A cidade como um canteiro de negócios.

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Esse modelo de intervenção estatal baseado no investimento à construção direta de locações sociais ficou conhecido como “aide à la pierre” 74, ou seja, políticas públicas de construção física e gestão de habitações sociais, intermediadas por agentes públicos e semi-públicos chamados de bailleurs sociaux, para quem se dirigiam os recursos estatais75. No entanto, no início dos anos 90, aqueles complexos habitacionais passaram a ser vistos como bolsões de exclusão76 e focos de conflitos sociais, e tanto, que posteriormente foi colocada em questão a viabilidade de se manter esses edifícios em pé. Com forte reação de oposição das populações diretamente envolvidas, recentemente, alguns desses edifícios de cité HLM foram demolidos, como o caso da Cité des 4000, em La Courneuve, Saint-Denis, em agosto de 201177. Sem nos prolongarmos muito nesse debate, é preciso entender que estamos diante da consolidação de um processo de transformação da política habitacional francesa, iniciado com a reforma em 197778. As explicações para tal reforma partem da compreensão dessas transformações sob a ótica da (neo)liberalização política do Estado. Do ponto de vista prático, ocorre gradativo desmantelamento de medidas do tipo “aide à la pierre”, marca do período keynesiano francês, e uma substituição por medidas do tipo “aide à la personne” 79, dependendo da renda do beneficiado, e dispositivos de isenção fiscal (“avantages fiscaux”). Com as “aides à la personne”, o Estado, aos poucos, deixa de atuar na oferta de habitação para fornecer incentivos para a deman-

74 Subvenções do Estado para organismos públicos e semi-públicos de construção de habitação de interesse social (majoritariamente de finalidade locativa) quando um empreendimento do tipo é planejado. Apesar de se caracterizar por uma lógica bastante particular, caracteriza-se da atuação do Estado na construção de moradias sociais e populares, daí o termo “ajuda à pedra”, ou seja, “ajuda” do Estado através da construção. Pedra, por sua vez, em referência histórica à tecnologia de construção francesa, que adota a alvenaria de pedras calcárias como técnica mais recorrente para a construção de edifícios (haussmannianos, por exemplo) e obras públicas. 75

OPHLM e OPAC, por exemplo, substituídos em 2007 por um único órgão, o OPH.

76 De certa forma, a crítica que é feita assemelha-se àquela que fizemos sobre o caso brasileiro, quando questionamos a inexistência de urbanidade Conferir, por exemplo, E. Préteceille, La ségrégation sociale at-elle augmenté? La metrópole parisienne entre polarisation et mixité. In: Sociétés contemporaines, n. 62, 2006. 77 Aparentemente a população residente foi banida de seus direitos, e a demolição teria sido feita sem que houvesse novas moradias para a população envolvida. O « evento » foi registrado em documentação fotográfica por Martin Argyroglo. 78 Cf. J. Pollard, Soutenir le marché: les nouveaux instruments de la politique du logement. In : Sociologie du Travail, n.52, p. 324. 79

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Em português, “ajuda à pessoa” ou “ao indivíduo”.


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