé religiosa em que o tempo é hipostasiado como presença, símbolo, signo, esperança ou promessa de eternidade. A atitude religiosa anula as contradições do tempo mas apenas num plano ideal ou de ilusão idealista. A determinação do tempo é insuperável e a sua única eternidade é a do instante. Só nas sociedades primitivas o homem se inseria inteiramente, mediante o mito, na totalidade cósmica e, desse modo, o tempo não existia para ele, cada instante era para ele a plenitude da totalidade vivida, uma participação total no cosmos. O desaparecimento do mito, como estrutura total do ser-no-mundo, pôs em evidência a realidade essencial do devir, e assim o ser temporalizou-se, de tal modo que o ser e o tempo já não se podem dissociar, porque o ser é tempo, como diz Heidegger. O ser advém em cada aparição temporal, sem no entanto se consumar e consumando-se, actualizando-se mas sem actualizar a totalidade, que o determina não como causa mas como horizonte da sua possibilidade e do seu movimento essencial.

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Como diz o filósofo francês Jean Ladrière «o adveniente não está apoiado num suporte, mas está como suspenso na possibilidade sempre actual de uma queda sem fim, que é também a possibilidade sempre actual de uma ascensão sem fim numa claridade interminável». A psique é uma incessante sucessão de momentos temporais que se originam num abismo, que é a própria origem do tempo como potencialidade infinita de configurações que nunca constituem uma actualização total. É o devir que estrutura a mente e determina todo o processo da manifestação do real. O que advém, como diz ainda Jean Ladrière, «nunca é mais do que a iminência do que sobrevém». Assim, cada momento psíquico nunca pode constituir a presença estática, plena e transparente de si mesmo. O devir estrutura a sucessão das configurações que nunca actualizam inteiramente a totalidade que cada uma delas subentende. Por outro lado, o tempo transforma o espaço do visível na infinidade do possível ilimitando o finito dos objectos percepcionados. Tudo o que aparece está sujeito a desaparecer, mas o processo do devir é a contínua sucessão de configurações em que o ser advém ao mesmo tempo que se oculta e se retira. Este retraimento do ser impede que a consciência seja transparente e que a presença seja a plenitude de si mesma. Neste espaço em movimento, em que tudo se transforma a cada momento, o instante, por mais precário que seja, e na verdade é um «quase nada», constitui a

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única possibilidade de relação ontológica com o real. Viver o instante o mais plenamente possível é abrirmo-nos ao tempo como possibilidade de uma plenitude actual que se constitui entre a disposição do sujeito aberta ao mundo ou a si mesmo e à própria pulsação do mundo no instante. Na plenitude do instante o sujeito é uno ao nível do acto que realiza ou do objecto que contempla. O homem que se embriaga, por exemplo, é inteiramente a plenitude da sua embriaguez, uma entrega inteira e trasbordante ao imediato, o nadador, por sua vez, é a totalidade viva do seu corpo, dos seus movimentos, da sua respiração, do seu élan. A embriaguez, seja ela do que for, é, no plano da acção, um exemplo de participação corporal na matéria viva do instante. No plano da contemplação, a fruição estética: do real e da obra de arte é outro exemplo da encarnação do desejo ou da sua modelação criadora na trama temporal do instante. Na medida em que a sociedade moderna está virada para o futuro e, no seu ritmo alucinante, devora o tempo, não há no seu âmbito a possibilidade libertadora do instante como relação unitária e imediata do ser-no-mundo. Rimbaud escreveu esta frase célebre: «La vraie vie est absente. Nous ne sommes pas au monde.» Na verdade, o homem da sociedade actual sofre de uma alienação profunda que o priva do equilíbrio fundamental da relação imediata com o mundo na plenitude do instante. O seu desejo de possuir, de produzir mais e melhor, de estabelecer recordes, numa palavra, a

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sua integração no sistema técnico-científico da sociedade industrial, que é extremamente artificial e asfixiante, impede-o de (re)conhecer as presenças vivas do mundo, o maravilhoso e o singular, mesmo nas coisas aparentemente banais, e abrir-se a si mesmo e ao mundo mediante a contemplação e a fruição gratuita do instante que liberta o real e o revela na sua virgindade e na sua novidade essencial. É por isso que o homem da sociedade não está no mundo e nele a «verdadeira vida está ausente». Só a reconquista (poética ou estética) do real poderá reconduzir o homem à sua origem e à unidade da sua relação sensível com o mundo. A essência da arte e da poesia é o movimento pelo qual o mundo nos aparece, não como uma colecção de objectos, mas como a aparição de presenças que nos remetem para a sua própria origem e para a origem do homem como ser livre e criador. Há, assim, uma primazia ontológica do instante em relação ao devir, na medida em que, mesmo na sua efemeridade, ele escapa à degradação temporal. O instante pode ser «o instante de alegria» de que nos fala Rimbaud porque nele se revela a unidade originária do ser e do mundo, do eros e da disposição estética, do espírito e do corpo libidinal. A obra de arte, tanto na sua criação como na sua recepção, é a vida do instante em que se entrevê a totalidade, que é, essencialmente, estética e, por isso mesmo, libidinal. É neste sentido que ela é revolucionária, uma vez que não se subordina a quaisquer ditames ou

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códigos sociais, políticos, religiosos ou morais, ainda mesmo quando esteja aparentemente vinculada a eles. O seu espaço é o espaço da «liberdade livre» do instante criador, que, por sua vez, é uma assunção de um instante do mundo como habitabilidade pura, ou seja do Uno. O poeta é, por excelência, um unificador pois restaura a união nupcial da sensibilidade e do pensamento do conhecimento sensível e do conhecimento reflexivo ou metafísico. Por isso a poesia moderna tem tantas afinidades com o pensamento dos pré-socráticos. Referindo-se ao símbolo, Jung define o que também se poderá considerar essencialmente poético: «Pelo seu lado divinatório, pela sua significação fecunda, o símbolo faz vibrar tanto o pensamento como o sentimento. Não é concreto nem racional, nem irracional nem irreal. É sempre um e outro, na verdade viva.» É mediante a unidade viva do poema que o poeta se liberta, e liberta criando uma livre correspondência da palavra com a verdade sensível de um instante que, por seu turno, no seu movimento intrínseco, o poema suscita e promove. Assim, a palavra poética é essencialmente liberdade, não só pela sua receptividade à totalidade de um instante ou a um instante total, mas também pelo movimento de uma criação aberta e instauradora do próprio inexprimível que a determinou. É devido a esta capacidade de liberdade que o poema nos ajuda a existir e «a desfazer-nos pela palavra da opressão do que nós somos», como diz Paul Valéry. O conhecimento objectivo,

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quer científico, tecnológico ou simplesmente comum, é um conhecimento abstracto que afasta o homem cada vez mais do seu centro. Só a arte e a literatura, que hoje ocupam o lugar da religião, oferecem ao homem a possibilidade de se desprender das agressões vitais de uma sociedade que, como diz Jean Onimus, «fabrica incansavelmente produtos em série e sem problemas». Pelo contrário, a arte e a literatura integram «a consciência no seu ser profundo a fim de nela reencontrarem as fontes da sua vitalidade», como diz ainda Jean Onimus. É por isso que tanto uma como outra se podem definir como uma insurreição vital a partir do que no homem há de inalienável e essencial. Assim, a verdade da arte enraíza-se na dimensão originária do homem para o qual o mundo não é objecto de dominação mas a sua pátria que lhe cabe acolher e celebrar. Ora, esta consciência ontológica da arte é, também, uma consciência ecológica, que não é de hoje apenas, mas de sempre. A terra ou a natureza não é somente o tema lírico da poesia de todos os tempos, mas a dimensão intrinsecamente poética como relação vital e horizonte permanente do próprio acto criativo. É, portanto, na arte e na literatura que encontramos a integralidade ontológica que é necessário e urgente recuperar no plano da existência social. Como nem as ideologias nem a religião, que, por sua vez, se tornou uma ideologia dogmática regida por uma casta clerial, são capazes de

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revitalizar o homem e de lhe proporcionar um lugar de emergência em que ele inteiramente possa respirar (na totalidade do seu corpo ou no seu corpo como totalidade, na plenitude do seu espírito, sensibilidade e imaginação), não há outra via senão a que a arte nos propõem implicitamente pela sua específica démarche, sem qualquer mensagem ou discurso teórico ou programático. Como o tempo não nos oferece outra dimensão mais viva e mais plena, o instante constitui a possibilidade de uma participação efectiva e aberta na totalidade e, portanto, de uma respiração cósmica. Tanto no instante poético ou estético, como no seio do instante real, produz-se uma apreensão instintiva, imedita, uma entrega, um encontro que os aparentam ao instante erótico do encontro amoroso. O instante é, assim, uma abertura do ser para o ser, que é, na sua essência, «liberdade livre», disponibilidade perfeita sem causa nem finalidade. Esta abertura, que possibilita a verdadeira comunicação e o verdadeiro respeito pelo outro, o amor à diferença, é o inverso do jogo do poder e da segurança, de qualquer pretensão à verdade, da imposição ideológica, da pseudocomunicação da chamada comunicação social e de todos os que desconhecem a relação essencial da palavra e do silêncio. Jacques Sojcher emprega uma expressão muito justa para designar a comunicação autêntica: «a nudez da comunicação». Esta nudez, própria da gratuitidade do instante vivido na sua abertura ao ser, implica a recusa do poder e a palavra que ela requer é

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um «protesto» «contra a regra, a norma, a explicação, a redução». Numa palavra, contra a asfixia. Se o poder do sistema é infinitamente superior à capacidade revolucionária da arte, a verdade é que a revolução no plano social é uma finalidade inerente à dimensão estética e ninguém poderá de antemão afirmar que a libertação do homem não será o fruto da actividade artística poética que, desde há séculos ou milénios, se processa no seu domínio específico, que é também o campo do possível e da perspectiva revolucionária de uma vida centrada na gratuitidade do instante e da sua possibilidade de regeneração permanente e de criação incessante. [1991]

a arte contra o sistema

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Ver e não ver para ver A Rui Mário Gonçalves e Eurico Gonçalves

A relação do sujeito com o mundo, para além das suas alterações e dificuldades ou perturbações, é uma afirmação constante e renovada da sua identidade, sem a qual não poderia defrontar o mundo e reconhecê-lo, reconhecendo-se mediante a sua actividade perceptiva e motora (espontânea ou voluntária), ou seja, através do que nele é o movimento incessante do sensível e da consciência atenta ao mundo exterior. A apreensão do mundo é determinada pelos a priori constituintes que possibilitam que o mundo seja ao mesmo tempo dado e constituído, uma vez que todos eles, tanto os materiais como os formais, tanto os inerentes aos sentidos como os que constituem o espírito perspectivam o ser no mundo na sua imediatez pré-reflexiva ou nas suas mediações reflexivas e estruturam-no como um ser no mundo e para o mundo. O sujeito identifica assim o mundo mediante a sua identidade resultante da coordenação dos seus a priori

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e identifica-se na unidade em que se reconhece através das alterações que possa sofrer ou dos obstáculos que tenha de enfrentar. Todavia, a identidade corre o risco de se desintegrar, quando sofre certas perturbações que a abalam como sismos interiores que provocam uma cisão ou que agravam a que é inerente à sua relação perceptiva com o mundo. Pela visão, o homem projecta-se e insere-se imediatamente no mundo sem qualquer mediação reflexiva, uma vez que ela precede sempre a actividade reflexiva, ainda quando o olhar é intencional ou observador. A visão precede sempre oferecendo o mundo ao olhar atento ou distraído e coloca constantemente o homem no mundo, projectando-o segundo a sua perspectiva, pela qual se afirma a identidade do sujeito como corpo vidente e visível no espaço visível do mundo. Todavia, há um paradoxo na visão uma vez que nós não vemos senão o que de algum modo, e sem metáforas, nos olha produzindo ou agravando a cisão interna na identidade do sujeito. Nas coisas que vemos há uma latência que deforma (des-forma) os§ contornos do seu volume visível e «Suscita os poderes inquietantes da cisão», como afirma Georges Didi-Huberman num livro que se intitula precisamente Ce que nous voyons. Ce qui nous regarde2.

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Les Éditions de Minuit, 1992.

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Por um lado, verificamos que há uma unidade perceptiva na visão, apesar das suas possíveis perturbações e perplexidades, e que essa unidade é promotora da identidade do homem no mundo e no seu espaço interior, por outro, que a visão se cinde ou revela e agrava a sua cisão originária duplicando-se em duas vertentes, uma, que aceita o objecto na sua forma actual e idêntica ou superficial, a outra, que transborda dos limites do objecto convertendo as suas latências e virtualidades em presenças obsessivas e desintegrantes. Qualquer objecto é susceptível de des-realizar-se, como os surrealistas bem o sabiam, e tornar-se uma ameaça para a identidade do sujeito. Este pode furtar-se a esta visão perturbadora e reafirmar a sua identidade restabelecendo a visão «normal» ou convencional da aparência do objecto. Deste modo o sujeito realiza uma redução tautológica, limitando a visão do objecto àquilo que ele é na sua identidade aparente e reprimindo ou suprimindo assim todas as virtualidades e latências desse objecto. Tal é a atitude do «homem comum» (expressão infeliz que emprego aqui por comodidade) que, acima de tudo, se identifica com a superfície das coisas sem atentar no que o objecto pode suscitar para além da sua individualidade visível. Mas não é essa a atitude do poeta ou do músico, do artista ou do filósofo, para os quais a identidade se enriquece e se dilata na relação com a alteridade imanente da sua natureza humana,

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em correspondência com as virtualidades do objecto. A criação pela forma artística ou pela palavra poética é uma operação fictícia, mas de uma extrema autenticidade, mediante a qual o silencioso domínio da imanência (que é transcendência do ser ou da natureza humana), com todas as suas virtualidades e latências, se eleva à superfície sensível das formas, dos volumes, dos sons ou das palavras. O mais íntimo torna-se presença viva e a alteridade virtual subleva-se e afirma-se com uma nova identidade ou com a identidade renovada e regenerada do sujeito. É, sem dúvida, a música que opera a identificação mais radical e profunda da alteridade, entendendo-se por identificação a resolução do inexprimível na suprema identidade da obra musical. Esta misteriosa identidade é a manifestação de algo que em si não é idêntico, porque pertence a uma esfera inviolável em que não há determinações, e a transcendência é a infinidade indeterminável e a confusa e caótica generosidade do ser. Nenhuma outra arte é tão profundamente lancinante ou desgarradora (lembremo-nos do Adagio, de Albinoni) — e, mesmo quando o é, tão sublimizadora da dor ou da separação inexprimível —, ou de uma felicidade tão fluente e maravilhosa como a música (como, por exemplo, a de Mozart). Ulisses não encontrou uma linguagem que correspondesse ou replicasse ao sortilégio irresistível do canto das Sereias. Todavia, se fosse poeta, não seria preciso

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que o amarrassem, pois talvez conseguisse efectuar uma aproximação a esse canto, mantendo a separação e a distância que lhe permitiriam não sucumbir ao poder encantatório que essas vozes produziam em todo o seu ser. Poderá, porventura, a visão ser uma identificação da alteridade tão profunda e radical como a música? Recordemos que Rimbaud queria ser sobretudo vidente, voyant, e, se queria ser poeta, era para poder ver o que a realidade oculta à visão «normal». Dessa visão disse o poeta que ela deveria ser «monstruosa». Não se deve entender «literalmente» esta palavra ou então deve-se entendê-la, sim, «literalmente e em todos os sentidos», como afirmou Rimbaud, embora o dissesse noutro caso. Não era decerto um além-mundo que o poeta visava quando pretendia ser vidente. Como diz o seu exegeta, o filósofo Roger Munier, o que ele pretendia era ver o «mundo no seu outro». Que significa esta frase que é, sem dúvida, uma formulação exemplar? A alteridade do mundo não lhe é exterior, porque lhe é imanente e inerente à sua identidade como mundo. O que há de prodigioso no mundo furta-se à visão habitual e, por conseguinte, à determinação social que delimita e reduz o ver condicionando-o às exigências da convencionalidade social. Como já vimos, o chamado homem comum ou normal reduz tautologicamente a sua visão dos objetos, dos corpos e da natureza à superfície «razoável» do visível, sem permitir que as invisíveis latências do indivisível e

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inexprimível, que lhes subjaz, se tornem presentes e actuais. Por isso, o poeta e o artista são per-versos como seres abertos à alteridade da sua natureza transcendente ou da transcendência do mundo. O que se considera indevidamente «deformação» da arte é a sua constituição de presenças a partir das virtualidades do ser. A visão na arte e na poesia é a assunção da sua própria cisão e da unidade que ela requer no seu movimento de identificação dos objectos. A estranheza ou singularidade da visão artística ou da visão poética resulta da emergência da alteridade dos objectos, dos corpos ou da natureza no momento da sua aparição, como resultado de uma cisão assumida e superada pela visão criadora. Recusar a cisão seria reduzir-se à superficialidade ou identidade tautológica do sujeito e abandonar as virtualidades do objecto sob a sua aparência de tranquilizadora identidade. Se a percepção visual está sempre sujeita a uma desapropriação ou a uma desidentificação do sujeito, quer ele a recuse para se auto-identificar quer a assuma para a desenvolver e realizar a operação que identifica a alteridade e renovando e enriquecendo a identidade do sujeito, a verdade é que a visão, que coloca o homem no mundo e determina os seus gestos no espaço do visível, não proporciona ao homem a simplicidade de um contacto perfeito, sem fissuras e sem cisões, a não ser excepcionalmente quando o olhar se toma estético perante certas obras de arte ou perante certas paisagens.

