Revista Urbano

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URBANO

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BELO HORIZONTE JUN. 2013 R$ 0,00



Amanhã vai ser outro dia ENSAIO #16

Traços de (des)afetos CRÔNICA #6 A vida dos outros REPORTAGEM #8

O homem e a lagoa ENTREVISTA #24

Profissão: Prostituta SOCIEDADE #26

arte nas páginas 6 e 30 são de autoria de Jéssica Amaral: fotógrafa, ilustradora e estudante de jornalismo

Foto da capa: Maxwell Vilela para a perfomance de André Nakau no show da banda ABSINTO MUITO

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Com o passar dos anos, desde que ingressei, em 2011, no curso de jornalismo do UNIBH, um interesse crescente por revistas tornou-me um consumidor compulsivo, figura carimbada (com perdão do clichê) da mesma banca de jornais na praça da Liberdade, bem perto de onde cursava aulas de teatro. Já era leitor de revistas de curiosidades científicas, assinadas por meu pai. Paralelamente, ao despertar dos novos interesses e, consequentemente, das descobertas de um mundo novo (outro clichê, desculpe), fui lançando ao universo de possibilidades, onde se poderia ir sempre mais longe. Ao lado das revistas de cultura, publicações especializadas em música, filosofia, cinema e grandes reportagens abarrotam hoje as estantes do meu quarto. Mais do que virar decoração, depois de lidas com entusiasmo, tornam-se boas referências, sejam elas intelectuais ou de repertório acadêmico, essencial, por exemplo, em uma disciplina como a de Planejamento Gráfico, onde aproveitei o desafio de criar uma publicação para a avaliação final. Experimentei cores, diagramação, formatos etc. Não é fácil, garanto. No final, o produto não é lá muito diferente do que se vê por aí. Talvez tenha abusado do branco, explorado pouco os espaços e as chances de um novo desenho de página aqui e acolá. Ou usado com cuidado e xacerbado as referências que dispunha. Entretanto, nasceu URBANO. E desta nascerá outra: com nome e planejamento sendo gestado. De início, não se parece em nada com este produto que você tem em mãos, mas fica um conselho: faça de tudo para gostar do que fez. Ao final, como marinheiros de primeira viagem, pudemos (eu + Karla Amaral + Clara Senra) dizer que conseguimos. Um abraço. Hiago Soares (pseudo-editor)

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#HOMOFOBIANテグ DISQUE 100 e DENUNCIE!

CAMPANHA

URBANO


INÍCIO

O exercício de vida, carinhosamente patenteado como crônica, resumiu, refletiu e marcou. Texto: LEILANE STAUFFER

Os passos de teus filhos obedecem a ritmos uniformes, com poucas expectativas de intervenções. Em marcha contra o tempo, todos te ocupam, mas mal conseguem te ver. Com movimentos mecânicos e característicos de uma era cada vez mais mediada por recursos menos humanos, eles tocam a vida, centrados nos mandamentos fugazes de seus senhores: agilidade, obediência à dança dos ponteiros, resposta às cobranças, e produtividade. O dia precisa render. A batalha começa em um piscar de olhos, quando o barulho irritante do despertador toma o lugar da can-

ção dos pássaros. E a identidade dos que se inserem em teu espaço vai se desfazendo no decorrer das horas, ou se readequando às tuas cruéis exigências. Onde é que escondeste o contato, o olho no olho, o ouvir, o tête-à-tête, travessa Belo Horizonte? Teus edifícios de concreto imprimem cliques de grandes caixas retangulares, que

