Da Real Barraca ao Poial da Talidomida

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Há um axioma das grandes obras que diz que as grandes obras tendem sempre para ficar incompletas, ou só serem acabadas lá muito fora de horas. Na curta versão nacional, todos sabemos que tais obras nem sequer têm direito ao interlúdio, pois muitas vezes há quem se encarregue de as empurrar logo para o mal-amanhado. E, por fim, cansados de teorias e mergulhados na realidade, o que na verdade vemos é que Portugal está completamente cheio de obras de santa engrácia. Uma vez chegados a este impasse, cumpre afirmar que o Palácio da Ajuda sempre foi, e por muitos mais anos se arrastará, como uma das mais célebres obras de santa engrácia da capital. Penso derivar tal fado de longos anos de erros acumulados, de todos os erros provindos do Gosto, e, mais ainda, dos erros saídos da perda do Brasil, e, sobretudo, dos piores erros, os erros nascidos da política, da estupidez e da venalidade humanas. Na realidade, quando se concebeu a Ajuda, já nós estávamos demasiado fora de horas, e sem os dinheiros capazes de a levar a bom termo. Sucede que, cem anos antes, já todos esses cabedais tinham sido enterrados em Mafra, para maior proveito das barrigas de freira. E tudo isso tinha acontecido naquele tempo em que a Europa inteira andava a medir-se, e a copiar Versalhes, enquanto nós continuávamos de olhos postos num novo Escorial. Veio depois o Terremoto e a independência do Brasil, e, só por isso, a nação empobreceu 50%. E, depois, ainda foi empobrecendo mais, e empobrecendo sempre, e, de empobrecimento em empobrecimento, lá chegou ao Salazar do seu empobrecimento final. Cumpre dizer que, ao longo de todo esse calvário, o sonho neoclássico da Ajuda se ia atolando no pior dos seus incumprimentos. Nesse estado de incumprimento ficou, no topo da sua Real Barraca, qual Esfinge, demasiado visível, incompleta e interrogadora. E de tal modo lá continuou que se tornou, de todos os pontos da cidade, na


mais impertinente das visões. Nesse estado, e uma vez amadurecida tal impertinência, ela finalmente se instituiu, taciturna e melancólica, num profundo problema dos lisboetas. Para os leigos, cumpre dizer que o palácio da Ajuda tem, como vista preferencial, o original da sua fachada sul. Esta escolha não é ingénua, e constituiu uma decisão política dos arquitetos reais: por ela, todo o palácio deveria exibir, um dia, um máximo esplendor em todos os lugares paralelos de aquém e além-rio. Depois, acabou por vir o Tempo, que tornou esta fachada ainda mais surpreendente, e a converteu num notável horizonte de todos os transeuntes da Ponte e da Viagem. A persistência desta visão metamorfoseou cada cidadão num improvisado arquiteto. Na verdade, todos os metropolitanos alguma vez sonharam com completar o Palácio. Ao tornar-se coletivo, tal exercício converteu-se numa volatilidade idiossincrática da capital. Universalizou-se depois, já numa forma culminante de exercício da participação, do civismo e da Cultura. Diz esta globalização que todos os lugares notáveis da Nação sempre deveriam seguir o guião dos debates públicos, pois apenas na dialética das ideias se pode garantir que seja sempre a ética do traço a assegurar o desejado devir das formas. Tal não foi o entendimento do senhor Medina e dos seus amigos, e assim se entregou a solução da coisa a um triste conjuro de capelinha de cidade provinciana. Dada a ausência de tal debate, todos esses projetos líricos e utopias ficaram pela imaterialidade, sem jamais se poderem inscrever no Futuro. Todavia, ainda que na forma de eloquência muda, todos eles são uma agora uma indelével acusação. E esta sua acusação é que nenhum deles se teria atrevido a ser tão mau quanto o abuso do senhor Medina. E foi assim que se pode agora concluir que o atentado deste bando de amigos não se limitou a um mero atentado contra um punhado de críticos renitentes, mas antes enformou um brutal atentado contra duzentos anos de prática da cidadania nacional. Finda esta longa introdução, eu vou agora subir o tom, e passar direto à imagem fatal. Eles já fizeram o seu erro, mas eu vou agora chapar-lhes com a alcunha, pois este texto é um texto assumidamente assassino. Sobrevoemos, pois, as más histórias dos anos 60, e perguntemos por uma panaceia das grávidas, sedativa, anti-inflamatória e hipnótica, nesse tempo, livremente vendida, com o nome de Talidomida. Dizia-se que a talidomida servia para tudo, e até servia para a teratogenia, o nome que a clínica dá à capacidade de gerar monstros. Na verdade, a talidomida era eficaz, e cumpria com afinco todas as suas promessas e prodígios, pois por todo o lado se multiplicavam crianças sem pernas, se vulgarizavam bebés sem braços, e se passaram a encontrar muitos meninos, com pequenas mãos cuspidas diretamente dos ombros... Penso que, se isto não era o horror, então, o horror não deveria ter andado muito longe disto. Chegados ao horror, poderíamos então pensar que talvez o horror tivesse sido capaz de dar qualquer lição aos homens. De facto, a História mostra que os homens nunca aprendem nada, e muito menos aprenderam com o horror. Na realidade, a teratogenia deixou a farmacopeia, mas para se disseminar, em mancha, por todas as outras direções. E uma destas direções é a Arquitetura, e, dentro dessa Arquitetura, alguns caminhos de alguns dos piores sobressaltos portugueses. Hoje, ao olhar para a silhueta da Ajuda, e sem saber por quê, voltou-me à ideia o mau momento da Talidomida. Ao esfregar os olhos, voltei a olhar para cima. Lá bem no topo, o Palácio indefeso persistia, e ostentava o seu longo corpo centenário, todo feito da simetria neoclássica das janelas. Também à direita se mantinham os torreões quadrados, na forma de duas sólidas coxas. A novidade era que, do outro lado, alguém tinha agora decapitado o palácio dos reis de Portugal. E, pior ainda: para disfarçar o guilhotinado, o Terror tinha-lhe dado uma forte talidomida, para fazer nascer à pressa, no lugar dos ombros, um monstruoso par de ridículas Mãozinhas...

Luís Alves da Costa, Dia de Portugal, 10 de junho de 2021


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