Revista Continente - matéria Guy Veloso

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Nascida para ser senhora de engenho, Flora de Oliveira Lima seguiu o marido diplomata em sua carreira internacional

# 204

ano XVII • #204 • dez/2017 • r$ 13,00

MÊS DE LUTA CONTRA A

AIDS

CONTINENTE

Nesta edição, um dossiê apresenta a situação atual da epidemia no Brasil, num alerta às novas gerações

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E MAIS JOÃO SILVÉRIO TREVISAN GUY VELOSO • MESTRE DILA

DIÁRIO DE FLORA

A mulher que deu suporte intelectual a Oliveira Lima




Nesta Edição Desde que existe Aids Você pode se perguntar, leitor, o motivo de prepararmos um dossiê de 20 páginas sobre os 35 anos da presença da Aids/ HIV no Brasil. Uma revista “de cultura” deter-se de tal modo sobre um assunto de saúde… Mas, pensar assim, seria como imaginar que podemos separar nosso corpo da nossa mente, nosso coração dos nossos ossos. Isso não podemos. A vida não se separa da arte, a cultura é a própria existência. Esse foi nosso ponto de partida para trazer um assunto que é silenciado, mas cuja realidade se espalha insidiosamente, atingindo pessoas que não estão querendo pensar sobre o sexo que estão praticando e que viver a sexualidade, em todas as suas dimensões, é vivê-la também com responsabilidade por si e pelo outro. Como se não fosse pouco o fato de muita gente estar sendo infectada por não considerar os riscos que implicam desconhecer os cuidados com o corpo, há um contexto de ultraconservadorismo que quer silenciar o debate, impedir a educação nas escolas, impingir o medo e a castidade, definir modelos de se relacionar e amar, como se a história não tivesse ensinado a ineficácia disso. Numa reportagem repleta de dados relevantes, fontes representativas do contexto, cuidado com o tratamento do assunto, Luciana Veras, repórter especial da Continente, não deixou um aspecto de fora da discussão. São muitos depoimentos relevantes, de gente que lida diariamente com as questões da soropositividade. Porque silenciamos, o HIV se espalha com mais rapidez. Sobre isso, um trecho do dossiê: “Outro aspecto notável é um conjunto de ramificações: houve a pauperização, a interiorização, a feminização e o entardecer da Aids. A epidemia assola os mais pobres, chegou às cidades do interior, hoje as mulheres são 51% das pessoas com HIV no mundo, conforme o Unaids, e o aparecimento de pílulas para disfunção erétil reacendeu a vida sexual na ‘boa idade’, com o agravante de que homens septuagenários e mulheres sexagenárias nem sempre se acostumaram ao uso de camisinhas ou se achavam imunes a uma infecção ainda atrelada à impressão de populações-chave – pessoas que usam drogas injetáveis, homens que fazem sexo com homens (HSH), profissionais do sexo, pessoas trans e seus respectivos parceiros sexuais”. Agora, como em 1989, as palavras Ignorance = Fear (ignorância = medo) e Silence = Death (silêncio = morte), estampadas em obra de Keith Haring, fazem um imenso sentido. Nossa capa: Acervo Arquivo Público João Emerenciano/Cortesia

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4 Entrevista João Silvério Trevisan

Escritor fala sobre o seu mais recente livro, Pai, pai, no qual ele revive sua relação difícil com a figura paterna

10 Curtas Nó do Diabo

Longa-metragem utiliza o terror como gênero para discutir a escravidão no Brasil

14 Portfólio Guy Veloso

Fotógrafo documenta manifestações religiosas em imagens que registram o transe e a transcendência

22 Dossiê HIV/Aids: 35 anos

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Dossiê-reportagem trata da epidemia, desde o seu aparecimento, e mostra que o estigma permanece

42 Ensaio Flora de Oliveira Lima

Seu diário aponta a intensa participação na produção intelectual do marido, Oliveira Lima

52 Depoimento Ricardo Lísias

Escritor conta sobre seus embates com a Justiça por conta de obras de ficção e critica a censura à arte

60 Artigo Magnum

Uma das mais icônicas e influentes agências fotográficas foi criada há 70 anos

65 Lançamento Mário Sette

Cepe Editora relança a obra Arruar – História Pitoresca do Recife Antigo, de 1948

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74 Perfil Dila

A imaginação prodigiosa do autor de desenhos e histórias de cordel, que também é exímio editor

80 Crítica Morte do autor

Há 50 anos, Roland Barthes , Foucault e Derrida decretaram o fim da autoria. E essa ideia, hoje?