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brotam em meio a tua paisagem carregada e atônita. Tua arquitetura integra janelas que se abrem para curiosidades. O que há e o que se passa por detrás desses buracos de luz? O que realmente de concreto há em ti? Aos poucos, eles vão descobrindo que decifrar-te vai além de questionar e contemplar teu horizonte. O desafio de te desvendar vai, na verdade, até onde as vistas alcançarem. Descobrir-te não é tarefa fácil em meio a tantos ecos. Teus ruídos incomodam até chegar ao ponto de ninguém


conseguir ouvir os pensamentos, quem dirá organizá-los. Tu te materializas em músicas que desagradam uns e outros, em buzinas, motores e freios de sucatas de quatro ou duas rodas. Todos passam a sonhar com paz. Em vão. Eles já se transformaram também em grandes mentores de barulho. E tuas distâncias? Em vários níveis, elas se estabelecem e preenchem os espaços entre teus habitantes. São geográficas, e pessoais tam-

bém. Os relacionamentos, cada vez mais superficiais, estão condicionados a barreiras cotidianas: tempo escasso, trânsito caótico, compromissos que já não podem mais ser adiados, e tropeços sempre presentes na rotina. Nesse teu meio sôfrego, as mocinhas do interior não conseguem mais se sentirem aliviadas e distraídas, ao ouvir o “creck” do pisar nas folhas secas de tuas árvores. Não há mais tanto deleite ao olhar para cima e ver a luz do sol, a partir do reflexo das folhinhas verdes. Falta também imaginação para conseguir formar, com os grandes chumaços de algodão, desenhos e animais surreais no céu. E as estrelas? Onde

foram parar tuas estrelas? Tudo isso pode não passar de devaneios de enteados, talvez ingratos, que saíram do lar e caíram em tua rede. Tu te esforças para hospedá-los bem, e em troca recebes estranhamento de peixinhos fora d’água. Mas, compreendas, querida cidade grande. Longe deles querer causar-te desapontamento. A necessidade de externalizar incômodos faz parte da adaptação que os insere, ajeita e integra. Leilane Stauffer, 21, estudante de jornalismo e colaboradora de URBANO #7 . urbano . 06/2013


PERFIL

A VIDA DOS OUTROS

Fragmentos biográficos que contam sobre como é morar no Conjunto Habitacional do IAPI Texto: HIAGO SOARES

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Depois dos dias secos e do sol forte que queimava a pele, veio a chuva. A madrugada havia sido estrondosa e o dia nasceu frio e pouco iluminado. A temperatura oscilava enquanto o relógio corria. Já pelas três da tarde, o termômetro na avenida marcava 20 graus. De dentro do seu apartamento, no bloco 5 do Conjunto Habitacional do IAPI, Kátia fumava seu Hilton de embalagem azul e soprava a fumaça para fora da janela da cozinha, onde o pequeno varal com roupas já secas estava estendido. “Kátia fuma muito para uma mulher. Ela não tem mais idade para isso”, alertou dona Dagmar com a voz sólida de mãe preocupada. Kátia Santos é a segunda filha do casamento da senhora Dagmar com Adair Soares, morto há 12 anos. Antes que o calendário apontasse o fim de uma década, nesse espaço de tempo ela ganharia mais dois irmãos. Kátia tem 58

anos, um filho que mora em Brasília e estuda Direito, é divorciada e católica sem devoção por santos. Enquanto chuviscava e a fumaça do cigarro era varrida pelo ar, do lado de fora do apartamento de Kátia, e visível pela janela de quase todos os outros apartamentos, A Moça Do Telefone conversava sorrindo pelo celular. O cotovelo apoiado na mureta, a palma da mão segurando o queixo, quase uma boneca namoradeira. Roberto Do Sexto Andar ligou o som, aumentou o volume e deixou tocar a tarde inteira seus discos de samba, bolero e bossa nova. Como ainda não fizeram objeção às suas preferências musicais, ele cumpre o ritual de ouvir Wilson Simonal nos fins de semana, deixando que as donas de casa cuidem do lar ouvindo Madalena. Na cozinha de dona Dagmar, as xícaras com pires azulados foram arranjadas na mesa. O lugar vestia-se