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Há um homem elementar em todo o homem, e é ao nível elementar que ele se identifica com a sensação, sem a interposição reflexiva ou a duplicação intencional, na pura espontaneidade de um acto natural, como, por exemplo, quando come ou bebe um copo de água, quando defeca ou copula ou quando nada. Nestes actos uma corrente pré-reflexiva lava o cérebro e elimina imediatamente os resíduos mentais. A auto-identificação do sujeito pode considerar-se, nestes actos, completa, porquanto a negatividade do tempo é superada e a cisão visual não se verifica. Assumir e desenvolver o elementar ou a espontaneidade natural é decerto uma possibilidade para o reencontro do homem consigo mesmo. Cabe à arte a lucidez que a dirija para o Uno e a generosidade que a orienta para a infinidade virtual do ser e, na liberdade da sua actividade regeneradora, criar as formas da presença viva ou possibilitar a visão destas através das suas formas, nas quais o homem elementar seja redefinido não apenas como corpo vidente-visível mas como totalidade orgânica, elementar e espiritual, por conseguinte, como unidade de todos os seus níveis e concentração da indefinida e indefinível virtualidade da sua natureza. O homem, além de animal, ou na sua própria esfera animal, é um ser vegetal, e este é um dos seus domínios mais elementares, mais passivos, mais susceptíveis de proporcionar o êxtase, a espontânea atenção subtil, a flexibilidade das sensações, a sua fluência ou a sua suspensão

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em que a vacuidade é a iminência vibrante das latências naturais. Este homem elementar é inesgotável, porque inesgotável é o domínio da sua natureza, das sensações ou do sentir que transcende as determinações do conhecimento e as perspectivas da visão. Todavia, a visão pode acompanhar e desenvolver as modalidades do sentir quando ela se abre ao Aberto, ou seja, à totalidade da transcendência que lhe é inerente como virtualidade permanente. Ver, em vez de uma redução tautológica perante o excedente das latências invisíveis e, por conseguinte, em vez da recusa da sua dimensão transcendente, ou seja, ver e depois fechar a visão nos limites convencionais da tranquilidade conservadora e da identidade superficial, será constituir o mundo da identificação da alteridade e reconstituir o primitivo assombro e o ingénuo deslumbramento dos homens que viram o mundo pela primeira vez. [1995]

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Mimetismo ou contracriação? O ponto de partida desta reflexão sobre a criação artística e literária foi a leitura de algumas páginas do livro Real Presences, de George Steiner, sobretudo as páginas finais3. Este livro tem no original o subtítulo Is There Anything in What We Say?. Na tradução francesa, que é a que estou a ler, o subtítulo é outro: Les Arts du Sens. Compreende-se a dificuldade de traduzir este subtítulo literalmente e a necessidade de o substituir por outro que soasse bem na língua francesa. Nas páginas acima referidas, o grande ensaísta inglês aborda o tema da contingência do mundo, da condição humana e da condição artística e literária. «O essencial da nossa condição humana não é mais nem menos que a apreensão que nós temos da substancialidade — radicalmente inexplicável — do criado. Eis

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Cf. Georges Steiner, Réelles présences: Les arts du sens, Paris, Folio, 1994, p. 240-275. O original, Real Presences, foi publicado em 1989 pela Faber and Faber.

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a rudimentar gramática do insondável.» Na verdade, não sabemos porque é que se escrevem poemas ou se criam obras de arte; as respostas que têm sido dadas a esta pergunta fundamental não são satisfatórias, precisamente porque a criação artística e literária é inexplicável. O seu como pode ser explicado, mas o porquê não. No que concerne à condição humana, também não sabemos porque o homem existe em vez de não existir. Nem as religiões nem os filósofos conseguem esclarecer este mistério que é o mais insondável da condição humana. Toda a verdadeira obra de arte ou literária mediatiza a tensão do poeta e do artista inerente ao estar no mundo que é uma tensão «contra a sua vinda ao mundo», como acentua Steiner. Não só o poeta e o artista mas todo o homem conhece, em maior ou menor grau, essa tensão que é a da existência irrevogável e inexorável. Mas o poeta ou o artista estrutura essa tensão numa obra que não a mascara nem a suaviza, antes a desenvolve e a impulsiona até à plenitude de uma afirmação vital e estética, que é uma insurreição contra a morte impossível e absoluta. Esta determinação existencial é o traço comum dos verdadeiros poetas e artistas. Eles mostram que a vida humana é uma queda e um fracasso, o que não prova que eles expressem o fracasso particular das suas vidas. Tomemos o caso de Fernando Pessoa. A sua poesia ora é um lamento ora um grito de terrível angústia, mas, ainda que pensemos que essa angústia é a do homem par-

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ticular que ele era, toda a sua obra é uma contra-criação que se processa num plano metafísico e estético e que tem de ser considerada especificamente. Porque o que o artista ou o poeta faz é transformar ao nível da tensão «contra a sua vinda ao mundo» o que se lhe apresenta como insondável e inexplicável na existência humana. Mas o que é exactamente a contracriação? É que o poeta não está só no mundo e a sua revolta contra este, a sua inconformidade perante o incognoscível têm de ser permeados ou mediatizados pela consciência de uma contradição que não é inteiramente negativa e que é até estimulante, ou seja, a impossibilidade e o desejo de dizer «O que ainda ninguém disse». Neste ponto encontramos a disjunção entre o mimetismo ou mimesis e a contracriação, com as duas possíveis determinações das géneses literária e artística. Como diz Steiner, muitos filósofos e psicólogos tentaram explicar essa génese por uma espécie de mimesis, pelas representações do real, mediante as quais o artista e o escritor reflectiriam o mundo como um dado. Na verdade, esta explicação é confortável, uma vez que satisfaz o desejo de reconhecimento na obra da realidade que a determinaria. Todavia, ela não tem em conta a inexplicabilidade da génese artística e poética nem a tensão da angústia perante a existência ou mais precisamente contra a vinda ao mundo. Heidegger diz que uma determinante existencial do homem é o ser lançado ao mundo, ou seja, a contingência permanente da condição humana.

mimetismo ou contracriação?

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Por outro lado, o termo «contracriação» indica o movimento ambíguo da inserção contra as formas estabelecidas da arte e da literatura e a sua resolução na realização da obra que procura ser original. Sem esta contradição, sem esta tensão originária não se pode compreender a criação artística e literária. Por conseguinte, não há que separar a contribuição individual de um artista ou escritor, ou seja, a sua originalidade, da confluência de todos os escritores ou artistas que o sensibilizaram e determinaram a sua criação ou contracriação. Se é certo que a linguagem da arte e da literatura não se esgota, porquanto a combinação das palavras e das formas é infinita, por outro lado, cada obra é determinada pela herança das obras do passado e pelo confronto com as obras contemporâneas. É na tensão entre esta inserção e a procura de um início absoluto que se pode determinar a génese da obra artística ou literária, ou seja, a criação como contracriação. [1994]

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Ensaios sobre poesia ant贸nio ramos rosa

Ensaios filos贸ficos ant贸nio ramos rosa

Todo aquele que abre um [livro entra numa nuvem ou para beber a 谩gua


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Fotograma de Sara Brito. Reverso Partindo do conceito de sobreposição de camadas pretendeu-se criar uma exploração da forma visual escrita, enfatizando a configuração como um todo, em detrimento do conteúdo em si. Os fotogramas expressam esta mesma exploração visual tendo por base dois cadernos diários de carácter mais pessoal, aqui apresentados por páginas sobrepostas que deixam transparecer os pequenos apontamentos do dia-a-dia. FICHA TÉCNICA DESIG | PRÉ-IMPRESSÃO | TRATAMENTO DE IMAGENS

Hugo C. Moreira IMAGENS

Sara Brito IMPRESSÃO

Focom XXI Janeiro de 2015


Índice

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A poesia perante a contradição da existência

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A Universalidade da Poesia

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A palavra poética e o vazio

15 A metáfora e o pretensiosismo realista 19 Através de uma ignorância sexcessiva 23

O indeterminável e o desconhecido na poesia moderna



A poesia perante adacontradição existência Sem o inexprimível todas as frases seriam ocas e equivaler-se-iam umas às outras porque o seu sentido se imobilizaria. O movimento da palavra é a sua contínua relação com o que a transcende e a projecta incessantemente para essa transcendência sem que alguma vez a alcance. O que distingue o poeta é a sua capacidade de relacionar livremente (isto é, inventando) o que aparentemente não é relacionável. Para ele o universo não é a realidade determinada e objectiva, mas a totalidade infinita das possibilidades que ele actualiza na palavra, estabelecendo relações que aparentemente não existem no real, ou existem apenas virtualmente. O que é essencial para o poeta é o movimento da palavra como construção de um espaço de liberdade e de afirmação vital através das contradições inerentes ao acto poético. A um certo nível as relações aparecem-nos inextricáveis ou vertiginosamente indetermináveis. Perante esta situação o homem constrói os seus esquemas e simplifica necessariamente o mundo para que o seu

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conhecimento seja possível. A situação do poeta não é diferente no que concerne esta defrontação com a complexidade da existência. Todavia, o poeta não elimina o que lhe aparece como obscuro ou indefinível, mas, defrontando-o, procura formular o inexprimível ser ou nada, ou o ser que é nada, e que é o motor do seu discurso. A contradição entre a palavra e o inexprimível é uma contradição produtiva e absolutamente necessária para que o poeta possa formular poeticamente as relações que vai estabelecendo entre os diversos seres e coisas do real ou no domínio da sua sensibilidade. Uma característica fundamental da existência humana é o hiato entre o que se pensa fazer, ou não se pensa e o que se faz. T. S. Eliot expressou em dois versos esse hiato: «Entre a ideia e o acto / cai a sombra.» Mas a contradição que estes versos exprimem talvez não atinja a dimensão originária desse hiato ou seja o indizível. No entanto, como um poema é sempre polissémico, poderemos interpretar a «sombra» como um reflexo do indizível que já estaria reflectido na «ideia» e que no «acto» não se consuma inteiramente. O poeta pode não esperar nada perante a página branca, mas esta não-espera não é uma condição negativa da criação poética. O poeta não se sente paralisado nem inibido perante o silêncio do indizível, ele está atento e de certo modo confiante, embora essa confiança se exerça ainda no não ser da palavra. A defrontação desta contradição não é exclusivamente inerente ao iní-

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cio do poema mas é uma constante de todo o processo poético. Deste modo, o fazer do poeta está sempre ligado a um por fazer e, precisamente por isso, é o que ele é, essencialmente, um homem, quando defronta os problemas da existência. Efectivamente, o homem vive a cada instante o hiato da existência, o qual consiste na indeterminação inerente à consciência perante si própria e perante o mundo. A lucidez da consciência é difusa ou obscura mesmo. Para que ela vença essa obscuridade é preciso que ela se transcenda para o real, o que só se efectua quando defronta a contradição que tanto pode ser interior como externa. Por isso cada acto humano implica uma tensão, e em cada poema cada verso é uma tensão resolvida ou a resolver, uma solução audaz resultante da pressão do inexprimível no por fazer e do movimento deste no fazer. Mas a consciência, além de ser difusa ou obscura, isola e fragmenta. Sem dúvida, a consciência é necessária para combater a contradição, mas para que ela não se sobreponha à imaginação criadora é preciso que actualize a sua própria possibilidade criadora. Essa possibilidade é integrante e manifesta-se como discurso, como coerência, como estrutura. O poeta é o homem que, perante a contradição da existência, afirma e desenvolve uma possibilidade de ser que é a abertura à vida plena ou seja à totalidade infinita dos possíveis, quer transcendentes quer actualizados pela palavra poética. Como diz Raymond Abbelio, «se tudo é relativo

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a relação é o absoluto». É este absoluto relacional que o poeta explora e, de tal modo, que as suas imagens e metáforas são as pontes que ligam sobre o abismo duas realidades aparentemente inacessíveis. [1993]

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A Universalidade da Poesia Quoi? L’éternité. C’est la mer allée Avec le soleil. Arthur Rimbaud

O que é a universalidade? O que é a eternidade? O que é a natureza? Estas três perguntas giram em torno de uma mesma questão: o que é o ser ou seja o que é o que é? A universalidade é a característica da essência do ser, uma vez que tudo o que é transcende as determinações particulares e acidentais mediante as quais o ser se actualiza, se configura, se revela e se oculta. A natureza, incluindo a natureza humana, é, por essência, universal, na medida em que o ser nela concentra e propaga a sua energia expandindo-se com a espontaneidade da sua impulsão primordial que visa a sua totalidade aberta que, sendo outra para além dele, é ainda ele mesmo na sua identidade, ou seja na identidade do Uno. A natureza humana transcende os limites individuais do homem e projecta-o na dimensão social e cósmica como uma possibilidade constante de transcendência e de dilata-

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ção do seu espaço quotidiano, ou meramente funcional. A eternidade é o momento privilegiado em que o homem acede à totalidade do Vivo e se encontra com uma força natural no seio da natureza. Esta integração total está expressa nos versos de Rimbaud citados em epígrafe: «Quoi? L’éternité / c’est la mer allée / avec le soleil.» Este momento de integração livre no universo é um momento universal, porque é o encontro da natureza humana com a natureza cósmica e é, também, a revelação da eternidade como essência da pura naturalidade do ser como presente eterno e universal. A universalidade poética radica-se nesta imersão na totalidade natural em que o que é se revela na fulguração de um instante em que o homem é coextensivo à dimensão cósmica e universal. Daí que o poema seja a «liberdade livre» (expressão também de Rimbaud referente à poesia) da integração na totalidade viva do instante e daí a sua universalidade. Assim, o instante natural, que em si mesmo é universal, torna-se o instante poético em que se manifesta a universalidade natural do ser quando o homem, como natureza, não só natural mas também naturante, vai ao encontro da natureza cósmica ou seja da dimensão total do ser como universo. Por outros termos, é o Real Absoluto que os poetas celebram e daí a universalidade essencial da poesia.

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Ae opalavra poética vazio A palavra poética (pelo menos a de alguns poetas modernos) é a que nos conduz para o verdadeiro centro, o verdadeiro lugar, ou seja o centro vazio do nosso ser terrestre. É esta falha que funda a possibilidade de uma comunicação essencial e de uma relação autêntica com o ser e o silêncio. Assim, a poesia ergue-se a partir do nada, no limite da sua própria possibilidade e assim recomeça incessantemente sem se repetir. Se todo o desejo nasce de um abismo (o nada, o vazio), o poema, que é sempre desejo ou carência de uma presença essencial, é, no seu percurso, um duplo movimento a saber: a própria manifestação do abismo e a infinita travessia do abismo. Assim, a poesia ergue-se do que lhe escapa e do que será sempre para ela uma carência fundamental. O vazio não a nega nem a paralisa, antes a suscita e a impele para o seu próprio limite e é nesse limite que ela ela realiza a sua viagem incerta, obscura, mas também luminosa. A este limite chamam alguns o deserto, a nudez de uma fronteira onde a sede sonha e espera a fecundidade de um jardim profundo sob

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o deserto. Assim, o poeta afasta-se das linguagens reconhecidas e reconhecíveis e, tal como o herói trágico, vive na sua carne a dilaceração dos códigos e das significações. O canto poético requer este preço para que a palavra seja uma palavra de verdade, inicial, fundadora. Eis porque o poema raramente responde ou traz soluções: ele só avança interrogando, procurando na incerteza, abrindo o espaço, produzindo a sua própria libertação que é a do desejo, suscitando presenças em que o possível se une ao impossível, o relativo ao absoluto, a transparência ao obscuro. O poema é a resposta, a única resposta possível numa situação-limite em que a salvação é a libertação de uma invenção que permite descobrir a realidade essencial do ser. Tudo isto é talvez um nada, o nada, mas é com ele que o poeta procura coincidir numa tentativa que é decerto impossível mas é esta impossibilidade que permite libertar o ser e o elevar a uma plenitude que é a experiência absoluta dos grandes místicos e também a aspiração profunda (embora muitas vezes ignorada) de todo o ser humano.

