MANOEL DE OLIVEIRA E N T R EV I S T A A. R. T. — Vamos começar por OS CANIBAIS e depois iremos aos filmes anteriores. Podíamos começar pela questão da ópera. Como é que surge este filme como uma ópera e como é que o Manoel de Oliveira concebeu a adaptação do conto do Carvalhal em termos de música, de ópera, não é?... M. O. — Bem, em termos de música, foi o João Paes que musicou. A. R. T. — Mas a solicitação foi sua... M. O. — A solicitação é dele. Ele é que mostrou um grande empenho em escrever uma ópera. Em escrever música para uma ópera. Falou-se nisso quando eu estava em Washington para apresentar o SOULIER DE SATIN. Ele é lá conselheiro cultural, junto à Embaixada, e, em conversa num almoço, ele manifestou esse desejo. Eu não me pus de fora e lembrei-me logo do conto do Álvaro de Carvalhal, «Os Canibais», que ele não conhecia. Dei-lhe mais ou menos uma ideia do que se tratava e ficou assente que eu faria a adaptação quando voltasse para Portugal e lha mandaria para ele musicar, visto que ele não conhecia o texto. Eu fiz a adaptação, já em forma de «découpage», e mandei-lha. E, com base nisso, ele escreveu a música, a música enfim duma ponta à outra. Quando eu recebi a música, pedi a um músico para me dividir os compassos, para me indicar as pausas do canto, e ele dividiu-me por tracinhos o texto musicado. E eu refiz o «découpage» para acertar melhor com essas pausas. Depois entretanto gravou-se a música e uma vez a música gravada em cassette eu refiz novamente a montagem, ouvindo já a música, para acompanhar os movimentos. A. R. T. — Portanto a primeira fase foi mesmo a gravação da música tal como está no filme. M. O. — Foi, foi. A. R. T. — Isso foi prévio à rodagem... M. O. — Foi prévio... Não era possível doutra maneira. A música foi gravada antes. Quer dizer nós tínhamos o efeito da música, mais ou menos o comprimento do filme, visto que o filme não podia avançar mais ou retardar em relação a uma música que já estava escrita. Portanto, a música estava escrita, escolheram-se os cantores, por um lado, que foi o trabalho do João Paes, as vozes que melhor se adaptariam a cada uma das personagens e fez-se a gravação do canto. E fez-se, paralelamente a gravação da música, ou seja, foram duas gravações, a música por um lado, o canto por outro. Uma questão de conveniências técnicas. E depois juntou-se o canto e a música e quando se filmava, punha-se o trecho que convinha àquele momento e filmava-se ouvindo a música. Os actores cantavam o que ouviam. A. R. T. — E como foi o trabalho com os actores, uma vez que houve essa opção de escolher actores e não cantores... M. O. — Eu escolhi os actores que se adaptassem às personagens sobretudo e também às vozes. Tinha que condizer a cara com a careta. E pedi para que se fizessem ensaios com uma musicóloga. E assim se fez. Durante mais ou menos um mês antes das filmagens os actores faziam ensaios para ouvirem e cantarem, para imitarem, para o sincronismo e para que a expressão coincidisse e até para que se familiarizassem com o processo. De maneira que quando fomos, coros e não coros, para a filmagem essa dificuldade estava, por assim dizer, desbravada. A. R. T. — Ainda sobre este aspecto. Havia algum desejo seu de fazer uma ópera em cinema ou de trabalhar com a palavra cantada ou nunca lhe tinha passado isso pela cabeça antes da conversa com o João Paes. M. O. — Não, sabe... Tinha, tinha. Até tinha sido convidado já para filmar uma ópera na Bélgica, e interessava-me. De certa maneira, era um ponto que estava mais ou menos latente, cá dentro. Mas, quanto à formalização disso é que não aparecia assim nada de concreto. E este foi um desejo grande do João Paes e da minha parte foi um desejo de satisfazer o desejo dele e ao mesmo tempo também satisfazer uma experiência nova, que não é tão nova como isso porque, na verdade, o SOULIER DE SATIN para mim é uma ópera. Quem diz o SOULIER DE SATIN diz outro filme qualquer, mas o SOULIER DE SATIN porque o texto, a palavra do Paul Claudel é extremamente musical. Ele mesmo o diz. Portanto, quem fechar os olhos e abstrair o significado das palavras, ouve como que