Heritage Magazine

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TORRE DE REFINARIA DA GALP Testemunho da cidade ocupada pela indústria

DA PATRIARCAL À CAPELA REAL DE S. JOÃO BAPTISTA Regresso ao período áureo do século xviii em São Roque

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Colaboram neste número: Sylvie Lopes, Ana Coelho, Tom Sarraipo, Carla Chá-chá, Fernando Coelho Pré-impressão e impressão: Focom XXI Tiragem: 4 exemplares

ESTAÇÃO ELEVATÓRIA DOS BARBADINHOS Para conservar a memória da energia e das máquinas a vapor

Edição: Centro Português de Património Industrial e Cultural Direção de Arte e Design Gráfico: Hugo C. Moreira Fotografia: Carla Chá-Chá e Fernando Coelho

PATRIMÓNIO INDUSTRIAL Central Tejo Testemunho da produção de electricidade na primeira metade do Século xx

*Projeto académico no âmbito do Mestrado em Design Editorial pelo Instituto Politécnico de Tomar Unidade curricular de Design de Edições Periódicas Professor Fernando Coelho *A Heritage Magazine procura respeitar todos os copyrights e pede desculpa por qualquer erro ou omissão.

MODERNISMO Gares Marítimas de Alcântara, o exterior e interior em diálogo modernista

Ficha técnica Heritage Magazine · n.º 00 · Junho · 2015

n.º 00 Junho · 2015

Número 0 · Junho · 2015 · €15



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Editorial

Os três eixos fundamentais da nossa atividade são o conhecimento,

o inventário, a salvaguarda,

a conservação, a valorização, a divulgação do património cultural arquitetónico, arqueológico, móvel e imaterial, e a execução da política museológica nacional; a gestão dos mais importantes museus nacionais portugueses e dos monumentos classificados Património Mundial pela UNESCO; a articulação permanente com outras entidades, públicas e privadas, nacionais e internacionais, nos domínios normativo e da fiscalização, da investigação científica, da ação educativa e formativa e da administração do território. Estabelecemos as linhas de orientação e o plano estratégico para a execução das políticas nacionais na área do património cultural, exercendo uma função normativa, regulamentadora e fiscalizadora. |6|

Definimos normas e procedimentos e emitimos diretivas vinculativas no âmbito da salvaguarda, conservação, recuperação e valorização dos bens culturais móveis classificados ou em vias de classificação, dos bens imóveis e das suas

zonas de proteção, e também no

domínio da prática museológica e da salvaguarda do património imaterial. Acionamos mecanismos de atuação para assegurar a salvaguarda do património cultural. Desenvolvemos ações de caráter pedagógico, definindo e divulgando metodologias e procedimentos de intervenção no património cultural, acompanhando, supervisionando tecnicamente e adotando, sempre que necessário, as medidas previstas na lei. Pronunciamo-nos sobre as intervenções de iniciativa pública ou privada que incidem sobre o património cultural classificado, em vias de classificação ou em zonas especiais de proteção, exercendo uma função fiscalizadora, podendo suspender obras que estejam a ser realizadas em violação das normas ou condições estabelecidas.


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|06| Crónica do Editor |10| Agenda

Secção #001: Modernismo |14| Gares Martimas de Alcântara

Secção #002: Património Industrial |26|Introdução |28|Central Tejo |38|Barbadinhos |48|Torre Galp |58|Elevador Sta Justa

Secção #003 |70|São Roque

Ensaios |80|Património industrial, educação e investigação Jorge Fernandes Carvalho

|86|Os museus e o património cultural imaterial Ana Carvalho

|94|Crónica de fecho |96|Próximo número


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Agenda Cultural 3 de Julho MARCAÇÕES E TERRITÓRIOS José Pedro Croft Chiado 8 Arte Contemporânea 4 de Julho CAMPO GRANDE Pedro Gomes Pavilhão Branco — Museu da Cidade 10 de Julo TODAS AS CIDADES SÃO A MINHA CIDADE Álvaro Siza Galeria João Esteves de Oliveira 12 de Julho SÍLVIA PRUDÊNCIO — COLECÇÃO |10|

Arquivo Municipal de Lisboa — Núcleo Fotográfico 15 de Julho FIVE RINGS Rui Chafes e Orla Barry Museu Colecção Berardo — Arte Moderna e Contemporânea 19 de Julho NOVE Koo Joeng A. Centro de Arte Moderna 26 de Julho THEIR TIME Erwin Wurm Cristina Guerra Contemporary Art 2 de Agosto ROTAS E RITUAIS Cinema São Jorge 6 de Agosto STAY A WHILE Javier Fernandez Appleton Square 8 de agosto (WE ARE) THE GHOSTLY OTHERS Camille Aboudaram Arquivo Municipal de Lisboa 11 de Agosto FEMINA Ana Cruz e Maria de Betânia Galeria Abraço


Jovem fotografia em Portugal

Ficha de Candidatura Nome:

Morada:

Telefone: E-mail: “Para os devidos efeitos declaro que aceito as condições estabelecidas no regulamento da iniciativa NOVO BANCO Revelação, do qual tomei conhecimento, bem como aceito a eventual utilização das imagens das quais sou autor(a), por parte do NOVO BANCO e Fundação de Serralves, conforme estipulado no ponto 7 do regulamento, não auferindo por esta utilização qualquer remuneração.”

(assinatura conforme Bilhete de Identidade/Cartão de Cidadão) Parceria:


17 de Agosto GÉNESIS Sebastião Salgado Torreão Nascente — Cordoaria Nacional 20 de Agosto DISSECÇÃO Vhils Museu da Eletricidade 28 de Agosto TANTA FOI A TORMENTA E A VONTADE José de Guimarães Centro Português de Serigrafia — CCB 3 de Setembro QUE SARDINHA ÉS TU? Colectiva Galeria Millenium 8 de Setembro LOST SUMMER Gil Heitor Cortesão Galeria Pedro Cera 14 de Setembro QUERIDO, REORGANIZEI A COLEÇÃO… POR ARTISTA |12|

Coletiva Culturgest 17 de Setembro PRINCÍPIO TAUTOLÓGICO Coletiva Hangar Centro de Investigação Artística 21 de Setembro CASA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO – FAROL DA LIBERDADE Coletiva Praça do Concelho (Praça Do Município, Lisboa) 26 de Setembro BELO VERMELHO. DESENHOS A SANGUÍNEA (SÉC. XVI A XVIII) Coletiva Museu Nacional de Arte Antiga 28 de Setembro OPEN SPACE (TRABALHOS RECENTES) Pedro Calapez Galeria Belo-Galsterer 30 de Setembro AS THE EARTH SPINS BENEATH THE STARS Coletiva Fundação Leal Rios

Para mais informações sobre preços, horários e outros assuntos, por favor contactar as entidades responsáveis por cada evento.


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Gares Marítimas de Alcântara

modernismo

O exterior e interior em diálogo modernista

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Construída na década de 40, ao abrigo de um plano de modernização do Porto de Lisboa, foi inaugurada em 17 de julho de 1943, com projecto do arq. Pardal Monteiro, que visava facilitar a atividade no cais e dar ao passageiro o máximo de comodidade. A sua conceção revelou um edifício amplo, de linhas elegantes e modernas, com uma estrutura de betão armado, desenvolvido em 2 pisos, o térreo ligado às actividades e serviços do cais e o superior relacionado com o acesso e acolhimento de passageiros. Neste último, merecem destaque a nave alongada de linhas curvilíneas e o amplo vestíbulo central, decorado com pinturas murais de Almada Negreiros, subdivididas em 2 trípticos (a nascente,«Quem não viu Lisboa não viu coisa boa», que retrata a vida da cidade no seu quotidiano, em especial as fainas marítimas e, a poente, subordinado ao tema da «Nau Catrineta») e ainda, em 2 figuras avulsas, uma delas alusiva ao «Milagre de D. Fuas Roupinho». No exterior, a parte central da fachada está definida por pano de muro côncavo, vazado ao nível do piso térreo por 3 portas rectangulares envidraçadas, protegidas por pala e encimadas até ao remate do alçado por 3 grandes janelões retangulares. Remate esse, feito por volume recuado vazado por 7 óculos circulares. Toda a fachada é, ainda, percorrida por um extenso terraço, que se estende em ambos os lados para além do edifício.


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primeiro, porque foram palco de partidas e chegadas

numa época em cujo o transporte marítimo era a principal forma de ligação de Portugal com os seus territórios ultramarinos e demais nações estrangeiras. Depois, porque são marca, por um lado, do regime ditatorial de direita de então e cuja vontade as edificou e, por outro, do arquitecto Pardal Monteiro que as desenhou. Por último, porque nelas podemos encontrar os frescos com que José de Almada Negreiros, a convite do desenhador das gares, animou as suas paredes. São estes os tesouros que o porto de Lisboa, por estes dias, põe à disposição, através de visitas comentadas, de todos aqueles que queiram conhecer melhor estes espaços da capital portuguesa. No entanto, apesar de toda a história que estas gares encerram, o que as torna tão interessantes e valiosas são, sobretudo, os painéis da autoria de Almada |16|

Negreiros. Estes tomaram ao artista, para cada uma das gares, dois anos e meio de estudos e setenta dias de execução. Daqui sairiam, primeiro em 1945, na Gare Marítima de Alcântara, oito pinturas, que se distribuem por dois trípticos e duas composições



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isoladas, e, já em 1949, na Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, seis pinturas distribuídas por dois trípticos. No primeiro caso, de Alcântara, o pintor inscreve-se num registo anteriormente revelado, por exemplo, nos frescos do edifício Diário de Notícias. Essa maneira de pintar já caracteristica de Almada é visível tanto nos dois trípticos, representando, num, a Nau Catrineta, poema popular português, e, noutro, a vida de Lisboa junto ao rio, com as embarcações atracadas e mulheres, retratadas de forma vigorosa, acartando a mercadoria para terra. Nas duas composições


isoladas que podemos também encontrar na Gare Marítima de Alcântara, Almada optou por retratar, num dos casos, um domingo tipicamente português e, no outro, a lenda de D. Fuas Roupinho. Já terminados os trabalhos da gare de Alcântara, que suscitaram agradabilidade pelo trabalho ali desempenhado, Almada é novamente convocado para enriquecer as paredes da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, que entretanto se construira. Contudo, o Almada Negreiros que aqui encontramos pouco se assemelha, além das temáticas relacionadas

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com os espaços em questão e do recurso a elementos típicos do seu imaginário pessoal, ao pintor que se encarregou da gare de Alcântara. Onde antes fora tradicional, aqui Almada renova a sua abordagem estilísitca. Desta forma, servindo-se dum um cubismo que nunca abandona a linguagem pictórica, o pintor oferece aos visitantes da Gare Marítima da Rocha do Conde Óbidos, por um lado, o retrato do drama que é o embarque e, por outro, novamente vida junto com Tejo. Sem prejuízo para qualquer uma das duas gares marítimas, Almada Negreiros, comprovando o seu génio e as suas capacidades de se renovar e reinventar, dá um gigantesco salto estilístico dos painéis da primeira para os da segunda gare que pinta. A este propósito Almada comentaria, anos mais tarde, «creio não haver antes cumprido melhor, nem feito obra que fosse mais minha». De facto, as questões relativamente ao cubismo, que surgiam um pouco por todo o mundo nos anos seguintes ao segundo conflito mundial, foram, em Portugal, tratadas de forma singular por Almada na segunda gare que pintou. Aspecto esse que permitiu às gerações que se seguiram considerar o cubismo como uma questão «resolvida» e focarem-se em novas correntes emergentes. |20|

Começando na Gare Marítima de Alcântara e terminado na Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos há uma vastidão de elementos e questões que são suficientes para, por um lado, consagrarem o nome de José de Almada Negreiros enquanto artista singular e, por outro, inscrever os painéis das gares marítimas do porto de Lisboa nas páginas da história da arte portuguesa. Trata-se, sim, artisticamente, de um dos momentos mais altos de toda a arte portuguesa, ou seja, motivo mais que suficiente para aproveitar esta oportunidade de visitar as gares marítimas. Apogeu de toda a sua produção artística, os frescos de Almada para as gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Con­de de Óbidos constituem a sua produção pictórica mais ambi­ ciosa e mais trabalhosa, com mais de dois anos e meio dedicados a cada um dos conjuntos, tendo no primeiro sido ajudado apenas por um operário que lhe transportava as tintas e no segundo por Sara Afonso. Com um ano de distância entre o fim de um e o início do outro, é assinalável a mudança de registo, como se Almada tenha querido traçar uma frontei­ ra entre passado e presente, ou, dentro do seu assumido eclectismo, mostrar que pode existir mais de uma maneira de ser moderno. Mas, acima de tudo, os frescos das duas gares revelam


a solidão do criador, avesso a grupos num meio agora dividido entre neo-realistas e surrealistas, percorrendo or­gulhoso o percurso por si traçado, sem se preocupar com a falta de companhia, certo de estar na via da salvação. O fresco suecial do contributo de Almada à arquit No Diário de Noticias, em 1939-1940, AImada utiliza linguagem clássica (invocando o Renascimento, que estuda e admira) para abordltr temas mitológicos ou alegóricos. Na quase simultânea encomenda para os

A história da Central Tejo deve começar pela necessidade de iluminar a noite

Correioa d Aveiro, remete-se ao intimismo, com uma mulher do povo a escrever e outra a ler uma cartilha. É uma simbologia clara que porém não enCOittrará correspondência da parte do cliente, acbando os frescos destruídos.