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Ae ometáfora pretensiosismo realista A defrontação com o inexprimível é uma constante da existência humana. A mais simples coisa, se a considerarmos bem, é informulável ou contém uma irredutível parte inexprimível. Por outro lado, o homem não apreende a totalidade do seu ser e, por isso, é, em grande parte, um desconhecido para si mesmo. O inexprimível, porque é inexprimível, não se actualiza, mas actualiza. Por isso, o poeta procura correspondências para o real inexprimível e não a expressão directa e perfeitamente clara. Entre o real e a linguagem existe um hiato que não permite a apreensão global das coisas e dos seres do mundo. Por conseguinte, toda a linguagem é transposição, isto é, metáfora, mutação do particular no universal. Quem escreve ou fala converte a sua particularidade no universal da linguagem. Esta universalidade da linguagem transforma o indivíduo num ser essencialmente relacional e aberto, de tal modo que cada pessoa não pode ser considerada a partir de si mesma, ou seja, como uma individualidade, mas como uma versão do mundo

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humano para o qual ela se abre e do qual ela parte numa contínua corrente relacional. Esta universalidade é tanto fenomenológica como ontológica, uma vez que não é o sujeito só que se abre ao mundo, mas o mundo que se abre no sujeito. Assim, ao hiato entre a linguagem e o mundo sobrepõe-se a vocação universal da linguagem como ser do mundo e para o mundo. Estes dois conceitos não se resolvem numa síntese, porquanto a tensão que existe no interior da linguagem entre a impossibilidade de formular o inexprimível e a sua possibilidade universalizadora, que institui o sentido como um vector do mundo, mantém-se como uma determinante do processo de instauração universalizadora da linguagem. É devido a esta dualidade unificadora que não é possível particularizar o real inexprimível, que só pode ser transposto ou metaforizado numa correspondência e nunca traduzido ou expresso directamente. Não é só o poeta que recorre à metáfora, uma vez que toda a linguagem é, essencialmente, metafórica e se estrutura relacionalmente, em contínuas transposições semânticas. A inesgotável rede da linguagem permite que o utente da língua supere relacionalmente o hiato entre a linguagem e o mundo e, sem actualizar o inexprimível, liberte a potencialidade deste mediante o movimento que o faz actualizar o que, não sendo inexprimível, é já a parte real que por ele é afectada. O poeta sabe que não pode exprimir o real inexprimível e, por conseguinte, recorre a uma forma indirecta e relacional, ou seja, a uma trans-

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posição metafórica. Se esta transposição revela audácia, manifesta também a liberdade essencial da linguagem e da poesia. E talvez pudéssemos dizer que é, também, por modéstia que o poeta recorre à metáfora, uma vez que o faz por reconhecer que o inexprimível não pode ser expresso de nenhuma forma e só pode ser sugerido através do que ele actualiza, que é, essencialmente, o ser da linguagem como correspondência ao ser inexprimível. O realismo em poesia é uma inversão desta atitude, uma vez que pretende exprimir o real como se este não incluísse a parte inexprimível, que é irredutível. Este pretensiosismo fenomenológico ignora ou finge ignorar a impossibilidade de exprimir o informulável e a possibilidade de criar correspondências metafóricas para o que não pode ser dito nem nunca poderá ser dito. O seu desconhecimento da universalidade da linguagem leva-o à particularização do real e, por conseguinte, a uma amputação deste, que perde, assim, a sua indecidibilidade e a sua possibilidade de ser transposto mediante uma linguagem metafórica. Para dar apenas um exemplo de uma metáfora poética, eis um verso de Cesariny, que não poderia ter equivalência numa expressão realista: «de fronte de cratera molhada». O sujeito deste verso é «um homem». Esta imagem tão sugestiva e rica é uma correspondência surpreendente e fascinante à angústia inexprimível não só de um homem particular mas do ser universal da condição humana.

a metáfora e o pretensiosismo realista

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Através de uma ignorância excessiva (Notas Diversas) L’ignorance nous rapport l’un à l’autre comme s’il fallait vous voir et vous parler par le détour d’une ignorance excessive. Maurice Blanchot

Tudo está dito. Daí o plágio. Daí a imperativa necessidade de tentar dizer o que no dito está dito e, por isso mesmo, não dito. Aparente paradoxo. O dito é o próprio não-dito; o dito que obriga a dizer o não-dito permanentemente dito. E é o próprio facto de o não-dito ser dito que nos separa do não-dito, reiterando assim a impossibilidade originária inerente ao não-dito. Não se pode dizer que o dito oculte em si o não-dito: o não-dito e dito numa unidade que é a separação ou diferença intrínseca a todo o dito. A unidade do nome não unifica a diferença do sem-nome que lhe subjaz. O sem-nome impede a palavra de morrer tranquilamente no silêncio (Blanchot). A disseminação interna da nomeação é a proliferação de um não-dito que só se constitui, e se pode considerar tal,

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depois de dito. O que não impede que antes de tudo — mas a este «antes de tudo» só se chega depois de um despojamento da consciência ocupada pelo seu campo habitual — se encontre a noite obscura, o buraco hiante em que o não-dito se origina. Mas o não-dito só se constitui por uma correlação com o nome que o diz, com o dito e após o dito que o diz. Toda a violência da palavra vem desta impossibilidade, mas é esta que torna possível a possibilidade. Assim no princípio do mundo, algo que vem de algum amor imenso e insatisfeito que existiu antes do nascimento do mundo. Tudo está dito — tudo está por dizer. Os dogmáticos da razão chamarão a isto um paradoxo e assim excluem do pensamento a opacidade e a violência que o antecedem e constituem. * O grande precursor do pensamento moderno é, sem dúvida, Nietszche. Foi ele quem escreveu: «A novidade da nossa posição actual para com a filosofia é uma convicção que nenhuma época teve: a convicção de que não possuímos a verdade. Desaprender as nossas antinomias (material-imaterial, morto-vivo, lógico-ilógico), eis a nossa tarefa». Desaprender, também por conseguinte, a antinomia legível-ilegível. Segundo a ideologia humanista, a Razão do homem contém em si, virtualmente, a ordem absoluta do visí-

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vel. Daí o olhar do sujeito da consciência semelhante ao olhar do sujeito absoluto, do Deus da Génese. Deus separou os elementos do caos para os ordenar segundo a perspectiva de um olhar e declarou que a ordem foi assim imposta a todas as coisas. Quer se fale da ordem de um deus, de Razão Pura ou da razão de Estado, o essencial reside nesse jogo de espelhos que é o fundamento da ideologia da representação. Sistema de repetição em reflexos, a ordem é sempre a ordem divina ou dada como já presente na ordem das coisas, de tal maneira que mal se apercebe ou dir-se-ia ausente o próprio sistema que afunda a sua violência dá da sua naturalidade. * Abordar o problema do poético — ou, mais precisamente, investigar o que é um texto literário, em termos de legibilidade- ilegibilidade, é colocarmo-nos no campo da ideologia dominante. A crítica racionalista assimila a legibilidade à visibilidade e ao sentido. Mas a leitura do texto literário moderno é dominada pela instância do ilegível. Todo o texto, toda a leitura é-o do que se me furta e que radicalmente me impede de escrever. Esta ilegibilidade é tão radical que não pode ser tomada como uma simples negação da legibilidade nem tem nada a ver com uma legibilidade perdida ou procurada.

através de uma ignorância excessiva

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É da obscuridade (a noite sem nome) anterior ao texto, esse trou béant — que surge o legível, o demasiado legível. A impossibilidade de escrever é a própria possibilidade (e a sua impossibilidade ao mesmo tempo) de toda a legibilidade. Assim, a leitura é sempre leitura da leitura «originária», do que escapa à visão e à intuição. Mas é esta leitura que abre e limita toda a visibilidade e todo o sentido. * Diz o filósofo Manuel de Diéguez que a história da filosofia é uma sucessão de batalhas pela liberdade de inteligência. Se a filosofia não fosse essa luta pela liberdade seria acaso filosofia? E no entanto quantos mitos filosóficos! Todos os ídolos da Razão, a começar pela própria razão, aquelas entidades que os franceses chamam «êtres de raison», transformou-os o Ocidente em entidades repressivas, em cracias. Pode parecer paradoxal afirmar isto e dizer por outro lado que o pensamento filosófico se caracteriza pela sua capacidade de permanecer aberto ao mistério absoluto da existência do universo. Mas será assim? [1983]

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O indeterminável enaopoesia desconhecido moderna O indizível nem sempre é obscuro, por vezes é um vislumbre claro ou um fulgor violento. E é sempre uma intensidade do desconhecido, uma fulguração do vazio ou do indeterminável. * O paradoxo da génese do poema está na contradição entre a tendência regressiva para a inconsciência da matéria e o impulso que projecta o desejo de uma culminação do gérmen como princípio do poema. * Todo o poema é ficção, ou seja a formulação do desconhecido indeterminável. Por isso nele nada se traduz ou exprime. O poeta é completamente mobilizado pelas energias desconhecidas que se projectam através da dinâmica da criação. Assim, ele fun-

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da, inaugura, principia o que, paradoxalmente, lhe é anterior, originário. É a impulsão destas energias que actualizam o poema e o automatizam como criação. O poema é a sua própria ficção e desse modo supera as antinomias real-irreal, memória-presente, criação-expressão. * O poema moderno não é susceptível de ser «interpretado». A interpretação implica o preconceito da «compreensão» do texto. Ora, na poesia moderna frequentemente se nos depara uma obscuridade irredutível que não é talvez ilegível (poeticamente) mas torna o poema incompreensível. O poema não deixa, porém, de ser legível porque a obscuridade já não é um obstáculo, uma vez que a necessidade de compreensão foi substituída por uma nova abordagem em que essa necessidade não é fundamental. * Um poema, mesmo quando nele explode o negativo («O dia em que eu nasci moura e pereça»), é uma réplica ao negativo e, como tal, uma afirmação vital contra o destino. É isto que esquecem os exegetas que consideram o poema apenas como expressão de vivências, ou seja como representação da subjectividade.

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Na poesia moderna o ser deixa de ser o referente que a linguagem traduziria. O poema já não reenvia a uma realidade anterior a ele e, pelo contrário, é a linguagem que cria uma nova realidade. * Sabemos que um poema é uma realidade verbal mas às vezes esquecemo-nos que ele é também uma realidade física. Com isto queremos dizer que as palavras são gestos que mobilizam os lábios, os dentes, a garganta, etc. E o ritmo, as aliterações, as assonâncias, etc. conferem à palavra uma densidade física pela qual se manifesta imediatamente a realidade viva do poema («Aquela triste e leda madrugada…»). * Se a linguagem é a presença na ausência, segundo a formulação de Geoges Poulet, o poema é, por sua vez, uma aparição no desaparecimento, uma intensidade fulgurante no seio da obscuridade. * O poeta moderno está muito menos interessado em exprimir o que sente do que em constituir um objecto verbal em que se manifesta o desconhecido como utopia, ou seja como realidade viva do desejo.

o indeterminável e o desconhecido na poesia moderna

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* Em todo o ser há uma tendência para o retorno a um estado de completa tranquilidade (a matéria inorgânica). Esse desjo move o poema na sua dinâmica construtiva em que o retorno é projectado como utopia, ou seja como criação do real. * O que é a presença original? Poderá ela ser apreendida pelo poema? Na raiz de toda a poesia está uma carência fundamental, a falha originária. A presença talvez não seja mais do que um fantasma ou um logro. Por isso o poema a inventa em sucessivas imagens, algumas vezes dilacerantes, outras vezes felizes no seu excesso. A nostalgia alimenta a febre da presença, dá-lhe a dimensão do desejo, projecta-a na perspectiva fictícia e não fictícia do poema. E é sempre a utopia, a um tempo real e irreal, logro e realização, ausência e presença, plenitude e vazio.

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[de ou para se em como um p谩s Ensaios sobre poetas ant贸nio ramos rosa


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ensaios sobre poetas

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Fotograma de Sara Brito. Reverso Partindo do conceito de sobreposição de camadas pretendeu-se criar uma exploração da forma visual escrita, enfatizando a configuração como um todo, em detrimento do conteúdo em si. Os fotogramas expressam esta mesma exploração visual tendo por base dois cadernos diários de carácter mais pessoal, aqui apresentados por páginas sobrepostas que deixam transparecer os pequenos apontamentos do dia-a-dia. FICHA TÉCNICA DESIG | PRÉ-IMPRESSÃO | TRATAMENTO DE IMAGENS

Hugo C. Moreira IMAGENS

Sara Brito IMPRESSÃO

Focom XXI Janeiro de 2015


Índice 7

Os poetas do deserto

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Rimbaud o filho do Sol

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O Deus Imanente de Juan Ramón Jiménez

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Octavio Paz ou o mundo como evidência

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Fernando Pessoa ou o trágico irredutível

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Fiama ou a fantasiosa investigação do real



Os poetas do deserto A procura sempre incerta do sentido é, na poesia moderna, uma aventura que se processa num espaço interdito, o espaço do não-sentido. Esta é a própria aventura da poesia que é, sem dúvida, a do seu sentido problemático e incerto. Através das sucessivas rupturas, desde Baudelaire, com a sua busca do novo e do desconhecido, de Rimbaud com a fulguração do seu génio e o seu silêncio, e de Mallarmé perante a vertigem da folha em branco — essoutro silêncio ou a original interdição —, a poesia moderna tem manifestado, de múltiplas formas, a busca de um inacessível sentido que é o do próprio inacessível. Todavia a inacessibilidade do inacessível não anula a busca, antes a pro-move e a orienta no seu percurso. Assim é a impossibilidade do inacessível que torna possível tal aventura poética e que, afinal, a constitui e determina pela sua intransponível distância, a sua própria orientação. A ausência de sentidos que a poesia aponta nesta inacessibilidade como que a aspira e a devora por dentro, mas ao mesmo tempo alimenta-a e dirige-a, não num sentido único ou determinado, mas

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para vertiginosas paragens, para o deserto em que busca a linguagem de um silêncio, a sua própria origem. Os poetas do deserto prosseguem esta aventura da poesia moderna — uma revolução permanente — a partir do ponto extremo que a põe em causa, mas que, essencialmente, a alimenta e instaura. Trata-se, no entanto, de uma aventura que, sendo específica de modernidade poética, se liga à busca essencial da poesia de sempre. Ela insere-se nesta busca permanente, fiel a uma esperança que não desarma perante o seu próprio desmoronamento. Esta esperança é a que renasce após o incêndio e que das ruínas se ergue reinventando-as, incendiando-as de novo. Assim, o poema é como uma casa que o fogo alimenta e arruina, arruina e alimenta, num ciclo de renovação e de presença. A presença é clarão do inacessível que sempre está no vazio, no abismo em que a esperança renasce num movimento em que a presença é trans-ferida para um por-vir iminente. Mais do que uma anunciação esta iminência é já o fulgor da própria presença confundida com a esperança, o renovo da esperança e da presença. O poeta da permanência do deserto e as marcas que nele insere manifestam o risco extremo da busca de um sentimento indefenido que marca uma linguagem ávida de novas rupturas, sempre à beira do impossível. Assim, ele «soçobra sobre o sulco» que abre no deserto em direcção ao mar. O sulco, esse rastro, são as marcas de uma mão que acaba de os traçar. Elas são os signos que o poeta

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implanta no espaço, como diz Octavio Paz. Esses signos formam um novo discurso, mas tal discurso é o não discurso da poesia em que os signos não significam, ou seja, não fixam um sentido definitivamente conquistado, mas abrem-se à interrogação que os move (no duplo sentido da palavra) e ao desejo que os habita, incessante desejo, sempre insatisfeito, ora para a marca negativa do deserto, ora no júbilo da festa, nunca efectiva ou plenamente presente, mas pressentida e sentida na sua iminência e distante proximidade. A festa é viva, nesta espécie de iminência efectiva, viva no desejo que aspira à festa e no cântico da palavra que a celebra. O poema abre o discurso e deixa que a palavra fale. Já não é um discurso, uma prova ou uma afirmação, mas o incêndio dos signos, inexplicáveis e claros, opacos e transparentes, legíveis e ilegíveis, no extremo da legibilidade. O desejo da linguagem nascida da veemência do desejo deixa-nos as suas cinzas incandescentes. As palavras apagam-se mas ao apagarem-se tornam-se na frescura da respiração do deserto. Não se trata de uma ascese, porque o poeta não visa a morte do desejo. O desejo renasce na invenção e no fogo da linguagem: a palavra nula, desértica, volve-se na respiração ardente em que a intensidade do desejo se identifica com a abertura da interrogação poética. A brancura do deserto e a brancura da página transmudam a linguagem na palavra nua e incandescente, a lâmpada que respira. A poesia do deserto reincarna o desejo no desejo incessante da encarnação do desejo. O desejo confunde-se

os poetas do deserto

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com a inalterável sede, é no deserto, aridez mais árida, que a sede se desaltera sem se saciar. É a sede no deserto que encontra a inacessível fonte que é a fonte do inacessível. A ausência de sentido que a poesia defronta, nesta inacessibilidade, como que a aspira, a devora, mas ao mesmo tempo leva-a a dirigir-se para o desconhecido e o inesperado, para regiões inexploradas. Os poetas do deserto realizam uma revolução permanente a partir do ponto extremo que põe em causa a linguagem mas que incessantemente a alimenta e a instaura. [1987]

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Rimbaud o filho do Sol Nunca um poeta foi tanto o «filho do sol» como Rimbaud o foi. A influência do sol marca a sua poesia como uma presença imanente à sua natureza e foi ele quem determinou a sua relação com o universo e com os seres e as coisas do mundo. Se estes aparecem na sua poesia com um fulgor maravilhoso é porque a luz do sol as ilumina e as toma de uma evidência fulgurante nas suas imediatas aparições. É por isso que Rimbaud é essencialmente um poeta do instante («do instante de alegria», como ele disse), porque o instante rimbaudiano é o momento de aparição de um objecto ou de um fenómeno em que se repercute a vida universal: le pur ruissellement de la vie infinie. É devido a esta força universal que Rimbaud se sente possuído de uma força, criadora, que é, afinal, a mesma que aquela, e de tal modo que ele se sente não apenas uma criatura inspirada, mas um verdadeiro criador que se identifica com Deus. E esta identificação, nascida do seu génio, leva-o, num dos seus poemas a imaginar o ferreiro como um dominador das coisas e dos seres:

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Nous sommes Pour les grands temps nouveaux, où l’on voudrait savoir Où l’homme forgera du matin jusqu’au soir, Chasseur des grands effects, chasseur des grands causes, Où, lentement vaincqueur, il domptera les choses Et montera sur tout, comme on monte un cheval.

Mas a identificação com o génio criador não só lhe abre esta perspectiva histórica como o faz sentir que o paraíso não se situa noutro mundo mas é a realidade de cada momento vivido no seio da natureza. Para Rimbaud, ao contrário de Baudelaire, a queda não existe e em cada momento edénico ele vive a sua inocência integral. A eternidade paradisíaca é, assim, a plenitude incandescente de um instante universal: Elle est retrouvée! Quoi? L’éternité. C’est la mer mêlée Au soleil.

