Revista Conecthos - edição 14

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14 REVISTA DO HOSPITAL DONA HELENA

FRONTEIRAS DA BIOÉTICA

Uma conversa com o espanhol José Carlos Abellán Salort sobre os novos desafios éticos, como as aplicações biotecnológicas, a engenharia genética e a inteligência artificial

4 UM OLHAR SOBRE O TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO COM HIPERATIVIDADE (TDAH) 8 “É importante promover a formação bioética dos cidadãos”, defende especialista 14 EDITANDO O GENOMA HUMANO: UMA NOVA ÉTICA PARA ESTE SÉCULO 16 As crianças e o ensino remoto 18 A COLUNA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA (SBB-SC)



NOSSA PALAVRA

A urgência de algumas heranças Carlos José Serapião

Coordenador do Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa (IDHEP)

Vivemos todos em um mesmo mundo. Expostos aos mesmos desafios: alterações climáticas, terrorismo, migrações, pobreza... quando instituições governamentais, por vezes fragilizadas, são incapazes de responder a todos esses problemas em permanente evolução e risco. Seguimos em busca de um mundo melhor, com um futuro seguro para as gerações vindouras, livres de todos esses abismos ambientais, sociais e econômicos, pelos quais o mundo se arrisca a ter que cruzar. Tais proposições desafiadoras se inscrevem nas iniciativas de desenvolvimento de todas as nações, distribuídas pela inteligência artificial, cobertura de enfermidades, passando pela segurança alimentar e a proteção de ecossistemas naturais, entre tantas outras. A crise de identidade que perpassa a sociedade, a pane nas iniciativas da educação nacional, a fragilidade assolando nossas famílias, a tensão sofrida todos os dias, neste painel de múltiplas facetas cujas consequências e remédios, não são exclusivamente de ordem tecnológica. Mais grave ainda: como verdadeira tragédia que escapa de nossas estatísticas, ameaçando privar nossos infantes da cultura

que recebemos, não só retirando suas chances de sucesso profissional, mas também eliminando a essencial capacidade de se descobrir, reconhecer e se construir. É importante lembrar que, em parcas linhas, sejam infinitamente agradecidos, pais, professores, educadores de ontem, hoje e amanhã, engajados nesta magnífica e, ao mesmo tempo, difícil missão de transmitir aos jovens a cultura da qual são os legítimos herdeiros. Este número da Conecthos vai nos conduzir por este labiríntico caminho de tentar, não somente compreender, como buscar inspiração neutralizadora dos múltiplos perigos e sofrimentos nela desenhados por nossos competentes colaboradores. Estaremos permanentemente abertos e agradecidos para iniciativas de colaboração dos nossos leitores, seguramente conquistados pelo mesmo ímpeto de participar deste desafiante momento pelo qual passa a humanidade.

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TDAH

Hiperatividade na infância pode c

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ocê certamente conhece aquela criança que não para um minuto, que não dá sossego a ninguém, impulsiva a extremos, que está sempre em franca e intensa atividade – e, principalmente, com pouca capacidade de atenção e concentração, nas demandas do dia a dia. Isso pode ser apenas uma característica da criança, mas também pode ser uma doença: o Transtorno de Hiperatividade e Déficit de Atenção. Considerado uma patologia do neurodesenvolvimento, o TDAH começa na infância e pode se manter sintomática na vida adulta, também. Caracteriza-se por um conjunto persistente de sintomas de desatenção, hiperatividade e/ou impulsividade que geram prejuízos significativos em diversas áreas. Sua origem e etiologia ainda não é inteiramente conhecida, apesar dos esforços da ciência médica em deslindar essa equação – que vem sendo estudada do ponto de vista clínico-fenomenológico-descritivo, neuropsicológico, bioquímico, genético, epigenético (interação gene-ambiente). “É um dos transtornos psiquiátricos mais frequentes na infância e adolescência, atingindo 5,29% da população dessa faixa etária, no mundo todo”, diz a psiquiatra Mônia Bresolin, psiquiatra que integra o corpo clínico do Hospital Dona Helena, sublinhando que o fator genético é a causa mais frequente, chegando a 80% dos casos. Entre os chamados fatores de risco, estão exposição intrauterina a tabaco e outras substâncias, estresse materno e obesidade materna (fator de risco associado ao TDAH, mas que também pode ser explicado, pelo menos em parte, por fatores genéticos), fatores ambientais como o estilo de vida da família, exposição a corantes alimentícios, exposição a pesticidas (organofosforados) e poluentes ambientais. A edição mais recente do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) define o TDAH como um transtorno do neurodesenvolvimento. “Temos um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade presente antes dos 12 anos de idade. E vários desses sintomas estão em dois ou mais ambientes frequentados pela pessoa, bem como nas atividades do dia a dia, com amigos e familiares”, aponta.

Doença afeta a sociabilidade “Há evidências de que os sintomas interferem no funcionamento social, acadêmico e profissional, reduzindo sua qualidade”, alerta Mônia Bresolin. A médica observa que os sintomas, ainda que difusos, não estão incluídos nas definições de outros transtornos mentais, como depressão, ansiedade, intoxicação ou abstinência de drogas, em geral. O TDAH é entendido como transtorno crônico, que se inicia na infância, podendo persistir até a idade adulta. No início da adolescência, segundo a médica, há uma tendência à diminuição da frequência dos sintomas de hiperativida-


Um dos principais problemas do déficit de atenção, na vida adulta, é o isolamento social

continuar vida afora de/impulsividade – mas os sintomas de desatenção tendem a se manter. Já na transição para a idade adulta, cerca de um terço dos portadores apresentam remissão de sintomas, não preenchendo mais os critérios diagnósticos. Ao longo da vida, o TDAH estabelece aumento de risco para outros transtornos psiquiátricos (depressão, ansiedade, uso de substâncias) e está associado a prejuízos substanciais para a pessoa, como acidentes, piores desfechos de desempenho acadêmico, maior número de trocas de emprego e maior ocorrência de problemas em relacionamentos sociais. E os casos com sintomas mais graves na infância e adolescência têm maior risco de persistir na idade adulta. O diagnóstico do transtorno de déficit de atenção feito por profissional de saúde plenamente preparado é importantíssimo, sublinha Mônia Bresolin. A dinâmica das mudanças e transformações durante o desenvolvimento da pessoa, especialmente na infância e adolescência, exige um olhar atento e qualificado, de um neurologista e/ou psiquiatra. “A avaliação diagnóstica deve sempre levar em conta a etapa do desenvolvimento em que se encontra o indivíduo. Em crianças menores, excesso de barulho e muita energia física podem ser normais, na ausência de outros sintomas associados e persistentes”, explica, alertando que os sintomas não costumam aparecer em um único ambiente frequentado pela criança – mas em praticamente todos. Um dos primeiros pontos a ser observados, em relação ao tratamento, é que, havendo predomínio de déficit de funções executivas (como falta de organização, planejamento, dificuldade para iniciar tarefas) a primeira linha de tratamento seria o início de Terapia Cognitiva-Comportamental, concomitante com medicação. “Pacientes com transtorno por uso de substância precisam ser muito bem acompanhados”, alerta Mônia.