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Notas Biográficas Almada Negreiros

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José Sobral de Almada Negreiros (Trindade, São Tomé e Príncipe, 7 de Abril de 1893 — Lisboa, 15 de Junho de 1970) foi um artista multidisciplinar português que se dedicou fundamentalmente às artes plásticas (desenho, pintura, etc.) e à escrita (romance, poesia, ensaio, dramaturgia), ocupando uma posição central na primeira geração de modernistas portugueses1 . Almada Negreiros é uma figura ímpar no panorama artístico português do século XX. Essencialmente autodidata (não frequentou qualquer escola de ensino artístico), a sua precocidade levou-o a dedicar-se desde muito jovem ao desenho de humor. Mas a notoriedade que adquiriu no início de carreira prende-se acima de tudo com a escrita, interventiva ou literária. Almada teve um papel pwarticularmente ativo na primeira vanguarda modernista, com importante contribuição para a dinâmica do grupo ligado à Revista Orpheu, sendo a sua ação determinante para que essa publicação não se restringisse à área das letras. Aguerrido, polémico, assumiu um papel central na dinâmica do futurismo em Portugal: "Se à introversão de Fernando Pessoa se deve o heroísmo da realização solitária da grande obra que hoje se reconhece, ao ativismo de Almada deve-se a vibração espetacular do «futurismo» português e doutras oportunas intervenções públicas, em que era preciso dar a cara". Mas a intervenção pública de Almada e a sua obra não marcaram apenas o primeiro quartel do século XX. Ao contrário de companheiros próximos como Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita, ambos mortos em 1918, a sua ação prolongou-se ao longo de várias décadas, sobrepondo-se à da segunda e terceira geração de modernistas3 . A contundência das suas intervenções iniciais iria depois abrandar, cedendo o lugar a uma atitude mais lírica e construtiva que abriu caminho para a sua obra plástica e literária da maturidade. Eduardo Lourenço escreve: "Estranho arco de vida e arte o que une Almada «Futurista e tudo», Narciso do Egipto da provocante juventude, ao mago hermético certo de ter encontrado nos anos 40, «a chave» de si e do mundo no «número imanente do universo»"4 . Almada é também um caso particular no modo como se posicionou em termos de carreira artística. Esteve em Paris, como quase todos os candidatos a artista então faziam, mas fê-lo desfasado dos companheiros de geração e por um período curto, sem verdadeiramente se entrosar com o meio artístico parisiense. E se Paris foi para ele pouco mais do que um ponto de passagem, a sua segunda permanência no estrangeiro revelou-se ainda mais atípica. Residiu em Madrid durante vários anos e o seu regresso ficou associado à decisão de se centrar definitiva e exclusivamente em Portugal. Ao longo da vida empenhou-se numa enorme diversidade de áreas e meios de expressão – desenho e pintura, ensaio, romance, poesia, dramaturgia… até o bailado –, que Fernando de Azevedo classifica de "fulgurante dispersão”5.


É um dos mais importantes arquitetos da primeira metade do Século XX em Portugal. Juntamente com um grupo notável, a que pertenceram

Porfírio Pardal Monteiro

José Cottinelli Telmo, Carlos Ramos, Luís Cristino da Silva, Cassiano Branco e Jorge Segurado, irá protagonizar a viragem modernista da arquitetura portuguesa. Pardal Monteiro destaca-se como “o que mais construiu e que se celebrizou como primeiro moderno. Sem concessões, foi capaz de pegar no fio da tradição para inovar”. A sua obra marcou a cidade de Lisboa, tendo sido responsável por muitas das mais importantes realizações arquitetónicas entre as décadas de 1920 e 1950 2.«Arquitecto português, Porfírio Pardal Monteiro nasceu a 16 de Fevereiro de 1897, em Pero Pinheiro (Sintra). Estudou arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa, onde se formou em 1919. Trabalhou desde então para a Caixa Geral de Depósitos, onde assumiu o cargo de arquitecto-chefe. Em 1920 tornou-se assistente no Instituto Superior Técnico, passando a professor catedrático em 1942. A sua colaboração com o arquitecto Ventura Terra marcou o período inicial da sua vasta obra profissional. A influência da gramática da arte déco está patente numa das principais obras realizadas neste período, a Estação do Cais do Sodré (1925-1928). O projecto para o Instituto Superior Técnico representou uma charneira na sua obra arquitectónica, ligando-o definitivamente ao engenheiro Duarte Pacheco, na altura director do Instituto e futuro ministro das Obras Públicas. Iniciou assim o seu período das obras públicas, manifestando interesse pela grande escala e pela monumentalidade, revelados nos projectos para a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa e para as Estações Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, nos quais recebeu a colaboração do pintor Almada-Negreiros. O conjunto destes grandes equipamentos marcou decididamente a imagem urbana de Lisboa pela escala e pelo impacto urbano. Nos anos 50, percebe-se uma vontade de actualização do vocabulário formal, referenciado ao movimento moderno internacional, numa gramática coerente mas rígida de grande rigor na formulação funcional, como é exemplo o projecto para o Hotel Ritz, em Lisboa. A actividade profissional de Pardal Monteiro ultrapassou o simples exercício do projecto, acumulando cargos públicos como o Conselho Superior de Obras Públicas, o Conselho Superior de Belas-Artes, a Junta Nacional da Educação e a Academia Nacional de Belas-Artes. Foi ainda presidente da Sociedade Nacional dos Arquitectos. Recebeu vários prémios, entre os quais se contam cinco prémios Valmor, uma menção honrosa Valmor e um Prémio Municipal. A 5 de Janeiro de 1962 foi postumamente feito Comendador da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada 15. Destacam-se entre os seus projectos arquitectónicos, os seguintes: edifício na Av. Da República, n.º 49 Prémio Valmor, 1923; Palacete Vale Flor - Prémio Valmor, 1928; moradia na Av. 5 de Outubro, nº 207 a 215 - Prémio Valmor, 1929; Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Fátima - Prémio Valmor, 1938; edifício do Diário de Noticias - Prémio Valmor, 1940; edifícios da Faculdade de Letras e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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Patrim贸nio Industrial


A preocupação de proteger e estudar o património industrial é uma atitude muito recente. Aliás, todo o património datado de períodos cronológicos mais próximos e com cunho marcadamente funcional e menos prestigiante, tem uma menor aceitação, a não ser que constitua um exemplar arquitectónico excepcional. Como olhar então, no inicio do século XXI, para vestígios materiais que até há tão pouco tempo desempenharam uma função na modelação§ urbana ou na estrutura económica da sociedade? O movimento de defesa do legado industrial teve a sua génese em Inglaterra, na década de 50, devido à destruição de muitas fábricas, durante a segunda guerra mundial. Em Portugal, as preocupações relativas ao mundo industrial surgiram cerca de 1980. A expressão arqueologia industrial começou a divulgar-se através de exposições ou dos primeiros estudos de carácter científico. Os objectivos e os conceitos operativos tocavam-se, muitas vezes, com os do património industrial.O objecto de estudo do património industrial é múltiplo, considerando-se as várias áreas produtivas e as diversas soluções construtivas. Assim, quando se fala de património industrial, referimo-nos frequentemente aos vestígios deixados pela indústria: têxtil, vidreira, cerâmica, metalúrgica ou de fundição, química, papeleira, alimentar, extractiva - as minas, para além da obra pública, dos transportes, das infra-estruturas comerciais e portuárias, das habitações operárias, etc. Cada universo industrial tem a sua especificidade. Os processos de produção, a maquinaria utilizada (máquinas-ferramentas e máquinas-operadoras) divergem de acordo com a respectiva área de laboração, havendo similitudes nas diversas forças motrizes empregues ao longo do tempo. Os edifícios industriais são os testemunhos mais próximos das comunidades, impondo-se pela utilização de algumas linguagens próprias, difundidas através de diversas soluções construtivas, caso do telhado em shed ou da utilização de diversos materiais de construção, tal como o ferro, o tijolo vermelho e mais tarde o betão. O património industrial é uma área inter e multidisciplinar. O desejável na interpretação de um objecto industrial é a participação de diversos especialistas (historiadores, arquitectos, engenheiros, patrimonialistas, arqueólogos). De uma forma muito sintética, pode então dizer-se que o património industrial trata dos vestígios técnicoindustriais, dos equipamentos técnicos, dos edifícios, dos produtos, dos documentos de arquivo e da própria organização industrial. Os edifícios classificados agora divulgados inserem-se neste vasto universo patrimonial. Abarcam construções fomentadas por políticas régias ou áreas produtivas que se encontravam nos alvores da mecanização - manufacturas - ou sectores industriais que de algum modo se destacaram na salvaguarda do património industrial pelo seu carácter arquitectónico. As estruturas sociais associadas são tipologias construtivas e organizativas que reflectem uma filosofia industrial que não pode ser dissociada de uma análise de conjunto do processo de industrialização.


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Central Tejo Testemunho da produção de electricidade na primeira metade do Século XX

O conjunto edificado que actualmente se pode observar, foi construído em vários momentos. Durante cerca de três décadas ocorreram sucessivas ampliações, das quais se destaca a projectada pelo engenheiro Fernand Touzet e o grande edifício das caldeiras de alta pressão, já instalado nos anos quarenta. A actual Central Tejo localizou-se junto a uma fábrica de electricidade, de pequenas dimensões, ali instalada desde 1908.


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A história da Central Tejo deve começar pela necessidade de iluminar a noite

a «Central Tejo», inicialmente denominada de

«Estação Eléctrica Central Tejo», foi uma central termoeléctrica, propriedade das «CRGE - Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade», que abasteceu de electricidade, toda a cidade e região de Lisboa. Está situada em Belém, Lisboa, e o seu período de atividade produtiva está compreendido entre 1909 e 1972, se bem que a partir de 1951 tenha sido utilizada como central de reserva, produzindo apenas para completar a oferta de energia das centrais hídricas. Recordo que a «CRGE - Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade» foi constituída em 1891 e resultou da fusão entre a «Companhia Lisbonense de Iluminação a Gás» (1848) e a «Companhia Gás de Lisboa» (1887), com a finalidade de produzir e distribuir gás e electricidade e obter contratos de exclusividade de fornecimento de energia à cidade de Lisboa.


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A primitiva «Central Tejo», popularmente conhecida como «Central da Junqueira», cujos edifícios já não existem, foi construída em 1908, iniciou a laboração em 1909 e funcionou até 1921. Foi projetada pelo engenheiro Lucien Neu e a sua construção ficou a cargo da firma «Vieillard & Touzet» (Fernand Touzet) a mesma firma que tinha sido responsável pelo projecto da «Garagem Auto-Palace» na Rua Alexandre Herculano em Lisboa. A construção da casa das máquinas foi projectada e supervisionada pela empresa belga «Sofina - Societé Financière e d’Entreprises Industrialles» com sede em Bruxelas. No apogeu da sua capacidade, a primitiva «Central Tejo» dispunha de quinze pequenas caldeiras Belleville e cinco grupos geradores que forneciam a rede eléctrica da cidade de Lisboa. O edifício apresentava um tipo de arquitectura característica


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A sua planta correspondia a uma nave longitudinal coberta a duas vertentes e trĂŞs pavilhĂľes contĂ­guos transversalmente do lado ocidental