do aroma de café novo. Antes da nova tragada no cigarro, Kátia comentou: “É desagradável ver a vida do outro. A gente vira a cara.” Dagmar Dutra de Oliveira não mede mais que 1,60 metro. É uma senhora de 82 anos com brincos miúdos na orelha, meia no pé e sandália de borracha presa entre os dedos. Tem o tronco alinhado e anda com cuidado pelo piso laminado de madeira de sua casa. Há pouco descobriu a osteoporose quando fraturou o fêmur perto do escorregador do parquinho onde mora. Com os devidos cuidados e a melhora progressiva, ela agora sorri de maneira fácil. Na poltrona da sala, recostada com aconchego, cruza as mãos em cima da barriga e deixa o olhar atento percorrer a sala, avistar o pássaro sem incômodo que entra pela janela e acolhe com alegria o barulho do vento que invade o lugar. Quando estava na cozinha, vestida com um cardigan

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bege e uma calça de linho marrom, se sentou à cabeceira da mesa com um punhado de cartas de baralho desbotadas. Mantinha a cabeça baixa enquanto as embaralhava Atrás dos óculos redondos, seus olhos pequenos acompanhavam o movimento das mãos em cima da mesa. Seu corpo pequeno está agora marcado, como a água forte e louca do mar que atinge e fere a rocha, fazendo-lhe sempre uma nova pedra, moldando-a a partir dos golpes embriagados das ondas, para dizer a quem vê: fui inventada pelas horas. Seu rosto se desenha por cima da pele um pouco flácida quando é contagiada pelo sorriso largo que escapa da boca. A cabeça de cabelos brancos e curtos, impecavelmente penteados, é a terra fértil onde foram germinados os pedaços de vida que irromperam o solo e deixaram à mostra suas raízes fortes e seu fruto grandioso que recebeu o nome de memória. O cheiro das lembranças é lançado no ar quando a fala ganha vida no corpo envelhecido Depois de espalhar as cartas na mesa forrada, Dagmar se emudeceu. Sua vida inteira coube naquela quietude. Minutos depois, num relance, ela haveria de se dar conta da fragilidade de nossa existência, deixando que as palavras que ela tanto queria falar

escorregassem de sua boca. Todos haveriam de se lembrar mais tarde daquela tarde de novembro. O PREFEITO FURACÃO Há 59 anos, na cidade mineira de Leopoldina, a 320 quilômetros da capital, Dagmar entrava na igreja vestida de noiva. Adair, seu marido, com o terno caprichado, segurava-lhe o braço e os dois, com os olhos pregados no padre, escutavam com atenção as palavras sagradas do matrimônio. Um ano depois e já estavam de mudanças para Belo Horizonte, o arraial que vinha ganhando ar de metrópole com bondes, cinemas de rua e poucos edifícios. Moraram por três meses em uma casa pequena no bairro Barroca e logo depois no edifício sete, número 101, o primeiro apartamento do casal no Bairro Popular, ou Conjunto Habitacional do IAPI – Instituto de Aposentados e Pensionistas da Indústria –, conjunto de nove prédios e 928 apartamentos idealizados pelo então prefeito Juscelino Kubitscheck e, posteriormente, pela Fundação da Casa Popular; construído para os contribuintes do Instituto, os funcionários da prefeitura e a população carente que seria removida para que a imagem moderna de Belo Horizonte na década de

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40 começasse a ser construída. Juscelino Kubitscheck (1902 – 1976), o homem de sobrancelhas arqueadas, rosto triangular, terno e chapéu, cabelo fixo com pasta Gumex, queria reinventar a cidade, a economia, a forma e a estética. O seu discurso era de desenvolvimento, suas ideias de progresso e sua ambição era a modernidade. O Conjunto Habitacional do IAPI no bairro São Cristóvão inaugurou em 1944 a expansão dos arranha-céus quando a arquitetura começava seus ataques às reciclagens do passado, declarando o fim das construções ornamentadas, do mundo encantado e teológico manifestado de força e grandes formas, soberania e divindade, do esfacelamento das tradições, tanto na literatura quanto nas artes. A cidade se industrializava, crescia e surgia uma nova atitude preocupada com a produção barata e em larga escala: verticalização. Com projeto do arquiteto White Lírio Martins, o IAPI (como é mais conhecido pelos moradores da capital) foi erguido como o primeiro empreendimento na época a usar blocos verticais, inventando, a partir da relação custo e qualidade, uma nova forma de morar na moderna vida urbana que emergia. “O conjunto IAPI possui um aspecto pesado, robusto, que se