Neurologista destaca a importância do diagnóstico correto Afinal, as doenças psiquiátricas têm base neurológica? “É uma questão histórica e que, em muitas situações, não está totalmente elucidada”, reconhece Felipe Ibiapina dos Reis, neurologista do HDH, ao explicar que os transtornos psiquiátricos podem, sim, ser manifestações de doenças neurológicas orgânicas. “Quando a avaliação neurológica é feita e se descartam quadros orgânicos neurológicos, daí se configura a doença psiquiátrica, em si, no escopo da psiquiatria, principalmente. Mas é uma discussão que não termina até os dias atuais, e muito se advoga que alterações comportamentais, de humor e de personalidade também tenham fundo orgânico neurológico”, acrescenta, especificando que, em termos neurobiológicos, há uma espécie de desbalanço de neurotransmissores em áreas específicas neurais, principalmente em áreas do córtex frontal e do córtex pré-frontal, que são relacionadas ao comportamento, ao raciocínio crítico, à impulsividade e à associação emocional de vários conceitos construídos ao longo do desenvolvimento do ser humano. Para o médico, a avaliação neurológica é imprescindível no diagnóstico de TDAH, como no de qualquer doença, principalmente as que envolvem atenção, avaliação clínica completa com anamnese, exame físico e neurológico e exames complementares para descartar outras causas que podem simular a doença. Além disso, existem critérios clínicos bem definidos, e


Neurologista Felipe Ibiapina: problemas psiquiátricos podem ter origem em doença neurológica

escalas que podem ser aplicadas na avaliação ambulatorial para firmar ou reforçar a hipótese de diagnóstico de TDAH “Isso é imprescindível para o adequado manejo do paciente, já que é um sintoma muitas vezes subjetivo, e pode ser confundido com várias outras patologias neurológicas e psiquiátricas, como depressão e ansiedade”, adverte. Ele lembra que muitas doenças neurológicas, principalmente aquelas que têm natureza crônica, degenerativa, com quadros demenciais e neuromusculares, com degeneração das funções motoras, por exemplo, estão frequentemente associadas a uma piora do humor dos pacientes. Ansiedade e depressão também são muito comuns nesse contexto e o auxílio da psiquiatria é imprescindível para a adequada solução dos quadros. “Outras patologias bastante frequentes, como enxaqueca, cefaleia crônica diária, cefaleia tensional, fibromialgia, que são tratadas rotineiramente pelo neurologista, frequentemente estão associadas ou têm como doença de base a depressão e ansiedade. Portanto, o tratamento em conjunto com a psiquiatria é imprescindível”, defende Felipe, ao destacar os benefícios de as duas áreas conversarem, entre si: “Boa parte dos casos demandam uma atenção multidisciplinar, não só do médico, mas de uma equipe multiprofissional, inclusive com psicopedagoga, neuropsicólogo e psicólogo. Os transtornos psiquiátricos e neurológicos caminham juntos em muitas situações, e quanto mais esse diálogo acontecer entre as diversas áreas, melhor para o paciente e mais sucesso no tratamento”. Para distinguir uma doença neurológica de uma psiquiátrica é necessário realizar uma avaliação clínica completa, uma boa anamnese, uma boa conversa, levantando dados clínicos relevantes, segundo o neurologista: “São fundamentais exames físicos, geral e neurológico, completos, associados à realização de exames complementares, desde exames de imagem e mesmo de exames laboratoriais de sangue e exames eletrofisiológicos que, conforme o caso, são indicados pelo neurologista”, complementa.

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Fatores que podem estar associados ao TDAH Ambientais • Piora no padrão de sono • Conflitos familiares • Separação dos pais • Violência doméstica • Abuso ou negligência • Exclusão ou bullying • Ajustamento a outras situações transitórias (chegada de um novo membro da família, por exemplo) Médicos • Déficit auditivo • Déficit visual • Doença neurológica • Doença endocrinológica Psiquiátricos • Transtorno do espectro autista • Depressão • Transtorno de ansiedade • Transtorno Bipolar • Transtorno de conduta • Transtorno de aprendizagem • Transtorno por uso de substâncias • Transtornos do sono


Sempre fui muito desastrada, trombava em tudo, não conseguia colocar leite em um copo sem derramar”

Depoimento: escritora, 32 anos

“Não fazia ideia do que era TDAH” Nunca fui a um neurologista. Na época, não havia, na minha cidade. Meu diagnóstico foi dado por duas profissionais de psicologia: a minha psicopedagoga, que frequentei dos 15 até os 20 anos, e outra psicóloga que consultei com 22 anos. Fui a um psiquiatra, que falou que eu era inteligente demais para ter TDAH aos 17, quase 18, e nem quis fazer o teste comigo. Depois, com 22, fui de novo e o cara queria investigar mais, mas o tempo todo queria me tacar remédios variados: de TDAH, de ansiedade, de depressão. Eu casquei fora, mas ele presumia o transtorno de atenção mesmo, porque tenho sintomas sensoriais também. Cheguei à terapia, na adolescência, sem fazer ideia do que era TDAH, mas buscando ajuda para alguns problemas relacionados ao fato de que eu não conseguia me organizar, apesar de sempre sonhar acordada pensando no futuro. Tinha dificuldade de me planejar a curto, médio e longo prazo, perdia muitas coisas, procrastinava, estava sempre inquieta, mudando de ideia e reagindo a tudo com irritação. A gente vai crescendo e criando mecanismos para tentar se encaixar, despistar os sintomas. Muitas vezes, quem está de fora não vê o que acontece aqui dentro. O medo de ser visto como fraude, por exemplo, causa ansiedade; o de não cumprir “promessas”, também, sendo que nesse segundo caso é comum que a gente não consiga manter a palavra, porque a gente quer recompensar o outro por conviver conosco, e assim acaba prometendo coisas impossíveis, principalmente por não conseguir ter uma boa visão de planejamento. O TDAH afeta minha autoestima, eu tendo a duvidar da minha capacidade de fazer as coisas e lido mal com frustrações comuns, então, para amenizar, é preciso buscar tratamento. Fazer esportes, tentar construir uma rotina e, muitas vezes, contar com ajuda de outras pessoas e de post its, quadros de avisos e afins ajuda bastante. Serve como um bom complemento. Sempre fui muito desastrada, trombava em tudo, não conseguia colocar leite em um copo sem derramar, e coisas assim. Fora isso, que tem a ver com distração, destaco que sempre tive problemas com texturas, em roupa e algumas comidas. Nada extremo, mas bem específico. Fora isso, reajo de maneira mais exagerada que outras pessoas a barulhos como de construção e até música alta. Fico bem