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das pequenas centrais eléctricas dos finais do século XIX, as então denominadas «fábricas de electricidade». A sua planta correspondia a uma nave longitudinal coberta a duas vertentes e três pavilhões contíguos transversalmente do lado ocidental; entre eles, duas esbeltas chaminés dobravam a altura do corpo da fábrica e «vigiavam» o espaço. Nas suas fachadas Norte - Sul podia-se apreciar a inscrição: «1909 - Cªs Reunidas Gás e Electricidade - Estação Eléctrica Central Tejo». Esta primitiva «Central Tejo» foi programada para laborar durante um período de seis anos entre 1909 e 1914, até as CRGE conseguirem os meios necessários para a construção de um central de maiores dimensões e capacidade. Contudo, devido a dificuldades de financiamento e à eclosão da primeira Guerra Mundial nesse último ano, levou a que esta fase primitiva da «Central Tejo» se prolongasse e continuasse operativa até 1921. Em 1914, a 10 metros de distância da Central Tejo I, foram iniciadas as obras de novos edifícios que viriam a ser ampliados várias vezes. O projecto incluía diversos corpos da fábrica: sala para seis caldeiras, uma sala de máquinas com capacidade para |34|

dois turbo-alternadores alemães AEG de 8MW de potência; e um edifício de comando e subestação de menor dimensão. PouWco tempo depois do início das obras, estalou a Primeira Grande Guerra, provocando atrasos em prazos estabelecidos e problemas na recepção dos turbo-alternadores encomendados à Alemanha, que permaneceram retidos até ao fim do conflito. Só em 1921 o plano estaria concluído. Mas em 1922, em função do aumento dos consumos, foi de novo indispensável efectuar novos e importantes trabalhos na Central para aumentar a sala das caldeiras de baixa pressão. O programa elaborado pelas CRGE consistia na ampliação de uma nave industrial que alojaria três novas caldeiras de baixa pressão e a aquisição de um novo grupo gerador. Mais uma vez, no fim dos trabalhos em 1928 e pelas mesmas razões, decidiu-se optar por nova ampliação. Assim, no final dos anos trinta do século XX, existiam onze caldeiras em funcionamento e cinco turbo-grupos alternadores. Dez caldeiras «Babcock & Wilcox» (tecnologia britânica) e uma da marca «Humboldt» (origem alemã). A sala de máquinas alojava cinco grupos geradores de várias potências e diversas marcas: «Escher & Wiss», «AEG», «Stal-Asea» e «Escher Wiss-Thompson». Ao longo deste período de


15 anos, também foram construídos os canais e dois sifões nas novas docas do circuito de refrigeração, o qual conduzia a água desde o rio até ao interior da Central. Com o aumento de potência dos dois novos grupos turbo-alternadores AEG montados em 1934, foi necessária a instalação de novas caldeiras, que funcionassem com vapor de alta pressão. A construção foi feita nos terrenos anteriormente ocupados pela primitiva «Central Tejo», a qual foi demolida em 1938 para a construção deste novo edifício das caldeiras de alta pressão, o edifício mais imponente do conjunto. O seu interior albergava três grandes caldeiras de alta pressão da marca «Babcock & Wilcox», as quais começaram a funcionar em 1941. Com a destruição da primitiva «Central Tejo» e instalação do edifício das caldeiras de alta pressão, houve necessidade de espaço para as oficinas e arrecadações. As CRGE compraram então os terrenos contíguos localizados no lado nascente do seu complexo, onde laborava a antiga refinaria de açúcar «Senna Sugar Estates, Ltd.» propriedade da «Companhia de Açúcar de Moçambique». Foi também necessário criar uma sala de auxiliares, para tratamento de águas, a qual foi instalada no interior do edifício das caldeiras de baixa pressão, desmantelando as duas

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primeiras caldeiras.Entretanto em 1944 é inaugurada a «Fábrica de Gás da Matinha». substituindo a entretanto demolida junto à «Torre de Belém». Em 1950 o edifício das caldeiras de alta pressão, |36|

foi ampliado para incluir mais uma caldeira, que entrou ao serviço no ano seguinte e constituíu a última ampliação da central. Após o encerramento e nacionalização das companhias eléctricas, decidiu-se dar uma nova vida a esta antiga central termoeléctrica, reabrindo-a com fins culturais. Em 1986 constituiu-se a primeira equipa responsável pelo «Museu da Electricidade», que em 1990, abriu as suas portas ao público. Entre 2001 e 2005 o Museu sofreu uma reestruturação profunda, desde todo o património arquitectónico até ao conteúdo museográfico. Finalmente, em 2006 o museu reabriu as suas portas, da responsabilidade da «Fundação EDP», mas agora com um novo tipo de museologia, muito mais pedagógica e dinâmica. A Central Tejo implantou-se na margem ribeirinha Lisboeta no início do século XX, integrando o período industrial e moderno do país. A sua importância enquanto símbolo identitário na cidade é comprovada pela vontade manifestada desde cedo em preservá-la. Em 1990, após a sua reabilitação, deu lugar a um novo programa de museu, ganhando um carácter mais público. Este trabalho tem assim como objectivo principal a reflexão sobre a arquitectura da Central Tejo, enquanto património transmissor de memória e


significado. Esta interpretação prévia é essencial para qualquer futura intervenção. Inicia-se com uma leitura da pré-existência, que compreende uma primeira investigação da história, impacto social e forma, seguindo-se uma análise introspectiva e comparativa da experiência – «gesto» – feita na Central, através da qual se identificaram as características da forma que encerram o seu significado. Uma segunda parte focou-se na Central enquanto museu. Através da metodologia de Kahn, que preconizava que antes de qualquer acção de projecto se deve tentar compreender “o que é que um edifício quer ser” – que experiência se espera de uma determinada instituição – procurou-se investigar o que é que o Museu quer ser, de forma a compreender se

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a Central de facto corresponde a essas expectativas. Numa fase final, e com base nas análises anteriores, propôs-se uma intervenção, que visa reforçar o carácter identitário da Central Tejo. A história da Central Tejo deve começar pela necessidade de iluminar a noite – por um elemento de luz que protege da insegurança que representa a noite, o escuro, o desconhecido. Ainda em épocas primitivas começou-se por descobrir a luz no fogo, esta não era eficiente, não tinha a intensidade necessária e durava apenas até o material inflamável durar. Criaram-se lamparinas e lampiões; fogões e lareiras, mais tarde. E embora a descoberta da electricidade tivesse sido feita muito antes24, só em 1879 Thomas Edison conseguiu inventar a primeira lâmpada eléctrica alimentada a carvão. Até ao século XIX a electricidade foi apenas um fenómeno de curiosidade, só nessa altura, foram criadas as condições para colocar em prática a sua produção e distribuição industrial.


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Estação Elevatória dos Barbadinhos Para conservar a memória da energia e das máquinas a vapor

A antiga Estação Elevatória a Vapor dos Barbadinhos destinada à elevação das águas provenientes do rio Alviela, para o reservatório da Verónica e para a Cisterna do Monte, foi inaugurada a 3 de Outubro de 1880, mantendo-se em funcionamento até 1928, data em que, com a construção da nova estação eléctrica, foi desactivada e, em 1950, remodelada para acolher a sede do Museu da Água.


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Em 1919, nas sessões de 30 de Abril e 2 de Maio da Assembleia Geral da Companhia das Águas de Lisboa, foi aprovado um conjunto de alterações ao Regulamento Administrativo em vigor desde 1908, o qual viria a ser reformado na sua totalidade, com a inclusão das referidas alterações, por uma comissão nomeada na Assembleia de 30 de Abril do ano seguinte. De entre as alterações introduzidas, destaca-se a constante do Artigo 134º., referente à 3ª. Em 1950 a Companhia, necessitando de resolver o problema das instalações dos Laboratórios, optou por demolir as caldeiras da antiga Estação Elevatória a Vapor dos Barbadinhos, elementos que, tal como a chaminé também então demolida, se apresentariam num estado avançado de degradação. A Estação havia sido desativada no final da década de 20, após a entrada em funcionamento, em 1928, da nova estação elétrica. Na remodelação, em que foi construído um 1º andar nos corpos sul e


central do edifício, houve a preocupação de preservar as máquinas a vapor e as bombas, peças cuja beleza e estado de conservação justificavam a sua conservação como parte principal do património do Museu. Para a antiga sala das caldeiras, no piso térreo, veio a coleção de peças que se vinha organizando na Sede da Companhia desde 1919, alargando-se desta forma o conceito de “museu” ao conjunto coleção – sítio,

A história da Central Tejo deve começar pela necessidade de iluminar a noite

aqui materializado na coleção de peças instalada num edifício que é, ele próprio, património histórico, marco importante da arqueologia industrial. Em 1967, quando para o abastecimento de água concorriam as águas superficiais do Tejo captadas na Estação de Valada e tratadas na Estação de Tratamento de Vale da Pedra, o Aqueduto das Águas Livres e o Reservatório da Mãe d’Água das Amoreiras, que desde o século XVIII abasteciam Lisboa, foram desativados e passaram a integrar o património do Museu. Em 1987 o Museu sofreu uma remodelação, sendo dada uma organização museológica à coleção, criandose, na Sala da Exposição Permanente um percurso que mostra a evolução do abastecimento de água a Lisboa desde o tempo dos Romanos até ao tempo presente. No piso superior, onde anteriormente estivera instalado o arquivo geral da Empresa, foi criada, em 1992, a Sala de Exposições Temporárias, desde então utilizada para exposições de artes plásticas e diversos eventos de carácter cultural e social. Esta remodelação foi feita com a colaboração do Arquiteto

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Varandas Monteiro, do Museólogo Dr. António Nabais, sendo o projeto de Museografia da responsabilidade dos Drs. José Guerra Soares e Jorge Raposo. O Museu foi galardoado em 1990 com o Prémio do Museu do Conselho da Europa. Em 1994, quando Lisboa foi capital europeia da cultura, foi recuperado o Reservatório da Patriarcal, situado no subsolo do Jardim do Príncipe Real, reservatório construído pela 1ª. Companhia das Águas entre 1856 e 1864, e entretanto desativado do serviço do abastecimento. A recuperação deste reservatório foi dirigida pelo Arquiteto Varandas Monteiro, vindo a ser-lhe atribuído o Prémio Municipal Eugénio dos Santos em 1995. Constituindo memória histórica, o Reservatório da Patriarcal, tal como o Reservatório da Mãe d’Água das Amoreiras, são

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hoje locais de realização de exposições de artes plásticas e eventos culturais e sociais. O património do Museu integra ainda o Arquivo Histórico, acervo documental e fotográfico que permite conhecer a história do abastecimento de água a Lisboa e se encontra à disposição dos investigadores interessados. O Museu da Água, inaugurado em 1º de outubro de 1987, abrange o Aqueduto das Águas Livres, o Reservatório da Mãe d´Água, o Reservatório da Patriarcal e a Estação Elevatória a Vapor dos Barbadinhos. Este conjunto de monumentos e edifícios, construído entre os séculos 18 e 19, está diretamente ligado à história do abastecimento de água na capital


portuguesa. Fora de Lisboa, a parte técnica do aqueduto era prioritária. Dentro da cidade, tinha que refletir o momento vivido: a monumentalidade característica do governo de D. João V. Por isso, é considerada a maior obra arquitetônica hidráulica dos anos 1700. Um exemplo é o Arco da Rua das Amoreiras, erguido para comemorar a chegada da água e homenagear o rei, responsável pela iniciativa que resolveria o problema de abastecimento. Outro sãos os 35 arcos do Vale de Alcântara, cartão-postal da cidade. O Reservatório da Mãe d´Água é um marco na história da arte do período. Projetado e construído para receber e distribuir as águas captadas pelo aqueduto, a partir de suas três galerias, de um total de cinco, possui linhas arquitetônicas bastante sóbrias. Sobriedade que não impediu, contudo, a construção de uma capela, a de Nossa Senhora de Montserrat, sob um dos últimos arcos do aqueduto. O sistema parou de abastecer Lisboa em 1967 e Amadora, pequeno distrito pertencente à capital, em 1974. Mesmo desativado, ainda hoje é motivo de muito orgulho para os portugueses, pelo valor histórico que carrega. Há quem garanta que foi financiado, em grande parte, pelo ouro brasileiro, explorado nos tempos de Colônia. A EPAL foi a empresa escolhida por tutelar um Museu cujo património está associado ao serviço da distribuição de um bem primordial à sobrevivência humana: a água. As estruturas existentes evidenciam

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uma prova objectiva na satisfação das necessidades pela qual os habitantes de Lisboa se debatiam há vários séculos. Esse testemunho sob a forma edificada e documental permite retratar a história dos vários empreendimentos fazendo alusão à contínua necessidade em agir de forma melhorada.Realizado no âmbito da atribuição do grau de Mestre em Gestão e Programação do Património Cultural, o relatório aqui apresentado tem como objecto de estudo a gestão do património cultural nas suas variadas vertentes – salvaguarda, preservação, rentabilização e divulgação – aliada à cultura organizacional da empresa. A política cultural numa empresa como a EPAL é tanto ou mais sensível de acordo com a dimensão e importância do património à sua responsabilidade. Essa política permite tirar ilações na relação da empresa com

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a importância que confere ao seu legado, quais as valências que podem advir dessa posição e denotar quais as oportunidades e fragilidades nas práticas |46|

de gestão do património. A investigação debruçou-se em dois momentos. Num primeiro, com uma incidência teórica aprofundada, na recolha de informação bibliográfica, documental, técnica e fotográfica desde a 1ª Companhia das Águas até à actual EPAL. Num segundo momento, de cariz prático, no desempenho de trabalho de campo com a descoberta in situ do seu vasto e valioso património: das nascentes em Sintra, passando pela cidade de Lisboa, pelo próprio Museu da Água e Arquivo Histórico da EPAL e interacção com os demais públicos. A experiência de estágio revelou-se interessante quanto ao relacionamento com o património e à noção de consciência do papel do Museu e sua especificidade como agente cultural. A exposição e comunicação do património culturalpela acção do Museu veio afirmar que não é meramente um espaço estático que apenas se dedique a receber visitantes e a encaminhá-los pelo património, mas é antes um lugar que vive de uma dinâmica invulgar por causa do tipo e localização do património a seu cargo. A consciencialização daí radicada indica de que existe um trabalho de reorganização e de potenciação cultural a realizar para que toda a conjuntura orgânica funcione num processo integrado e coeso de modo a que os espaços museológicos se


tornem por um lado mais visíveis e apetecíveis no seu percurso, e por outro lado devidamente reconhecidos (re) colocando-os num lugar de maior destaque. A completa integração na equipa de colaboradores do Museu traduziu-se numa experiência de proximidade nos processos educativos e consequentemente transmissão de valores patrimoniais, e ambientais aos variados públicos, bem como na aquisição, em contexto real de conhecimentos na gestão dos núcleos museológicos. A curta duração do estágio permitiu reter apenas uma parcial percepção do processo de gestão e funcionamento do Museu, a qual foi bastante elucidativa no que respeita à forma de como se desenvolve o relacionamento no seu núcleo interno. A partir daí, foi possível fazer uma análise aos efeitos externos exercidos.