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assemelha a uma fortaleza. A disposição dos blocos em forma de U cria um espaço entre os blocos que se encontra [...] protegido, cercado e restrito”, escreveu o engenheiro Rodrigo Otávio Santana, em um artigo sobre a produção da habitação social na cidade de Belo Horizonte. As árvores circulam essa fortaleza. Algumas se tocam e vistas do alto parecem um grande tapete verde em meio à avenida, com as faixas de pedestres dando um mínimo de cor no rastro cinza que forma o asfalto. Os casebres empilhados e as casas aglomeradas com teto de zinco dão forma à favela Pedreira Prado Lopes, que faz vizinhança com o conjunto. Quem está fora, passando a pé pelos arredores, a cabeça sempre reta para não se distrair com o estranho, ou dentro do ônibus recostado na vidraça, não consegue ver a cidade e seus detalhes. Não permite que o verbo olhar se transforme em enxergar. Deixa-se levar pelos muros. “As pessoas de fora acham que vão ser agredidas. Que aqui é o Carandiru”, desabafa

Adélia Patrocínio, enquanto aproveitava de dentro da varanda do apartamento no primeiro andar o sopro fresco trazido pela chuva. Na mesinha ao lado, o copo de cerveja gelada fazia pingar gotas no tecido branco. O cabelo preso, a roupa despojada para ficar em casa, a voz rouca pelo cigarro Free, os olhos fugitivos e a correia do chinelo Havaianas bordado com flores de miçanga desenhavam a mulher de 54 anos, a enfermeira que é chamada pelos moradores do Conjunto nas emergências. “Eu amo esse lugar”, ela diz. Adélia fala com firmeza na voz e no corpo que quando morrer quer ser cremada, e já avisou a família: suas cinzas devem ser jogadas do alto de um helicóptero para se espalharem pelo IAPI. “Isso aqui é a 8ª maravilha do mundo!”, assegura sem hesitar. No entanto, Adélia discorda quando dizem que o IAPI é como uma cidade do interior, “mas o ambiente é familiar”, adverte, para logo em seguida pontuar que nem por isso precisam abusar da intimidade.

Não há muitas visitas ao vizinho, são raros os telefonemas, mas são frequentes as conversinhas de corredor e o olho curioso entre as grades das janelas. Tem as conversas triviais nas mesas do parquinho ou nos bancos de madeira da praça. Aos sábados, os gritos na mesa de truco ressoam pelos lugares mais próximos, a conversa sobre futebol faz os homens levantarem das cadeiras com a paixão fanática subindo pelas veias do pescoço e as mulheres apenas rindo da situação. A ideia de cidade de interior que ronda pelas escadarias e chega aos ouvidos de quem pergunta se traduz não só pela vida vigiada e comentada, mas também pelos equipamentos coletivos como escola, quadra de esporte, lojas, salão de beleza e mercadinho, dando lugar a uma nova orientação na forma de morar e consumir. O IAPI, portanto, funcionando como uma cidade dentro da outra, um pequeno vilarejo dentro da insana metrópole.

***

Do alto da torre aguda da Igreja São Cristóvão, o sino tocou. A

Depois de um tempo em silêncio, deixou que as palavras escorregassem da boca #12 . urbano . 06/2013


fios embranquecendo no alto da cabeça, Rosemare fechou a porta do apartamento que ganhou do sogro no bloco seis e saiu para trabalhar com a blusa roxa dobrada até o antebraço, uma calça bege sem detalhes, sapatilhas delicadas, o óculos, com uma haste só, amarrado com jeitinho por um elástico transparente e apoiado na ponta do nariz. De estatura baixa, pele negra, e com 51 anos, trabalha há dois meses como estoquista no Pulse, o mercado dentro do Conjunto IAPI que vende desde artigos de papelaria e produtos de beleza ao mais básico para as compras do mês. O marido é professor de artes e o filho de 20 anos estuda Direito em uma faculdade particular. Quando não estava trabalhando, Rosemare gostava de levar o filho na praça para conversar, fazer caminhada, mas agora precisa se desdobrar entre o estoque e o caixa do mercado quando a patroa sai para fazer o horário de almoço. No balcão, uma caixa ornamentada com papel de presente guarda um amontoado de cader-