perdidinha e irritada, parece que perco um pouco a noção até de onde estou. O TDAH é cercado de mitos, por isso é importante buscar profissionais que entendem de verdade do assunto e que estão constantemente estudando. Dois mitos afetam os diagnósticos: o da genialidade e da falta de inteligência, amparado principalmente por dificuldades de aprendizado e das notas que costumamos ter. TDAHs têm níveis variados de inteligência, mas a percepção do TDAH muitas vezes é viciada porque a sociedade responde às dificuldades e até às habilidades que temos. Sempre fui leitora e curiosa, por isso, na adolescência conhecia muita coisa, inclusive sobre literatura e até filosofia. Ainda que eu recebesse notas péssimas em algumas matérias, sofresse com o planejamento de tarefas e tivesse dificuldade de ficar atenta e presente na sala de aula, o fato de eu ser assim, tão interessada nessas coisas, atrapalhou a minha busca por ajuda. Já tive prejuízos sociais e, principalmente, profissionais por ser TDAH sem tratamento, mas não considero que sofri algum preconceito a partir do diagnóstico, embora não duvide que exista, porque o TDAH sofre muito por não se encaixar na forma que o mundo é estruturado. Meus pais compraram a ideia de que se eu sou inteligente, eu não posso ser TDAH, e ainda hoje ignoram o diagnóstico e tratam todos os meus sintomas como defeitos que eu poderia, só na força de vontade, mudar.

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José Carlos Abellán Salort

Doutor em Direito, mestre em Filosofia e especialista em Bioética. Professor de Bioética e Direito da Universidade Rey Juan Carlos (Espanha). Membro do Grupo de Pesquisa GBE em Bioestética e Bioética. Membro honorário da SBB (Sociedade Brasileira de Bioética). Editor associado da Revista Conecthos

ENTREVISTA A “Bio-estética” e outras fronteiras da Bioética

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pesquisador espanhol José Carlos Abellán Salort, um dos principais nomes da Bioética no mundo, esteve em Joinville, em 2014, para participar do Simpósio Catarinense de Bioética, quando proferiu palestra e liderou as reflexões sobre bioética, entre a vulnerabilidade e a dignidade. Entrevistado com exclusividade para a Revista Conecthos pelo médico e bioeticista Carlos Serapião, criador e coordenador do Simpósio Catarinense de Bioética, Abellán aborda os novos desafios da Bioética contemporânea, com ênfase na dimensão estética – as conexões entre a beleza e o bem de uma boa ação. “Os grandes desafios da Bioética hoje podem estar resumidos em três aspectos ou linhas principais: a superação das limitações impostas pelo relativismo ético dominante, a formação em Bioética e a honestidade e o rigor na educação e na comunicação, que evitem as consequências da manipulação da linguagem na Bioética e, em terceiro lugar, os riscos da neoeugenia”. Acompanhe a entrevista nas próximas páginas.

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Há trinta anos, o sr. é estudante de Bioética e suas relações com a Filosofia, a Antropologia e o Direito e, há três anos, dirigiu sua pesquisa para além da Bioética aplicada, da saúde ou “clínica”, aos fundamentos da Bioética e, especificamente, à relação sugestiva do bioético com o belo. Para onde caminham essas conexões do bem com o belo? Há anos, participo de um grupo de pesquisa interdisciplinar, interuniversitário e internacional denominado Grupo de Estudos 1 em Bioética e Bioestética (GBE) , no qual, junto com professores pesquisadores de alto prestígio, procuro colaborar na pesquisa sobre os fundamentos estéticos do ato bioético, ou seja, sobre as profundas e altamente sugestivas conexões entre o bem de uma boa ação humana e a beleza, dessa ação entre a justiça e a honestidade do ato bioético e sua dimensão estética. É um trabalho ao qual poderíamos chamar de “meta-bioética” ou Bioética fundamental, que considero muito necessário nesta época em que a ciência da Bioética se encontra. Quais são as novas “fronteiras” ou desafios atuais da Bioética, na sua opinião? A Bioética, como ciência interdisciplinar que busca iluminar os princípios morais racionais que devem nortear nossas ações no campo da atividade científico-sanitária, vida e saúde, tem enfocado, praticamente desde seu nascimento, no último quarto do

Como a história da humanidade já mostrou, o consenso majoritário não conduz necessária e automaticamente nem à verdade, nem ao bom, nem ao justo”


É muito importante promover a formação em bioética dos cidadãos desde as primeiras etapas da educação, especialmente de professores, educadores, profissionais de saúde, cientistas e pesquisadores , advogados e políticos” século passado, preferencialmente nos aspectos práticos destes, em temas concretos (ambiente, engenharia genética, bioética clínica ou a relação com a saúde, ética no início e no fim da vida etc.). Atualmente, enfrenta os novos desafios éticos apresentados pelas novas aplicações biotecnológicas, como as derivadas da engenharia e terapias genéticas, da inteligência artificial, da justiça perante as alterações climáticas ou das novas neurotecnologias. Porém, isso tem sido feito, geralmente, sem uma base clara de ação antropológica e filosófica. Desse modo, tentando aplicar alguns princípios bioéticos a casos específicos, sem fornecer uma razão suficiente para o “porquê” dos fundamentos ou sua hierarquia na aplicação como critérios orientadores “prima facie”, renunciando a qualquer base objetiva. Isso tem facilitado a extensão de um relativismo prático e um casuísmo que não assegurava adequadamente que as decisões de médicos e pesquisadores, as políticas e a legislação hoje produzidas, mesmo aquelas produzidas segundo procedimentos democráticos, sejam verdadeiramente coerentes com a verdade sobre o ser humano e promovam o seu bem, promovam a proteção da vida e da dignidade da pessoa e o progresso científico e biotecnológico que garanta, por sua vez, o autêntico progresso humano. No entanto, muitas vezes, lamentamos que se legalizem e sejam promovidas práticas investigativas e processos con-