A actualidade de Rimbaud deve-se a esta intensidade fulgurante do instante solar pelo qual o eu se funde com o universo e atinge, assim, na imanência absoluta da sensação, a plenitude edénica ou divina. É devido a esta relação instantânea e inaugural que os seres e as coisas, na poesia de Rimbaud, aparecem em estado nascente na integralidade solar das suas presenças. Se a violência do

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seu acto de criação é tão grande é porque ele se origina nas mais profundas energias da natureza que o poema actualiza no vigor genesíaco de uma palavra inaugural: Ô ses souffles, ses têtes, ses courses: la terrible célérité de la perfection des formes et de l’action…

A imediatez da palavra poética de Rimbaud indica não só o fundo universal de que ela emana ou de que ela arranca, de tal modo que o grito se confunde com a inspiração, como nota Benjamin Fondane, mas também o facto de o instante do poema ser o instante de um acontecimento novo que confere ao poema a sua instantaneidade inaugural. E é por isso que Rimbaud é «absolutamente moderno», como diz um dos seus exegetas. [1991]

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OJuan Deus Imanente de Ramón Jiménez Uma das mais importantes obras da poesia espanhola contemporânea e uma das mais notáveis da obra poética de Juan Ramón Jiménez é, sem dúvida, um dos seus últimos livros, Dios Deseado y Deseante (Animal de Fondo) [1949]. Neste livro, Deus é imanente ao ser humano e é a origem que o poeta visa na sua pureza central, despojada de todas as roupagens com que o homem a tem envolvido. Neste livro Deus é a nudez originária imanente à alma e à consciência humana. «Como en el infinito. Dios, / vuelvo a tu origen (tu origen que es mi fin) / y quizá a tu fin, sin nada de ese enmedio / que las gentes te han puesto encima / de tu sola, tu limpia luz.» Assim, Deus é o correlato da consciência aberta à sua origem imanente. «Una blanca hoja, reflexo de una mente em blanco», Deus é o fogo unificante, o «dorar unânime / del diamante total de mi universo». Entre o universo do poeta e Deus não há separação, a continuidade é absoluta porque o poeta visa a origem divina da sua consciência desejante, e nela se funde porque ela é unidade do ser na sua nudez originária.

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Todavia, se o desejo de união total fosse imediatamente realizado, não haveria o movimento de unificação, não existiria distância nem tempo e assim a coincidência imediata com Deus consumar-se-ia no silêncio e o desejo não se temporalizaria nem a palavra poderia surgir como movimento dessa relação unitária e dessa originária fusão. Assim Deus aparece, não como uma presença imediata, embora sempre inerente à consciência desejante, mas como a virtualidade de uma plenitude eminente: «Una ascua hemos de ser eu plenitude / los dos, dios desejado y deseante / de una vida deslumbrada y deslumbrante; una ascua de consciencia / de valor: / y como con la noche nos perdemos la nada más dulce de tu todo, / con el día nos hemos de encontrar / en el todo más hondo de tu nada.» Deus, para Juan Ramón Jiménez, és um nada, porque ele é o correlato da sua consciência nua, vazia, sem objecto e sem finalidade externa: nesse despojamento essencial a origem da consciência desejante é um nada, um vazio, um silêncio e só assim o infigurável da divindade imanente se oferece como possibilidade da unificação total. Por isso, «Dios es la suprema verdad de mi consciencia». Deus contém-se em si contendo a consciência humana. «Tú mismo te contienes conteniendome.» E, por isso, ele não pode ser reduzido a um objecto da consciência ou a uma imagem, uma vez que o ser está imerso nela. Deste modo, Deus, porque é o todo, só pode ser sentido como o nada desse todo. Em vez de uma presença inicial, Deus é tanto mais ausente quanto próximo e iminente,

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mas essa ausência suscita o movimento da consciência desejante que se identifica com Deus e actualiza a sua virtualidade em presença da unidade viva jubilosamente vivida. Essa actualização de Deus é a revelação da vida total, imediata, imanente plenamente natural, um aqui e agora absolutos. «Quiero quederme aquí, quiero irme / a ninguno otro sitio. // Todos los paraísos (que me dijeran) en que tu habitabas, / se me han desvanecido en mis ensueños / porque me compreendi este en que vivo / ya centro abierto en flor de lo supremo.» Deus é a suprema verdade da consciência porque é a consciência que se reconhece no centro da totalidade imanente, na unidade entre o desejo e o desejado, entre a virtualidade e a revelação actual. Unidade viva da inspiração, que é já o deus desejante e a sua revelação como deus desejado. Deus é o próprio movimento unificador da consciência no reencontro de si próprio desde a sua origem até ao seu término de encarnação total. Neste círculo absoluto (no interior de Deus) que é a trajectória de Deus desejante para Deus desejado, a inspiração é «completa», «inspiración total de nuestro estar glorioso». Em vez de projectar a divindade num além inacessível, Juan Ramón Jiménez liberta o deus imanente à consciência e à totalidade do ser e actualiza-o na plenitude do aqui e do agora, numa presença absoluta, na naturalidade originária plenamente vivida. [1993]

o deus imanente de juan ramón jiménez

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Octavio Paz ou o mundo como evidência O acto poético para Octavio Paz é um acto instantâneo em que a totalidade se oferece num vislumbre e que logo se desvanece, não sem antes que o poeta tenha «esculpido» a matéria do instante em que o «ser inteiro» se revela. «Advenimiento del instante / el acto / el movimiento en que se esculpe / y se deshace el ser intero». Octavio Paz define o homem «como un ser corriendo sempre tras de sí, disparando, exhalado, sin jamás alcanzarse». Todavia, a poesia estabelece uma relação com o ser total e, assim, reúne o homem e o cosmos, a energia primitiva do ser e a palavra incandescente e nua. Esta palavra pode ser, por vezes, de uma violência extrema, porque rompe das raízes do ser e rebenta todos os limites: «la oleada negra que cubre el pensamiento / la campana furiosa que tañe en mi frente / la campana de sangre en mi pecho / la imagen que ríe en lo alto de la torre / La palabra que revienta las palabras / la imagen que incendia todos los puentes / la desapare-

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cida en mitad del abrazo». Mas esta violência da palavra poética não é só o fruto da energia do ser mas também, e essencialmente, da solidão e da incomunicabilidade das experiências mais profundas do homem. Octavio Paz escreve: «Condenado a vivir en el subsuelo de la historia, la soledad define el poeta moderno». É esta incomunicabilidade que impele o poeta a transcender-se, ligando-se pela palavra e pela realização amorosa, ao outro. Por isso a poesia de Octavio Paz é uma poesia do diálogo amoroso com a mulher e com o mundo. E por isso, também, a sua poesia não é apenas uma poesia do instante, mas também da temporalidade: «Queda / el tiempo fecho cuerpo: lenguaje». A linguagem é, deste modo, a partilha da realidade, a sua consumação fraterna ou amorosa; «La historia es el camino: / no va a ninguna parte / todos lo caminhamos, / la verdade es caminarlo, / no vamos ni venimos, / estamos en las manos del tiempo. / La verdad: / sabermos / desde la origen, / suprendidos / Fraternidad sobre el vacio.» Como diz Jason Wilson, «a luz, o mundo, o aqui e agora, a transcendência através dos sentidos, o corpo: tais são os elementos da poética de Paz»1. E o mesmo ensaísta diz ainda sobre o grande poeta mexicano: «O mundo é uma superfície concreta e sensual; é uma

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Jason Wilson, Octavio Paz, a Study of His Poetics, Cambridge University Press, 1979, p. 146.

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linguagem que o distorce. É por isso que a poesia transcende a linguagem para revelar o mundo como evidência, visto na sua nudez, sem palavras na sua terrível realidade concreta»2. O alcance metafísico da poesia de Octavio Paz é inegável, mas a sua metafísica está ligada à percepção da realidade como evidência a um tempo fugaz e eterna, irrepetível e idêntica: «el poema que se esculpe y se disipa».

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Ibid.

octavio paz ou o mundo como evidência

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Fernando Pessoa ou o trágico irredutível A Robert Bréchon, Eduardo Lourenço, Teresa Rita Lopes e Maria Alice Galhoz que tão admiravelmente têm estudado a obra de Pessoa

Dizer que um poeta é trágico é talvez uma redundância porque quase todos os poetas o são e porque é trágica a condição humana. No entanto, há poetas em que o sentido trágico da vida é tão intenso que a designação de trágico se nos afigura significativa da singularidade essencial da sua obra. É o caso de Fernando Pessoa, que, em quase todos os seus poemas, se revela o poeta da impossibilidade de existir e a esta negatividade não sobrepõe qualquer positividade tranquilizante ou redentora do seu sofrimento irredutível. Recorrendo a dois conceitos gregos, o zoè (a vida ilimitada, indeterminada) e o bios (modalidade da existência determinada, implicando a consciência e o conhecimento de si), podemos, seguramente, afirmar que Pessoa é um grande poeta de bios e, por conseguinte, um grande poeta metafísico. Se ele é, alguma vez, o poeta do zoè, sê-lo-á, sobretudo, na «Ode Marítima», mas mesmo aí se mantém a tensão lancinante da existência determi-

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nada perante a ilimitação da vida, cuja energia não é assumida euforicamente, mas numa explosão de angústia e, por conseguinte, da sua impossibilidade no plano da existência individual ou da consciência separada. O pensamento poético de Pessoa pode, no essencial, resumir-se e confirmar-se em versos tão dramáticos ou trágicos como estes: «O que eu sou é terem vendido a casa e terem morrido todos»; «Coitado do Álvaro de Campos, ele é que sabe.» O trágico destes versos nunca foi superado na poesia de Pessoa. E se Alberto Caeiro parece ser uma réplica optimista do trágico, ainda é trágico precisamente por ser a sua inversão, supremamente fictícia, ou antes, por ser o seu contraponto no plano da racionalização metafísica. Na verdade, o naturalismo conceptual de Alberto Caeiro é a invenção de uma tranquilidade antimetafísica, mas que é ainda metafísica, a qual se combina negativa e afirmativamente, por oposição, com a primazia da consciência como instância constituinte do real. Na verdade, a poesia deste heterónimo é conceptual e o seu discurso uma sequência de raciocínios, em que a consciência nunca se demite da sua posição hegemónica. É que Pessoa é, continuamente, o poeta da consciência e da impossibilidade de a reduzir à simplicidade de um fluir natural a que a sua poesia aspira, mas que só atinge na ficção da sua inversão, ou seja, num plano de idealidade que transcende o nível da sensibilidade e da plenitude actual da sensação. Caeiro pode escrever estes versos «Há bastante metafísica em não pensar em nada», mas

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esta afirmação é também metafísica e corresponde à aspiração profunda de estabelecer uma apreensão directa do real sem a interposição da consciência e, neste sentido, ela tem um valor cognitivo que, sem superar o trágico, põe em causa a legitimidade epistemológica da consciência como instauradora de uma relação privilegiada com o real. Como Pessoa é, essencialmente, um poeta da consciência e do conhecimento de si, ele não podia libertar-se das perspectivas de uma fenomenologia da consciência e superá-las por uma fenomenologia da vida. É por isso que Pessoa, embora tenha escrito Os Poemas lngleses, que, aliás, são de um erotismo sui generis, não é um poeta erótico. O erotismo implica uma adesão à vida ilimitada, à qual Pessoa nunca se entregou e só permitiu que explodisse na «Ode Marítima», mas crispadamente sob a vigilância de uma consciência alucinada, mas sempre preponderante. Na verdade, Pessoa é o poeta da negatividade insuportável e, por isso, da irremediável separação da consciência no seu círculo asfixiante e redutor. Mas esta separação é não só o retraimento da consciência em relação ao mundo mas também uma cisão no seio da consciência, que não adere a si própria. O pensamento é uma prisão, como ele diz noutro verso: «Estou preso no meu pensamento / Como o vento preso no ar.» Mas, além disso, a alma ou o espírito não constitui para Pessoa um refúgio ou um baluarte contra a insegurança, o vácuo, o nada: «Quem bate à minha porta / Tão insistentemente / Saberá que está morta / A alma que em mim sente? / Saberá que eu a velo

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/ Desde que a noite é entrada / Com o vácuo e vão desvelo / De quem não vela nada? / Saberá que estou surdo? / Porque o sabe ou não sabe / E assim bate, ermo e absurdo / Até que o mundo acabe?» Para Pessoa a existência é a contínua experiência de uma irremediável perda e a linguagem jamais se lhe apresenta como uma reparação dessa perda. Esta separação paralisa todo o impulso vital que o levaria a sentir a plenitude de um momento. «É brando o dia, brando o vento. / É brando o sol e brando o céu. / Assim fosse meu pensamento! / Assim fosse eu, assim fosse eu! / Mas entre mim e as brandas glórias / Deste céu limpo e este ar sem mim / Intervém sonhos e memórias. / Ser eu assim, ser eu assim! / Existe tudo porque existo. / Há porque vemos / E tudo é isto, tudo é isto!» O principal obstáculo para Fernando Pessoa é a consciência limitada no seu círculo subjectivo, sem a capacidade de se entregar, inocentemente ou ingenuamente, às sensações e emoções que a natureza e o mundo proporcionam quando a consciência se liberta de si e vive a unidade sensitiva numa relação pré-reflexiva com o real. Por isso, a aspiração essencial de Pessoa é abolir o «coração» e imergir no «sossego» de um sono, que será a única reparação da «dor», mas que não será mais do que uma aspiração: «Que mais quer quem descansa / — Sossego, só sossego — / Da dor e da esperança, / Que ter a negação / — Sossego, só sossego — / De todo o coração?» A realidade para o poeta da Mensagem é incomportável porque a sua latitude, não coextensiva ao homem, ultrapassa vertiginosamente a

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existência humana. Álvaro de Campos escreveu estes dois versos no final de um poema: «E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser. / E ser possível haver ser é maior que todos os deuses.» Esta consiência da amplitude inabarcável do ser gera a angústia metafísica e a decepção epistemológica e ontológica. Todavia, Álvaro de Campos é o poeta que se entrega ou procura entregar-se à plenitude sensível da realidade presente. «Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio / E a minha ambição era trazer o universe ao colo / Como uma criança a quem a ama beija.» Álvaro de Campos escreveu tambem estes versos: «Afinal, o melhor meio de viajar é sentir, / Sentir tudo de todas as maneiras, / Sentir tudo excessivamente, / E toda a realidade é um excesso, uma violência, / Uma alucinação extraordinariamente nítida.» Álvaro de Campos é, assim, o poeta da expansão vital e da tentativa de aderir à multiplicidade inabarcável do ser. Aparentemente, o inverso de Pessoa ortónimo, porque é uma réplica à crispada constrição da consciência separada que caracteriza o poeta da Mensagem. Mas a explosão da poesia de Álvaro de Campos é, igualmente, crispada, de uma violência em que os impulsos instintuais se chocam com a impossibilidade do ser e com os limites da própria consciência. Isto quer dizer que essa explosão nasce sobretudo do desejo de superar a cisão entre a consciência e o ser, mas, implicitamente, confirma-a, na medida em que tenta a sua impossível superação: «Sou um fomidável dinamismo obrigado ao equilíbrio / De estar dentro do meu

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corpo, de não transbordar da minha alma. / Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode, / Freme, treme, espuma, venta, viola, explode, / Perde-te, transcende, vive-te, rompe e foge. / Se em todo o meu corpo todo o universo e a vida, / Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes, / Risca com toda a minha alma os relâmpagos e fogos. / Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!» Se a procura de Álvaro de Campos é, de algum modo, uma libertação instintual ou pulsional, nela sente-se, permanentemente, a violência contrária do obstáculo inerente ao ser e à consciência. Por outros termos, a explosão vital dos seus poemas, por mais intensa que seja, implica a sua impossibilidade real ou o real como impossibilidade insuperável. Daí a aspiração à inércia da matéria inorgânica como resolução de todas as tensões e conflitos interiores: «Ah que ânsia humana de ser rio ou cais!» Álvaro de Campos não é só poeta da explosão vital e do tumulto das sensações, mas também o poeta da revelação do nada, como é o Pessoa ortónimo: «Grandes são os desertos, e tudo é deserto / Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos / Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. / Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes — / Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, / Grandes porque de ali se vê tudo e tudo morreu.» Ainda aqui se patenteia a tendência fundamental da poesia de Pessoa, ou seja, o sentimento profundo e irredutível da limitação da consciência a si mesma e, por conseguinte, o seu «deserto», o seu nada.