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Torre de refinaria da Galp Testemunho da cidade ocupada pela indústria

Um dos pontos de interesse desta zona é a Torre da refinaria (ou Torre Galp), enorme construção que testemunha a época em que esta parte da cidade era ocupada por indústria pesada. As rampas circulares permitem subir até ao segundo “andar” e apreciar o panorama envolvente. Esta torre é apreciada pelos andorinhões-pálidos, que provavelmente nidificam no local e podem ser vistos a muito pequena distância.

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"A ‘SACOR - Sociedade Anónima de Combustíveis e Óleos Refinados’, fundada em 28 de Julho de 1937, por um romeno radicado em França, Martin Saim, foi a primeira empresa petrolífera portuguesa a dominar todo o processo, da importação, transporte, refinação e distribuição dos produtos petroliferos. A refinaria da SACOR foi inaugurada a 11 de Novembro de 1940, com um potencial de refinação de 300.000 toneladas por ano. Esta refinaria estava ligada, por pipelines, a uma ponte-cais, no rio Tejo, com 300 m de cais acostável para os petroleiros que abasteciam a mesma. Produzia os seguintes produtos: Gasolina, Gasóleo, GPL (gás de petróleo liquefeito), Fuelóleo, Nafta, Jet fuel (combustível para aviões), Betume (para asfaltos e isolante) e Enxofre (para produtos farmacêuticos, agricultura e branqueamento da pasta de papel). A SACOR manteve sempre uma posição dominante na distribuição dos produtos refinados do petróleo, introduzindo em 1958 a "gasolina Super", e fundado a ‘Gazcidla’ para a distribuição de gás butano (doméstico) e propano (industrial).Esta refinaria de Cabo Ruivo foi sendo ampliada ao longo da sua existência até entrada em funcionamento da Refinaria |50|

de Sines em 1979, que originou a sua desactivação. A SACOR foi nacionalizada em 1975 e integrada na nova empresa, então criada, Petrogal, que mais tarde deu origem à Galp Energia que hoje conhecemos.” Sendo Cabo Ruivo uma zona industrial por excelência, situada entre a Matinha e Beirolas (onde se encontrava o Depósito Geral de Material de Guerra), aqui foi inaugurada a 11 de Novembro de 1940 a refinaria da SACOR, com um potencial de refinação de 300.000 toneladas/ano. Esta refinaria estava ligada, por pipelines, a uma ponte-cais, no rio Tejo, com 300 m de cais acostável para os petroleiros que abasteciam a mesma. Esta refinaria produzia os seguintes produtos: Gasolina, Gasóleo, GPL (gás de petróleo liquefeito), Fuelóleo, Nafta, Jet fuel (combustível para aviões), Betume (para asfaltos e isolante) e Enxofre (para produtos farmacêuticos, agricultura e branqueamento da pasta de papel). A “SACOR - Sociedade Anónima de Combustíveis e Óleos Refinados”, fundada em 28 de Julho de 1937, por um romeno radicado em França, Martin Saim, foi a primeira empresa petrolífera portuguesa a dominar todo o processo, da importação, transporte, refinação e distribuição dos produtos petroliferos. Até então todos os combustíveis e produtos derivados


do petróleo eram importados pela “Shell Company of Portugal, Ltd.”, “SONAP - Sociedade Nacional de Petróleos”, “Socony-Vacuum Oil Company” e a “Companhia Portuguesa dos Petróleos – Atlantic”. Lembro que já em 1933 tinha sido criada a “SONAPSociedade Nacional de Petróleos’” que nunca passou de mais uma distribuidora até ser integrada na futura Petrogal em 1975 a quando da nacionalização do sector. Curiosidade: na foto original da bomba de gasolina da SONAP, em finais dos anos 50, vi que o preço da gasolina estava em 4$00 o litro (2 cêntimos de €) …. e na altura a bomba vendia gasolina “super” e “normal” A 13 de Junho de 1947 é criada a “Soponata - Sociedade Portuguesa de Navios Tanques’” empresa para transporte marítimo do crude, e detida pelas cinco empresas petrolíferas de então, e pelas Companhia Nacional de Navegação, e Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, e pelas cinco empresas que operavam em Portugal como importadoras e distribuidoras de combustíveis líquidos atrás referidas. A SACOR manteve sempre uma posição dominante na distribuição dos produtos refinados do petróleo, introduzindo em 1958 a "gasolina Super", e fundado a “Gazcidla” para a distribuição de gás butano (doméstico) e propano (industrial). Em 1959 a SACOR cria a sua própria empresa de navegação, A “Sacor

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Marítima”, para transporte dos seus produtos. Esta refinaria de Cabo Ruivo foi sendo ampliada ao longo da sua existência até entrada em funcionamento da Refinaria de Sines em 1979, que originou a sua desactivação. Foi desmantelada por ocasião da Expo'98, restando no seu lugar apenas a torre de cracking da refinaria (na foto seguinte). A refinaria de Sines é responsável por 70 % da refinação em Portugal e a sua capacidade actual é de 220.000 barris de crude refinados por dia. Outra grande

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refinaria é a do Leça da Palmeira, inaugurada em 1970 apesar de ter iniciado a sua laboração ainda em 1969, com capacidade para 90.000 barris de crude refinados dia. É uma refinaria simples sendo o seu complexo constituído por 3 fábricas: aromáticos, óleos base e lubrificantes. A SACOR foi nacionalizada em 1975 e integrada na nova empresa, então criada, “Petrogal – Petróleos de Portugal, S.A.”, que mais tarde deu origem à “Galp Energia” que hoje conhecemos. Em 1978 a “Petrogal – Petróleos de Portugal, S.A.” inaugura a Refinaria de Sines em 15 de Setembro de 1978. A construção desta refinaria integrava-se numa estratégia de exportação para o mercado dos EUA, numa conjuntura internacional de expansão do consumo de produtos petrolíferos. Após as crises do petróleo, a refinaria de Sines acomodou a sua produção às necessidades do mercado doméstico, atualizando o nível tecnológico do seu aparelho por forma a tornálo competitivo em cenário de crise. A refinaria de Sines é uma das maiores da Europa, com uma capacidade de destilação de 10,8 milhões de toneladas por ano, ou seja, 220 mil barris por dia. "A ‘SACOR - Sociedade Anónima de Combustíveis e Óleos Refinados’, fundada em 28 de Julho de 1937, por um romeno radicado em França, Martin Saim, foi a primeira empresa petrolífera portuguesa a dominar todo o processo, da importação, transporte, refinação e distribuição dos produtos petroliferos. A refinaria da SACOR foi inaugurada a 11 de Novembro de 1940, com

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um potencial de refinação de 300.000 toneladas/ano. Esta refinaria estava ligada, por pipelines, a uma ponte-cais, no rio Tejo, com 300 m de cais acostável para os petroleiros que abasteciam a mesma. Produzia os seguintes produtos: Gasolina, Gasóleo, GPL (gás de petróleo liquefeito), Fuelóleo, Nafta, Jet fuel (combustível para aviões), Betume (para asfaltos e isolante) e Enxofre (para produtos farmacêuticos, agricultura e branqueamento da pasta de papel). A SACOR manteve sempre uma posição dominante na distribuição dos produtos refinados do petróleo, introduzindo em 1958 a "gasolina Super", e fundado a ‘Gazcidla’ para a distribuição de gás butano (doméstico) e propano (industrial).Esta refinaria de Cabo Ruivo foi sendo ampliada ao longo da sua existência até entrada em funcionamento da Refinaria de Sines em 1979, que originou a sua desactivação. A SACOR manteve sempre uma posição dominante na distribuição dos produtos refinados do petróleo, introduzindo em 1958 a "gasolina Super", e fundado


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a ‘Gazcidla’ para a distribuição de gás butano (doméstico) e propano (industrial).Esta refinaria de Cabo Ruivo foi sendo ampliada ao longo da sua existência até entrada em funcionamento da Refinaria de Sines em 1979, que originou a sua desactivação. A SACOR foi nacionalizada em 1975 e integrada na nova empresa, então criada, Petrogal, que mais tarde deu origem à Galp Energia que hoje conhecemos.” A SACOR manteve sempre uma posição dominante na distribuição dos produtos refinados do petróleo, introduzindo em 1958 a "gasolina Super", e fundado a “Gazcidla” para a distribuição de gás butano (doméstico) e propano (industrial). Em 1959 a SACOR cria a sua própria empresa de navegação, A “Sacor Marítima”, para transporte dos seus produtos. Esta refinaria de Cabo Ruivo foi sendo ampliada ao longo da sua existência até entrada em funcionamento da Refinaria de Sines em 1979, que originou a sua desactivação. Foi desmantelada por ocasião da Expo'98, restando no seu lugar apenas a torre de cracking da refinaria (na foto seguinte). A refinaria de Sines é responsável por 70 % da refinação em Portugal e a sua capacidade actual é de 220.000 barris de crude refinados por dia. A SACOR foi nacionalizada em 1975 e integrada na nova empresa, então criada, Petrogal, que mais tarde deu

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Elevador de Santa Justa A melhor vista sobre a cidade de Lisboa

O Elevador de Santa Justa é um dos poucos exemplares de arquitectura do ferro que existe em Lisboa, tendo um profundo impacto no urbanismo da baixa da cidade, não só pela sua implantação vertical mas também pela ornamentação rica e exuberante que define a estrutura metálica, repleta de arcos de gosto neogótico. O sistema elevatório é constituído por duas torres metálicas com 45 metros de altura, ligadas entre si e assentes sobre uma base de dois pilares com quatro vigas verticais.