Novas fronteiras da Bioética desafiadas a superar limitações do relativismo ético dominante cretos, que promovem reais e fundamentais danos à pessoa e à sociedade e, por isso, sirvam a interesses ideológicos e interesses políticos ou econômicos. Considero que as “fronteiras” ou os grandes desafios da Bioética hoje podem estar resumidos em três aspectos ou linhas principais: a superação das limitações impostas pelo relativismo ético dominante; a formação em Bioética e a honestidade e o rigor na educação e na comunicação, que evitem as consequências da manipulação da linguagem na Bioética e, em terceiro lugar, os riscos da neoeugenia. Como enfrentar a Bioética do Relativismo Pós-Moderno? Em primeiro lugar, filosoficamente falando, creio que é necessário superar o relativismo bioético pós-moderno dominante, que, tendo desistido de encontrar a verdade e qualquer ele-

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“Limitada em sua racionalidade, a Bioética se conforma em tentar dar respostas éticas específicas ao progresso das ciências biomédicas e do desenvolvimento” mento objetivo na noção de bem ou do que é ético, justo ou correto, tem separado a ética da moralidade e de qualquer moralidade objetiva. Desistiu de compreender o ser humano de forma holística, em seu sentido integral, como um ser único e irrepetível em uma unidade fascinante, mas complexa, do físico-biológico-mental-psíquico e do espiritual. E, consequentemente, limitou a Bioética “possível”, em sociedades abertas como a nossa, à do “consenso democrático”, à “Bioética mínima” ou à Bioética norte-americana de “princípios” prima facie, empobrecendo a Bioética em geral e deixando-a, em última análise , incapaz de resolver na justiça e na verdade muitos problemas concretos que se apresentam diariamente em centros de saúde, na investigação biomédica e em órgãos legislativos e judiciais. Limitada em sua racionalidade, a Bioética se conforma com tentar dar respostas éticas específicas ao progresso das ciências biomédicas e do desenvolvimento tecnológico, mas com base no consenso possibilista, ou, pior, costuma ter renunciado a fazer um debate racional corresponder à pós-verdade e ao bem pessoal e social.

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Acredito que, muitas vezes, escapa-se do debate crítico da sociedade sobre as questões bioéticas e se confia na avaliação da bondade ou da justiça das ações da Bioética para o legislador, o bio-direito, o que considero um grave equívoco. Em suma, renunciou-se a alcançar respostas ou soluções justas, baseadas no conhecimento da verdade sobre a pessoa humana e sua dignidade, persuadidos de que o tolerante e o democrático em uma sociedade pós-metafísica (da “pós-verdade”) e muito pluralista é, simplesmente, chegar a um consenso entre “cursos de ação” possíveis, os mais desejáveis ​​ou menos prejudiciais porque a verdade e o bem, segundo a filosofia e as cosmovisões dominantes, não existiriam ou nem valeria a pena tentar alcançá-las. Como a história da humanidade já mostrou que o consenso majoritário não conduz necessária e automaticamente nem à verdade, nem ao bom, nem ao justo, assumir esta profunda mutilação ideológica da racionalidade humana e da ética empobrece a Bioética e limita significativamente a sua utilidade prática de serviço à sociedade e ao bem da pessoa. Simultaneamente a essa limitação apriorística da racionalidade bioética, produziu outro fenômeno: quando a Bioética, desde os finais do século passado, apoiou-se geralmente e quase exclusivamente na aplicação dos princípios “canônicos” do principialismo norte-americano (com os famosos princípios da Beneficência-Não-maleficência, Autonomia e Justiça), o que ocorreu foi uma hipertrofia do princípio da autonomia, uma expansão desproporcional e injusta daquela dimensão da liberdade individual, em detrimento dos deveres de beneficência que são prioridade nas profissões da saúde, por exemplo, e também em detrimento dos critérios de justiça


Quando a medicina e a biotecnologia são regidas por critérios de aperfeiçoamento eugênico, não só os objetivos e a ética das ciências biomédicas podem ser violados, mas também os mais elementares padrões de respeito aos direitos humanos” e dos direitos da comunidade, do meio ambiente etc., que pertencem à essência do bem comum. O principialismo americano, trinta anos após sua formulação, bem como versões europeias consensualistas, tem demonstrado ser um instrumento com capacidades limitadas para ajudar a resolver problemas, dilemas e conflitos que surgem diariamente na prática clínica e científica biomédica. Acredito que a melhor alternativa para isso está na Bioética personalista, que, em suas diversas versões e com seus próprios princípios, propõe uma Bioética substantiva, não meramente procedimental, substantiva e normativa, baseada em uma compreensão clara e racional do que é a pessoa humana, sua dignidade e seus direitos universais e inalienáveis. O que o senhor chama de manipulação da linguagem em Bioética? Trata-se do segundo desafio ou fronteira e penso que representa a batalha conceitual e, sobretudo, da linguagem na Bioética, porque assistimos a inúmeros exercícios sérios de manipulação de palavras, termos e conceitos que alguns conseguem instalar entre os principais atores de atividades com relevância bioética (profissionais de saúde, cientistas, políticos, advogados etc.), mas também na opinião pública em geral, de modo que grande parte da sociedade, ainda com muito menos formação nestas matérias e com menor capacidade crítica, acaba assumindo acriticamente a falsa legitimidade bioética do muitos comportamentos.