netas pequenas, onde são anotadas as compras dos clientes. “É a confiança”, disse Rosemare, que gosta de morar no conjunto pela segurança que o apartamento traz e pela facilidade de se chegar ao centro da cidade. Frequentadora da Igreja Universal do Reino de Deus em um bairro próximo, não se incomoda com o fato de ter apenas a igreja católica no lugar onde mora. “Se todo mundo andar com Deus está bom demais. Igreja não leva ninguém para o céu”, diz ela, que também elogia a convivência com os moradores. “Mesmo tendo esse entra e sai, gente sempre migrando, indo e vindo, parece que um guarda o outro. Todos sabem o que acontece no bloco. Perguntam se fulano morreu, se está doente. Aprendi a gostar daqui.” OURO, MINÉRIO E FERRO “Aqui sempre foi alvo de preconceito. As pessoas acham que é local de drogas, mas não é. Há tranquilidade e respeito em nossos

cada quinze minutos ele se põe a badalar, descansando apenas quando à noite o relógio marca dez. Quando a pouca luz da manhã começa a entrar pelos intervalos da cortina, exatamente às seis, ele volta a balançar, fazendo seu ruído meio desafinado acordar uns, irritar outros ou ser ignorado por quem já se acostumou. Rosemare Rocha está há cinco anos no IAPI e já não se importa com o barulho do sino. “De início, irritava”, ela falou. Segurava nas mãos um rolo com adesivos pequenos aonde ia anotando com caneta azul o valor de R$ 0,80 para serem colados nas embalagens de suco em pó. Rosemare trabalha num mercadinho próximo à quadra do conjunto. Pega serviço a uma da tarde e só volta às nove da noite, quando o lugar começa a silenciar. Do lado de fora, o som dos carros na avenida, as sirenes, toda aquela gente empilhada no lotação, o zumbido das hélices e os latidos escondidos pelas esquinas. Com os cabelos amarrados, os

O cheiro das lembranças é lançado no ar quando a fala ganha vida no corpo envelhecido

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lares e, por isso, ao ver as paredes pintadas, aposto que os antigos preconceitos vão desaparecer”, disse Kátia Santos, a filha de dona Dagmar, em uma entrevista para o jornal Estado de Minas, que noticiou sobre a pintura dos prédios do Conjunto Habitacional, iniciada em abril de 2011 e concluída em junho de 2012. O projeto da reforma foi uma parceria entre empresas privadas, a prefeitura e a associação comunitária do Conjunto. Os prédios do IAPI, cruciformes e com blocos que variam de cinco a oito pavimentos, que ocupam uma área de 75 mil metros quadrados e abrigam uma população maior que a de 162 municípios do estado, com 5,4 mil moradores, foram pintados com cores que representam o ouro, o minério e o ferro. Foram necessários mais de 11,5 mil litros de tinta e um custo estimado em R$ 700 mil. Kátia acende outro cigarro. Depois ela vai para o quarto procurar um álbum de fotografias. Kátia tem as unhas e os cabelos tingidos de vermelho. Os olhos verdes e a gargalhada alta. Quando fala, ela interpreta as discussões na igreja e não censura os palavrões. Diz que