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O Elevador de Santa Justa, também conhecido como Elevador do Carmo, é um dos monumentos mais interessantes da Baixa, centro histórico lisboeta. Concebido por Raoul Mesnier du Ponsard, o elevador liga a Baixa ao Bairro Alto e apresenta um design neogótico romântico. Abriu em 1902, altura em que funcionava a vapor, e em 1907 começou a trabalhar a energia eléctrica, sendo o único elevador vertical em Lisboa a prestar um serviço público. Feito inteiramente de ferro fundido e enriquecido com trabalhos em filigrana, o elevador dentro da torre sobe 45 metros e leva 45 pessoas em cada cabine (existem duas). A bilheteira localiza-se por trás da torre, nos degraus da Rua do Carmo. Os passageiros podem subir ou descer pelo elevador dentro de duas elegantes cabinas de madeira com acessórios de latão. No topo conta com vistas magníficas sobre o centro de Lisboa e o Rio Tejo. Foi inaugurado em 10 de Julho de 1902, com as presenças de El-Rei D. Carlos I, do director-gerente da empresa concessionária,“Empresa do Elevador


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do Carmo”, Dr. Silvestre de Almeida, acompanhado de jornalistas e outros convidados, em cerimónia presidida pelo secretário-geral do Governo Civil, Dr. Alberto Cardoso de Menezes. Liga a rua do Ouro e a rua do Carmo ao largo do Carmo e constitui-se num dos monumentos mais interessantes da Baixa de Lisboa. A bilheteira localiza-se por trás da torre, sob os degraus da rua do Carmo. Os passageiros podem subir ou descer pelo elevador dentro de duas elegantes cabinas de madeira com acessórios de latão. A estrutura, em estilo neogótico, foi construída na viragem do século XIX para o XX com projeto do engenheiro Raoul Mesnier du Ponsard, que também se responsabilizou por outros similares no país.1 Contrariando a afirmação popular, não está comprovada a ligação deste engenheiro a Gustave Eiffel. O que se sabe é que tanto Ponsard quanto o arquitecto francês Louis Reynaud aplicaram nestes elevadores algumas das técnicas e materiais já utilizados em França. As obras ter-se-ão iniciado em 1898 e a sua inauguração ocorreu a 10 de julho de 1902 tendo,


à época, sido apelidado de Ascensor Ouro-Carmo. Nos primeiros anos do seu funcionamento era movido a vapor, passando, a 6 de novembro de 1907 a ser acionado por energia elétrica. A diferença de nível entre o piso da estação inferior (Rua de Santa Justa, na Baixa) e o da superior (Rua do Carmo) é de trinta metros. Em Junho de 1902 ensaiaram-se máquinas e cabines e no mês seguinte, a 10 de Julho, o elevador inaugurou o serviço público. Nesse dia a chuva e a trovoada abateram-se sobre a cidade, mas nem mesmo assim esfriou o entusiasmo e a curiosidade de quantos quiseram experimentar o novo transporte ou apenas admirar o panorama. Era meio dia quando, sob o olhar atento da multidão, se procedeu à experiência definitiva com as cabines transportando para a estação superior grande número de convidados

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e de representantes da imprensa. Pouco depois chegava o Secretário Geral do Governo Civil, Dr. Alberto Cardoso de Menezes, para presidir à cerimónia a qual teve lugar de imediato. Nessa ocasião, uma banda instalada no terraço do prédio do Conde de Tomar executou o hino nacional enquanto no ar subiam girândolas de foguetes. Foi considerada uma obra arrojada à época, atendendo ao desnível vencido, aos materiais utilizados e


viadutos construídos, que possibilitaram os acessos à estação superior no Carmo. Atualmente constituise numa das estruturas mais visitadas na cidade, não apenas por portugueses mas, essencialmente, por turistas estrangeiros que procuram conhecer ambientes do passado (madeira e latão), processos mecânicos de transporte, e as soberbas vistas do piso superior sobre a cidade de Lisboa. O dramático Incêndio do Chiado, que destruiu alguns dos edifícios daquela zona comercial em 1988, não afetou este elevador. Construído com o emprego do ferro, encontra-se decorado com rendilhados. O alto da torre, acedido por uma estreita escada em caracol, é ocupado por esplêndidas vistas sobre o Rossio, a Baixa de Lisboa, o Castelo de São Jorge na colina oposta, o rio Tejo e as ruínas da Igreja do Convento do Carmo. No ano de 1900 foi apresentado o projecto do Elevador do Carmo, da autoria de Ponsard, com parte mecânica executada por Lambert d’Argent e desenhos feitos por Jacinto Augusto Mariares. Pouco depois iniciava-se a preparação dos terrenos das Escadinhas de Santa Justa para iniciar a construção da casa das máquinas. O ascensor seria inaugurado dois anos depois, com |63|


máquinas a vapor; somente em 1907 a locomoção das cabines passou a fazer-se através de energia eléctrica. Elevador de estrutura vertical, desenvolvido no sentido da Rua de Santa Justa, constituído por duas torres metálicas interligadas entre si, resultando num rectângulo. Base constituída por quatro vigas verticais, compostas cada uma por dois pilares, com contraventos horizontais. A sua maior dimensão é paralela à Rua de Santa Justa e a implantação foi

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feita no eixo da mesma. Com 45 m de altura, Ê nas torres que trabalham as cabines. Com interiores revestidos a madeira e espelhos, organizam-se em sete andares, com capacidade para 24 passageiros, e equilibradas entre si por meio de um cabo em aço. Viaduto de passagem sobre a Rua do Carmo e pilar. Estrutura composta por doze travessas com os devidos contraventamentos, formando uma dupla consola, apoiada no painel central com fundaçþes no topo das Escadinhas de Santa Justa. Do lado do

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elevador, o tabuleiro do passadiço é articulado por meio de rótulas, bem como sobre o pilar, o qual é articulado na base. Pilar de betão armado. No último piso existe um quiosque com esplanada e miradouro sobre a cidade. A ligação aos pisos inferiores é feita por intermédio de duas escadas helicoidais. No piso intermédio foi colocada a maquinaria e no piso da saída para o Largo do Carmo existe uma varanda de circulação. Corredor que passa por cima da cobertura do prédio, foi transformado em terraço, e desemboca no Largo do Carmo, por um portão de ferro. O espaço destinado à electrificação fica localizado debaixo das Escadinhas, em instalação própria para o efeito, sob galeria abobadada. Decoração do elevador com uma gramática ornamental neo-gótica. O painel do piso do lado da Rua do Ouro, é precisamente igual ao do piso da saída para o Largo da Rua do Carmo, o qual consta de maior número de elementos decorativos. Os motivos decorativos são díspares para cada piso. O Elevador de Santa Justa é um dos poucos exemplares de arquitectura do ferro que existe em Lisboa, tendo um profundo impacto no urbanismo da baixa da cidade, não só pela sua implantação vertical mas também pela ornamentação rica e exuberante que define a estrutura |66|

metálica, repleta de arcos de gosto neogótico. O sistema elevatório é constituído por duas torres metálicas com 45 metros de altura, ligadas entre si e assentes sobre uma base de dois pilares com quatro vigas verticais. As cabines do elevador, que se equilibram por meio de um cabo de aço, têm interior revestido a madeira e espelhos e capacidade para transportar 29 passageiros. Os sucessivos pisos são interligados por uma escada helicoidal, e o último piso oferece um local de miradouro da cidade, onde foi instalada uma esplanada.


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Da Patriarcal à Capela Real de S. João Baptista Regresso ao período áureo do século xvii em São Roque

Quiseram todos os santos, talvez os mesmos que poucos anos depois veriam a cidade de rastos, que a jóia da coroa chegasse sã e salva a Lisboa. Nem sinal de naufrágio durante essa viagem a bordo de três naus. A ironia foi outra. D. João V, que reinou entre 1707 e a sua morte, em 1750, não chegou a testemunhar a inauguração, no ano seguinte, desta "Encomenda prodigiosa" edificada por sua iniciativa.


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A Igreja foi construída no sítio da antiga ermida manuelina, na segunda metade do século xvi, sendo seu arquitecto Afonso Álvares, mestre-de-obras de D. João III. Porém, quem terminou a sua construção foi o arquitecto Filipo Terzi, responsável pela cobertura e pela antiga fachada maneirista. A construção desta igreja, teve como objectivo essencial, a acção catequética da Companhia de Jesus, em conformidade com as orientações emanadas por esta Ordem religiosa. De formato rectangular, a igreja é composta por uma só nave, uma capelamor pouco profunda, e oito capelas laterais, sendo este modelo tradicionalmente designado por “Igreja salão". Na parte superior das paredes laterais, intercalando com os janelões, um conjunto de pinturas, de grandes dimensões, representa episódios

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da vida de Santo Inácio de Loyola, o fundador da Companhia de Jesus, obra do pintor seiscentista Domingos da Cunha, "o Cabrinha”. De grande simplicidade arquitectónica, este templo grandioso foi construído em consonância com as recomendações litúrgicas do Concílio de Trento, sendo representativo do processo de renovação da fé católica pós-tridentina. Caracterizada como um monumento ímpar no contexto da arquitectura jesuítica, esta igreja serviu de modelo a outras posteriormente edificadas pela Ordem inaciana, em Portugal, no Brasil e no extremo Oriente. Em 1768, nove anos após a expulsão dos jesuítas de Portugal, a Igreja e a Casa Professa de S. Roque foram doadas, por alvará régio de D. José I, à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com todos os seus bens.Transportada de Itália, montada peça por peça segundo uma intricada operação logística, a sumptuosa Capela de S. João Baptista mostrava-se por fim na capital, palco privilegiado da intervenção do Magnânimo. Um prodígio da arte, ao nível do ReiSol português, e um instrumento político tão valioso como os materiais convocados para a obra. O projecto mostrava às potências europeias com acreditação diplomática no coração da Europa do século xviii, que Portugal dispunha de capacidade financeira para proteger o seu império. "O rei falava de igual para igual com Roma. Este momento marca uma transição sem paralelo. Criámos

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uma estética portuguesa com uma variante portuguesa da grande estética global do barroco cosmopolita. É uma situação de um Portugal na Europa e não de um Portugal além-mar, como nos Descobrimentos", explica |74|

António Filipe Pimentel, perito na era joanina, comissário científico desta mostra, a par de Teresa Vale, e director do Museu Nacional de Arte Antiga, que aloja o primeiro pólo da exposição, que se estende agora à Igreja Museu de São Roque. Ambas se prolongam até 29 de Setembro, apresentando no seu total mais de 300 peças. "A Patriarcal de Lisboa era uma espécie de réplica em miniatura do Vaticano, engrandecida com encomendas a artistas estrangeiros. Com a sua extensão, a Capela de S. João Baptista, formava um conjunto único, situado na Igreja de S. Roque, pólo do roteiro eclesiástico da corte", recorda Teresa Morna, directora da Igreja-Museu de São Roque, onde continua a morar a sobrevivente à ira da Terra. Se a capela se manteve de pé após o grande terramoto de 1755, de menos tolerância da natureza gozou a Patriarcal, arrasada pelo cataclismo, e evocada desde Maio no pólo do Museu Nacional de Arte Antiga, no âmbito desta iniciativa conjunta, que revela um processo de afirmação nacional. "A capela não é um mero produto de importação a Roma, expressa muito o que era a vontade portuguesa. Na fase do projecto de arquitectura, o arquitecto ao serviço do rei chega a recusar


os projectos enviados pelos melhores arquitectos italianos da altura. O rei queria uma arte que expressasse poder." Encomendada a Luigi Vanvitelli e a Nicola Salvi, reputado arquitecto da Fonte de Trevi, e a vários artistas próximos da cúria papal, a capela, construída entre 1742 e 1747, e a Patriarcal de Lisboa, formavam então um conjunto edificado sob a direcção de João Frederico Ludovice, arquitecto e ourives de D. João V. A obra está na génese do próprio Museu de S. Roque, construído em 1905 para albergar o tesouro que a acompanha e que inclui uma colecção de paramentos única no mundo, peças de ourivesaria da autoria dos melhores mestres do período barroco, bem como peças de culto e ornamentais. Foi erguida na Igreja de S. Roque, espaço contíguo ao da antiga Casa Professa da Companhia de Jesus, que a Santa Casa recebeu por doação régia, em 1768. Em 2006 encetou-se o seu projecto de reabilitação, beneficiando de um processo de restauro com requisitos especiais. "O rei quis que fosse feita com os materiais mais valiosos que fosse possível", frisa Teresa Morna. Se quiser ficar a par das despesas exactas, os detalhes da encomenda estão bem documentados nos fundos da Biblioteca da Ajuda. Para uma tradução mais imediata dos gastos, diga-se que há um frontal de altar equivalente ao valor de uma quinta que o rei possuía em Belém, e falamos apenas de uma peça.

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150 Peças de arte sacra. A síntese deste debate é apenas um dos momentos altos. A exposição "A Encomenda Prodigiosa - da Patriarcal à Capela Real de S. João Baptista" reúne ainda em S. Roque centena e meia de peças do período barroco da arte italiana.

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Vindas de todo o país e de museus internacionais, algumas das obras vão poder ser vistas pela primeira vez em Portugal. Entre os destaques da mostra contam-se os desenhos do "Álbum Weale" da Biblioteca da Escola Superior de Belas Artes de Paris, com reproduções da desaparecida custódia em ouro da capela e dos painéis em mosaico. O álbum, que se considerava perdido até à década de 1990, quando foi descoberto em Paris, e até agora apenas disponível em microfilme, é exibido pela primeira vez ao público. Também pela primeira vez em Portugal, no pólo de S. Roque, vão poder apreciar-se os estudos preparatórios para as raríssimas composições em mosaico de Agostino Masucci, um favorito do rei, provenientes da Fundação Aldega, em Itália, que só estiveram em exibição fora daquele país na década passada. Passe em revista também o conjunto de custódias, muitas delas inéditas em contexto de museu, reunidas graças ao alto patrocínio de D. José Policarpo e ao cabido da Sé de Lisboa. Entre este espólio encontra-se a Custódia da Bemposta (do Museu Nacional de Arte Antiga), da autoria de Mateus Vicente de Oliveira (discípulo de Ludovice), cujo trabalho artístico é visível na obra em talha e ourivesaria portuguesa a partir do terceiro quartel do século xviii, e a Custódia da Sé de Lisboa, do ourives Joaquim Caetano de Carvalho, considerada uma das peças mais notáveis da ourivesaria portuguesa. A relação do tesouro com a liturgia é um dos parâmetros explorados, bem como o impacto deste conjunto patrimonial no ambiente artístico nacional, com um peso sem precedentes. "A exposição evoca o grande trabalho feito no reinado de D. João V em torno da renovação da cultura artística, a partir do consumo dos grandes artistas internacionais e da própria criação em Portugal de uma direcção artística cosmopolita eficaz, protagonizada pela figura de Frederico Ludovice." Segundo António Filipe Pimentel, ficava assim lançada uma profícua bola de neve, que traz consigo "uma renovação do gosto, do mercado e do consumo artístico, a partir da norma emanada pela coroa, que se generaliza nas elites, com repercussões no Brasil". Um enorme salto qualitativo, promovido em breves 40 anos, que permitiu reconstruir Lisboa após o grande terramoto e "dotar a cidade destruída de uma coerência estética de nível internacional". O trabalho de restauro da capela, exposição-líbris

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da Igreja-Museu de S. Roque, foi concluído o ano passado. Obra-prima da arte europeia do século xviii, foi montada na Igreja de Santo António dos Portugueses em Roma e sagrada pelo Papa, antes de ser enviada para Portugal para ser colocada peça a peça no local da antiga Capela do Espírito Santo, e inaugurada em 1752, já no reinado D. José. "É de ficar com o coração suspenso só de pensar se tivesse havido um naufrágio. Trazer por mar era o mais seguro, mas rezando ao Altíssimo para que tudo chegasse são e salvo, primorosamente, como chegou", remata o comissário. Em S. Roque ainda encontra uma das caixas de transporte das alfaias litúrgicas. No final da mostra será lançada uma monografia sobre a Capela de S. João Baptista. 6.740 c.