Exemplos recentes e paradigmáticos desses exercícios de manipulação da linguagem são a invenção e extensão do uso do termo falacioso “pré-embrião”, ou também incorreto, por ser errôneo e equívoco, da palavra eutanásia para descrever comportamentos médicos no final da vida humana que, não são propriamente atos de eutanásia, a fim de confundir na mente dos cidadãos qualquer morte “digna “ – que todos desejam para qualquer pessoa – com o assassinato e ato injusto de eutanásia ou a assistência ao suicídio. Igualar a morte digna com a eutanásia é um erro grosseiro e dramático, que facilita a autorização legal de condutas aberrantes do ponto de vista da ética e da deontologia das profissões da saúde, como o ato da eutanásia ou o auxílio técnico-médico ao suicídio, como infelizmente só acontece no meu país, a Espanha, neste ano de 2021. Esse aspecto manipulador culmina com a invenção, ou seja, a criação sem fundamento, de certos “direitos” individuais, que na verdade são apenas reivindicações ou desejos individuais, carentes de realidade, verdade e legitimidade, direitos que não existem, mas que são introduzidos nas leis, como o direito de que meu médico acabe com minha vida na eutanásia, o direito à criança (na reprodução humana assistida) ou o direito ao aborto (eufemística e falsamente denominado “interrupção voluntária da gravidez”) como um dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Por isso, é muito importante promover a formação em Bioética dos cidadãos desde as primeiras etapas da educação, especialmente de professores, educadores, profissionais de saúde, cientistas e pesquisadores, advogados e políticos. Mas também exigir o maior rigor e a máxima honestidade na comunicação dos conteúdos bioéticos, tanto pelos cientistas como pelos divulgadores e pela mídia. O risco eugenético Por fim, considero que o terceiro desafio que a sociedade deve enfrentar com o auxílio da reflexão bioética é o de se opor resolutamente às novas formas de eugenia, o que chamamos de eugenia moderna ou “ neoeugenia”. A eugenia é uma ideologia que existe desde os tempos antigos, mas é popularizada e às vezes inspirou a ciência e a política no Ocidente, desde o final do século 18 até tempos muito recentes,

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“Excluir, rejeitar e até eliminar pessoas por sua raça, grau de desenvolvimento biológico, saúde, pobreza, ou qualquer outra qualidade, é eugenia”

tanto em regimes políticos totalitários quanto em Estados democráticos. O eugenismo ou a favor da eugenia defende o melhor progresso da sociedade por meio da intervenção na população em geral ou em grupos específicos, para que as futuras gerações tenham melhores condições genéticas, de saúde ou intelectuais, procurando evitar a transmissão à progênie do que se considera indesejáveis, como doenças, defeitos ou deficiências (eugenia negativa), e/ou promover a perpetuação do que é considerado uma melhoria ou algo desejável em todos os momentos (eugenia positiva). Na prática, a filosofia historicamente eugênica se materializou em várias formas de discriminação injusta entre seres humanos com base em suas condições genéticas e físicas, capacidades intelectuais etc. Observe, como exemplo de práticas eugênicas, a proibição secular matrimonial ou interracial de crianças e miscigenação em partes da Europa e América, a severidade das experimentações selvagens nos EUA e na Europa e no primeiro terço do século 20, atividade genocida de extermínio do regime nazista na Alemanha ou as ainda recentes políticas de esterilização compulsória

Contemplar a beleza da dimensão estética da vida nos ajuda a respeitá-la como um valor em si” 12

e massiva de deficientes ou de minorias étnicas, cujos genes fossem considerados indesejáveis. Excluir, rejeitar e até eliminar pessoas por sua raça, grau de desenvolvimento biológico, saúde, pobreza ou qualquer outra qualidade é eugenia, algo claramente contrário ao humanismo e à ética mais básica, denunciado como rejeitável pelo personalismo e repetidamente desqualificado como nefasto, uma “cultura de “descartar”, pelo [2] Papa Francisco . Supõe, em nosso contexto atual, assumir a perspectiva utilitária por meio da qual as ciências biomédicas e a biotecnologia devam aplicar seus conhecimentos desenvolvidos e tecnologias para alcançar progressivamente níveis de melhoramento genético ou perfeição da saúde individual e coletiva, mas eticamente justificando qualquer prática que sirva de meio para esse fim. Na extremidade mais radical desse objetivo eugenista estariam as ideologias contemporâneas, como o pós-humanismo e o transumanismo . Um critério eugênico é aplicado, por exemplo, na eliminação seletiva de gametas e embriões humanos, ou na escolha utilitária do sexo do embrião a ser transferido em técnicas de re-


Não se deve descartar que a estética tem um papel moral muito mais importante do que podemos imaginar, também no campo da bioética” produção humana assistida, no aborto eugênico;,em neuro-aprimoramento, na engenharia e terapia genética ou na proposta de aplicação da eutanásia a pessoas com deficiência. Quando a medicina e a biotecnologia são regidas por critérios de aperfeiçoamento eugênico, não só os objetivos e a ética das ciências biomédicas podem ser violados, mas também os mais elementares padrões de respeito aos direitos humanos, como a igual dignidade das pessoas, e isso me parece algo muito sério que devemos detectar e tentar evitar na Bioética e no biodireito. O que é “ bioestética “? Ainda na fronteira da reflexão bioética, quisemos chamar de bioestética aquela parte da Bioética fundamental que busca a contribuição que a valorização da beleza, especialmente da beleza da vida, pode dar à bioética. Acreditamos que a vida tem, inevitavelmente, uma dimensão estética. Contemplar essa beleza nos ajuda a respeitar a vida como um valor em si, sem reduzi-la a meros interesses instrumentais ou dominações. Mas a beleza da vida não se dá de forma abstrata, mas em seres vivos concretos e muito especialmente naqueles que possuem a maior densidade ontológica: as pessoas. Ocorre em seus atos de natureza bioética, como por exemplo, ocorre no campo da saúde humana, no cuidado e na atenção que um profissional de saúde oferece ao seu paciente ou pode ocorrer no fato de morrer, quando detectamos beleza em uma morte verdadeiramente digna.

Com base nisso, entendemos que é necessário que a Bioética leve mais em conta a dimensão estética da vida pessoal. A bioestética é, no máximo, profunda nos atos humanos em relação ao olhar sobre a vida, que conectam o verum, o bonum e o pulchrum. Como um dos membros de nosso grupo de pesquisa em bioestética, o prestigioso bioético Roberto Andorno escreveu: “Se for verdade, como diz um personagem [3 de Dostoiévski, que “a beleza salvará o mundo” ] , não se deve descartar que a estética tem um papel moral muito mais importante do que podemos imaginar, também no campo da Bioética. Não porque a beleza seja significativa em si mesma, mas porque encontra todo o seu sentido no mistério que evoca e no absoluto de que é reflexo. Em outras palavras, a beleza é a chave que abre as portas para horizontes do sentido e da eternidade que nos predispõem a fazer o bem. É verdade que esses horizontes de infinito não nos são impostos. Em todos os momentos, somos livres para aderir a eles ou rejeitá-los. Mais uma vez, é a boa vontade que, em última análise, depen[4] de do caminho que seguiremos.