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Alberto Caeiro é, aparentemente, o poeta da aceitação plena da existência mediante a percepção pré-reflexiva e simples do real. Todavia, esta percepção pré-reflexiva não é um dado sensível na poesia de Caeiro, mas um conceito constantemente reiterado, o que, de algum modo, é uma contradição. O não-pensar é o ideal de Caeiro, mas ele, constantemente, raciocina, pensa, contesta, filosofa. Por isso ele é, de todos os poetas-Pessoa, o mais distante da realidade sensível, ainda que não faça mais do que comentá-la. É indiscutível que também Pessoa ortónimo e os outros heterónimos são de algum modo poetas conceptuais, uma vez que Pessoa é, essencialmente, um poeta metafísico ou um poeta da consciência. No entanto, em nenhum deles Pessoa está tão separado da realidade sensível como em Alberto Caeiro. O paradoxo da poesia do poeta da aceitação das coisas na sua realidade aparente imediata e irredutível consiste no seu discurso distanciador, que se processa por sucessivos conceitos que são mediações da consciência separada da realidade pré-reflexiva que ele propõe como o verdadeiro solo da consciência aberta ao real. Se Caeiro afirma «Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira» é porque, na verdade, há uma respiração na sua poesia, mas essa respiração é a sábia simplicidade da exposição do seu conceito fundamental de uma percepção directa e imediata da realidade sem a interposição do pensamento. Caeiro é, sem dúvida, um poeta, mas um poeta que filosofa constantemente e que, afirmando não

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pensar, pensa sempre, para além da realidade imediata, que transpõe raciocinando no âmbito da distância da consciência reflexiva. Mas dizer isto não significa que Alberto Caeiro não seja eminentemente o poeta que é, realmente, ao nível do próprio conceito e da graça expressiva da sua linguagem sóbria e simples e perfeitamente transparente. Como toda a poesia de Pessoa, os poemas de Alberto Caeiro são, ao mesmo tempo, epistemológicos e fenomenológicos. Este heterónimo de Pessoa é, igualmente, um poeta da irrealidade do real e do sem sentido das coisas. «Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas, / Rio como um regato que soa fresco numa pedra. / Porque o único sentido oculto das coisas / É elas não terem sentido oculto nenhum. / É mais estranha do que todas as estranhezas / E do que os sonhos de todos os poetas / E os pensamentos de todos os filósofos / Que as coisas sejam realmente o que parecem ser / E não haja nada que compreender.» A redução epistemológica operada neste poema demonstra que Pessoa é um grande poeta metafísico que elaborou uma filosofia que, sendo sempre uma fenomenologia da consciência, incide também no correlato objectivo do real ou, antes, na sua aparência imediata como única realidade sem sentido. É assim que a obra poética de Pessoa é de uma grande unidade para além da sua diversidade. Caeiro é, aparentemente, a inversão e a resolução das tensões dos outros heterónimos, mas sobretudo de Álvaro de Campos e de Pessoa ele mesmo, e, por isso, o

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poeta de «O menino da sua mãe» lhe chamou o mestre. Esta inversão é, sem dúvida, uma versão do pensamento fundamental de Fernando Pessoa. Sem dúvida, em Caeiro culmina uma investigação epistemológica que é, ao mesmo tempo, uma redução da realidade e da consciência dela à naturalidade absoluta e indecifrável do real. Ricardo Reis continua a versão de Alberto Caeiro, como seu discípulo. Mas o poeta epicuriano aceita a existência com resignação e com uma tonalidade melancólica, diferentes da tranquila jovialidade e do humor com que Caeiro encara a realidade das coisas: «Só esta liberdade nos concedem / Os deuses: submetermo-nos / Ao seu domínio por vontade nossa.» Todavia, tal como Caeiro, é a naturalidade imediata e passageira das coisas que Ricardo Reis assume e frui: «Deixai-me a Realidade do momento / E os meus deuses tranquilos e imediatos / Que não morrem no Vago / Mas nos campos e rios.» Não podemos dizer que a poesia de Caeiro e Reis é a última palavra da investigação epistemológica do pensamento pessoano. Naturalmente, esta espécie de «redução fenomenológica» às coisas mesmas na sua aparência é uma etapa decisiva na evolução de Pessoa, mas é, também, a suprema ficção metafísica de uma consciência dilacerada pela impossibilidade de aderir ao real e de encontrar nele o solo fundamental do ser e de si própria. [1993]

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Fiama ou a fantasiosa investigação do real A poesia de Fiama, embora permanentemente ligada à realidade natural, não parte de um dado puramente objectivo e, se visa as coisas e os seres do real, não os traduz ou exprime como objectos exteriores situados numa transcendência objectiva. Isto não significa que a sua poesia seja um discurso subjectivo sem a dimensão transcendente da realidade. O reconhecimento do real existe, sem dúvida, nesta poesia, mas esse reconhecimento é, por assim dizer, oblíquo e desviado de qualquer direcção puramente objectivante. Fiama sente a inextricável complexidade do mundo e a sua perplexidade perante ele é permanente, embora não passiva. Essa perplexidade não paralisa a investigação activa do real, antes parece estimulá-la e desenvolvê-la. Qualquer dos seus poemas é um percurso acidentado e abrupto que gera a fragilidade irredutível de uma identidade perplexa mas insubmissa. O poema de Fiama não possui o estatuto da auto-suficiência redutora da legibilidade vertical e terminante. Efectivamente, cada poema de Fiama é um processo contínuo e interminável, em que o único tér-

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mino é o próprio percurso do poema inacabado. Se num poema, rico de imagens, que nada têm de realistas mas também não são surrealizantes, porque uma intencionalidade investigadora as organiza como uma teoria da percepção que é já essa percepção mesma, Fiama escreve «que sob a aparência do inverosímil / se esconde a fidelidade absoluta aos dados da experiência imediata» e, deste modo, nos faz ver que a sua arte poética é uma arte do inverosímil, mas que esta não pode ser compreendida na sua aparência e sim como uma enigmática manifestação da complexidade do real, que nele se oculta e se revela, dado que ele não trai a percepção originária de um sentir inerente à fantasia investigadora da poesia de Fiama. Todavia, a afirmação «de que sob a aparência do inverosímil / se esconde a fidelidade absoluta aos dados da experiência imediata» pode parecer peremptória e excessiva. O que, no entanto, há que reter é, por um lado, a percepção originária do real, que é imediata e irrevogável, por outro, a investigação fantasiosa e inverosímil que se gera a partir dessa percepção ou do hiato que após ela ocorre ou mesmo durante ela. Não há aqui uma contradição, mas uma cisão originária inerente ao sentir, a qual se reproduz no momento anterior à criação poética e ao longo dela. A percepção imediata não pode ser transposta imediatamente na linguagem. A linguagem é uma mediação e não a expressão imediata do sentir. Por isso, a poesia de Fiama é uma construção imaginária ao nível da linguagem e não ao nível do sentir originário.

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Poderemos, talvez, comparar a sua fidelidade fantasiosa aos dados imediatos da percepção originária, à fidelidade de um tradutor que, para ser fiel ao original, tem de se desviar a cada passo, da tradução literal. Fiama tece cada poema como se fosse uma tapeçaria, consciente de que a matéria que trabalha é a linguagem. Mas, como não perde de vista a matéria originária, cada palavra é percorrida pelo frémito da fragilidade e da oscilante perplexidade inerentes à percepção imediata. Esta caracteriza-se por uma unidade anterior à relação sujeito-objecto e, por conseguinte, mais fundamental. Nenhum poema é a espontânea consequência desse momento de unidade perceptiva. Só no seu declínio é que o sujeito sente a necessidade de criar uma equivalência verbal para esse acontecimento perceptivo. Mas como explicar que esse momento pleno seja uma vibração da fragilidade ou uma oscilação da perplexidade? O sentir é a plenitude de uma relação total e, portanto, imediata, espontânea, irrevogável. O sujeito, porém, nunca é pleno, porque a cisão interna do eu lhe impede a identificação completa com as coisas e os seres do mundo. A sua fragilidade é irredutível e constituinte e daí a sua perplexidade perante o mundo. A linguagem é o vigor dessa perplexidade e a decisão audaciosa que vence a perplexidade e a transforma na positividade das formulações verbais. Paradoxalmente, o sentir, se é uma articulação fundamental com o mundo, desperta ao mesmo tempo o sentimento de uma irreparável perda uma vez que a sua duração é instantânea e

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irrecuperável. Esta inexprimável instantaneidade, que é a instantaneidade do inexprimível, não pode ser actualizada na palavra, mas é ela que a actualiza. O frémito da fragilidade e da oscilante perplexidade acentua-se no momento em que o sujeito acaba de perder a relação unitiva com um mundo que o excede mas com o qual ele pode articular-se ao nível da percepção originária. Todavia, a linguagem, com a sua liberdade instauradora, vem preencher esse hiato entre o instante do inexprimível e a sua perda total. Porém, esta liberdade não encobre o tremor da fragilidade perante um mundo com o qual o sujeito se articula sem, no entanto, disssipar as sombras que o envolvem. Por isso, na poesia de Fiama predomina o claro-escuro e a sua fantasia raramente é leve ou luminosa. O sentimento de uma falha irreparável, quer no interior da percepção imediata, quer ao nível da linguagem, dita-lhe estes versos: «Que fala em uníssono se / omite na corda vocal, o coro dos seres / grandiloquente no seu solstício? Cálida / solidão de propagados pensamentos, dores / zonas vitais do tempo / e os latidos mortos.» Esta negatividade revela a impossibilidade de transmitir pela linguagem o inexprimível e, por isso, o poema cria o espaço da sua ausência, omitindo tudo o que poderia ser peremptório e eloquente afirmação de uma liberdade infiel à instantaneidade do inexprimível. Se o negativo reduz o poema a alguns despojos ou fragmentos, neles vibra ainda a unidade do inexprimível e a sombra da sua irreparável perda.

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[de um espelho ou para se embriagar como um pássaro [ingénuo Recensões críticas antónio ramos rosa

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recensões críticas

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Fotograma de Sara Brito. Reverso Partindo do conceito de sobreposição de camadas pretendeu-se criar uma exploração da forma visual escrita, enfatizando a configuração como um todo, em detrimento do conteúdo em si. Os fotogramas expressam esta mesma exploração visual tendo por base dois cadernos diários de carácter mais pessoal, aqui apresentados por páginas sobrepostas que deixam transparecer os pequenos apontamentos do dia-a-dia. FICHA TÉCNICA DESIG | PRÉ-IMPRESSÃO | TRATAMENTO DE IMAGENS

Hugo C. Moreira IMAGENS

Sara Brito IMPRESSÃO

Focom XXI Janeiro de 2015


Índice

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[Ruy Cinatti, o poeta da melancolia]

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O «Grito Puro» de Sophia

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Sonetos de Alberto de Lacerda um livro de amor

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João Rui de Sousa: o grito e o canto

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Palavra azul sobre fundo negro

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A impossibilidade da construção

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A identidade e a finitude em «A Analogia das Folhas»



[Ruy Cinatti, o poeta da melancolia] Ruy Cinatti é o poeta da melancolia, ou seja, de uma separação radical ou de um distanciamento absoluto da alma em relação ao mundo. O poeta é consciente da singularidade da sua voz que, aparentemente numa referência pessoal, ele qualifica de «inesquecível». «Os que me amam, conhecem o mistério / Que torna a minha voz inesquecível.» Uma tonalidade lírica muito suave caracteriza a sua poesia, em que os temas, embora significativos, são menos importantes do que a musicalidade de certos versos ou a totalidade do poema. Consequentemente, a sua poesia tende para o murmúrio, porque só assim ele poderá corresponder de algum modo ao mistério que a alma pressente, como, por exemplo, neste admirável verso: «Murmúrio de ideias e estrelas em segredo.» A expressão «murmúrio de ideias» é particularmente apropriada a uma poesia que, embora pouco conceptual, não é apenas constituída por imagens mas também por ideias que nunca se sobrepõem à tessitura ou ao andamento musical do poema. Ainda quando o poeta procura acordar de um sonho para a realidade do mundo, a

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realidade reenvia-o para o sonho: «Abri minha janela ao vento norte / A ver se o frio vento me acordava / De um sonho em que eu próprio duvidava / — No céu brilhavam estrelas mais que nunca. / Em vão, desde então, eu procurei / Lembrar o seu olhar, a sua imagem / Tão bela, tão perfeita, mas miragem / — No céu brilhavam estrelas mais que nunca.» É certo que Ruy Cinatti é sensível ao esplendor da natureza, mas, ainda quando invoca e exalta a sua plenitude deslumbrante, é através da saudade ou da nostalgia. «Suave, doce, lânguida ilha / Aberta como flor na distância do mar, / Prolonga um pouco a virginal beleza, / Atende, espera! minha alma suspensa / Em ti respira — corola do mar // Verdura incandescente, maravilha / Líquida, ritmo, manancial. / A mim vieram melodias infinitas / Das ondas. E as árvores exaltaram; / Surgiram montanhas de alegria total.» A esta evocação de uma ilha maravilhosa, que o poeta conheceu e amou, segue-se uma estrofe em que o poeta sintetiza a sua emoção não perante uma presença efectiva mas numa rememoração saudosa em que a realidade é vivida como um sonho: «Minha alma atravessava o espaço imenso / Envolta num sol de lágrimas. Ah!, terno / Sonho de um caminho amado.» Mas o maravilhoso na poesia de Ruy Cinatti pode manifestar-se não mediante a recordação do passado mas num presente absoluto: «Bendito seja Deus!, que eu estou a ouvir / A música sem nome em gotas límpidas. / No peito abre-se um vale, eu vou subindo / O caminho desde a água ao infinito.» A água, nestes versos, é um elemento

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que inicia uma ascensão para o infinito. Mas a água pode ser também a água de um pranto, uma manifestação de melancolia, preponderante na poesia de Cinatti. É esse elemento que contribui para a limpidez de muitos dos seus poemas, ainda quando envoltos numa certa obscuridade ou numa vaga névoa. «A água que se escoa com o meu pranto / traz-me pensamentos resignados e doces; / E o coração — líquida a alma em que me afundo / Vibra como a terra molhada e desespera.» A água é assim o elemento que transfigura e consola mas também liberta, transformando a dor em júbilo, como neste verso: «E os regatos de lágrimas entoaram cânticos.» Num curto poema, o poeta refere-se à «água dos meus olhos encantados», a «aromas molhados», a «estrelas húmidas». Estas frequentes imagens em que a água aparece, quer como expressão da melancolia essencial do poeta, quer impregnando em sinestesias e metáforas as palavras que se referem à percepção sensível, são imagens fundamentais da peculiar cosmovisão do poeta. E, de um ponto de vista estético, estão conotadas com a limpidez e a fluidez da sua poesia, sobretudo nos seus primeiros livros. As considerações que fizemos até agora sobre a Obra Poética de Ruy Cinatti têm como objecto não a obra inteira, mas os livros que o poeta publicou até 1958, ou seja até à edição de O Livro do Nómada Meu Amigo inclusive. Nos livros seguintes, a poesia de Cinatti torna-se circunstancial, autobiográfica, no sentido mais restrito da palavra, e quase exclusivamente coloquial. Esta fase

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da sua poesia é menos poética, uma vez que nela não se encontra tanto a delicadeza, a transparência e a musicalidade que caracterizam os seus livros anteriores. A maioria destes poemas tem como tema as viagens que o poeta fez ou as terras em que permaneceu durante algum tempo, como Timor, que Cinatti tanto amou. Sem dúvida, é interessante conhecer esta fase da sua poesia, não pelo seu nível poético mas pelo seu interesse circunstancial e autobiográfico. Cinatti era um homem muito inteligente e culto, além de ser uma pessoa encantadora e fascinante. Estes poemas revelam uma faceta provocativa e interveniente, tanto na relação afectiva com os amigos como no âmbito da sua relação consigo próprio. Daí o tom satírico e a vivacidade dialogal de alguns destes poemas. Nas poesias dedicadas às terras por onde passou ou permaneceu, destacam-se as que escreveu sobre Timor, onde viveu alguns anos estudando essa civilização apaixonadamente, como etnólogo e também como poeta e homem profundamente humano. Por isso esta obra impõe-se não só pela qualidade poética dos primeiros livros mas como um documento ao mesmo tempo etnológico e de uma grande humanidade afectiva. 1994

Ruy Cinatti, Obra Poética, org. e pref. Fernando Pinto do Amaral, Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992.

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Ode«Grito Puro» Sophia A publicação dos dois primeiros volumes da obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen é um acontecimento a um tempo literário e editorial. A edição destes volumes é extremamente apurada e em tudo digna da grandeza deste poeta. Numa época extraordinariamente estandardizada, a existência e continuidade da poesia é um verdadeiro milagre. Com efeito, na sociedade industrial desqualifica-se o real e a realidade singular das pessoas e das coisas, uma vez que toda a experiência perceptiva se banaliza e reifica perdendo o seu carácter único e irrepetível, devido ao imperialismo da abstracção dos modelos, das estruturas, dos conjuntos, enfim, de tudo o que reduz e manipula o real concreto e a sua virgindade essencial e inesgotável. Perante esta situação asfixiante e profundamente alienatória, a poesia é um «grito puro», para usar uma expressão da própria Sophia neste livro. Esse grito reestabelece a primazia da unidade da experiência sensível, anterior à dissociação do pensamento e do sentir e instaura a visão vertical do que na percepção

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é mais fugidio e subtil, mas também mais essencial, o real inexprimível. Sophia é um grande poeta da integridade viva do real, da sua essência infinita e concreta que o habita, que o assombra, que o renova. É esta dimensão interior, mas essencialmente aberta ao mundo, que o conhecimento abstracto não pode apreender. Perante o enigma inesgotável do real, o poeta erige a sua atenção nua e pura, não só para dizer o que o seu olhar vê — o subtil espírito das coisas, a sua misteriosa densidade ou o seu esplendor, em que se manifesta a plenitude do intacto ou do real concreto — mas também para ordenar e exprimir (recriar) o caos interior, a vertigem do inumerável e do inexprimível, de tudo o que de profundo e obscuro há em nós. Estas duas vertentes, uma nocturna, outra solar, encontram-se, alternadamente, na poesia de Sophia mas interligam-se e testemunham o mesmo anseio de vida integral em consonância com a integridade das coisas e dos seres. Para a plenitude da experiência natural a visão é um sentido privilegiado, uma vez que ela nos apresenta, não um reflexo da coisa, mas a coisa mesma, na sua configuração perante nós. Por isso, a visão é o sentido mais importante na poesia de Sophia. Dado que a experiência natural ou perceptiva das coisas constitui uma apreensão imediata e sem inferências, a poesia da imanência restitui e recria essa dimensão pré-reflexiva com o fulgor inicial e a virgindade nua de um contacto

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imediato e global. E nada pode propiciar melhor esse contacto unitivo e regenerador do que os elementos da natureza, o espaço, o céu, o mar, o vento, o ar, a luz. «Passavam pelo ar aves repentinas. / O cheiro da terra era fundo e amargo. / E ao longe as cavalgadas do mar largo / Sacudiam na areia as suas crinas. // Era o céu azul, o campo verde, a terra escura. / Era a carne das árvores elásticas e dura. / Eram as gotas de sangue e de resina / E as folhas em que a luz se descombina.» No poema a que pertencem estas estrofes, todos os versos e imagens possuem a vibração de uma experiência sensível originária, anterior à dualidade da consciência reflexiva. A linguagem deste poema é uma verdadeira força criadora na sua fidelidade à pureza e integridade do instante perceptivo. Pode parecer contraditório afirmar que a criação poética é fiel à percepção de uma realidade sensível, uma vez que a criação não é, obviamente, a representação do real. Todavia, é pela atenção nua e global com a qual capta e reconstitui a singularidade essencial das coisas, que Sophia se ergue no plano da criação verbal, ou seja à significação autónoma do poema que é «um acto imaginário que cria o tempo necessário à sua resolução», segundo os versos de Paul Claudel. No poema repercute-se a vontade de liberdade de participação no ser que na experiência perceptiva se sentiu mas o poema tem de superar pela linguagem a distância e a separação inerentes à própria linguagem e à posteridade da experiência sensível.