é a favor da renovação carismática, mas que a igreja é “preconceituosa” e não quer se “modernizar”. Kátia vive com a mãe e sonha agora em terminar o curso de gestão de eventos. Ela coloca o álbum de fotografias em cima da mesa da cozinha. Organizado em ordem cronológica e com legendas, as fotos em preto e branco, logo depois em cores, mostram o casamento da mãe, a casa no interior e a vida no IAPI quando ainda era cercado por madeira e arame farpado. “Olha eu!”, Kátia diz e aponta com o dedo para a foto da menina “gordinha desde criança” nas páginas coloridas do álbum. Minutos depois, Kátia fecha o álbum e explica: “Não tem mais porque chegou o digital.” Sua mãe fez poucos comentários, só algumas correções, quando, por exemplo, Kátia se confundiu com a irmã. Dona Dagmar, com as mãos brancas e fortes, pintadas de tempo, segurava as 52 cartas do baralho. Colocou as cartas na mesa e começou a jogar Paciência. Depois de um tempo em silêncio, deixou que as palavras escorregassem da boca. Com a cabeça baixa, concentrada, disse: “A vida é um sopro.”

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A A

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ENSAIO




Belo Horizonte, 17 de junho de 2013. Mais de 20 mil pessoas desbravando a Avenida Antônio Carlos rumo ao Mineirão. O protesto reivindicava a redução da passagem de ônibus, melhorias nas áreas de saúde, educação e moradia, e contra o uso abusivo do dinheiro público na realização da Copa do Mundo - 2014. Um Brasil contaminado por um grito uníssono de transformação. As fotos deste ensaio são de Maxwell Vilela, do coletivo Maria Objetiva, que já registrou a Marcha das Vadias, Duelo de MC’S, o “Fora Feliciano”, e outros eventos culturais da capital. #19 . urbano . 06/2013


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O 2° Ato contra o aumento das passagens de ônibus em Belo horizonte, no dia 17/06/13, foi cercado de controvérsias. 60 mil manifestantes fecharam a avenida Afonso Pena, umas das principais vias de acesso ao centro. Vivenciamos uma verdadeira cena de guerra. Numa manifestação pacifica, os jovens foram dispersados pela tropa de choque com balas de borracha, gás lacrimogênio e muita bomba de efeito moral, impedindo de chegarem ao Mineirão. #22 . urbano . 06/2013


Manifestante se arriscando, num ato de protesto, contra a chuva de balas e gás lacrimogênio, na avenida Afonso Pena. A intenção era chegar ao Mineirão, mas a Polícia Militar tinha ordens para não permitir que isso acontecesse.

Depoimento do fotógrafo Maxell Vilela

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ENTREVISTA

Uma conversa com Carlos Moreira, Presidente da Terra Viva Organização Ambiental Texto: CLARA SENRA

Lagoa da Pampulha, o mais importante ponto turístico de Belo Horizonte está ameaçado. A primeira etapa da construção da barragem da lagoa foi iniciada, em 1936, pelo então prefeito de Belo Horizonte, Otacílio Negrão de Lima, e concluída em 1938. A segunda etapa iniciou-se em 1940 e foi concluída em 1943, já na gestão do prefeito Juscelino Kubitschek, quando ficou com 16,50m de altura. Para entendermos um pouco melhor sobre como a Lagoa da Pampulha chegou ao ponto de tanta poluição, a URBANO conversou com o empresário Carlos Moreira, Presidente da Terra Viva Organização Ambiental, que participa ativamente de audiências sobre a limpeza e preservação da lagoa. #24 . urbano . 06/2013


Carlos, como você pode me descrever a lagoa da Pampulha na sua infância? No início dos anos 40 e meados dos anos 60, ir à Lagoa da Pampulha era o passeio preferido pelas famílias da capital mineira, principalmente os passeios de barco ou canoa. Mas hoje, infelizmente, o assoreamento está matando a lagoa, sem falar no mal cheiro. Hoje moro na região da Pampulha e vejo que tudo isso se perdeu; porém, há expectativas de despoluição e vou torcer sempre para ver a lagoa como era antes.

A má educação ambiental, falta de legislação eficaz, ausência de fiscalização, ocupações desordenadas, dentre outros diversos fatores. O esgoto, por exemplo, é outro problema que atinge a lagoa da Pampulha.