84 Indicações Sugestões de leituras, shows, exposições e

documentários disponíveis para fruição este mês

86 Online + Cartas + Expediente 88 Saída Cartum por Orlando Pedroso

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PEDRO STEPHAN/DIVULGAÇÃO

Entrevista

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JOÃO SILVÉRIO TREVISAN

“O PERDÃO IMPLICA UMA FORMA DE REBELIÃO” Autor conversa sobre o atual momento de censura artística e sobre o seu recente livro, Pai, pai, em que constrói uma narrativa pessoal a partir da descoberta da homossexualidade, da difícil relação com a família e da ausência de afeto paterno TEXTO MARIANA FILGUEIRAS

Em meio ao espectro moralista que voltou a assombrar as manifestações artísticas brasileiras, que faz lembrar a “temperatura sufocante e ar irrespirável” de outrora, o escritor e diretor João Silvério Trevisan abre um janelão por onde entra muita luz e ar fresco. “Enquanto eles gritam, nós criamos”, diz ele, em entrevista à Continente. Aos 73 anos, com 13 livros publicados, três prêmios Jabuti, um prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e a carapaça de quem teve um filme proibido pela ditadura por mais de 10 anos (Orgia ou O homem que deu cria, de 1970), ele lança o livro de memórias Pai, pai (Alfaguara), um corajoso

acerto de contas com a própria história – que também tinha o bafo quente da censura moral no seu cangote, centrada na figura do pai. Na obra, João expia o sofrimento pela descoberta da homossexualidade na juventude, a fuga para o seminário, a difícil relação com a família e a completa ausência de afeto paterno. A luz vem exatamente daí: ao final de um longo processo de elaboração da dor, o autor oferece a própria vida como matéria artística. “Desarmei processos pré concebidos dentro de mim. O perdão implica um gesto possível de superação que nos liberta de perigosas cadeias emocionais”, acrescenta ele, que tirou o título de um versículo bíblico

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desconcertante. “Pai, pai, por que me abandonaste?” (Mateus, 46, 27). Nessa conversa, João Silvério abre ainda outras janelas: compara a censura vivida por ele durante a ditadura militar à dos tempos atuais, defende a criação artística como espaço de resistência, recusa o vitimismo de uma literatura sentimentalista, acusa a sociedade falocrática de não fazer as perguntas certas diante de episódios simbólicos – como no caso do menino deixado pelo pai numa cela de presídio no Piauí –, fala da relação entre a dor e a potência literária e enumera as obras de arte que o ajudaram, ao longo dos anos, a ver o céu mais azul. “A beleza criada leva quem a criou a partilhar um pouco do divino”, garante João.


Entrevista

CONTINENTE Dada a crescente ameaça de censura e reações de ódio contra expressões artísticas, você acredita que estejamos vivendo o pior momento para a classe no Brasil? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Concordo que seja um momento muito crítico, mas não sei se é o pior – considerando o que já houve. As novas gerações não têm ideia dos 20 anos de ditadura militar, a partir de 1964, em que o controle censório sobre a expressão artística e política ocorria em várias frentes, de maneira sistemática. Hoje, não há um projeto formal de censura, o que permite o debate, bem ou mal. Em compensação, há um projeto de ditadura não explícita que nasce de ressentimentos antigos, praticamente incontroláveis no ambiente de uma suposta democracia. Se a ditadura de ontem impedia totalmente o processo democrático, a democracia de hoje é um terreno aberto para ideias totalitárias vicejarem, como de fato está acontecendo. Do ponto de vista político, estamos diante de uma situação dramática. Mas os pesos e contrapesos do regime democrático ainda permitem que se respire alguma liberdade. A necessidade de resistência hoje é a mesma que já praticamos no período da ditadura. Quanto mais reação conservadora, maior deve ser nossa resistência democrática. CONTINENTE O retrocesso o desanima ou o inflama? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Obviamente, é um processo que assusta, porque vai na contramão das conquistas democráticas já consolidadas. Olhando a seco, dá desânimo. Olhando de modo mais abrangente, apenas incentiva a prática libertária de permitir, ainda mais, que todas as expressões cidadãs sejam contempladas no ambiente democrático. Parto do princípio de que não deve haver retrocesso em conquistas sociais, portanto, a resistência é uma consequência natural. Se hoje o projeto moralista e autoritário tem como intuito a instauração de uma ordem teocráticomilitar, nós continuaremos aqui, mais presentes do que nunca, para dizer: não passarão. É engraçado? Nem um pouco. Mas é estimulante, sim. Enquanto eles gritam, nós criamos:

Há um projeto de ditadura não explícita que nasce de ressentimentos antigos, praticamente incontroláveis no ambiente de uma suposta democracia obras, ideias, projetos, leis, espaços de resistência. Se eles propõem a destruição, nós respondemos com a criação. Nós sabemos que a liberdade está sempre em construção, deve ser conquistada sem descanso. É nossa vantagem sobre a ordem estratificada que o estado autoritário propõe. CONTINENTE De que forma você espera que o livro Pai, pai contribua para esse debate? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN O que eu fiz foi relatar uma vida. Ninguém pode negar minhas experiências de vida, o que inclui dores, amores e lutas contra a corrente. A realidade vivida se coloca muito acima de quaisquer propostas dogmáticas, que são abstratas, sujeitas a humores e interesses até escusos. Diante de uma história de vida, nenhuma reação de desaprovação poderá apagar o que aconteceu. No máximo, podese argumentar que estou mentindo, inventando, exagerando. Mas isso não prejudica a legitimidade da minha narrativa. A vida comporta verdades que não cabem em manuais doutrinários, porque essas verdades

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nasceram de experiências pessoais únicas. Robôs de Deus não sabem sequer rezar, ainda que citem a Bíblia sem parar. Nós não citamos palavras alheias: nós vivemos aquilo que somos. Se meu livro pode contribuir para o debate é exatamente nesse sentido: vivi intensamente o que me foi dado viver. Abram alas para minhas dores e prazeres passarem. Quem for incapaz de reconhecer a legitimidade de uma vida vivida está traindo tudo aquilo mesmo que embasa suas palavras. Quer dizer, trata-se da minha verdade contra o fiasco dos que invejam o que vivi. Inclusive o meu gozo. CONTINENTE Nesse sentido, a confissão, a memória, são gêneros que tranquilizam o autor? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Seguramente, não. Mesmo que a gente escreva em busca de alguma paz, a vida é um espaço de luta permanente, pelo simples fato de que viver é estar sempre em devir, em construção, nunca propõe descanso. Escrever memórias talvez ajude no processo de


Mesmo que a gente escreva em busca de alguma paz, a vida é um espaço de luta permanente, pelo simples fato de que viver é estar sempre em devir, em construção conhecimento de si mesmo. Mas, no final, o que se compreende é que uma vida inteira é pouco para conhecer nosso mistério pessoal. Ou seja, em se tratando de viver a vida, nós não temos cura. Viver é muito doentio. Digamos: deliciosamente doentio e maravilhosamente assustador. A paz que a gente procura não pode ser uma maneira de renunciar à vida. CONTINENTE É impossível não pensar em Carta ao pai, de Kafka, durante a leitura… Você lista diversas referências culturais ao longo da obra, mas, em relação às obras confessionais, com quais títulos você diria que Pai, pai dialoga? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Eu não saberia dizer. As memórias são sempre muito pessoais, e aí está contida sua riqueza. Em todo caso, não sou grande admirador da Carta ao pai, de Kafka, que me parece coisa de adolescente reclamão. Desde o começo, tudo o que eu não queria era escrever um relato vitimista. Ter o pai que tive foi parte do meu mistério, e o papel de vítima é óbvio demais para iluminar mistérios. As

obras que cito – entre livros, filmes, peças de teatro, músicas – são antes de tudo referências que busquei para me ajudar a desvendar o caminho até mim, sem me preocupar com influências. Assim, um filme como Andrei Rublev, de Andrei Tarkovsky, me proporcionou incríveis epifanias em relação à traição paterna. Numa abordagem mais teórica, Totem e tabu, de Freud, me deu impulso para compreender a morte do pai na vida de cada pessoa. CONTINENTE Certamente, o leitor que se identificar com o trauma paterno terá uma leitura muito rica desse livro. O que a escrita o ensinou sobre o relacionamento entre pai e filho? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Talvez você lamente eu dizer que não consigo me ver ensinando a partir da minha experiência. Cada pai é um pai, então, cada experiência é única com um pai único. O dado inegável é que todo mundo tem um pai. Também é fácil perceber que o gênero masculino encarnado por muitos pais está sempre malpreparado para a