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O poema decanta assim, os contrários, a unidade e a separação, a presença e a ausência, a imanência e a transcendência, o instante e a temporalidade, a obscuridade e o esplendor. É devido a esta unificação criadora e essencialmente poética que a poesia de Sophia nos aparece com a transparência e o fulgor de uma realidade incorruptível, inaugural. Parece-nos, por isso, justo dizer que «a poesia (de Sophia) é uma alma que inaugura uma forma», como disse o poeta Pierre-Jean Jouve. E Bachelard comenta esta frase desde modo: «A alma inaugura. Ela é potência primeira. Ela é dignidade humana.» Na verdade, este comentário, na sua síntese fulgurante, embora se aplique à alma humana e à poesia em geral, parece ter sido escrito a propósito de Sophia. A dignidade humana… aqui, é definida como uma característica essencial da alma ao nível do que nela é potência ou criação primeira. A criação poética em Sophia é a revelação do genuíno e do puro, do singular essencial, da energia central do desejo ou da verticalidade da vontade de ser, de eidos e da hylè, da essência da coisa e da matéria de um sentir nu e inicial. E essa revelação implica a dignidade humana de uma apropriação ou incorporação da divindade natural. Uma perfeição se desenha sempre na linha pura dos seus versos, na clara plenitude das imagens, na justeza musical das palavras, na vibração lisa e ondulante das estrofes. «Era a verdade e a força do mar largo, / cuja

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voz, quando se quebra, sobe. / Era o regresso sem fim e a claridade / Das praias onde a direito o vento corre.» Mas se a poesia de Sophia é a luminosa celebração da presença sensível das coisas, a verdade é que também a ausência, a sombra, a noite, o mistério do desconhecido constituem momentos de alguns dos seus poemas mais significativos. É que para Sophia a realidade não é apenas a transparência e a claridade dos elementos ou a plenitude de um contacto feliz e harmonioso, mas também o mistério da noite e da ausência, a fugidia proximidade do indefinível, o pressentimento do desconhecido na distância, a misteriosa plenitude que ele suscita na sua passagem invisível e instantânea. É esse o tema do poema «Como Uma Flor Vermelha», no qual a figura única é uma figura do ausente ou da ausência, ou da secreta inspiração do espaço nocturno, em que a nostalgia da plenitude se torna a plenitude da nostalgia e a ausência se torna a transfiguração da distância e do inacessível recolhido na mais pura intimidade da alma. «À sua passagem a noite é vermelha, / E a vida que temos parece / Exausta, inútil, alheia // Ninguém sabe onde vai nem donde vem, / Mas o eco dos seus passos / Enche o ar de caminhos e de espaços / E acorda nas ruas mortas. // Então o mistério das coisas estremece / E o desconhecido cresce / Como uma flor vermelha.» A atenção nua e aberta ao mistério da noite, ou mais precisamente ao espaço do vazio e da ausência da noite,

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possibilita o encontro com o desconhecido que, mantendo a sua distância irredutível e a sua permanente invisibilidade, não se revela nunca mas abre o espaço da consciência ou abre o espaço em que a alma respira e se reconhece na sua nua virgindade perante o mistério indecifrável. Essa atenção ao imperceptível ilumina e transfigura o banal espaço quotidiano. Esta figura poética da ausência é, também, a figura do espaço do vazio regenerador e purificante, a consagração de um nascimento puro e inesperado no tempo aberto por uma obscura transparência. Não se pode aqui distinguir a realidade exterior de um sentimento íntimo. A obscuridade da noite é aceite e reconhecida mas a sua distância é mantida como uma mediação necessária entre a intimidade pura da alma e o desconhecido. Como diz Maurice Blanchot, é essa «distância irredutível que é necessário preservar, se quisermos manter a relação com o desconhecido, que é o dom único da palavra». O jardim é um tema essencial da poesia de Sophia. Lugar privilegiado do encontro tranquilo com as coisas ordenadas, a alma encontra nele o «caminho para a única unidade» e aí ela pode «saciar / a(sua) longa sede de frescura» ou ouvir «os paraísos desejados». Todavia em «Jardim Perdido», a plenitude do encontro turva-se e quebra-se pelo excesso de potencialidades, quer positivas quer negativas, que o jardim contém. O jardim perde, assim, o seu carácter tranquilo e harmonioso e

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a plenitude serena e equilibrada que as suas configurações, ritmos e simetrias suscitam, porque a energia transborda das formas vegetais numa pujança ameaçadora que torna iminente a ruptura e a queda, transformando, assim, o momento do jardim numa exaltação angustiante e insustentável. A própria luz traz «em si a agitação / De paraísos, deuses e infernos». O excesso de energia que cria as flores e as árvores manifesta-se como uma ameaça e como um perigo que abala o equilíbrio ontológico e a unidade da experiência sensível. A ambivalência dessa energia transbordante sobrepõe-se à beleza e ao encanto das configurações harmoniosas das qualidades sensíveis e dos ritmos equilibrantes do jardim. «A verdura das árvores ardia. O vermelho das rosas transbordava, / Alucinado cada ser subia / Num tumulto em que tudo germinava.» Encontramos aqui a resistência apolínia de Sophia perante a deflagração dionisíaca da energia criadora e o seu pavor perante a ameaça dos casos que pode destruir a coerência e a coesão ontológica das formas da existência sempre tão dificilmente conseguida. O pavor desta ameaça atravessa toda a poesia de Sophia e é correlativa da sua permanente aspiração à ordenação cósmica e anímica e da sua celebração das presenças puras e intactas do mundo natural. É no próprio ser, que cria as formas, que existe a possibilidade negativa do inferno e da incoerência vital.

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A actualização desta virtualidade é revelada na última estrofe deste poema, como o resultado de uma suspensão de «outro jardim possível e perdido». Deste modo, o real é sentido como uma perda e uma queda em relação à pureza que o habita como pura virtualidade. Todavia, se esta percepção da separação do real em si mesmo, ou seja a divisão entre a integridade do ser virtual, o ser inteiro e puro, e a sua actualidade existencial, constitui alguns dos momentos mais significativos da poesia de Sophia, a verdade é que esse sentimento trágico da existência não impede o poeta de celebrar o real na actualidade das suas presenças elementares, no seu esplendor efémero e na sua manifestação do intacto e da totalidade do ser. Por isso, Sophia é o poeta do efémero, mas não do fait-divers ou do circunstancial. O efémero é a vibração do instante puro em que as coisas aparecem na sua nudez luminosa e original. Tal como Mallarmé, a autora de Dia do Mar e de Coral canta «le vierge, le vivace, le bel aujourd’hui». «O dia de hoje, ó dia de horas claras / Florindo nas horas, cantando nas florestas, / No teu ar brilham transparentes festas / E o fantasma das maravilhas raras / Visita uma por uma, as tuas horas / Em que há por vezes súbitas demoras / Plenas como as pausas de um verso. / Ó dia de hoje, ó dia de horas leves / Bailando na dança / E na amargura / De serem perfeitas e de serem breves.» A estes momentos de clara plenitude e de pura transparência sucedem-se outros em que o poeta se

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interroga angustiadamente sobre a incorrespondência do homem e da natureza: «Porquê jardins que nós não colheremos, / Límpidos nas auroras a nascer, / Porquê o céu e o mar se não seremos / Nunca os deuses capazes de os viver?» Para Sophia, como para qualquer ser humano, a realidade não é apenas constituída por momentos de plenitude e de harmonia, mas também pelas sombras da existência, pela solidão e pelo desamparo existencial, pela obscuridade insondável do real. «Sei que estou só e gelo entre as folhagens. / Nenhuma gruta me pode proteger, / Como um laço deslaça-se o meu ser / E nos meus olhos morrem as paisagens. // Desligo da minha alma a melodia / Que inventei no ar. Tombo das imagens / Como um pássaro morto das folhagens / Tombando se desfaz na terra fria.» No poema «Nos Últimos Terraços» é evocada uma figura que constitui uma metáfora total da realidade no seu mistério inexplorável. É um poema de algum modo taoísta, como outros de Sophia, pois nele vibra a atracção pelo vazio e por uma indiferença divina absorta no «seu segredo secreto para sempre». Nesse poema, como nalguns outros, Sophia atinge o limite da sua poética da presença e da plenitude, numa visão vazia que abarca o quadro das aparências reais e visiona a morte, ou a ausência essencial que habita o ser, como o enigmático repouso no seio de uma totalidade inatingível. Todavia, o impulso vital é «o impulso que há em nós, interminável», mesmo se se confunde com a pul-

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são de morte, assim como o excesso com a separação ou o desejo com a angústia. É esse impulso vital que determina a verticalidade pura da linguagem de Sophia, animada sempre pela vontade de ser, «de tudo ser e em cada instante florir». Se a plenitude da presença na sua poesia nasce do desejo do vazio e com ele também se identifica como desejo e encontro de um espaço puro, se a presença e a ausência mutuamente se engendram, há que ter sempre em conta a determinação essencial do desejo de ser, ou seja o desejo de ser total, que é, na sua essência, infinito e inesgotável. Sophia é um poeta do espaço total em que o desejo de ser se actualiza e encontra a sua dimensão vertical. E é tão intensa e pura esta energia viva do desejo que, mesmo nos momentos de «vazio branco» em que toda a realidade parece dissolver-se, o poeta alimenta a esperança de ver «a terra emergir pura do mar» e serão as «lágrimas sem fim onde (se) inventa» que possibilitarão a emergência da realidade pura e intacta, que é o objectivo essencial da poesia de Sophia. «Depois da cinza morta destes dias, / Quando o vazio branco destas noites / Se gastar, quando a névoa deste instante / Sem forma, sem imagens, sem caminhos, / Se dissolver, cumprindo o seu tormento. / A terra emergirá pura do mar / De lágrimas sem fim onde me invento.» 1991

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Sonetos de Alberto de Lacerda um livro de amor Alberto de Lacerda acaba de publicar um livro de sonetos, editado em Veneza. Este livro, em edição delicadíssima e requintada, em consonância com a cidade de Veneza, tem uma capa de Vieira da Silva, muito bela, constituída apenas pelas letras do nome do autor, do título da obra e da indicação daquela cidade. Merece referência o facto de o primeiro livro de poesia deste autor ter sido também publicado no estrangeiro, em Londres, sob o título de 77 Poems. O que se deve à circunstância de o poeta viver, desde há cerca de quarenta anos, em Inglaterra e nos Estados Unidos. E é precisamente por isso que Alberto de Lacerda, sendo um dos maiores poetas contemporâneos, não tem em Portugal a projecção e o prestígio que merece. Este livro de sonetos, digamo-lo desde já, é um grande livro de amor, um dos mais fascinantes de toda a poesia portuguesa e, com ele, Alberto de Lacerda atinge o cimo qualitativo da sua já notabilíssima obra poética.

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A extrema vibração destes poemas, o seu tumultuoso ritmo musicalmente ordenado (Apolo e Dionisos dão-se aqui as mãos), a sua energia que ascende de um fundo originário em que a luz e a sombra, a vida e a morte, a exultação e a agonia, o êxtase paradisíaco e o grito no abismo ou nos infernos se sucedem ou se confundem, numa palavra a sua força poética origina-se na violência de uma paixão em que participa o que há de mais fundo e sagrado na alma e no corpo, o esplendor e a devastação abismal, o turbilhão do caos e o anseio ou a revelação do absoluto e da harmonia total. Os grandes poetas do amor cantaram, não só a plenitude dos momentos felizes, mas a insustentável devastação a que pode conduzir a separação dos amantes e as contradições inerentes à paixão amorosa. Neste livro de Alberto de Lacerda há uma luz ofuscante, mesmo quando o canto se confunde com o grito da alma ou com os abismos da paixão impossível. Entre a dor da ausência ou da rejeição e a plenitude da presença e do encontro, este poema não inclui soluções de continuidade, porque tudo nele tem a continuidade de um fluido tecido inconsútil e de uma vibração única. O arco que o poeta eleva sobre os abismos do amor «vai da angústia à mais pura dança». E, nesse gesto, constante ao longo deste livro de sonetos, todos os contrários se reúnem numa epifania da unidade amorosa que é, também, a harmonia dos elementos cósmicos: «(Prometida face dupla da fonte

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/ Fonte bifronte fonte unicamente Nossa e universal) — se ainda vês / Terror e caos, eu vejo lentamente // As forças consagrando / O equilíbrio da terra — fogo, ar, / Água, água contida, transbordando / De calma merecida, circular.» Assim, o amor, nos momentos de plenitude, é a «revelação gradual do universo». Ao amor cumpre a integração do divino na natureza humana e em toda a natureza e, por outro lado, a purificação das forças obscuras do ser: «Na terra se revelam tais obscuras / Forças buscando sua face limpa / Através das humanas criaturas.» «Sei todo o sofrimento e todo o canto // Em todo o ser que à terra, tão vivo, / Torna transparente o fogo divino.» Alberto de Lacerda mostra-se, assim, fiel ao veio que percorre toda a sua obra poética: à unidade do divino e do humano figurada nos deuses e nos amantes. Mas o divino nunca é, na sua poesia, uma realidade objectiva independente da subjectividade humana. A objectividade divina existe como alvo permanente da subjectividade, na suprema realização desta. E é esta totalidade essencial que caracteriza a poesia de Alberto de Lacerda e está patente nestes sonetos em que o amor a cada instante se revela, nas suas múltiplas facetas, como unidade profunda e liberdade pura da alma e do corpo humanos mas também como dilaceração através dos abismos que o amor não só preenche como agrava, ainda que o sofrimento possa ser, também, uma forma de êxtase ou de loucura passional.

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A função do poeta é tornar inteligível pela poesia o não-sentido original da vida. Deste modo, o sentido da palavra poética é a ascensão do que está para além ou aquém do sentido ou do que, a partir da própria impossibilidade de constituir um sentido, inaugura uma possibilidade de vida nova na soberana vivacidade do indizível que metamorfoseia a impotência na possibilidade de uma instantânea fulguração em que a totalidade se revela através da violência exacerbada dos seus contrários. Esta fulguração pode ser tão intensa que leve o poeta a desejar ocultá-la com um manto eterno e imputrescível. «Onde ocultar o meu deslumbramento! / Contemplo a dança eterna do momento.» Poder-se-ia pensar que este poema de amor seria uma biografia em que a circunstância se impusesse como referência primeira e última e determinante de todo o movimento poético. De certo modo, assim é, uma vez que se trata de um amor vivido na plenitude de todos os contrários, mas, por outro lado, a liberdade criadora que determina o movimento do poema é a insurreição vertical que se gera tanto no apogeu da luz como a partir da noite e do abismo, transfigurados pelo fulgor da palavra poética. Para além dos limites do amor, como a sua própria essência unificadora, um impulso genésico instaura a plenitude da unidade amorosa: «Aspiro ao dia em que nascermos livres / No nosso amor e em tudo quanto vive.» Deste modo, a interrupção da união amorosa ou

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a ausência do amado é assumida como «lei profunda / sem lei ó lei do amor interrompida». O amado é «coluna, o círculo, o céu, a voluta» e continua a sê-lo na ausência e na separação que o poema transmuda, na sua fidelidade originária à essência perfeita do amor. Mas a perplexidade fundamental que a relação amorosa gera não é ocultada, e é assim que o amado é invocado como uma imagem devastadora e insituável, sem estatuto objectivo ou ontológico, sem qualquer determinação real: «Será que enlouqueci, ai, docemente? / Será música ou antes confusão? / A força que liberta e que me prende? / O que eu contemplo é imaginação?» É por isso que o poeta chega a recusar o amado se ele não for luz, isto é, se ele não constituir uma presença plena e essencial: «Vai-te, se não és luz, vai, vai-te embora / Antes que eu perca a eternidade e a hora.» Todo este livro se processa num vaivém incessante entre o anseio da presença viva do amado, da sua presença afectiva, e a sua ausência a um tempo desejada e recusada como se a sua presença originasse tanto a plenitude e a fusão do encontro como o seu obstáculo essencial. Mas o poeta procura integrar a separação do outro numa relação viva e total em que o amor se salva como a dimensão verdadeira em que o outro está presente: «no mais profundo do seu ser»; «quanto vivo / mais for o amor, mais é desesperada / A trágica vontade de colher / Num só olhar a vida verdadeira / Do outro, e ao mais profundo do seu ser / Ver tudo e arriscar a chama inteira.»

