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magazine > palavra | por Philologos*
Não, os liliputianos não falavam hebraico NÃO, NÃO TEM FUNDAMENTO A IDEIA DE QUE OS GULLIVER, CLÁSSICO DO ESCRITOR ANGLO-IRLANDÊS JONATHAN SWIFT (1667-1745), FALAVAM HEBRAICO, COMO PROVA NOSSO ESPECIALISTA EM LÍNGUAS
LILIPUTIANOS DE VIAGENS DE
U
m texto sob o título “Será que os liliputianos falam hebraico?” foi publicado em importantes jornais do mundo e, claro, no Jerusalem Post, em cuja fonte os sites judaicos foram beber e o reproduziram. Ou estes: “ ‘Viagens de Gulliver’ decodificada”, “Cientista decifra mistério de palavras em ‘Viagens de Gulliver’ ” e “Linguista da Universidade de Houston explica língua secreta de ‘Viagens de Gulliver’ ”. O último desses títulos apareceu em um comunicado de imprensa divulgado em meados de agosto pela Universidade de Houston (Texas) que, parece, base de todas as outras histórias. O comunicado, por sua vez, cita artigo publicado pelo professor do Departamento de Literatura Inglesa da universidade, Irving N. Rothman, no último volume do Swift Studies (Estudos sobre Swift), análise cultural anual que trata de Jonathan Swift (1667-1745), autor de Viagens de Gulliver, publicado pelo Centro Ehrenpreis Westfälische Wilhelms da Universidade de Münster (Alemanha). Como, no entanto, não encontrei nenhuma forma de ter acesso a esse volume, ou ao artigo integral de Rothman a respeito de “The ‘Hnea Yahoo’ of Gulliver’s Travels and Jonathan Swift’s Hebrew Neologisms” (‘Hnea Yahoo’ de As Viagens de Gulliver e neologismos hebraicos de Jonathan Swift”), resta-me o comunicado de imprensa. E, acreditem, trata-se de rematada bobagem. O comunicado de imprensa dá a Rothman quatro razões para sugerir que ele teve êxito em descobrir as origens hebraicas do “quebra-cabeça de 289 anos” das línguas faladas pelos liliputianos, brobdingnags e yahoos, três dos povos estranhos encontrados por Gulliver nas viagens. A saber:
1) A língua dos brobdingnags tem 22 letras, assim como o hebraico. 2)
Quando, no primeiro capítulo do romance, o náufrago
Gulliver desperta e se descobre amarrado no chão pelos minúsculos liliputianos que pululam em torno dele com pequenos arcos e flechas, um deles grita Hekinah degul, uma frase depois repetida duas vezes. Degul significa “bandeira” em hebraico e hekinah, “transferir, transmitir ou dar”, portanto “se pode deduzir que Hekinah degul diz respeito a uma postura militante, oferece uma tela de cores, e insta Gulliver a capitular diante da bandeira liliputiana”.
3) Na mesma cena, Gulliver descreve os liliputianos dando-lhe duas de suas pequenas barricas de vinho e sinalizando para atirá-las para baixo, depois de esvaziá-las, “primeiro alertando as pessoas abaixo para ficar fora do caminho, gritando em voz alta Borach mevolá”. Borach é “uma variante do hebraico Boruch, ou abençoado”, e mevolá, de mivolam ou mivolim, significa “derrota total”. Ou seja: “Ao beber todo aquele licor Gulliver fica desamparado e em estado de embriaguez”.
Esse é o argumento todo, e por demais absurdo para ser refutado. De todo modo, vamos lhe dar o benefício de alguma resposta. Aos números, pois:
1) O alfabeto árabe tem 28 letras. Se o alfabeto brobdingnagiano tivesse o mesmo número, isso poderia sugerir que os brobdingnags falam árabe? 2)
Embora a palavra hebraica para bandeira seja degel, não degul, hekina poderia concebivelmente ser a versão de Swift para hachiná, forma imperativa de um verbo que significa “preparar-se”, e não (como Rothman disse) “transferir” ou “dar”. Mas não só não há menção de bandeiras nesta cena, como não existe a mais remota sugestão de uma. Além disso, a nota de imprensa da Universidade de Houston não menciona que há outras três expressões liliputianas na mesma cena, e que Rothman, aparentemente, não relata porque escapam até mesmo à sua ginástica mental. Uma delas é tolgo phonac, uma ordem para atirar as flechas destinadas a Gulliver; a segunda é langro dehul san, um comando para libertá-lo de suas amarras; e a terceira é hurgo, palavra pela qual os liliputianos, Gulliver diz: “Como soube mais tarde, chamam um grande senhor”. E daí? Onde está o suposto hebraico nestas expressões?
3) Além do fato de que “Bendita seja a derrota completa” seja algo muito estranho para os liliputianos dizerem a respeito de um Gulliver embriagado (vale notar que em nenhum lugar consta que ele está bêbado), em hebraico não existe tal palavra ou similar a mevolá, mevolim ou mevolam. Na verdade, nem imagino o que levou Rothman a pensar que houvesse essa expressão, muito menos que a mesma significasse “derrota completa”. 4) A passagem em Viagens de Gulliver com a frase hnea-yahoo diz o seguinte: “Eu, de fato, observei que os yahoos eram os únicos animais neste país sujeitos às doenças...
4)
O nome dos yahoos bestiais para si mesmos é derivado de “Yahweh”, uma pronúncia conjecturada do tetragrama bíblico YHWH, o sagrado nome de quatro letras de Deus. Isso fica claro pelo uso da frase hnea yahoo, a palavra hnea lida de trás para frente aenh ou a palavra hebraica eyn, “que significa ‘não’”. Embora “os críticos reconhecessem a natureza pecaminosa e venal dos yahoos... nenhum notou o fato de que hnea yahoo pudesse representar o yahoo como a antítese da divindade”.
A IMAGEM CLÁSSICA DE GULIVER ENFIM AMARRADO PELOS LILIPUTIANOS
Nem a sua linguagem tinha mais do que uma denominação geral para estas doenças, que é emprestada do nome da besta, e chamada hnea-yahoo, ou o mal de yahoo; e a cura prescrita é uma mistura de seu próprio esterco e urina, forçosamente colocada garganta abaixo do yahoo”. Antítese da divindade, alguém acha? Tudo isso não valeria mais que boas risadas e rápido esquecimento não fosse por várias perguntas impertinentes. Por que um professor de inglês, que obviamente pouco ou nada sabe de hebraico, decidiu-se em condições para escrever a respeito do suposto uso que Swift fez do idioma? Por que os editores de um jornal sério como Swift Studies publicaram tal absurdo sem antes enviar o texto para um parecer competente? Por que a Universidade de Houston decidiu que tinha um instrumento de relações públicas sem antes consultar gente do ramo? Por que publicações como Guardian, Daily Mail, Times of Israel, Jerusalem Post e também a Mosaic e outros regurgitaram o comunicado de imprensa da universidade, como se fosse digno de consideração séria? Mas é como um antigo sargento do exército de Israel dizia: lama sho’alim b’Pesach (porque fazemos perguntas em Pessach). Se você espera resposta à pergunta “por que”, espere por Pessach e suas quatro perguntas. * Philologos é linguista
Por que os editores de um jornal sério como Swift Studies publicaram tal absurdo sem antes enviar o texto para um parecer competente? Por que a Universidade de Houston decidiu que tinha um instrumento de relações públicas sem antes consultar gente do ramo?