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O presente texto, produzido para seminário de apresentação dos materiais produzidos no âmbito do projecto “Rota do Património Industrial do Vale do Ave”, teve como objectivo principal suscitar a discussão em torno das noções de património industrial e da sua utilização para fins didácticos e de investigação. Que património industrial temos? O que nos diz esse património? O que podemos fazer com ele? Estas questões e outras afins passaram a ter, a partir de agora, mais alguns pontos de apoio para o seu desenvolvimento, tendo em conta os materiais apresentados (monografia científica, vídeo, cd-rom, materiais didácticos), pela ADRAVE – Agência de Desenvolvimento Regional do Vale do Ave, no âmbito do Projecto «Rota do Património Industrial do Vale do Ave», A essência daquelas questões fará com que os materiais agora disponíveis sejam utilizados e fruídos em diversas situações e diferentes perspectivas: quer para efeitos de utilização didáctica, quer para efeitos de visitas de turismo cultural, quer ainda como bases para aprofundamento de investigações, que passam pela produção de complementos informativos e eventuais correcções, incorporação de conhecimento já produzido, abordagens de novos temas e sítios patrimoniais ou novas formas de tratamento dos problemas levantados.

Património industrial, educação e investigação

a propósito da rota do património industrial do vale do ave |80|

Jorge Fernandes Alves A preocupação de proteger e estudar o património industrial é uma atitude muito recente. Aliás, todo o património datado de períodos cronológicos mais próximos e com cunho marcadamente funcional e menos prestigiante, tem uma menor aceitação, a não ser que constitua um exemplar arquitetónico excepcional. Como olhar então, no inicio do século XXI, para vestígios materiais que até há tão pouco tempo desempenharam uma função na modelação urbana ou na estrutura económica da sociedade? O movimento de defesa do legado industrial teve a sua génese em Inglaterra, na década de 50, devido à destruição de muitas fábricas, durante a segunda guerra mundial. Em Portugal, as preocupações relativas ao mundo industrial surgiram cerca de 1980. A expressão arqueologia industrial inicia a sua divulgação através de exposições ou dos primeiros estudos de carácter científico. Os objetivos e os conceitos operativos tocavam-se, muitas vezes, com os do património industrial. O objeto de estudo do património industrial é múltiplo, considerando-se as várias áreas produtivas e as diversas soluções construtivas. Assim, quando se fala de património industrial, referimo-nos frequentemente aos vestígios deixados pela indústria: têxtil, vidreira, cerâmica, metalúrgica ou de fundição, química, papeleira, alimentar, extrativa - as minas, para além da obra pública, dos transportes, das infraestruturas comerciais e


portuárias, das habitações operárias, etc. Cada universo industrial tem a sua especificidade. Os processos de produção, a maquinaria utilizada (máquinas-ferramentas e máquinas-operadoras) divergem de acordo com a respetiva área de laboração, havendo similitudes nas diversas forças motrizes empregues ao longo do tempo. Os edifícios industriais são os testemunhos mais próximos das comunidades, impondo-se pela utilização de algumas linguagens próprias, difundidas através de diversas soluções construtivas, caso do telhado em shed ou da utilização de diversos materiais de construção, tal como o ferro, o tijolo vermelho e mais tarde o betão. O património industrial é uma área multidisciplinar. O desejável na interpretação de um objeto industrial é a participação de diversos especialistas (historiadores, arquitectos, engenheiros, patrimonialistas, arqueólogos). De uma forma muito sintética, pode então dizer-se que o património industrial trata dos vestígios técnico-industriais, dos equipamentos técnicos, dos edifícios, dos produtos, dos documentos de arquivo e da própria organização industrial. Os edifícios classificados agora divulgados inserem-se neste vasto universo patrimonial. Abarcam construções fomentadas por políticas régias ou áreas produtivas que se encontravam nos alvores da mecanização - manufaturas - ou sectores industriais que de algum modo se destacaram na salvaguarda do património industrial pelo seu carácter arquitetónico. As estruturas sociais associadas são tipologias construtivas e organizativas que refletem uma filosofia industrial que não pode ser dissociada de uma análise de conjunto do processo de industrialização. As obras públicas ou infraestruturas a seguir apresentadas relacionam-se, de algum modo, com a industrialização dos diversos sectores produtivos ou com a utilização de materiais decorrentes da Revolução Industrial. O património industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitectónico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infra-estruturas, assim como os locais onde se desenvolveram actividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação. A arqueologia industrial é um método interdisciplinar que estuda todos os vestígios, materiais e imateriais, os documentos, os artefactos, a estratigrafia e as estruturas, as implantações humanas e as paisagens naturais e urbanas, criadas para ou por processos industriais. A arqueologia industrial utiliza os métodos de investigação mais adequados para aumentar a compreensão do passado e do presente industrial. O período histórico de maior relevo para este estudo estende-se desde os inícios da Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, até aos nossos dias, sem negligenciar as suas raízes pré e proto-industriais. Para além disso, apoia-se no estudo das técnicas de produção, englobadas pela história da tecnologia. Na explicação do dicionário, o vocábulo rota significa caminho, destino, mas também rompimento e combate. Com a publicação dos materiais do projecto abriu-se uma via que terá, certamente,

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cruzamentos, derivações e atalhos, cujas linhas permitirão olhar mais de perto o objecto procurado, o património industrial, rodeando o de novos enfoques, nessa ilimitada e impossível tarefa de alcançar a realidade total. A rota, enquanto projecto aqui apresentado, só pode conceber-se como sistema aberto, disponível para novas incorporações de diversas origens. Do ponto de vista educativo, um dos méritos do conjunto de trabalhos apresentados hoje reside precisamente nas potencialidades de sensibilização gradualista para o reconhecimento do meio com base em fórmulas da pedagogia da descoberta, remetendo aqui para a empresa e para o tecido industrial. Através do vídeo, do cd-rom ou da homepage disponível, promove-se junto dos alunos uma abordagem visual e generalista como motivação, que ganha operacionalidade na informação breve e atraente das fichas soltas relativas ao conjunto de sítios patrimoniais seleccionados, permitindo-se depois aprofundamentos sectoriais através da monografia científica. Pode suscitar-se ainda o desafio de novas pesquisas, quer seguindo a bibliografia citada nos diversos textos ou, indo mais longe, investigando-se bibliografia não citada ou pesquisando notícias afins em jornais locais, de forma a constituir núcleos documentais em cada escola. E porque não partir para reportagens fotográficas ou para a gravação e tratamento de memórias que, geralmente, podem começar em casa, dada a imbricação das famílias na teia industrial, fomentandose por esta via o diálogo geracional como promotor de conhecimento formal, reconhecido pela escola? A cultura do trabalho, os padrões |82|

éticos de sobrevivência, a consciência dos quadros de produção e da sua inserção no mercado, a apreensão dos modelos tecnológicos dominantes, as formas de mobilização das pessoas e dos espaços, eis alguns pólos para esse diálogo, que se podem traduzir tanto em intervenções lectivas breves e monodisciplinares, como em projectos de escola mais abrangentes de natureza inter e transdisciplinar. Os materiais da «Rota» são neste domínio um desafio e uma responsabilização, uma plataforma de conversação para a cidadania patrimonial. Na investigação, impõe-se o aprofundamento do diálogo que os materiais suscitam, a envolver engenheiros, arquitectos, historiadores, arqueólogos, geógrafos, economistas, professores, pessoas ligadas a empresas e a organizações num exercício de interpretação e de busca de sentidos sobre o património industrial do vale do Ave, nas suas configurações e potencialidades. Exercício que, para este efeito, terá de ser sempre um processo multidisciplinar como forma de se captar a densidade das redes de significados que o património industrial suscita e promove na diversidade dos seus públicos, até pela natureza intrínseca deste tipo patrimonial, marcada pela efemeridade, por uma rápida obsolescência e por fenómenos de sobreposição que levantam problemas complicados de inventariação, tratamento, explicação, recuperação e reutilização. Mas esta tarefa é tanto mais complexa quanto, no Vale do Ave, a implantação industrial é de natureza difusa e dispersa por um largo território, em que a obsolescência ainda está em muitos casos activa e se verifica a reutilização sucessiva de equipamentos.


Se musealizar é, por definição, uma trabalho de conservação, neste caso tais operações terão ainda de decorrer num espaço cheio de vitalidade mas também de contrastes, onde os problemas sempre existiram, uns crónicos, outros novos, mas onde se depara também com uma dinâmica industrial apreciável, que confere ao Vale do Ave essa imagem metafórica de floresta industrial, na acepção de Alfred Marshall, onde continuamente se plantam e abatem árvores, que apresentam uma esperança de vida muito variável, dados os diferentes níveis de integração no mercado nacional e mundial. Por outro lado, o património industrial é um dos segmentos do património em geral que mais tem suscitado um novo tipo de observação e de reflexão, uma nova maneira de conceptualizar o património como legado histórico, dada a nova abrangência que trouxe consigo: mais do que pela apresentação de um novo tipo de monumento, o património industrial vale essencialmente pelo meio em que se insere, pela paisagem em que se revela como ícone, pelas relações que estabelece com o espaço e as memórias na diversidade de referências. Mas a palavra património é hoje também um sinalizador para uma verdadeira constelação de discursos e de práticas, onde, por vezes, sobra a retórica que procura ganhar espaço e afirmação, emergindo já uma nova fórmula de «intelectuais orgânicos», na concepção gramsciana, em torno deste território cultural. O espírito romântico do século XIX, que presidiu à construção do património histórico tradicional, buscava no monumento grandioso e único o espírito da nação, ligado a uma relação de afirmação do poder militar ou religioso, que focalizava o castelo ou a igreja, entre imagens nebulosas de ruínas fantasmagóricas ou do jogo de representações entre paraíso vs. inferno. Ora o posicionamento recente nos domínios do património aponta para os espaços de vivência colectiva, de forma que cada um sinta em si próprio o fio da história e um vínculo de cidadania partilhada, ou seja, um sentimento de identidade. Neste contexto, o património industrial funciona como âncora de uma envolvência alargada que arrasta outros domínios patrimoniais. Desde logo, perfilam-se como seus companheiros de peregrinação, o património ambiental, que se estrutura na tessitura dos usos do solo, das águas e de outros recursos naturais, bem com o património imaterial, aquele que remete para os costumes, para os comportamentos, para as acções colectivas duma população que sempre teve na indústria, particularmente nos últimos dois séculos, uma ocupação preponderante. Só na congregação dessa vizinhança, na conjunção dos diversos tipos de património num contexto amplo, não esquecendo obviamente o património histórico tradicional em que Guimarães avulta como caso especial, se conseguirá uma linha de turismo cultural sustentado, que reconheça e potencie uma rede de museus e de conjuntos históricos. Só assim, o património industrial ganhará a consistência necessária para dar resposta aos objectivos subjacentes ao projecto em que este seminário se integra, intitulado «Rota do Património Industrial do Vale do Ave», nomeadamente os que apontam para o reforço da identidade e para a qualificação da imagem do espaço regional, para além dos que indicam o conhecimento da história industrial, a preservação do património, a musealização,