Mais recentes publicações de José Carlos Abellán sobre Bioética e Bioestética : • Capítulo de livro: “ Os fundamentos ontológicos e éticos da relação entre bioética e estética”, in: Barraca M., J., Garcia G. , PARA.; Zárate C., A. (coordenadores): Bioestética. Reflexões sobre a fundação, pp. 53-78. (Editorial Neogranadina, Bogotá, 2020). • Capítulo de livro: “Da morte digna à bela morte”, in: Abellán S., JC; Barraca M., J. (coordenadore.): Bioestética e Saúde Humana, Editorial Universidad Francisco de Vitoria, Madri, 2021. [1] GBE (“Grupo de Pesquisa em Bioética e Estética”), liderado pelo professor Javier Barraca Mairal (professor URJC), promovido pela “Rede Internacional de Bioética, Estética, Tecnologia e Biodireito”, criada por uma Cátedra Unesco de Bioética e Direitos Humanos (Roma. Itália) e a Universidade Militar de Nueva Granada (Bogotá, Colômbia) por acordo de 31 de julho de 2013. Web: http://www.unescobiochair.org/bioethics-art-group-of -study/ [2] Francisco, Santo Padre: D DDRESS Corpo Diplomático de Ano Novo credenciado no Vaticano (12 de janeiro de 2015). Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/ es/speeches/2015/janeiro/documentos/papa-francesco_20150112_corpo-diplomatico.html [3] Dostoievski, Fiodor: O Idiota, parte III, Capítulo V. [4] Andorno, R oberto: Prólogo da obra: AA.VV. (2020): “Bioestética . Reflexões sobre a fundação”. Editorial Neogranadina, Bogotá, (Colômbia), p. 5

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Diálogos Carlos J. Serapião

Coordenador do Instituto Dona Helena de Ensino e Pesquisa (IDHEP)

Editando o genoma humano: ciência e ética

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ma nova ética para este século envolve responsabilidade para todas as intervenções na vida humana e no ambiente. No que respeita à genética e reprodução, no passado bastava atender à injunção que proclamava “crescei e multiplicai”. Agora, congelamento de óvulos, barriga de aluguel, embriões congelados, transplantes de ovário, clones, medicina regenerativa, manipulação das células germinativas etc., todos demandando um julgamento moral. Por edição genômica, entende-se um tipo de engenharia genética em que um componente é inserido, eliminado ou substituído, no genoma de um organismo, utilizando-se, para este fim, de enzimas de tipo nucleases (também conhecidas como “tesouras moleculares”). A regra de ouro dessa investigação biológica repousa em pelo menos três aspectos importantes do ponto de vista ético: material biológico idôneo, técnica adequada e instrumental adequado. Desde 1978, essas intervenções genéticas têm contemplado cientistas com o Prêmio Nobel, nesta área específica do conhecimento. Em 2020, Jenniffer A. Doudna e Emanuelle Charpentier foram distinguidas com esse prêmio, descrevendo um mecanismo de defesa immune usado por

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bactérias desde milhares de milhões de anos. Antes de ensaiar uma discussão sobre as preocupações éticas e a moralidade desta revolucionária tecnologia, é necessário considerar que cientistas atentos ao ritmo quase alucinante desta nova conquista biotecnológica possam ser conduzidos a um perigoso abandono dos fundamentos éticos, dos riscos sociais, da segurança, chegando a nos permitir imaginar até a possível intervenção em genes embrionários, alcançando o aprimoramento genético e, quem sabe, reeditando o perene medo da eugenia, por meio da criação de bebês “personalizados”.(**) Os que habitam o mundo da ciência reconhecem que o chamado progresso científico “não para”, num verdadeiro imperativo tecnológico (***) , sendo oportuno lembrar que “quando não podíamos fazer, era muito fácil dizer que não deveríamos fazê-lo. (****). Por outro lado, “ só porque nós podemos fazer uma coisa, não significa que devamos fazê-la”. O desenvolvimento da técnica CRISPR-Cas9, para a edição do genoma, reviveu a atualidade da terapia gênica, representada pela administração deliberada de material genético em um paciente humano com a intenção de corrigir um defeito genético específico, não incluindo a estimulação genética de características como as do comportamento, da inteligência ou do aspecto físico. As normas éticas e regimes regulatórios já desenvolvidos para a terapia gênica, respeitando critérios de ensaios clínicos à semelhança daqueles utilizados em outras formas de terapia médica, teriam por princípio minimizar os riscos ao lado de razoáveis benefícios potenciais, o que configura obediência aos ditames da Bioética. O relatório publicado em 2017 editado pela “National Academies of Sciences, Engineering and Medicine” recomendou que a alteração do DNA em células germinativas deveria ser usada para curar doenças genéticas em gerações futuras, e não para aprimorar a saúde ou as habilidades das pessoas. A Conferência Asilomar sobre DNA Recombinante foi um evento influente organizado por Paul Berg para discutir os riscos potenciais e a regulamentação da biotecnologia, realizada em fevereiro de 1975 em um centro de conferências em Asilomar Beach, Califórnia. Um grupo de cerca de 140 profissionais elaboraram diretrizes voluntárias para garantir a segurança mínima.


Propostas de alterações no DNA trazem novos questionamentos bioéticos

He Jiankui chocou o mundo científico, em novembro de 2018, ao anunciar o nascimento de duas gêmeas que tiveram seus DNAs alterados para prevenir a infecção por HIV, nelas próprias e em suas descendências. A China anunciou, em dezembro de 2019, a condenação dos três cientistas que alegaram haver criado os primeiros bebês geneticamente editados (Lulu e Nana). Segundo a imprensa estatal chinesa, He Jiankui recebeu pena de três anos de prisão e multa de 430 mil dólares por ter realizado o experimento. Os dois outros cientistas receberam penas menores por ter auxiliado: Zhang Renli terá que passar dois anos na prisão, e Quinn Jinzhou, 18 meses. Em 1o de fevereiro de 2016, a “Human Fertilization and Embriology Authority, do Reino Unido, autorizou a pesquisadora Kathy Niakan, do Instituto Francis Krick de Londres, a fazer a edição genética de embriões humanos utilizando a técnica CRISPR-Cas9, somente com fins de investigação não reprodutiva e sob a supervisão de um comitê de ética. Pais que conhecem o risco de passar, por hereditariedade, uma enfermidade séria para seus filhos, desejariam se valer desta potencial forma de livrá-los daquela enfermidade. Recentes avanços no desenvolvimento de técnicas para a edição do genoma têm tornado realidade a vontade de contemplar, com esta biotecnologia, a linhagem germinativa humana. Opiniões divergem quanto à prevenção de doença hereditária, se deveria ser alcançada por meio da edição do genoma