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Vemos, assim, que o amado não é o pólo seguro de uma relação plena, mas o alvo presente de um anseio de totalidade que nele se objectiva mas que, de algum modo, o transcende e sublima. Tal é o drama essencial do amor em que o amado é a um tempo um ser real e inacessível e o objecto de um anseio que o irrealiza como totalidade do desejo. Por isso, «A alma grita em sede». E o corpo do amado que se entrega não possui a plenitude da verdade nem o infinito encanto que o amante deseja. «Dá-se o teu corpo num ser verdadeiro / Aonde o encantamento que não sinto. / Em nós, por não criares o terceiro / Corpo, que o amor cria, infinito?» Este terceiro corpo, glorioso e pleno, é o verdadeiro alvo do amor que, só em determinados momentos de plena união, os amantes vivem. Mas este terceiro corpo da unidade ou da fusão amorosa encarna-se noutros momentos privilegiados em que os amantes «entram no rio universal do cosmos», transpondo os limites da realidade comum e imergindo plenamente na totalidade cósmica ou seja, na totalidade divina. E, mesmo quando o amado não está presente, o êxtase amoroso é ainda possível: «Quantos pássaros verdes, quanta água / Bebendo as minhas lágrimas felizes, / Quanta coisa tão simples, quanto nada / Te esperam à porta, dia dos dias // Em que me surgirás na escadaria. / Ó inimaginável harmonia.» Todavia, a luz total do encontro, se absorve, no instante de plenitude, a noite interna do amante, não a

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elimina nem reduz, mas transcende-a no pólo da sua correspondência de contrários complementares. Assim, «A luz» do amado «não queima» mas «guia» e a ela o poeta, numa síntese exemplar e altamente poética, endereça estes versos: «Meu mestre, eu sou a noite. És o meu dia.» A grandeza deste livro reside em não eliminar, mesmo no êxtase amoroso, a parte obscura e negativa do amor, o abismo inerente à condição humana. «É que tocar-te / Desvela o universo, a vida, a morte.» Só nos grandes poetas, como Camões ou Racine, encontramos esta vibração trágica este fulgor obscuro do ser imerso no abismo que a luz pode absorver mas que a trespassa e a alimenta com a intensidade de um astro negro, inexorável. Alberto de Lacerda nunca idealiza o amor, nem o simplifica, não o desliga da tremenda e abismal realidade humana que lhe subjaz: «E no ponto sagrado que é só nosso / (De quem ama), o amor transcende as garras / Sem nos dar asas. Nunca esquece o fosso / Mas lança luz sobre as próprias amarras // Da condição humana que não esquece. / Alma visível. E o corpo amanhece.» Isto não significa que não se encontre neste livro poemas em que a luz é de uma pureza cristalina e o êxtase é a pura transparência viva de um sentimento de liberdade aérea. O poeta, mesmo na ausência do amante, sente a sagrada pureza de quem atingiu o «limite de onde a luz / Está hierática sobre as águas revoltas, / Mais alto, mais, que o sentimento a pôs». Todavia, se o

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amor é um excesso de uma graça divina e, também, do insustentável deslumbramento que requer uma completude total e daí a sôfrega insatisfação de um absoluto que lhe é inerente mas também inacessfível. A relação amorosa é, por isso, uma deriva e uma descida na ébria incerteza do alvo que é o centro e o princípio do ritmo nupcial: «Momento etéreo em que os corpos tremem / Em que os olhos reencontram assustados / O paraíso perdido. Ó mão leve / Do amor, dá-me os teus dedos enlaçados // Assim nos meus. Descemos galerias / E mais galerias. Aonde iremos? / Ao fundo supremo das agonias / Não só nossas? Quando merecemos // A vida, a vida plena em pleno centro / Do universo, e até da própria morte? / Ó meu amor, terei forças? Só dentro / Do teu amor enfrentarei a Sorte. // O destino, a verdade, que é contínua. / Anjo, conduz-me ao centro do teu ritmo.» Assim, o amor, na sua encarnação mais viva, é o anseio de uma transcendência divina que ao mesmo tempo lhe é inerente e que o ultrapassa, impelindo-o sempre para a perfeição impossível e no entanto maravilhosamente pressentida, sentida, vivida no extremo da paixão absoluta. Deste modo, o amado é a um tempo a encarnação do absoluto e do sagrado e a promessa de perfeição (de «encarnação da humana majestade») no movimento incessante de uma luz que, na sua negação do real, se repercute no horizonte absoluto do mais radical anseio da existência humana e, por isso, divino. Como o poeta diz, «o amor floresce na árvore

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absoluta». Por isso, nos momentos cruciais da separação do amado, a ausência é sentida como um «caos», «A falta de ar, a negação de vida». Esta é a razão por que o amado constitui a coordenada fundamental da sua existência, da sua «vida viva». «Tu és o som com que atravesso a vau / Tudo, até atingir a vida viva.» A separação constitui, assim, um corte radical no tecido da existência do amante e esse momento crucial gera os mais desesperados versos deste livro, que é um livro de amor trágico e absoluto, apesar dos seus momentos de êxtase luminoso. A perda do amado é, por conseguinte, uma perda absoluta, a perda do universo: «Busquei em ti o que era o nosso imo. / Morreu. Morri. O quê? Quem és? Fugiu. // Eras o halo, o inenarrável verso. / Perder-te foi perder o universo». O «centro», «o alvo divino» perdeu-se irreparavelmente e só resta a recordação desse «caminho perfeito» que unia os amantes, mas essa recordação é tão intensa que o poeta, para exprimir a sua dádiva, o faz nestes termos: «Sangue, sangue a jorros». A rejeição do amado leva-o a invectivá-lo com uma veemência extrema, conquanto reconheça a plenitude divina dos momentos que partilhou com ele «Mas foi aqui que os deuses se encontraram / E prodigiosamente fornicaram». E, no reencontro, é o sentimento de culpa e de traição essencial que domina a relação amorosa: «Tacteamos culpa, êxtase, montanhas / Que cruéis nos devolveram às entranhas». Mas nem sempre a insaná-

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vel ferida da separação é um motivo de recriminação do amado: «Sou a ambição de um oceano imerso / Aspirando à planície em que deslizas // Numa beleza funda que subjuga / Além da carne, ó sol, ó lua escura.» A constante exaltação do sentimento amoroso, como totalidade em que o espírito e o corpo se conjugam, transfunde-se, nestes sonetos, num canto quase sempre dionisíaco, embora também apolíneo pela maestria de uma linguagem luminosa que nunca é escurecida pelo furor e violência da hybris. «O meu amor, que alternativas simples, / Que másculo e que fêmea contemplados. / Ó beleza convulsa, ó plenitude, / glória animal, ó cornos arrancados.» O furor fulgurante destes sonetos origina-se na violenta dilaceração da paixão amorosa, que não se rende à fatalidade da separação e dos infernos se eleva à luz imputrescível dos cimos graças ao poder salvador da palavra poética. A interrogação mais angustiante, a mais lancinante queixa, o mais patético grito não constituem apenas a expressão de um sentimento ou emoção mas uma abertura ao nível de uma profunda pulsão insurreicional que na linguagem poética encontra a consumação essencial: «Aonde vamos no fulgor terrível? / Onde me levam de alma escancarada, / Irremediavelmente dividido / (Por tua causa só), dilacerado?» É a infinita e contraditória riqueza do sentimento amoroso que explode nestes versos, que são dos mais belos e dos mais fascinantes escritos em língua portuguesa.

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Devido à complexidade do amor, o êxtase e a angústia podem coincidir, como num dos versos destes sonetos: «Êxtase nu de coração aflito.» Para Alberto de Lacerda, o amor é sempre a totalidade como natureza viva e como humanidade revelada, redimida e transfigurada pela palavra «Sei que me amas. Mas momentos houve / Nesse movimento de horizonte em chamas / Em que fomos a humanidade que ouve / E que medita, e, redimida chama // Aos ouvidos profundos, que não esperavam. / A música do amor, e das esferas.» O próprio canto é um acto de amor que assume a totalidade do real na sua origem e o consagra na língua como corpo erótico. Segundo o poeta diz num soneto dedicado à língua portuguesa, a língua é «onde as formas atingem a essência / Escrita nua, monumental e pura, / Linguagem — corpo, corpo em transparência, / Onde as próprias feridas transfiguram.» Este soneto termina assim: «E faço amor com a portuguesa língua / Que me possui e que eu possuo, linda.» Através de todas as vicissitudes da paixão, a língua é uma constante vitoriosa porque ela própria é, na poesia, a instauração erótica do real, a sua permanente salvação, a sua ressurreição matricial. Lembremo-nos de que uma sacerdotiza grega chamava a Orfeu «salvador melodioso dos homens». Orfeu é o símbolo da própria poesia na sua dimensão ressurreccional ou seja, na sua constante ascensão dos infernos a que desce. Eurídice morta é a morte de Orfeu e a ressurreição de ambos pelo canto

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salvador. Os sonetos finais deste livro são dedicados a algumas cidades de Itália, Siena, Florença e Veneza. Também aqui o êxtase contemplativo é profundamente amoroso na plenitude de uma palavra poética de uma beleza e de um encanto excepcionais. «Ó muros de Veneza, eu sou a dor / De quem pertence à água, aos seus umbrais // De quem sonhou ser tudo e reflectir / O corpo do amor sem o dividir.» O sonho da unidade total e o sonho do amor e da poesia são, mais do que um sonho, a revelação original da natureza humana, a ascensão da morte à vida, simbolizada pelos deuses, a plenitude da «vida-vida». Alberto de Lacerda revivifica este mito poético e erótico, mito eterno, e fá-lo com a intensidade trágica, mas também fulgurantemente gloriosa, da paixão e com a excepcional maestria de uma linguagem que o coloca entre os imorredoiros poetas amantes da língua portuguesa. [1991]

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João Rui de Sousa o grito e o canto João Rui de Sousa acaba de publicar um novo livro de poemas, sugestivamente intitulado Enquanto a Noite, a Folhagem, editado pela Tertúlia. À primeira vista, este livro, como aliás toda a poesia anterior deste poeta, apresenta-se-nos como a resolução dinâmica e produtiva de um eu originário que antecede e funda a comunicação, embora na incerteza e na coincidência consigo mesmo. Na verdade, os filósofos, em geral, consideram o eu como um fundamento da comunicação e por isso o definem como autocoincidente, dotado de uma certeza substancial e provido de uma informação necessária à exposição comunicativa. Todavia, se a subjectividade é originária é porque já nela a comunicação a transcende e a promove mediante a linguagem instauradora e permanentemente inovadora. No seu extremo dinamismo, em que o grito e o canto se sucedem, se entrelaçam e até se identificam, nos seus sucessivos arranques em que tanto se manifesta a inexorabilidade do destino como explode e se afirma a força originária da liberdade, a poesia de João Rui de Sousa emerge de uma nebulosa incerta e

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turbilhonante, que é informulável, mas que, paradoxalmente, se radica no fundo comunicativo que constitui e transcende a subjectividade. Assim, o âmbito do poema de João Rui de Sousa, por mais objectivo que se nos afigure, é sempre transcendente, na medida em que é a realização verbal da dinâmica interna de um diálogo em que o fundo comunicativo e o informulável se encontram, se identificam ou se resolvem um no outro. Em vez de duas instâncias contrárias, a comunicação interior e o informulável são duas tensões do dinamismo psíquico na sua incerta identidade, permanentemente reconstituída. Por isso, o poema não traduz nem exprime uma informação ou um conhecimento previamente adquirido pelo sujeito, embora, de algum modo, esse conhecimento e essa informação estejam integrados, transformados ou metamorfoseados na dinâmica instauradora do poema. Como todos os verdadeiros poetas, João Rui de Sousa não reproduz sentimentos, não colhe ou interpreta uma informação já dada no eu, na sua suposta segurança de instância fundadora. A «realidade» que (alguém) «irá escrever» é uma realidade indeterminável e, por isso mesmo, não se exprime directamente deixando a um outro (indeterminado) alguém a possível iniciativa de nomear o real inominável. Deste modo, o poeta cinge a realidade, sem a reduzir, por intermédio de um terceiro, que é a metáfora de uma subjectividade aberta e interrogativa: «Alguém irá dizer este sopro, esta vida, / esta voz alçada em candelabro. // E esse alguém dirá passagens pela

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sombra / ou por onde houvesse um gasto e impuro coração a arder: / um coração terrestre talvez saturado / do propagar dos dias ou da mesquinhez. // Dirá principalmente os suplícios / dum palco onde se exibem corpos sujos / e o despojo dum rosto armadilhado. // (É isto o pessimismo?) / Claro que irá dizer / ao que a vida lhe sabe. / Claro que irá escrever a realidade.» A dimensão trágica de alguns poemas deste livro, a experiência dolorosa que manifestam, são sempre, ou quase sempre, metamorfoseadas pela instauração do poema que a converte, a partir do informulável, em proposições poéticas em que a linguagem se afirma, com toda a energia, autónoma e fundadora. «Eram rosas vazias, congeladas / no círculo vazio das intempéries / que, em confusão, desciam às camadas / do lodo onde as ravinas eram espaços / de um fugidio azul e de luz rala / na qual a combustão já só rasava / por um resto de sol e humanidade. // Eram casas vazias eram casas / onde a solidão se vislumbrava / nas formas que o nada ao tempo dá: / nas ocas vibrações de tectos e sacadas / onde cadáveres íntimos flutuavam.» Há, sem dúvida, uma extrema violência nalguns dos poemas deste livro e essa violência traduz-se não só nas imagens mas também no ritmo extremamente dinâmico dos versos. João Rui de Sousa é o poeta da extrema dilaceração da condição humana, mas, igualmente, da incontida e insubmissa réplica de um homem essencialmente vertical, que se rebela contra a asfixia e a violência

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desumanizadoras da sociedade actual. Mas a sua poesia é, noutras vezes, uma incursão nas zonas mais imponderáveis da subjectividade aberta ao mundo e a si própria, iluminada por uma espécie de graça: «Planar era saber que ali o dia / se abria num núcleo de ar e em curvas / desdobradas: / saber que após as águas da euforia / (envolventes, rápidas, repetidas, / que pressagiam choros e fantasmas), / sereno um sono ao longe percutia / as águas acalmadas». Ainda não evidenciámos devidamente a força patética de alguns dos seus poemas como «Quantos Anos Tem a Dor?», onde os versos se sucedem impetuosamente, num ritmo de uma intensidade inexcedível: «Quantos anos tem a dor? Quantos solstícios / dentro dela ocorrem? Quantos / poemas são metáforas só do chumbo / ou só da dureza dos rochedos / alçados na falésia? / Quantos gestos ou lenços de amizade / cindidos no terror? / Quantas levitações apenas falsas, / apenas catástrofes adiadas / ou chuvas sobrantes no soprar do vento? / Quantas manchas ácidas da cor de renúncia e descalabro?» Muito explicitamente, o poeta opõe, no breve poema «O Tudo e o Nada», as duas vertentes contrárias da sua poesia: a celebração da natureza e a enunciação do nada, do negativo, do adverso: «Digo a sombra / Digo a voz plausível / que me abrasa. / Digo alguns nomes: / girassóis / estrelícias // e magnólias. // Mas também digo o som / que vale o nada, / que vale a negação dessas mensagens.» Todavia, a revolta, a dor, a negação, por

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mais violentas que sejam, são temperadas por um vigor ético que determina a responsabilidade do poeta pelo outro, a sua abertura épica: «Enquanto de palavras me embriago / suspendo a dor: sossego o dorso antigo / do lamento, recalco quanto de castigo / próprio há muito acoito; e dou notícias / do vinho que convoco em minha fala / da vinha que podei e da vindima / (feliz ou fruste) que em íngremes colinas / pratiquei, como um soldado afoito / bem no meio da ruína e da chacina.» Esta constante é tanto mais intensa e nobre quanto é inexorável a violência da adversidade, que o poeta não disfarça nem minimiza, antes evidencia com um sentido trágico e uma lucidez transfiguradora que só entre os grandes poetas se encontra: «Eram cerradas artes de apagar as luzes, / de nos trazer o fim — o sombreado / de se sofrer o pasmo de quem perde / a flor do entendimento e da coragem». Com efeito, João Rui de Sousa não evita a exploração «de nosturnas áleas e zonas letais». Mas, por outro lado, o poeta delimita o campo do explorável, separando-o da inexpugnabilidade do interdito: «São ossos poderosíssimos / onde o fogo não entra. / Nem jamais é possível / qualquer lavra.» Este livro é, talvez, um dos mais trágicos da obra poética de João Rui de Sousa e é, também, o seu livro mais fulgurante, o mais complexo, o mais nu e, na sua nudez, o mais aberto à alteridade e à presença do outro na distância. [1992]

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Palavra azul sobre fundo negro A pequena editora Átrio acaba de publicar uma plaquette de poemas de João Rui de Sousa, intitulada Palavra Azul e Quando, que vem, assim, restabelecer a continuidade da obra deste poeta cujo livro anterior data de 1983. Observámos, já no primeiro livro deste poeta, uma situação existencial extremamente negativa, a experiência da noite vivida na sua impossibilidade insuperável e assumida sem mediação e sem qualquer perspectiva, quer no plano da transcendência, quer no plano da imanência do real. Se noutros livros e até nalguns poemas do seu primeiro livro, essa nagatividade absoluta dá lugar a uma poesia solar e cheia de esperança, esse fundo nocturno subjaz sempre à palavra poética na sua verticalidade inaugural e na sua matinal claridade em que a esperança é assumida como um repto e um desafio às circunstâncias negativas ou dramáticas da existência. Deste modo, podemos dizer que a «palavra azul» de João Rui de Sousa se ergue sempre a partir de um fundo negro e é o que acontece também no livro agora publicado. O ritmo dos poemas deste autor é impetuoso

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e amplo, de uma agilidade e de uma energia surpreendentes, que, se indicam o movimento do desejo e da palavra poética que o consubstancia, revelam, por outro lado, que essa ascensão prodigiosa tem como origem o abismo de uma subjectividade que nunca pode ser separada da criação poética. Este abismo não é uma característica singular de ninguém, porquanto constitui, essencialmente, a subjectividade humana. Todavia, só em alguns poetas esse abismo é vivido e recriado como uma dimensão trágica e permanente da vida humana, João Rui de Sousa é um deles e, por isso, a sua poesia vertical possui um acento de extrema autenticidade e uma energia impetuosa que o distinguem como um poeta da existência radical. É de um fundo negro que a «palavra azul» irrompe, ultrapassando a negatividade em que se origina. «Azul é quando o homem já renasce / da dor, da solidão, da força escassa / de tudo quanto o quer sob destroços // azul é quando o homem se ultrapassa.» Este maravilhoso verso sintetiza o ímpeto de uma palavra que ultrapassa algumas vezes os dados existenciais para afirmar a autonomia da criação poética como um movimento de liberdade e de assunção do ser ou seja da transcendência humana dos limites da existência. Todavia, a negatividade da condição humana mantém-se, nesta poesia, como o círculo permanente da insuperável limitação do ser nos seus dados irremediáveis e irredutíveis.