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paternidade. Em nossas sociedades, homens são seres frágeis que posam de durões para se disfarçar de uma realidade que não aceitam. Gostam de parecer super-homens, alegando proteger a família. Ora, eles tentam projetar sobre a desproteção da família o seu próprio desamparo. Ao não encarar suas fragilidades, quer dizer, ao mascarar sua frágil realidade com autoritarismo e arrogância, eles metem os pés pelas mãos. CONTINENTE Por exemplo? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Jogar um filho adolescente na cela de um estuprador confesso, como no recente caso do Piauí, é emblemático dessas distorções. Ninguém se perguntou os reais motivos de tal crueldade, porque expor a histeria masculina assusta a sociedade falocrática. E se esse pai estivesse transferindo para o filho o gozo que teria (ou talvez tenha tido) com o amigo estuprador, com quem passou meses repartindo uma cela? No caso do nu masculino exposto no MAM de São Paulo, será que o escândalo ocorreria com uma mulher nua, ou bateriam palmas à “beleza feminina”? Não é demais perguntar aqui: por que a sociedade falocrática tem tanto medo do pênis? Não seria uma tentativa de se proteger diante da tentação libidinosa de um falo? Esses exemplos atuais mostram que a crise do masculino está vivíssima e recai facilmente sobre as crianças. Nossos pais de família estão batendo cabeça com espantosa facilidade – seja por seu desamparo não assumido, por seu abandono dos filhos ou por suas fugas (aí incluindo o alcoolismo). Basta ver as estatísticas que apontam grande quantidade de mulheres como cabeças da família, no Brasil atual. Então, é forçoso reconhecer que a própria família, tão defendida pelos moralistas e hipócritas, ostenta seu estado de desintegração a partir mesmo da vã tentativa de defendê-la. CONTINENTE Pai, pai ensina mais a perdoar ou mais a se rebelar? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Não creio que eu tenha escrito para ensinar alguma coisa, considerando que só desarmei processos preconcebidos


Entrevista REPRODUÇÃO

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rame do filme Orgia F ou o homem que deu cria, realizado por Trevisan em 1970

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apa do livro lançado C pela Alfaguara

dentro de mim. Mas eu diria que o perdão implica uma forma de rebelião. Quando cultivamos o ressentimento, estamos diante de uma reação defensiva que pode chegar às raias da obsessão, sempre que se torna ódio. O perdão implica um gesto possível de superação que nos liberta de perigosas cadeias emocionais. Daí que, no perdão, ocorre uma verdadeira rebelião do eu em busca da sua libertação. Mas isso que pareceria bonitinho é complicadíssimo. Em Pai, pai reitero como o perdão não resulta de uma decisão racional de perdoar meu pai a partir de hoje, e estamos resolvidos. Isso é uma falácia. Perdoar só é possível mediante um longo processo de elaboração interior. Como conto no livro, perdoei meu pai inúmeras vezes durante a vida, e elas nunca se mostraram suficientes. Perdoar não é um verbo a ser conjugado no passado. Faz parte da vida presente, e como tal tem que ser permanentemente atualizado. CONTINENTE Você só escreveu esse livro porque seu pai estava morto?

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JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Não foi por causa da morte física de José Trevisan. Quando realizei o filme Orgia, meu pai ainda era vivo, e aí eu aludia à minha conturbada relação com ele, que desprezava as coisas que eu fazia. Na verdade escrevi Pai, pai para entender melhor a mim mesmo, no sentido de saber como eu vinha realizando o sepultamento dos restos mortais do meu pai, que apodreciam dentro de mim. Deixar o cadáver do pai exposto no meio da sala é antes de tudo um recurso tóxico. Ele precisava ser enterrado para que eu o amasse de fato, com tudo aquilo que ele significou, em especial suas fraquezas difíceis de engolir. Pai, pai contém sem dúvida um movimento em direção ao perdão, o que implica gratidão às imperfeições desse pai que me ensinou, sem querer, o sentido da misericórdia. Chegar à gratidão, por sua vez, implica abrir os braços para o amor, que é a mais grandiosa experiência humana. Poder dizer agora que eu amo meu pai não é abraçar um fantasma, mas assumir a figura paterna que ele plantou dentro


Escrevi Pai, pai para entender melhor a mim mesmo, no sentido de saber como eu vinha realizando o sepultamento dos restos mortais do meu pai de mim, para sempre. Em última análise, esse homem tão imperfeito foi quem me deixou o legado do amor. CONTINENTE Como convive em você a sensação de que, se não fosse tão dura sua relação com ele, você também não teria feito tanto do mundo? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Antes de tudo, foi uma descoberta surpreendente, mas paradoxalmente já prevista. Esse pai biológico que, com seu desamor, me ensinou a construir um pai interior. Agora, com os fatos coletados e ordenados, o processo da descoberta ficou mais claro. No capítulo-poema chamado Invocação ao perdão, eu explicito essa percepção de maneira aguda: ao me dar um espermatozoide tão improvável, meu pai fez de mim um ser humano capaz de experimentar a misericórdia como “artéria central do coração humano”. A legítima percepção da dor nos torna mais solidários com a vulnerabilidade do mundo. Chegar a isso não tem preço. CONTINENTE Há relação entre dor e potência literária?

JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Não acho que a dor mobilize a criatividade literária, necessariamente. Já escrevi livros quando estava muito deprimido, e também quando estava muito apaixonado. A criação através da literatura nos obriga a um mergulho nas profundezas do eu, e esse processo pode ser doloroso, porque a palavra escrita está muito colada à expressão que busca a verdade pessoal, quase sempre doída. Mas o resultado da criação é sempre prazeroso quando a gente tem a convicção de que se expressou legitimamente e deu o seu melhor nessa expressão. É um olhar-se ao espelho do seu mistério e ver alguns poucos sentidos. Não se trata apenas de uma tarefa cumprida, mas de uma missão profética que está sendo atualizada permanentemente através da arte. A beleza criada leva quem a criou a partilhar um pouco do divino. CONTINENTE É o primeiro livro que li que me fez chorar logo na primeira página. Qual o retorno que você teve até agora da obra?

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JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Choram. Por vezes, choram muito. De início, isso me assustou. Eu escrevi para me fazer compreender, mas meu objetivo nunca foi levar as pessoas a chorarem com isso. Mesmo sendo um chorão, tenho medo do choro fácil, desse cacoete dos folhetins que vendem personagens estereotipados. Espero não ter escrito uma obra piegas. O sentimentalismo mata qualquer intenção literária de instigar. Assim, as lágrimas correm o risco de ser uma maneira de se livrar rapidamente da dor. O amortecimento que provocam é daninho, porque traz uma falsa paz, ou satisfação. CONTINENTE Você diz, em diferentes partes do texto, que o livro é um “acerto de contas”. Um “ritual de cura”. Um “inventário de fantasmagorias”. O que é, fundamentalmente, Pai, pai? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN É uma obra que fala do desamparo humano, universalmente disseminado, e do gesto de perdão resultante da consciência desse desamparo. CONTINENTE Em outro trecho, você percebe que envelhecer também é compreender melhor as canções. Quais são as outras vantagens de envelhecer? JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Posso apontar compensações na velhice. Nós temos um melhor conhecimento da vida. E se a vida se revela pior do que nos parecia quando jovens, é provável que tenhamos apenas nos deparado com uma inevitabilidade inerente ao ato de viver: a de que somos incuravelmente imperfeitos, e a imperfeição maior é a morte. Prefiro pensar a velhice sempre como um estágio de inevitável proximidade com nossa morte, nossa verdade – o que implica um sentido de urgência. Isso que pareceria mórbido e autocomplacente é o que nos propicia descobrir valores em detalhes que nunca valorizamos. Cada momento que vivemos é único, e só nos damos conta disso quando aceitamos que vamos morrer. Para mim, uma das maiores vantagens da velhice é aprender a acolher a morte como parte da vida. MARIANA FILGUEIRAS, jornalista, mestranda em Literatura pela UFF.


DIVULGAÇÃO

Curtas

NÓ DO DIABO

Filme aborda um terror que ainda não teve fim É possível remodelar uma casa

por completo: pintar suas paredes, trocar todos os seus móveis e objetos decorativos, dando-lhe uma aparência agradável, até mesmo cordial. Ainda assim, por mais eficazes que sejam os recursos para tentar dar-lhe uma nova feição, as bases que firmaram sua construção permanecem as mesmas. Se o Brasil é uma casa, ainda que tenha passado por diversas redecorações, suas estruturas continuam no mesmo lugar, e suas paredes estão impregnadas com as memórias de um passado assombroso. Foi investigando os pilares que sustentam a casa-grande até os dias de hoje que os diretores Ian Abé, Ramon Porto Mota, Gabriel Martins e Jhesus Tribuzi realizaram Nó do Diabo. O longa-metragem traz uma abordagem do cinema de horror para compreender os resquícios