Houve alguma desvalorização por conta do mau cheiro e da poluição? O impacto da destruição é tão grande que os imóveis no entorno da Lagoa da Pampulha desvalorizaram. Sem contar que ela perdeu a função contemplativa e Conte-me um pouco sobre o es- deixou de ser uma excelente atratado da lagoa nos dias atuais. ção para uma cidade sem opções A Lagoa da Pampulha está em seu como é Belo Horizonte. É muipior momento. Ela nunca esteve to importante que as pessoas se tão maltratada, não consegue mais conscientizem, para que aquela amortecer as enchentes, e com o lagoa de antes, limpa e preservaexcesso de esgoto e pouca água da, possa trazer todo valor à vida tornou-se incapaz fornecer mais de volta. água para a COPASA, pois o tratamento é caro. E hoje não se pode Como é o projeto “Somos Pamcolocar nem um dedo na água, pulha” dentro da ONG Terra tamanha a contaminação. Mas a Vida? prefeitura diz que a lagoa vai estar A ONG Terra Vida abriga o prolimpa para a Copa de 2014. jeto Somos Pampulha, que tem a Quais são os fatores principais finalidade de apresentar para a poda poluição da lagoa da Pam- pulação de Belo Horizonte os seus pulha pilares na luta pela preservação da

vida na lagoa da Pampulha. Os seis pilares são: desassorear, reduzir e retardar o novo assoreamento, retirar o esgoto dos córregos, reivindicar o tratamento da água na lagoa, preservar nascentes e cursos d’água e educar as pessoas sobre o meio ambiente. Qual é a verdadeira solução para que a lagoa da Pampulha volte a ser como antes. Os próprios moradores próximos à lagoa não contribuem com a limpeza, portanto é necessária a inclusão de discussões ambientais nas atividades transdisciplinares de todas as escolas da bacia, incentivar o empreendedorismo socioambiental. É importante a formação de uma rede social nas escolas, que envolva os alunos, os funcionários, professores, as famílias de todos eles, bem como as comunidades, em ações teóricas e também práticas. O poder público tem que realizar campanhas nas diversas redes de comunicação, como jornais, rádios, TV, outdoor, entre outros, informando os cidadãos de seus direitos e deveres, fornecendo canais para orientação e denúncia.

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SOCIEDADE

PROFISSテグ a t u t i t s o pr #26 . urbano . 06/2013


Precisava ganhar mais, então acabei nessa vida. O dinheiro vem mais rápido. Muitas vezes o cliente é carinhoso, bonito. Tenho orgasmos. Ganho chocolates, perfumes e joias. Já senti atração. Sempre uso camisinha, minha saúde é mais importante. Vou ao ginecologista duas vezes ao ano. Minha família não sabe, só meus amigos. Tenho vida dupla. A vida como prostituta acaba rápida. Sou ambiciosa. Os clientes fiéis costumam agradar muito. Meu ginecologista sabe que eu sou prostituta. Prefiro me manter distante do preconceito. Alguns não aceitariam se soubessem. Tenho família. Quero estudar. Conseguir outro emprego. É um trabalho provisório. A beleza é perecível. Trechos do depoimento de Vanessa*, 27 anos, e prostituta. *nome fictício

Texto: KARLA AMARAL

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Homens entrando em portas pequenas, descendo e subindo escadas. A rua movimentada. Centro de Belo Horizonte. Rua Guaicurus: história de boemia e prazer. A rua é conhecida por suas inúmeras cabines eróticas e zonas de prostituição. Já era conhecida, desde a década de 30, por seus cabarés luxuosos e heterogêneos. Tinha para todos os gostos e bolsos. Com bares e shows, era um local de sociabilidade e entretenimento, onde, muitas vezes, a prostituição ficava subtendida. Naquela época, a frequência dos homens nos cabarés era tolerada, afinal a sexualidade masculina precisava ser satisfeita. A exposição da prostituta no espaço público era condenada, daí os cabarés serem uma forma de conter e regulamentar a prostituição pela cidade.

