Hoje Macau 29 JUL 2019 # 4340

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ARTES, LETRAS E IDEIAS 23

Roupa Suja Antønio Falcão

ANTØNIO FALCÃO

segunda-feira 29.7.2019

A

história começou quando resolvi não voltar a mentir e começar a dizer, pela primeira vez, toda a verdade. Estava farto daquela vida. Acordava com uma nuvem em cima da cabeça. Dores no corpo. Má disposição permanente. Nessa manhã, entrei na esquadra da polícia e fiquei à espera que me chamassem. Não foi há muito tempo. Ficaram surpreendidos por me verem ali, mas não liguei e agi como um cidadão normal. Havia um aparelho de rádio pequeno em cima da secretária do primeiro escriturário, sintonizava a Antena 2 e passava aquela obra mais famosa de Liszt. Nunca me consigo lembrar do nome, nem agora nem nesse dia, mas fico sempre deliciado. Adoro certas passagens dessa peça, lembro-me de epopeias, e naquela ocasião veio-me à memória uma imagem de campos de batalha húmidos ao fim da tarde. Campos vazios onde a luta ainda estava por passar ou já tinha ido sem deixar rasto. E estava absorto nesse poema musicado de Liszt quando chamaram o meu nome e indicaram um gabinete ao fundo do corredor. “O inspector vai recebê-lo, senhor ministro”, informaram-me. Entrei, era um homem de bigode, gordinho, muito sorridente que me saudou, perguntando-me ao que vinha. E eu disse-lhe: que vinha contar a verdade. Que estava cansado de mentir “ao povo”, todos os dias, e que agora chegara a altura de dar com a língua nos dentes. Então comecei a desbobinar. Comecei pelo início, para que não faltasse pitada da história. O inspector de olhos arregalados ia apontando no seu caderninho, tentando apanhar aquela avalanche de informação que me entupia a boca. Ao princípio não acreditou, mas à medida que fui descrevendo as situações com todo o pormenor, não esquecendo o nome de ninguém, percebeu que não estava a mentir e que estava a contar, tintim por tintim, tudo o que a sua brigada e a nação inteira andavam a tentar descobrir há anos e que até ali só suspeitavam. Aquilo era um tsunami na investigação, ia virar o país e deixá-lo de pernas para o ar, aquilo era a verdade pura e dura. Claro, a retaliação não se fez esperar. Semanas depois, quando o esclarecimento já se deslocara para outros destinos, dou com uma trupe de rufiões à porta do ministério. Não lhes fiz frente, deixei-os entrar e foi tudo muito natural. Não disseram logo ao que vinham. Deram-me um papel para a mão e sugeriram que não resistisse, que deixasse as coisas andar, que era melhor. Abri o papel dobrado em duas partes, li. Era só isso, vinham tomar conta dos incidentes. Queriam castigar-me. No papel vinham escritas as razões, queriam libertar-me do remorso, asseguravam, com letras grandes. Que desse um passo atrás. Que voltasse à esquadra e que repetisse tudo, mas ao contrário. Disse-lhes que não valia a pena, que essa coisa da liberdade já estava gasta, agora a luta era outra. “Que se lixe a liberdade!”, grunhi. Sim, a luta é a vida. Sem vida não há liberdade, por isso escusavam de estar para ali a inventar e a fazer perder-me tempo. Empurra-

Sacerdócio da invenção e do desconhecimento ram-me e ataram-me com uma corda. Se não me calasse, penduravam-me da janela, pelo pescoço. Para dar o exemplo. Aquilo não estava nada certo. Não havia ali ponta de justiça, o que já era de esperar, quanto mais virem falar em liberdade. Tinham era de engolir. “Que querem vocês com a liberdade, que vão fazer com ela?”, não havia volta a dar. Um deles estava mais enervado do que os outros e estava prestes a perder o autodomínio. Queria ir-se embora. Achava que aquilo não ia dar em nada. Que se calhar eu até tinha razão em ter dado com a lín-

Disse-lhes que não valia a pena, que essa coisa da liberdade já estava gasta, agora a luta era outra. “Que se lixe a liberdade!”, grunhi. Sim, a luta é a vida. Sem vida não há liberdade, por isso escusavam de estar para ali a inventar e a fazer perder-me tempo

gua nos dentes. Criara-se um súbito impasse, transpuseram a porta da rua e logo encalharam num problema de consciência. O que estaria atrás da segunda porta? Informei-os de que atrás desse obstáculo estaria o comissário da polícia com um batalhão inteiro que ia dar cabo deles. Atrás da porta não havia ninguém. Eu estava sozinho no edifício e prestes a sair quando simpaticamente tocaram à campainha. Sim, saio desprotegido, não ando com guarda-costas. “Mas estejam à vontade”, garanti-lhes. Ouvia-se o piano de Liszt a ressoar nos corredores. Desta vez, aquilo não era uma epopeia, nem se fez o campo de batalha. E pedi para que acabassem com aquela história da corda. Que levassem toda a papelada que quisessem, era um favor que me faziam. Mas em vez disso atiraram-me da janela, como tinham prometido. Pelo menos eram homens de palavra. Hoje em dia, já é raro. Não sei se me volto a pôr em pé. E foi assim que, meses depois, chegámos ao epílogo. O caso é muito sério. Os governantes vão ser demitidos e os seus cúmplices vão para a cadeia, assim decidiu o tribunal. Não há lugar para recurso, a sentença é final. Fizeram merda e vão ter de pagar por isso. Devolvem as benesses e as propriedades e é uma sorte se ninguém os agredir na rua. O preço a pagar é mesmo esse. Vão e não voltam. “O governo por inteiro abandona o seu pelourinho”, já se adivinha na primeira página dos jornais. Não há cá “mas” nem “ses”, vai tudo para o chilindró e,

diga-se, que merecem. O que me vale, são os cuidados intensivos. A notícia caiu arrebatada no gabinete do Primeiro-ministro, que apesar de toda a trafulhice não estava à espera do desfecho, aquilo era um complô para o deitar abaixo, berrou ao telefone. “Só podia!” Tentou falar com o gabinete de relações públicas para saber o que era possível fazer, mas de lá não vieram ilações positivas. Podiam fazer um comunicado a negar qualquer relação com o acontecido, o que não estaria muito longe da verdade, mas a opinião pública estava formada e, como tal, tudo o que dissessem seria mais um prego no enorme caixão colectivo. Então, reuniu o Conselho de Ministros, só para saber quem era o autor daquela tramoia. Bastava olhar para a cara do prevaricador para compreender quem tinha sido. Pelos vistos, estava mal informado, os homens da corda não tinham vindo da sua parte. Só soube que eu tinha escorregado do primeiro andar e caído da janela. Na sala, enquanto cumprimentava a sua equipa, passou revista a todos, como se estivessem na tropa. Nem tentou disfarçar. Olhou cada um, homem ou mulher, fixamente nos olhos, sem pestanejar, e o que verdadeiramente lhe despertou desconfiança foi o Ministro da Defesa. Sim, ele teria a ganhar com tudo isto, reflectiu. É dos poucos que não será beliscado quando o futuro vier tomar conta da situação e poderá assumir a chefia do governo numa nova candidatura. Sim, tinha sido ele. “Que grande filho da puta!”


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