Revista Urbano

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Depois dos dias secos e do sol forte que queimava a pele, veio a chuva. A madrugada havia sido estrondosa e o dia nasceu frio e pouco iluminado. A temperatura oscilava enquanto o relógio corria. Já pelas três da tarde, o termômetro na avenida marcava 20 graus. De dentro do seu apartamento, no bloco 5 do Conjunto Habitacional do IAPI, Kátia fumava seu Hilton de embalagem azul e soprava a fumaça para fora da janela da cozinha, onde o pequeno varal com roupas já secas estava estendido. “Kátia fuma muito para uma mulher. Ela não tem mais idade para isso”, alertou dona Dagmar com a voz sólida de mãe preocupada. Kátia Santos é a segunda filha do casamento da senhora Dagmar com Adair Soares, morto há 12 anos. Antes que o calendário apontasse o fim de uma década, nesse espaço de tempo ela ganharia mais dois irmãos. Kátia tem 58

anos, um filho que mora em Brasília e estuda Direito, é divorciada e católica sem devoção por santos. Enquanto chuviscava e a fumaça do cigarro era varrida pelo ar, do lado de fora do apartamento de Kátia, e visível pela janela de quase todos os outros apartamentos, A Moça Do Telefone conversava sorrindo pelo celular. O cotovelo apoiado na mureta, a palma da mão segurando o queixo, quase uma boneca namoradeira. Roberto Do Sexto Andar ligou o som, aumentou o volume e deixou tocar a tarde inteira seus discos de samba, bolero e bossa nova. Como ainda não fizeram objeção às suas preferências musicais, ele cumpre o ritual de ouvir Wilson Simonal nos fins de semana, deixando que as donas de casa cuidem do lar ouvindo Madalena. Na cozinha de dona Dagmar, as xícaras com pires azulados foram arranjadas na mesa. O lugar vestia-se

do aroma de café novo. Antes da nova tragada no cigarro, Kátia comentou: “É desagradável ver a vida do outro. A gente vira a cara.” Dagmar Dutra de Oliveira não mede mais que 1,60 metro. É uma senhora de 82 anos com brincos miúdos na orelha, meia no pé e sandália de borracha presa entre os dedos. Tem o tronco alinhado e anda com cuidado pelo piso laminado de madeira de sua casa. Há pouco descobriu a osteoporose quando fraturou o fêmur perto do escorregador do parquinho onde mora. Com os devidos cuidados e a melhora progressiva, ela agora sorri de maneira fácil. Na poltrona da sala, recostada com aconchego, cruza as mãos em cima da barriga e deixa o olhar atento percorrer a sala, avistar o pássaro sem incômodo que entra pela janela e acolhe com alegria o barulho do vento que invade o lugar. Quando estava na cozinha, vestida com um cardigan

#9 . urbano . 06/2013


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