Os tempos mudaram e com ele a representação social da prostituta também mudou. Hoje, nos fundos de um estacionamento, a Associação das Prostitutas de Minas Gerais (APROSMIG) faz seminários sobre prevenção, violência e preconceito. São 4.500 mulheres associadas. A APROSMIG foi fundada em 2009 por Maria Aparecida Menezes, a Cida, como é mais conhecida. Há 20 anos fazendo ponto na avenida Afonso Pena, Cida é filha de bancário, estagiou no Banco Central e fez curso de medicina chinesa. Decidiu, aos 24 anos, ser uma profissional do sexo. “Sou prostituta por opção”, diz. Em 2009, Cida foi abordada pelo Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS (GAPA), em um trabalho de conscientização com as prostitutas da Afonso Pena. E foi daí que surgiu uma parceria para fundar

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a APROSMIG, uma entidade sem fins lucrativos ou parcerias com o governo. “A gente trabalha como pode”, afirma. O aluguel da sala onde funciona a sede é pago pela Associação dos Amigos da Rua Guaicurus (AARG), gerenciada pelos donos de hotéis da região. As “meninas” (as prostitutas associadas) doam, mensalmente, uma quantia para custear os gastos com o telefone. E as ações de prevenção e saúde são feitas pelo SUS. “O trabalho sexual é igual a qualquer outro serviço. O que determina ser sexual é que cada pessoa trabalha com alguma parte do corpo para se manter. Uns trabalham com o pé; outros trabalham com a cabeça; outros, o braço. A diferença é a parte do corpo que está sendo explorada naquele momento”, explica Cida.


Avenida Afonso Pena: coração pulsante de Belo Horizonte. Observo o vai e vem de quem passa por ali. Algumas pessoas perdidas em pensamentos. Alguém esbarra em mim. Ouço uma voz. Peço desculpas. Continuo subindo e percebendo o funcionamento da principal avenida da cidade. Buzinas, vozes de homens, mulheres e crianças se misturam. Olho o cenário que se apresenta. O sol ainda é soberano. Quando a noite chega, o espaço ali se transforma. As personagens que agora entram em cena são compreendidas por uns e desprezadas por outros. No rosto uma maquiagem pesada. Usam e abusam da sensualidade. Roupas justas para realçar as curvas, para chamar a atenção. Elas exercem a mais antiga atividade remunerada do mundo. Elas são prostitutas. Algumas ficam em grupos;

outras, sozinhas. O horário de maior procura dos clientes é logo após as 10 horas da noite. Os carros param e as garotas debruçam o corpo sobre a janela aberta dos veículos. Cada uma faz seu preço. Pâmela* tem 22 anos e há três trabalha como prostituta. O motivo, ela diz, foi o lado financeiro. Ela morava com os pais, mas queria um canto só seu. O dinheiro que ganhava como vendedora não era suficiente para se bancar. Virou garota de programa. Pâmela diz que sente vergonha do que faz. “Tem muito preconceito por aí. Quando ficam sabendo que sou garota de programa, logo olham de um jeito estranho, como se fossem pegar alguma doença contagiosa. Mas eu conheço muitas meninas que não se importam com isso”, desabafa. As prostitutas não estão

isentas da vulnerabilidade. A falta de segurança é fator que gera medo e desconfiança. Elas estão desprotegidas. Seja na rua ou nos quartos dos hotéis. Cida, líder da APROSMIG, questiona: “Nós não podemos fazer ocorrência hoje. Eu, enquanto mulher, fora da prostituição, tenho todo o amparo. O que não acontece quando estou no meu trabalho. É por isso que a gente luta”.

Descrever a história dessas garotas remete, inevitavelmente, aos tabus em relação à mulher e sua sexualidade. A imagem social sobre a prostituta ainda é alvo de estigmas superficiais, sendo encarada de forma marginalizada pela sociedade. A categoria, em busca da regularização da profissão, luta por reconhecimento. Depoimento da repórter Karla Amaral #29 . urbano . 06/2013


arte_Jéssica Amaral

PONTO FINAL



BELO HORIZONTE JUN. 2013

URBANO


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