hereditário. Mais pesquisas são ainda oportunas, antes que qualquer intervenção no genoma germinativo possa colocar em risco potenciais benefícios e alternativas, dada a necessidade de um consenso acerca da aplicação dos métodos conhecidos. Múltiplas reuniões e grupos de trabalho têm sido convocados procurando resolver questões éticas surgidas e demonstradas em numerosas publicações. Observa-se, todavia, um consenso em considerar prematura a decisão do uso da tecnologia, sendo sugestão frequente o exercício de uma moratória que possibilite melhor conhecimento e, sobretudo, a criação de um conjunto de requisitos específicos, capazes de garantir segurança e eficácia comprovada por ensaios clínicos, associados ao debate social, ao lado de uma preventiva e adequada forma de governança. No nascimento da era do DNA recombinante, espera-se que toda a comunidade científica continue assumindo um comportamento de discussão aberta. Esse fascinante, e, ao mesmo tempo, importante momento, precisará que a sociedade decida dentro de um novo mundo da biologia e da genética, mantendo como denominador permanente os conceitos duramente conquistados, da ética e da moral. (*) Hospital Dona Helena (**) Jonas, H. – El principio de responsabilidade – 1995 (***) Travis, J. – Making the cut – 2015 (****) Pinker, S. – Should bioethicists “Get out of teh way” – 2015

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Nelma Baldin

Doutora em Educação-História da Educação pela PUC-SP, pós-doutora pela Università Degli Studi Di Bologna e Università Degli Studi de Roma, e Universidade de Coimbra, em Portugal; professora aposentada da UFSC e Univille

As crianças do ensino fundamental às voltas com o ensino remoto

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ano de 2020 surpreendeu o Brasil e o mundo com a pandemia do novo coronavírus. A doença causou profundos impactos nas populações e nas economias mundiais e, sem dúvida, é hoje, um dos temas com maior difusão e discussão nos meios acadêmicos, científicos e de comunicação. Dentre as medidas tomadas necessariamente para conter a propagação do vírus, a suspensão dos serviços presenciais, nos mais diversos setores, foi a que causou maior repercussão junto à sociedade. Nessas medidas, inclui-se o sistema educacional como um todo. As aulas até então tradicionalmente presenciais foram suspensas, e, para minimizar os danos na aprendizagem das crianças e jovens, buscaram-se alternativas de ensino e aprendizagem numa modalidade de ensino diferente do tradicional – as aulas on-line, também conhecida como ensino remoto. Para que as crianças e jovens tivessem a menor implicação possível no seu desenvolvimento escolar e para que o calendário letivo não ficasse totalmente comprometido, coube ao Ministério da Educação e às secretarias estaduais de Educação normatizar e orientar para que o ensino da sala de aula fosse levado para dentro das casas dos escolares.

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Neste texto, vamos tratar do ensino fundamental e a sua relação com o ensino remoto. E por que o ensino fundamental? Em primeiro lugar, porque a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) não prevê a utilização do ensino remoto para a educação infantil, nem em casos emergenciais, mas prevê a possibilidade para o ensino fundamental. O ensino remoto, a escola e a família Cabe inicialmente refletir sobre o conceito de ensino remoto. Trata-se de manter a rotina de sala de aula em um ambiente virtual acessado em casa pelos alunos, mesmo estando nas mais diferentes localidades. Nesse caso, é essencial que haja a participação da família no acompanhamento das atividades dos estudantes. Família e escola deverão ter consonância, estar juntas na responsabilidade pelo investimento na educação da criança e do pré-adolescente, ajudando-os nas tomadas de decisão e esforçando-se para contribuir na forja do desenvolvimento social, cultural e intelectual do estudante. As crianças do ensino fundamental e o ensino remoto Muitas são as questões que podem ser levantadas em relação ao ensino remoto. É evidente, infelizmente, que nem todos os pais e mães conseguem dar suporte os seus filhos no ensino remoto, isto sem falar que nem todos os estudantes têm condições de acompanhar as aulas on-line, uma vez que o acesso à internet e aos aparelhos como TVs, computadores, tablets, celulares ou smartphones não estão disponíveis para todos. O uso do ensino remoto pode trazer algumas vantagens, tais como a economia de tempo relacionada à locomoção de casa até a escola, o envio dos trabalhos feitos via correio eletrônico – evitando-se o uso de excesso de papel. Pode-se tirar dúvidas diretamente com o professor, mesmo que on-line, e, ainda, possibilita-se a flexibilização de horários e autonomia relacionada ao ensino. No entanto, o rol das desvantagens do ensino remoto pesa muito mais na balança para o prejuízo dos estudantes – em especial para as crianças do ensino fundamental. As ineficiências já começam com as adaptações na dinâmica e na estrutura do processo de ensino aprendizagem que não encontram a organização


Ensino remoto tem mais desvantagens do que vantagens, especialmente para crianças do ensino fundamental