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a inserção nos itinerários europeus. Projecto que ambiciona destinatários alargados (público erudito, público em geral, público escolar) e que apresenta uma finalidade explícita: - «contribuir, de forma decisiva, para a qualificação da oferta turística e cultural do Vale do Ave, questão indispensável para uma nova imagem da região» (www.adrave.pt/rota_património/rota.htm). Consideremos, então, os objectivos essenciais de identidade e qualificação. A questão da identidade é decisiva, para lá do lugar comum que a sua frequente invocação provoca. Nestes tempos de vazio e de incertezas, o património, em geral, vale por isso mesmo, como algo que herdamos, como a legítima que nos cabe em partes na herança do existir, como o dote que apresentamos no exercício de ser. Qual o papel do património industrial neste processo identitário? O património industrial é, em última análise, a expressão da tecnologia usada num período e num espaço circunscritos, com base em oficinas e fábricas, enquanto soluções organizacionais construídas para responderem a situações imediatistas de resposta ao mercado. Daí ser mais evidente neste tipo de património a adição e a fusão de fragmentos, a metamorfose dos edifícios e dos sistemas tecnológicos, conforme os níveis de invenção, de transferência tecnológica e da permeabilidade do meio para a sua recepção e difusão. E, recordemos, a tecnologia não deriva necessariamente da ciência, antes a precedeu muitas vezes, mercê de procedimentos intuitivos, como a história nos revela a cada passo. Sustentada em racionalidades económicas difusas e na aceitação social, a tecnologia é determinada, em suma, |84|

pelas conjunturas do mercado e pela economia de processos. Ora, mesmo antes da revolução industrial, as configurações tecnológicas sempre revelaram uma vocação tendencialmente universalista e de unificação cultural, com as sociedades a revelarem-se muito porosas (podemos mesmo dizer ávidas) em relação à transferência e à apropriação de tecnologias (vejam-se, por exemplo, os mecanismos para a captação da energia hidráulica). Esta característica de rápida difusão assume tal relevo que, para promover a inovação e salvaguardar as vantagens económicas dela derivadas, os países mais avançados tiveram de recorrer a dispositivos de protecção, desde a proibições alfandegárias ao privilégio da patente. Por estas razões, a tecnologia é um factor de homogeneidade cultural. Como procurar então nela um elemento de identidade, de marcação de diferenças? Naturalmente, tacteando a nossa forma de integração na economia-mundo, procurando as formas do uso das tecnologias, a cronologia da sua aplicação, os níveis de transferência tecnológica, os up-grades de concepção local, a capacidade demonstrada na sua utilização, o “desenrascanço” demonstrado na sua manutenção. Neste últimos aspectos, o Vale do Ave sempre foi um verdadeiro laboratório, tanto quanto nos foi dado conhecer a história de algumas empresas têxteis quando estiveram sujeitas ao regime de condicionamento industrial: a forte limitação ou proibição de aquisição de novas máquinas era compensada pelo «engenho» de técnicos que faziam perdurar as máquinas muito para lá do seu tempo útil e/ou ampliavam a sua capacidade de produção, através de soluções endógenas ou procuradas em oficinas vizinhas. A qualificação terá, pois, como base o conhecimento dos processos,


a explicitação das práticas e do seu potencial. Todos estes aspectos exigem trabalho ao nível monográfico e de compreensão global, por isso os projectos patrimoniais devem, na medida do possível, ancorar-se em empresas, associações empresariais e sindicais, estimular museus e histórias empresariais, para que estes possam funcionar como pólos de uma rede mais vasta, criando-se assim formas de vinculação e participação social dos diversos tipos de agentes, encontrando-se, no entanto, fórmulas de salvaguarda desses espaços museológicos para além do ritmo de vida das instituições empresariais. Importará, sempre que possível, fazer a rede por dentro e não por fora, contribuindo para se encarar o tecido empresarial de um ponto de vista institucionalista, isto é, perspectivando-o na sua globalidade, não só como projectos particulares que visam o lucro mas também como padrões de acção colectiva, o que inclui as dimensões económicas, sociais e políticas do fenómeno empresarial e as harmonias e desarmonias a ele inerentes. Talvez, assim, se possam compreender melhor fenómenos fabris que, do nada, se constituíram em grandes empresas têxteis (por exemplo, o núcleo de Riba d’Ave, a Riopele ou a Têxtil Manuel Gonçalves), a persistência das mini-hídricas históricas ou ainda esse fenómeno interessantíssimo que as cooperativas de distribuição de energia eléctrica constituíram, criadas nas décadas de 20 e 30, de que persistem ainda hoje algumas delas, impondo-se aos desejos de absorção e integração por parte da grande empresa nacional neste domínio (EDP) tão só porque a sua eficiência de serviço lhes permitiu resistir a todas as pressões e argumentos (políticos, técnicos e económicos), como é o caso da Cooperativa Eléctrica do Vale d’Este, que possui, de resto, uma valioso espólio de equipamento eléctrico das primeiras gerações. Se sempre se reconheceu que a riqueza patrimonial não está nos monumentos ou nas obras que o enraízam mas na forma como as respectivas populações demonstram capacidade para os valorizar, temos de convir que as palavras-chave da operação a favor do património terão de ser inclusão e valorização, em detrimento de selecção e de exclusão, embora estas sejam aceitáveis e indispensáveis na preparação por etapas dos projectos patrimoniais. Mas, por analogia com o conceito educacional de «currículo oculto», poderemos talvez falar de «património industrial oculto» para referenciar esse imenso território de práticas e de soluções técnicas raramente explicitadas, mas que constituem o alicerce do quotidiano e da viabilização empresarial num mundo de riscos e contingências exógenas que marcam a aventura industrial em todo o lado e, particularmente, no vale do Ave. Nesse sentido, o património industrial do vale do Ave não pode basear-se apenas no resíduo constituído por estruturas desactivadas, em ruínas de uma paisagem que continua viva e palpitante, isto é, não pode estruturar-se unicamente sobre aquilo que alguns designam de «baldios patrimoniais», tendo em conta as ruínas fabris, mas terá de se configurar como o retrato histórico de uma região industrial, revelando a patine do tempo que, pelo amadurecimento, pode ajudar a conferir qualidade e prestígio à empresa histórica, o verdadeiro pulmão do espaço social da indústria. Recorrendo à metáfora têxtil, podemos dizer que, com este projecto, a Adrave tem em mãos uma verdadeira teia a urdir.

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A salvaguarda do Património Cultural Imaterial (PCI) é um tema que tem merecido particular destaque nos últimos anos nos fóruns internacionais, especialmente os promovidos pela UNESCO, motivando o interesse crescente de profissionais de várias áreas para a sua investigação e análise. As preocupações com o PCI são extensíveis ao mundo dos museus, que começa cada vez mais a reflectir sobre este tema. Para compreender esta discussão é preciso referir a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da UNESCO (2003), um instrumento normativo de referência internacional para a definição de estratégias nesta área e que tem dado grande visibilidade à necessidade de preservar este património.

Os museus e o Património Cultural Imaterial algumas considerações. Ana Carvalho Introdução Em linha com a UNESCO, também o International Council of Museums (ICOM) atribui competências aos museus na salvaguarda do PCI, tal como é patente em documentos de referência como a Carta de Shanghai (2002) e a Declaração de Seoul (2004). |86|

Em boa parte, a UNESCO ao formular recomendações neste domínio do património veio chamar a atenção que uma expressão do PCI é tão importante como um edifício histórico, procurando ultrapassar a ideia de menorização que, muitas vezes, a dita ―cultura popular‖ esteve sujeita no passado. Os governos têm a difícil tarefa de traduzir as orientações da UNESCO em boas práticas nos seus territórios, implementando políticas culturais em conformidade com estes pressupostos. O que significa também que, a par com o direito internacional, cabe a cada país desenvolver legislação específica. Este foi o caso português, que na senda da ratificação da Convenção 2003 fez publicar legislação referente ao PCI. Foi neste quadro que também seriam definidas as instituições de tutela deste património, sendo acometidas competências ao Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), contrariando o que parece ser uma tendência noutros países, onde as responsabilidades para com a formulação de políticas nesta área têm sido atribuídas às instituições que tutelam o património cultural29. Em consequência disso, esta decisão configura os museus portugueses como um dos principais actores na implementação da Convenção 2003. No Brasil foi criado um departamento para o PCI na estrutura do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(IPAHN), na Venezuela o responsável pelo I Censo del Patrimonio Cultural Venezolano (dedicado ao PCI) foi o Instituto del Patrimonio Cultural, em França é no seio da Direction de l’Architecture et du Patrimoine(DAPA) que se desenvolve o inventário nacional relativo ao PCI, através da Mission Ethnologie(integrada na estrutura da DAPA).


No caso espanhol, para citar apenas alguns exemplos, o projecto Atlas del Patrimonio Inmaterial de Andalucíaestá a ser implementado pelo Instituto Andaluz del Patrimonio Históricoe em Múrcia, o Catalogo de Bienes Inmateriales de Interes Historico de la CARMestá a cargo do Servicio de Patrimonio Histórico. Assim, reconhece-se à partida que o PCI é também um campo de actuação dos museus, mas entre as intenções e as práticas permanecem muitas dúvidas sobre como agir sobre este património tão complexo. Como podem os museus abordar e responsabilizar-se mais pelo PCI?

Contribuições da UNESCO para a protecção do Património Cultural Imaterial A par das preocupações vindas da antropologia em resgatar os vestígios de uma sociedade cujas práticas sociais e culturais tradicionais estão em vias de desaparecer e de um contexto político preocupado com os efeitos da globalização, surgem algumas movimentações relativamente à protecção do PCI. A UNESCO tem preconizado muitas das iniciativas que colocaram o tema do PCI na ordem do dia, alimentando a discussão em torno da sua salvaguarda, dando-lhe assim amplo reconhecimento internacional. Exemplo disso é o culminar de um longo caminho percorrido em prol da protecção deste património, primeiro com a Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Popular em 1989 e, mais recentemente, com a adopção da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial em 2003. Esta Convenção veio reconhecer a importância do PCI e completar, de certo modo, um espaço deixado pela Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural de 1972 (daqui em diante designada como Convenção 1972), um instrumento jurídico mais direccionado inicialmente para o património monumental. Da Carta de Veneza (1964) à actualidade deu-se um salto gigantesco relativamente ao entendimento do que é o património cultural. Mediante um processo evolutivo, foi-se incorporando novas dimensões ao património (arquitectura vernacular, industrial, património natural, entre outras), conferindo-lhe maior complexidade. Por outro lado, uma concepção antropológica do património cultural que engloba tanto as expressões imateriais (tais como o saber-fazer, a tradição oral, etc.) como os monumentos, sítios, bem como o contexto social e cultural nos quais se inscrevem, contribuiu, de certo modo, para se alcançar uma noção de património cada vez mais alargada, diversa e reveladora, muitas vezes, de relações de interdependência (Bouchenaki 2004: 7). Assim, as práticas sociais tradicionais e culturais foram ganhando um papel mais relevante no seio das políticas culturais. É neste contexto de alargamento do conceito de património cultural que se vai alicerçando o trabalho desenvolvido pela UNESCO. Por outro lado, tal como sugere Harriet Deacon (2004: 11), o entusiasmo crescente que se tem verificado com relação ao PCI está ligado também a uma tendência que se verifica sobretudo a partir dos finais do séc. XX, e que reflecte a necessidade de reavaliar os efeitos causados pela globalização, dominando neste sentido uma preocupação centrada na questão das identidades em contextos locais. Podemos dizer que as preocupações da UNESCO com relação ao

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património imaterial são anteriores a 1972, mas é a partir da Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural que algumas iniciativas vão ter lugar em prol da protecção do PCI, uma vez que esta Convenção não protegia este património. Neste seguimento, em 1973, a Bolívia apresentou junto da UNESCO uma proposta que consistia na adição de um protocolo à Convenção Universal sobre Direito de Autor para a protecção das tradições populares, mas que acabaria por não ser adoptada (Sherkin 2001). Na década de oitenta, mais precisamente em 1982, algumas medidas são tomadas no seio da UNESCO no que respeita à sua organização interna, nomeadamente a criação de um Committee of Experts on the Safeguarding of Folklore, a criação da Section for the Non-Physical Heritage e a implementação de um programa intitulado Study and Collection of Non-Physical Heritage (1984) (Sherkin 2001). Estas iniciativas permitem perceber a importância que o PCI vai assumindo no seio da UNESCO, uma área de actuação que se irá, pouco a pouco, autonomizando. No contexto da mudança de paradigma relativamente à forma de entender a cultura, merece aqui uma nota a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (MONDIACULT) realizada em 1982 no México. Segundo Janet Blake (2008: 48), a conferência de 1982 foi reveladora de uma visão de cultura cujo enquadramento estaria orientado para uma visão mais ―antropológica‖, como se poderá constatar no conceito de cultura formulado nas actas do encontro. Daqui resulta, naturalmente, um especial enfoque ao PCI. Pode-se situar esta conferência no contexto |88|

de um novo entendimento sobre cultura e desenvolvimento que se vai pouco a pouco forjando com aportes importantes para o reconhecimento do PCI. Com efeito, é sobre esta plataforma de enquadramento sobre a cultura que se vai alicerçando o trabalho da UNESCO. Entretanto, a ideia de formular um documento orientador para uma estratégia de salvaguarda do PCI vai ganhando peso no seio da UNESCO. Assim, após vários anos de trabalhos preparatórios, seria aprovada a Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Popular (daqui em diante designada como Recomendação 1989), no contexto da vigésima quinta Conferência geral da UNESCO, em Paris, a 15 de Novembro de 1989. Eis, pois, o primeiro documento normativo de enquadramento internacional dirigido à protecção do PCI, designado então como ―cultura tradicional popular‖31. A Recomendação 1989 passou a ser um marco importante para a prossecução e desenvolvimento de projectos em torno da salvaguarda do PCI, desencadeando um maior reconhecimento deste património e maior reflexão em torno de novas formas de identificar, preservar, proteger e promover o PCI. Em síntese, a Recomendação 1989 poderá ser entendida, de certo modo, como o prelúdio da Convenção 2003. A década de noventa será marcada por um discurso político preocupado com os efeitos negativos da globalização sobre as culturas. Receava-se que a cultura de massas despoletasse o desaparecimento de muitas tradições, correndo o risco deste legado não ser transmitido às gerações futuras. É neste quadro que se deve entender também o crescente interesse pela salvaguarda do PCI (Kurin 2004a: 70).


