Hoje Macau 8 MAR 2013 #2807

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sexta-feira 8.3.2013

Andreia Sofia Silva

andreia.silva@hojemacau.com.mo

Cecília Lin

cecília.lin@hojemacau.com.mo

C

han Sio Mui (nome fictício) casou com o homem que a faria sofrer durante anos sem o seu coração bater de amor. Foi em Fujian, província do continente, que aconteceu o enlace ditado pelas conveniências sociais, apoiado por amigos em comum. Os anos que se seguiriam seriam de sofrimentos físicos e psicológicos, que ainda hoje permanecem no rosto e na memória de Chan: à medida que fala da violência doméstica de que foi vitima, as lágrimas caem-lhe do rosto. Gesticula muito, à medida que as palavras lhe saem. “Ele sempre me bateu quando estava bêbedo, depois do trabalho. Gravava as minhas conversas com outras pessoas em casa, porque nunca tinha confiança em mim. Não sei ler nem escrever, e no início não sabia que ele gravava as minhas conversas em casa”, conta. Em 1995 nasceu a filha de Chan, hoje com 18 anos. Chan pensava que tudo iria melhorar, mas foi o contrário. Em 2004 veio para Macau e passou a estar dependente do marido devido a questões de migração. “Antes de 2005, quando obtive o meu BIR, tinha sempre de voltar a Fujian a casa três meses. O meu marido também não tinha BIR, só autorização de residência, mas depois conseguiu. Eu tenho o BIR porque sou esposa dele.” Até então, nunca trabalhou fora de casa. “Ele nunca me tratou bem e tinha uma amante. Sempre

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tiago alcântara

Depois do debate na Fundação Rui Cunha sobre a violência doméstica, em que o director dos Assuntos de Justiça frisou que ainda analisar se será ou não um crime público, o Hoje Macau foi à procura das vítimas, mas apenas uma aceitou contar a sua história. Apesar de ter trabalho e de viver numa casa com a filha, ainda hoje a senhora Chan tem medo de encontrar o marido na rua e de perder o apoio do Centro Bom Pastor, que a acolheu

sociedade

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De nome Chan, a mulher que falou ao Hoje Macau, sofreu abusos físicos do marido até 2006

Quando a violência ultrapassa a vergonha do divórcio quis dar tudo à minha filha, e já suportei muita coisa, mas ele nunca fazia nada, nem cuidava das coisas em casa nem me dava dinheiro para comprarmos comida. Tinha de cuidar dos filhos de outras pessoas, porque os pais trabalhavam fora de Macau e só precisava de cuidar deles à hora das refeições e ganhava entre duas a três mil patacas, e essa era a minha fonte de rendimento”, diz a senhora Chan.

Policias disseram para retirar queixa

A sua chegada a Macau ficaria marcada pela descoberta de que a filha sofria de epilepsia. Mas nem aí o marido deu uma ajuda. “No início o meu marido não me deixava levar a minha filha para o hospital, dizia que não era uma doença mas sim um espírito mau que estava no seu corpo. Fui eu que a levei secretamente para o hospital. O meu marido nunca

bateu na minha filha, mas com esta doença ela não podia ver mais as cenas de violência em casa, e isso piorou a doença.” Com o passar dos anos, Chan conseguiu trabalhar fora de casa e aí a sua situação acabou por ser descoberta pelos colegas de trabalho. “Propuseram que eu chamasse a polícia, porque não conseguia andar com as feridas que tinha nas pernas. Mas eu achava que não ia ajudar em nada. Quando fui parar ao hospital, os médicos chamaram a polícia por mim.” Nesta fase tomou contacto com a dura realidade: as autoridades chegaram a propor-lhe retirar a queixa no prazo de três meses, a bem da harmonia familiar. Levaram-na à assistência social do Instituto de Acção Social (IAS), mas os profissionais também lhe disseram que deveria regressar a casa. O alerta chegou quando Chan foi posta na rua com a filha nos

braços. “O meu marido bateu-me e pôs-me fora de casa. Não tinha um sitio para ficar e acabei por dormir na polícia. No dia seguinte a policia descobriu-nos, chamou os assistentes sociais para nos encontrarem alojamento.” Para ela, o contacto com as autoridades foi “complicado”. “Não sei assinar os documentos e tinha de usar a minha impressão digital. Algumas vezes em que fiquei na policia, ainda me perguntaram se tinha sido eu a culpada. Um amigo meu, uma vez, sabia da minha situação e chamou a policia, mas o meu marido começou a chamar-lhe nomes.” A fuga passou a ser a única opção. Chegou a regressar a casa, mas foi ameaçada de morte. “Os assistentes sociais e os policias, no inicio, não acreditavam que ele poderia estar a falar a sério, mas depois viram que eu e a minha filha estávamos numa situação muito má.” Foi aí que Chan e a

filha chegaram ao Centro Bom Pastor, dirigido por Juliana Devoy, em 2006.

O medo

Com a entrada no centro, Chan pôde contar com a ajuda de Juliana Devoy. Conseguiu encontrar um trabalho numa escola, bem remunerado, o que lhe permitiu alugar uma casa com a filha. Neste momento, ainda tem documentação legal pendente com o marido, no que diz respeito à casa que compraram em 2007 e ao divórcio decretado pelo tribunal, que o marido nunca aceitou. “Os assistentes sociais chegaram a perguntar porque é que eu não voltava para casa, mas depois propuseram-me o divórcio. Eu disse que na minha terra uma pessoa divorciar-se com 40 ou 50 anos é uma vergonha, não faz sentido. Mas a minha filha disse que era o que eu devia fazer.” Com a doença da filha curada, Chan já pensa nos seus estudos universitários, caso o Governo lhe dê apoio financeiro. Se não, terá de ir trabalhar. Gostava de ter uma habitação económica, mas não é residente permanente. Sobre o lado jurídico da realidade que viveu, apenas diz que “é bom uma pessoa chamar a policia para proteger as vitimas de violência”. No momento em que deixamos Chan, no Centro do Bom Pastor, esta vive em estabilidade com o medo sempre à espreita – afinal de contas, o marido está solto e pode encontrá-la. Tem medo que um dia Juliana Devoy já não a possa proteger mais, quando deixar de coordenar o centro – sente que aí estará por sua conta e risco.


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