de um ambiente escolar em casa e que precisam ser consideradas para que o ensino aprendizagem de fato se concretize. Mediante a situação que demora a se normalizar, uma pergunta se faz premente: o ensino remoto poderá vir a substituir o ensino presencial? De nossa parte, a resposta é evidente – o ensino remoto foi criado para ser aplicado em caráter emergencial – e só! Se bem estruturado, é possível que se possa aprender e adquirir um bom conhecimento, mas essa poderá ser a experiência de pessoas adultas, que têm objetivos definidos e que têm a vontade daquele aprender e que não encontram outra forma de adquirir o saber. No entanto, para as crianças do ensino fundamental, nada substitui as aulas presenciais. O convívio com os colegas e o ato de aprender com eles e fazer parte de um grupo social é imprescindível para a formação do caráter pessoal e para o crescimento infantil em geral. Considerações finais Cabe então a pergunta: e o retorno às aulas presenciais após a fase do isolamento – como se dará? E como se consolidará? A volta às aulas presenciais é um processo que vem acontecendo aos poucos, com todo o cuidado que a situação requer. Afora a questão cuidado para com o retorno às aulas presenciais, há uma situação que a escola também pode se deparar: trata-se do fator condições socioeconômicas. No caso da escola pública, nem todos os alunos tiveram acesso às plataformas utilizadas pelos professores para a difusão do ensino, e isto gera defasagem na aprendizagem. Notam-se sensíveis diferenças na assimilação do conteúdo se compararmos as atividades escolares daqueles alunos que não conseguiram acompanhar de todo as aulas on-line com as daqueles alunos que, mesmo com dificuldades, tiveram acesso ao material disponibilizado pelos professores e o estudaram. Esse é mais um dentre os tantos desafios que se apresentam à escola no retorno às aulas presenciais. Como decorrência, surge a proposta do ensino híbrido, uma tendência de ensino que adquiriu força em 2021, uma vez que possibilita unir o ensino presencial com o ensino on-line. O modelo do ensino híbrido permite adotar a dinâmica das chamadas metodologias ativas, que propõem um aluno mais ativo na construção do próprio conhecimento e um professor com atuação de

mediador, que elabora e orienta as perspectivas da aprendizagem. Considerando-se que os jovens de hoje têm um desempenho natural no mundo da tecnologia, o ensino híbrido poderá vir a ser um fator de contribuição no processo ensino aprendizagem. O estudo de Santos e Mendonça (2021), uma reflexão acerca da vivência afetivo-emocional dos estudantes em ensino remoto durante a pandemia, apontou que existem inúmeras dificuldades no modo como os alunos acompanham as aulas remotas seja no referente à falta de relacionamento com os colegas para conversas e brincadeiras, seja em como o conteúdo é abordado sem a presença física do professor ou, ainda, na indisposição e pouco interesse para assistir às aulas remotas mesmo com o incentivo dos familiares. Portanto, o ensino remoto, seja ele em qual modalidade for, para as crianças do ensino fundamental, não é recomendado. É uma opção possível em situação especial, somente, porque esta não é a melhor opção. Referências • INSTAGRAM. tecnologia e ensino.remoto.. Consulta em 27/09/2021 • MENINO, Flávia Alves; MOURA, Jéssica B. Faustino; GOMES, Liduína Maria. A importância da interação escola e família no desenvolvimento do aluno durante o período de pandemia . VII Congresso Nacional de Educação. Outubro/2020. Disponível em: https://editorarealize.com.br/ editora/anais/conedu/2020/TRABALHO_EV140_MD1_SA_ ID4698_02092020114536.pdf Acesso em: 27/09/2021 • SAE DIGITAL. O que são aulas remotas? Disponível em: https://sae.digital/aulas-remotas/ . Acesso em 27/09/2021 • SANTOS, Geny; MENDONÇA, Marilane. Pandemia e o ensino remoto: uma reflexão acerca da vivência afetivoemocional dos estudantes. In: REH- REVISTA EDUCAÇÃO E HUMANIDADES – UFAM , Volume II, número 1, jan-jun, 2021, pág. 110-131.

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Vacinas, patentes e o bem comum

Em dia 10o Ciclo de Debates em Bioética

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Sociedade Brasileira de Bioética (Regional SC) com apoio do Nupebisc e o Nesfhis, realizou o X Ciclo de Debates em Bioética, com a temática: “O pano de fundo biopolítico da bioética”. O encontro teve como palestrante principal a professora Anna Quintanas Feixas, da Universidade de Girona (Espanha). Também contou com os debatedores Maria Fernanda Vasquez (Colômbia) e Fernando Hellmann (Brasil). Anna Quintanas propõe pensar a Bioética como um espaço de reflexão democrática, que permita entender os conflitos bioéticos alinhados às formas de governo e às relações de poder que se tecem entre os indivíduos por meio de uma interseção entre a bioética global de Van Rensselaer Potter, a biopolítica e analítica do poder em Michel Foucault e a política do cuidado de Joan Tronto. Mas defende a importância de compreender que o “bios” não se reduz a uma visão etnocêntrica e antropocentrada, senão que deve considerar a vida em suas múltiplas formas de existência e as relações que se estabelecem entre elas. Quintanas faz uma leitura histórica, interseccional e insiste que a Bioética não pode desconsiderar as políticas de administração e gestão da vida, que hoje estão essencialmente vinculadas a uma racionalidade neoliberal. Para ela, o fundo biopolítico da Bioética é o neoliberalismo, que, como disse Foucault, é uma lógica que nos converte em “empresários de nós mesmos”: um individualismo exacerbado, pautado numa suposta liberdade, é o pano de fundo dessa ideologia que acredita em meritocracia pura. Podemos pensar a teoria relacional da liberdade, como lembra Anna Quintanas, conforme Joan Tronto: somos sempre seres interdependentes que necessitam dos demais, assim como os demais necessitam de nós. A concepção de homem autônomo é uma ficção no campo do liberal, a autonomia é sempre relacional.

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Em outubro de 2020, a Índia e a África do Sul levaram à Organização Mundial do Comércio um pedido para manter abertas as patentes de produtos relacionados à covid-19. Dos cerca de 160 países membros da entidade, 99 anunciaram o apoio ao projeto. O Brasil votou contra. Diante do atraso deste debate em nosso país e em pleno contexto de calamidade pública, a Sociedade Brasileira de Bioética Regional de Santa Catarina promoveu seu IX Ciclo de Debates em Bioética, tratando do tema “Vacinas, patentes e o bem comum”. O evento teve a coordenação da Profª Drª Sandra Caponi (UFSC), vice presidenta da regional, e recebeu o Dr. Carlos Parada. Parada é psiquiatra franco-brasileiro e defendeu, em artigo no jornal francês Le Monde, que as vacinas contra covid-19 sejam consideradas um bem comum e que não sejam aplicadas as regras de patentes em plena pandemia. Sua argumentação sobre a insustentável defesa da propriedade intelectual no atual contexto obteve ampla aceitação e repercussão, sendo notícia também em jornais brasileiros. O debate contou, ainda, com a participação do Prof. Dr, Bruno Rodolfo Schlemper Jr (UNOESC), Prof. Dr. Fernando Hellmann (UFSC) e Dra. Jucélia Maria Guedert (CEP-HIJG).

Vacinas devem ser consideradas um bem comum


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