Assim, pode afirmar-se que os anos noventa serão sinónimo de uma maior atenção ao PCI, atendendo à actividade intensa que caracteriza este período. Entre as iniciativas levadas a cabo pela UNESCO destaca-se o programa Línguas em Perigo no Mundo (desde 1993), cujos projectos mais emblemáticos foram o UNESCO Red Book of Endangered languages e Atlas of the World’s Languages in Danger of Disappearing. Também em 1993 é lançado o programa Tesouros Humanos Vivos, que visa o reconhecimento oficial de pessoas detentoras de conhecimentos e saberes no domínio do PCI, com o objectivo de estimular a continuidade da transmissão destes saberes às gerações futuras num contexto de protecção e salvaguarda. O programa Proclamação das Obras-Primas do Património Oral e Imaterial da Humanidade (1998), inspirado, em grande medida, no mecanismo das Listas de Património Mundial, ainda que de forma simplificada e a uma escala mais reduzida, teve como grande finalidade incentivar governos, organizações não governamentais, comunidades, indivíduos, entre outros, a identificar, preservar, proteger e promover o seu património oral e imaterial, aqui entendido como um repositório da memória colectiva das comunidades (UNESCO, 1998). A distinção à escala internacional de elementos notáveis do PCI, incluindo espaços culturais, teve três edições (2001, 2003 e 20005), distinguindo noventa manifestações culturais. Este programa acabou por ser um campo de experimentação frutífero para a criação da futura Convenção, angariando muitos entusiastas. Tendo como pano de fundo a reflexão sobre o lugar da cultura na relação com o desenvolvimento económico, importa citar o relatório Our Creative Diversity da World Commission on Culture and Develpment (1996) pelas conclusões que apresenta em benefício de uma maior valorização do PCI. Entre outros aspectos, este relatório assinala a importância do PCI e reconhece que a Convenção de 1972 é inadequada para proteger este património, sugerindo a necessidade de se definirem outros instrumentos que garantam o seu reconhecimento. Assim, novos contextos sociais, políticos, culturais e económicos, a par com a experiência entretanto adquirida em matéria de salvaguarda do PCI, determinaram o reposicionamento da estratégia da UNESCO na década de noventa do séc. XX em direcção a um novo texto jurídico de protecção do PCI. Neste contexto, seria determinante a avaliação em torno da aplicabilidade da Recomendação de 1989, decorridos, pois, dez anos após a sua adopção. Deste modo, pode entender-se a conferência internacional organizada, em 1999, pela UNESCO em colaboração com o Smithsonian Institution como um momento charneira32. Deste encontro concluiu-se que a Recomendação 1989 não tinha alcançado os resultados esperados, sendo adoptada por A conferência “A Global Assessment of the 1989 Recommendation on the Safeguarding of Traditional Culture and Folklore: Local Empowerment and International Cooperation”tevelugarem Washington, entre 27 e 30 de Junho 1999. poucos países. Uma divulgação pouco eficaz terá sido uma das razões deste insucesso. Por outro lado, do ponto de vista conceptual, uma das críticas mais apontadas à Recomendação 1989 residia no facto de se centrar a importância da protecção do PCI na documentação e criação de arquivos, em detrimento de maior enfoque

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sobre os detentores destas práticas. No sentido de contrariar esta tendência foi defendido um maior equilíbrio entre a necessidade de documentar e a necessidade de proteger as expressões culturais, privilegiando-se o papel da protecção nas comunidades (UNESCO 2001b). Para além disso, alguns especialistas defenderam que o termo ―folclore‖ apresentava conotações pejorativas, sendo sugerido a escolha de outro termo. Estas e outras reflexões foram determinantes para que se avaliasse mais aprofundadamente a pertinência de um novo instrumento normativo de protecção para o PCI, despoletando um processo relativamente rápido para colocar em marcha o projecto da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial. Neste contexto importa sublinhar a adopção da Declaração Universal da Diversidade Cultural que em 2001 deu um impulso positivo para o reconhecimento da importância da diversidade cultural como Património da Humanidade, considerada tão necessária como a diversidade biológica e um elemento importante para o desenvolvimento. Sendo o PCI um pilar da diversidade cultural, a ideia de o promover e salvaguardar sairia reforçada através desta Declaração da UNESCO. O trabalho preparatório que se seguiu para definir a futura Convenção foi marcado por diversas reuniões de trabalho que definiram os principais temas e conteúdos da Convenção 2003. Um dos momentos particularmente relevantes neste processo e que importa também referir foi a terceira Mesa-redonda internacional de Ministros da Cultura, realizada em Istambul, na Turquia (16 e 17 Setembro 2002). Subordinada ao tema The Intangible Cultural Heritage: a Mirror of |90|

Cultural Diversity, deste encontro resultou a Declaração de Istambul, que sublinhava a importância do PCI como elemento fundamental para a construção da identidade cultural, sendo confirmado o apoio ao projecto da nova Convenção. A Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial foi finalmente adoptada a 17 de Outubro de 2003, em Paris, no âmbito da 32.ª Conferência geral da UNESCO33. Tendo rapidamente entrado em vigor a 20 de Abril de 2006, após a 33 A adopção da Convenção realizou-se com a participação de 120 estados-membros sem nenhum voto contra, sendo de registar apenas algumas abstenções, nomeadamente da Austrália, Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Suíça ratificação de trinta Estados-Partes34, pode dizer-se que este tem sido um processo bem sucedido. De certo modo, esta Convenção veio ajustar a situação que a Convenção de 1972 tinha causado, isto é, um evidente desequilíbrio geográfico de bens inscritos na lista de Património Mundial, situados sobretudo a norte, e cuja lista não sinalizava as expressões culturais localizadas mais a sul (Matssura 2004: 4). Mais concretamente, veio confirmar a necessidade de se criarem medidas de protecção e promoção distintas daquelas que são aplicadas para os monumentos, sítios ou paisagens culturais. O primeiro país a aprovar este instrumento foi a Argélia a 15 de Março de 2004. Da leitura deste documento, são objectivos centrais, em primeiro lugar, a salvaguarda do PCI, o respeito e reconhecimento do património das comunidades e indivíduos e a sensibilização


relativamente à sua importância a uma escala local, regional e internacional através da cooperação internacional. No rol de preocupações subjacentes a este documento estão as ameaças a que este património está sujeito, o risco de ser ignorado, os conflitos armados, o êxodo rural, movimentos migratórios, a sua fragilidade, a ausência de apoio, entre outras. Além dos aspectos mencionados, acrescem preocupações no que respeita à preservação da diversidade cultural. A globalização e os efeitos niveladores que provoca na cultura são, assim, entendidos como uma ameaça à diversidade cultural. De acordo com a Convenção 2003, entende-se por PCI ―as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural‖ (art. 2.º). A Convenção 2003 acrescenta que o PCI pode manifestar-se em vários domínios, muito embora, esta seja uma lista que não se pretende exaustiva e acabada: Tradições e expressões orais (inclui a língua como vector do PCI), Artes do espectáculo, Práticas sociais, rituais e eventos festivos, Conhecimentos e práticas relacionados com a natureza e o universo e Aptidões ligadas ao artesanato tradicional. A salvaguarda é um dos eixos centrais da acção proposta pela Convenção e compreende uma visão bastante alargada. Desde logo, a ―salvaguarda‖ é definida como o conjunto de ―medidas que visem assegurar a viabilidade do património cultural imaterial‖ (art. 2.º, 3). Neste conjunto de medidas estão incluídas actividades de ―identificação, documentação, pesquisa, preservação, protecção, promoção, valorização, transmissão, essencialmente através da educação formal e não formal, bem como a revitalização dos diferentes aspectos desse património‖ (art. 2.º, 3). Neste contexto, entende-se que a salvaguarda não se resume à preservação dos elementos do PCI em arquivos e colecções de museus. Sobre este aspecto, a Convenção demarca-se da sua predecessora, a Recomendação 1989, que focava a sua atenção na preservação através da documentação, responsabilizando os investigadores e as instituições nesta tarefa. A Convenção vem dar ênfase ao papel das instituições, mas principalmente confere um papel de suporte ou de facilitador aos praticantes das tradições e à promoção da criatividade (Bortolotto 2006: 2). Mas em boa verdade, esta não é uma tarefa fácil. Para Richard Kurin (2004c: 62) o envolvimento das comunidades poderá revelar-se complicado sob vários pontos de vista (sociológico e logístico), só podendo ser ultrapassado através da mediação, sensibilidade política e bom senso. À semelhança da Convenção 1972, esta Convenção inclui a criação de duas listas: a Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade (art. 16.º) e a Lista do Património Cultural Imaterial que necessita de uma Salvaguarda Urgente (art. 17.º). Estas listas pretendem, a par com a Convenção, alertar e sensibilizar para a importância da salvaguarda deste património e daqueles que o detêm e praticam, em particular as expressões culturais em risco de desaparecer.

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Portugal, Miguel Esteves Cardoso

Estou há que séculos para te escrever. A primeira vez que dei por ti foi quando dei pela tua falta. Tinha 19 anos e estava na Inglaterra. De repente, deixei de me sentir um homem do mundo e percebi, com tristeza, que era apenas mais um dos teus desesperados pretendentes. Apaixonaste-me sem que eu desse por isso. Deve ter

Até dás a impressão que tanto te faz seres odiado como amado

sido durante os meus primeiros 18 anos de vida, quando estava em Portugal e só queria sair de ti. Insinuaste-te. Não fui eu que te escolhi. Quando descobri que te amava, já era tarde de mais. Eu não queria ficar preso a ti; queria correr mundo. Passei a querer correr para ti - e foi para ti que corri, mal pude. Teria preferido chegar à conclusão que te amava por uma lenta acumulação de razões, emoções e vantagens. Mas foi ao contrário. Apaixonei-me de um dia para o outro, sem qualquer espécie de aviso, e desde esse dia, que remédio, lá fui acumulando, lentamente, as

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razões por que te amo, retirando-as uma a uma dentre todas as outras razões, para não te amar, ou não querer saber de ti. Custou-me justificar o meu amor por ti. És difícil. És muito bonito e és doce mas és pouco dado a retribuir o amor de quem te ama. Até dás a impressão que tanto te faz seres odiado como amado; que gostas de fingir que estás acima disso, olhando para os portugueses de agora como o céu olha para os passageiros nos aviões. Já que estava apaixonado, sem maneira de me livrar - nem sequer voltando para ti e vivendo contigo mais trinta anos - que remédio tinha eu senão começar a convencer-me que havia razões para te amar. Encontram-se sempre. E, a partir de certa altura, quando já são seis ou sete razões que se foram arranjando ao longo dos anos, deixamos de amaldiçoar este amor que nos prende a ti e, inevitavelmente, começamos a sentir-nos, muito estúpida e secretamente, vaidosos por te amarmos. Como se fôssemos nós que tivéssemos sido escolhidos. Digo nós mas falo por mim. Digo eu sabendo que não sou só eu, que nós somos muitos. Possivelmente todos. Tragicamente todos, um bocadinho. Se calhar estamos todos, de vez em quando, um bocadinho apaixonados por ti.


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Próximo número Casa das Histórias Paula Rego Dentro dum mundo prodigioso

Museu Nacional dos Coches

Espaços que realçam a beleza de uma coleção única

500 anos Torre de Belém

O símbolo de um país virado para o mar e para as descobertas


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