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Após a primeira impulsão libertadora do poema, o poeta regista, nalguns dos poemas deste livro, o afundamento no abismo da realidade despojada e nua, insusceptível de ser transfigurada ou elidida pelo poder da palavra poética. «Sou este azul que me convida // E transcrevo a paz, o sol dos dias / E também parto. E também ardo. / Depois disso — desse suposto eu abreviado, / tão transparente e nítido, mas / tão transitório — / apenas gestos rasos que são cardos, / apenas pedras fundas que são sombras, / pequenos meteoritos que são conchas / de deuses antiquíssimos e cansados.» Ainda quando João Rui de Sousa «celebra o azul» neste livro, essa celebração tem a intensidade de uma energia que provém do fundo negro da subjectividade, de «desastres e devastações que são / mancha invulgar mas nítida no regaço». O desejo perspectiva-se na paisagem criando o espaço da relação vital, «uma ligação de tudo a tudo». «Planalto que se azula em rio de entendimento / quando a visão é ter o olhar certo.» João Rui de Sousa é, assim, o poeta da tensão dos contrários existenciais, em que não só a afirmação da claridade e da harmonia sucede à negação noctuna, mas também uma e outra se implicam numa circularidade fundamental. Todavia, neste livro, a afirmação da liberdade e da unidade ontológica a que o poeta aspira possui uma energia que se identifica com o próprio movimento instaurador do poema: «essa palavra é surpreendente leque / de azul e fogo, e de amplitude vária, / para dizer

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futuro e coração mais fértil». O poeta reconhece o poder transfigurador do poema sobre a matéria negativa da existência, sobre o sofrimento, a devastação, a morte. «A palavra é azul mesmo se fere, / mesmo se o rosto e um escuro patamar / de sofrimento e noite assoberbada / de nevoeiro e extensos pesadelos, / de folhas ácidas e espinhos / verdadeiros.» Deste modo, mesmo quando o poema supera a angústia e o desespero, os dados negativos da existência estão sempre implícitos nele, como o fundo abismal donde arrancam as palavras que instantaneamente projectam um espaço novo e vertical, na plena afirmação do ser vivo actualizado como presença no poema. [1991]

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Adaimpossibilidade construção A procura da poesia pode ser uma procura da palavra e do seu início. Mas essa procura pode conduzir à afirmação da palavra que em si mesma encontra a resolução (embora sempre parcial) do Inexprimível. Outra via, porém (e é esta a de Analogia das Folhas, livro recentemente publicado pela Limiar, da autoria de Fernando Guimarães) é a da procura da anterioridade do poema ou seja do momento em que nada começou, que é também da impossibilidade de começar, não propriamente a origem mas o meio que envolve o poema na sua indivisibilidade e invisibilidade e que, por isso mesmo, é infinitamente aberto, indeterminável e inacessível à visão ou a qualquer tipo de apreensão, quer reflexiva quer imediata. Este meio é a região obscura do impronunciável e do imperceptível, do qual a palavra rompe para se afirmar como origem e princípio instaurador de uma nova relação com o real. Mas como pode o poeta figurar esse meio infigurável e inapreensível? Estes poemas não incidem sobre essa região inexpugnável, porque isso é impossível, mas

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a ficção de cada poema é construída sobre esse fundo ilimitado e vazio que antecede a visão e a projecta. Deste modo, o poema visa indirectamente o seu vazio e o ponto cego da visão e da palavra. Todavia, é talvez arriscado afirmar que a procura essencial deste livro é a da anterioridade do texto, uma vez que nela encontramos também a obsessão da posterioridade do poema ou seja da negatividade do tempo que ameaça a permanência do poema, ou do livro, e com ele a sobrevivência do sujeito. Assim, a procura da vertente negativa do poema sobrepõe-se à busca do que seria a indefinível indeterminação do que nunca se manifesta e se reserva sempre como pura anterioridade. A verdade, porém, é que a anterioridade do livro ou do poema e a sua posterioridade podem coincidir, uma vez que participam ambas do mesmo processo circular em que o fim é a condição do princípio e o princípio, a assunção do fim. O poema que citamos a seguir exemplifica bem a extrema precariedade do acto poético, a negatividade irredutível que lhe é intrínseca e que é tanto posterior enquanto fim inexorável de si mesmo como anterior à sua própria elaboração ou seja enquanto condição negativa da sua produção sem fundamento a partir do apagamento que é o seu destino e o seu ponto de partida criativo. A mão inclina-se mais sobre o desenho e principia a apagá-lo. E assim o que nele se encontrava reprodu-

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zido desaparece a pouco e pouco. As imagens cada vez se distinguem menos; alguns contornos mal podem ser agora reconhecidos. No entanto, ficou ainda numa das extremidades o esboço de uma mão. Estava ali um pouco inclinada e fora efectivamente ela que tudo viera apagar. Neste poema a negatividade do tempo, que origina a dissolução temporal do texto, é a negatividade da própria palavra, que em si mesma é tempo e, portanto, infinidade e finitude, apagamento e renovo, queda e ascensão. Na procura da anterioridade do livro ou do poema, Fernando Guimarães encontra não o vazio ou o gérmen que poderia ser ainda o nada ou o quase nada, mas a precedência de um «enredo» textual que se situa entre a invisibilidade do livro virtual (que é sempre o «mesmo», uma vez que a sua totalidade é constante no permanente recomeço das suas configurações ou da sua iminência inicial) e a sua actualização que é uma variante desse enredo em que confluem as diversas leituras que constituem a trama do livro ou do poema no seu processo criativo. A infinidade da rede textual é uma condição da possibilidade renovadora de outros livros, mas ao mesmo tempo (e é esse o tema de um dos mais significativos poemas deste livro) pode levar à exaustão, que é uma exaustão do Mesmo, e que, por conseguinte, pode conduzir à tentação de destruir o livro. Todavia, essa tenta-

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tiva não se actualiza (no poema referido acima), porque o acto destrutivo ainda seria recuperado pela incessante ficção do livro. A tentação de destruir o livro torna possível o renovo do interesse pela sua continuidade, mas, por outro, vai tornar a leitura «inteiramente impossível». Encontramos aqui o paradoxo da impossibilidade como condição negativa da própria criação. Este livro é, assim, uma reflexão contínua sobre a possibilidade-impossibilidade da criação poética como realização em que conflui a multiplicidade dos textos figurados como um único e mesmo livro, que é tanto o livro da multiplicidade textual anterior como o livro «inexistente» que ainda não foi escrito, ou seja o livro que de certo modo já se iniciou sem se iniciar o livro presente-futuro, entre a virtualidade e a actualização, e, por conseguinte, o livro de um intervalo que é o próprio espaço da leitura e da criação poética, indiscernivelmente ligados no mesmo processo de transformação textual e de instauração poética, através da impossibilidade assumida como condição criativa. Este livro de Fernando Guimarães é, sem dúvida, uma reflexão crítica sobre as condições e o processo da formação ou construção do «objecto» poético e da sua possibilidade e impossibilidade. Alguns poderiam perguntar se este livro é um livro de poemas ou antes de textos críticos ou até uma obra de ficção. A pergunta seria impertinente pois, como diz Jean Fortel, «dès lors que le langage se parle, il devient évident que les fron-

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tières entre fiction, poésie et critique s’abolissent ; disait, je crois Lautréamont, ‘que ces frontières n’existent pas’. Le Langage étant object de langage, toute écriture devient seconde, toute poésie devient critique». Fernando Guimarães é fiel à procura infinita da poesia e da totalidade do ser que a suscita e que ela suscita. E, por isso mesmo, na medida em que o ser nunca é presença plena de si mesmo, mas a fuga incessante que o torna inapreensível, é a (im)possibilidade da poesia que ele procura determinar na própria relação da poesia consigo mesma. A força cega que determina o poema e possibilita a relação viva com a totalidade não é anulada pela reflexão crítica porque é nela sempre subentendida na reserva de uma palavra que se questiona até aos limites do indeterminável e da negatividade. Se hoje em dia a decepção da poesia é o fruto de uma reflexividade que se exerce sobre o acto poético, a verdade é que essa decepção é uma forma do conhecimento do negativo e do seu antídoto criativo a partir desse conhecimento. Este livro de Fernando Guimarães é exemplar na medida em que esta decepção ilumina não o sujeito como entidade singular e pessoal, mas o sujeito fictício de um texto impossível-possível, cercado pelo que, ao mesmo tempo, o ameaça e o alimenta. Chamar metamorfose a esta assunção do negativo, que não é uma negação ou uma superação do negativo, mas a sua ponderação extrema, é talvez excessivo, porquanto o poeta nunca deixa de perseguir o que o con-

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diciona negativamente, até a impossibilidade, mas que é o ponto de partida de uma possível construção poética. E se o resultado desta perseguição é nulo, é ainda uma condição e um vector do próprio movimento poético que, na sua construção viva do poema, é ainda uma assunção do nada inexprimível, que na sua própria negatividade, determina a possibilidade poética como lúcida liberdade através de todas as perplexidades e decepções do negativo. O poema referido acima é o seguinte: Leio sempre o mesmo livro. Mas o mais estranho é que ele ainda não foi escrito. lmagino folhear as suas páginas que me habituei a reconhecer e os meus olhos fixam todas as palavras que, no entanto, ali não existem. Por vezes, concentro-me um pouco mais e julgo que principio a entender melhor um enredo que se torna cada vez mais complexo e inesperado. Noutros momentos, procuro recordar-me dos personagens, desses vultos cujo nome é apenas uma suspeita, do modo como estabelecem uns com os outros as mais estranhas relações, dos seus gestos imprevisíveis e vazios. Quando me sinto um pouco cansado de uma história, cujo desenvolvimento ao fim de algumas horas prevejo, não preciso de fechar o livro porque é nele que também posso encontrar uma maneira de alterar radicalmente o que se tornou previsível, na medida em que a partir desse momento uma nova história pode começar. O processo talvez não tenha fim… Por isso, um dia imaginei destruir

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esse livro. Durante alguns instantes fiquei perplexo. Como consegui-lo? Essa destruição não escapava à possibilidade de ser recuperada pela própria ficção de se estar a ler um livro inexistente. E por isso o que veio renovar e tornar ainda mais forte o meu interesse por uma leitura que agora se tornava definitivamente impossível.

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Aemidentidade e a finitude «A Analogia das Folhas» Poder-se-ia perguntar se o último livro de poesia de Fernando Guimarães, A Analogia das Folhas, editado pela Lumiar, é, efectivamente, um livro de poesia ou uma obra de ficção ou ainda uma colectânia de textos críticos sobre a condição poética. Mas, hoje em dia, a determinação dos géneros literários pouco importa, uma vez que se esbateram as fronteiras entre eles na medida em que a literatura moderna passou a ter como objecto a própria linguagem. Assim, a identidade formal da poesia deixou de ser uma determinação da sua especificidade e, em troca, evidenciou-se a identidade essencial da linguagem poética e a reflexividade que lhe é inerente. Estes poemas de Fernando Guimarães são construídos por breves narrativas ou contos miniaturais, de qualquer modo textos essencialmente fictícios porque fictícias são as figuras e figurações que neste livro aparecem como símbolos de uma problemática centrada na identidade e na finitude, na dualidade e na semelhança, na unidade e na diferença. A identidade é nele posta em causa, mas, ao mesmo tem-

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po, reafirmada na dualidade como se a diferença fosse a sua origem ou o seu fundamento. Não raras vezes o texto assume a forma de um paradoxo ou de um dilema evidenciando assim a complexidade da linguagem e do real, a trama em que, indissoluvelmente, um e outro se interligam. A unidade deste livro assenta na sua metapoética, ou seja numa reflexão crítica sobre a linguagem e o real ou o que, de algum mmodo, envolve o texto como origem sempre fugidia e indeterminável. A figuração fictícia é, assim, uma tentativa de conhecimento da trama invisível que é ao mesmo tempo prévia à construção poética e posterior à sua actualização. O infigurável é perseguido não em si mesmo mas na sua projecção indirecta e envolvente como a abertura que permite e condiciona a realização poética. Todavia, a singularidade destas narrativas não está só no que têm de metapoético, mas também no seu carácter metafísico e epistemológico em que se evidencia a perplexidade perante a insondabilidade ou opacidade do real. Mas estas modalidades são inseparáveis, uma vez que a reflexão epistemológica pode coincidir com a reflexão estética sobre o objecto e o sujeito que o contempla, como, por exemplo, neste poema: Suspeitava agora que o teu poder não tinha limites. Durante alguns instantes fixaste a tua atenção numa árvore. Não te cansavas de admirar o seu porte, reparavas como era equilibrado o movimento que nela havia quando passava o vento e admitias como deveriam ser poderosas

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as suas raízes. Depois disseste: «É como ele que eu quero ser.» E, com um misto de surpresa e desilusão, viste que era num ser-humano que ela se transformava.

O que neste texto se equaciona é a relação entre o sujeito e o objecto e a consequente decepçãoo da inapreesibilidade do objecto em si e, embora a linguagem não seja nomeada, entre a palavra do poema e o objecto real. A decepção final deste poema corresponde à imprevista anulação da diferença do objecto visto na identidade do sujeito que o vê e admira. A razão disto é que o poeta procura a identidade do objecto na sua própria diferença e não a identificação consigo. Esta identificação anula a singularidade do objecto, porque é uma projecção subjectiva sobre o eidos e não a revelação deste na sua identidade singular. Deste modo, é a impossibilidade do parti-pris des choses que o poeta evidencia. Uma das características destas breves narrativas é acabarem sempre, como já dissemos, num paradoxo, num dilema ou numa ambiguidade que corresponde a uma decepção ou a uma desilusão ou a um imprevisto contraste. Assim, o poeta substitui a imposição final de um conceito ou de uma conclusão pela evidenciação de uma falha do conhecimento ou da linguagem e, deste modo, faz-nos entrever a informulável complexidade do real. Cada poema deste livro é por isso a enunciação de uma situaçãoo enigmática, ambígua ou dilemática. A incerta identidade do sujeito é aí confrontada com a alteridade,

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a unidade com a dualidade, o mesmo com o diferente, e esse confronto pode levar à identificação dos opostos. A morte ou a condenação à morte constitui o momento privilegiado da revelação do idêntico no diferente ou na conversão de uma identidade nominal numa identidade real, como, por exemplo, no seguinte texto: Ele está ao meu lado, mas não o conheço. Há muito que principiaram a julgar-nos a ambos, sem que se tenha chegado a qualquer resultado; sabemos, contudo, que apenas será condenado um de nós. Enquanto espero, resolvo aproximar-me mais daquele que, nestas circunstâncias, passou a ser uma espécie de companheiro para lhe dizer qual é o meu nome. Olhou-me com espanto e, baixando subitamente a voz, disse: — Mas esse é o meu também. Que faremos quando for da condenação, ao virem chamar por um de nós? — Não estejas preocupado — foi o que eu respondi, depois de ter pensado um pouco —; nesse momento não podemos deixar de ser a mesma pessoa.

Se a morte é assim pressentida como a unificação da irredutível dualidade do sujeito e se a unidade é a procura permanente de cada um destes poemas, a verdade é que nem a alteridade do real nem a dualidade do sujeito são eliminadas ou reduzidas, uma vez que a morte, se é o irredutível destino do ser, só é unificadora como efeito retroactivo da reflexão e não na sua actualidade impossível que escapa a toda a recuperação ou a qualquer

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tentativa de unificação. A morte é, assim, o irredutível outro do sujeito e o outro de todo o outro. A consideração da morte nestes textos insere-se na incessante busca da unidade e da identidade através da alteridade e, por conseguinte, da finitude do ser. Esta consideração, neste livro é a consideração do limite extremo que reflui para a actualidade da vida e não a consideração da futura actualidade existencial da morte. Mas a morte pode ser entendida de outro modo, ou seja como a permanente corrupção da existência ou da sujeição cada vez mais difícil e dolorosa da existência humana. É aí que a alteridade negativa se manifesta como resistência, peso ou prisão no próprio tecido da existência. «Não tínhamos quaisquer dúvidas de que, para serem mais livres os nossos movimentos viriam todos os dias aumentar um elo à corrente a que estivéramos presos. Mas já não sabíamos se, mais tarde, era possível movermo-nos.» A importância estética deste livro e a sua exemplaridade provém da tensão entre a radicalidade de uma reflexão sobre o negativo da condição humana e a mediação simbólica que permite, sob uma aparência discreta, a leitura impessoal e neutra do que é enunciado: «Sabemos que, há muito, existe dentro de um fruto um verme. Foi precisamente no seu centro que apareceu. A partir daí principiou, conforme dele se alimenta, a escavá-lo cada vez mais; a sua voracidade, com efeito, não tem limites. E talvez tudo se passe assim porque ele estava condenado, desde sempre, a ser expulso do fruto.»

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