da escravidão no Brasil. O filme é assinado pela Vermelho Profundo, produtora sediada em Campina Grande, no interior da Paraíba, que se dedica ao cinema de gênero – filmes facilmente reconhecíveis pelo espectador como ficção científica, policial, comédia, terror etc. –, no caso de Nó, o grande terror que foi (e ainda é) a escravidão no Brasil. O filme havia sido originalmente concebido tanto como uma série para a televisão quanto como longametragem, com cinco contos que se passam na mesma fazenda e na mesma casa em tempos históricos diferentes, e tem sido bem-recebido em diversos festivais em todo o Brasil desde que estreou no Festival de Brasília este ano. Recentemente, a ficção foi exibida no Recife, durante o Janela Internacional de Cinema. Partindo de um futuro próximo, que muito tem em comum com

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L onga-metragem traz abordagem do cinema de terror para discutir escravidão

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o passado, o longa-metragem faz um percurso que tem início em 2018 e recua até 1817, evidenciando os fantasmas que perseguem a sociedade brasileira até hoje: o poder branco, racista, patrimonialista e patriarcal. “Nós construímos uma identidade nacional que é mentira, que é fabricada. A ideia do homem cordial, da democracia racial. Existe essa estrutura tão poderosa e organizada, mas ela não é explícita, não é questionada. A gente vive num país violento, onde quem sofre diariamente com a violência é a população negra e pobre. Tentamos escancarar isso com o filme, como forma de enfrentamento”, pontua o diretor Ramon Porto Mota, sobre


a violência presente em todos os cinco contos do longa-metragem, estratégia usada para intensificar o discurso crítico. Segundo os diretores, a casa onde Nó foi gravado – e que passa por várias remodelagens ao longo da narrativa – também é “mal-assombrada”: foi erguida por escravos, no ano de 1874, no município de Pilar, na Paraíba, e pertenceu ao escritor José Lins do Rego. Para ressaltar a elite dominante do país (que, como no tempo das capitanias hereditárias, passa as propriedades de pai para filho) como elemento de fantasmagoria na narrativa, os diretores escalaram o ator Fernando Teixeira para o papel

de senhor de engenho nas diversas fases do filme. “Acho que é um gesto político do filme colocar um único ator para interpretar vários senhores de engenho, porque opera uma certa inversão, homogeneizando a figura branca e multiplicando os protagonistas negros. Você acaba tendo um branco como coadjuvante, enquanto essas subjetividades negras são multiplicadas e plurais”, enfatiza o diretor de fotografia Leonardo Feliciano. A potência das personagens femininas também é algo que se destaca na trama. No elenco, rostos recém-conhecidos do cinema nacional e pernambucano, como Isabél Zuaa (Joaquim, de Marcelo

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Gomes) e Cíntia Lima (Cheiro de melancia, de Maria Cardoso), contracenam com Zezé Mota numa resistência quilombola, trazendo elementos urgentes de discussão. “O cinema de horror é geralmente um lugar onde a mulher tem um destaque maior. Então, essa nossa vontade de destacar essas personagens em cena também vem de uma tradição do cinema de gênero. Quisemos colocar personagens femininas justamente enfrentando esse poder que não é só racista, é patriarcal”, explica Ramon. A próxima exibição de Nó do diabo está marcada para o dia 4 de dezembro, na 12ª edição do Festival Aruanda (PB), com expectativa de pequena distribuição para 2018. SOFIA LUCCHESI


Curtas DIVULGAÇÃO

SERTÃO SANGRENTO

Peleja entre zumbis e cangaceiros

Por diversas vezes, o Sertão tem

sido cenário para narrativas ficcionais e documentais, fonte criativa para escritores, historiadores, músicos e realizadores ao longo da história: quase como um lugar idealizado, em que a secura da terra e o verde dos mandacarus misturam-se a personagens icônicos e notáveis do Nordeste. Imagine-se de volta aos tempos do cangaço, época em que o bando de Lampião e Maria Bonita aterrorizava e saqueava cidades sertanejas, ao mesmo tempo em que Padre Cícero já era conhecido como santo milagreiro, recebendo de seus devotos a alcunha de Padim Ciço. Nesse contexto geográfico e social, no ano de 1923, uma filha de retirantes nordestinos chegou à cidade de Patos,

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no sertão da Paraíba. Lá, os pais “venderam” a menina para outro casal, a fim de livrá-la da seca e da fome inclementes. Seu nome era Francisca, e assim ficou conhecida para sempre, quando seu corpo foi encontrado morto sobre pedras, local onde hoje se ergue o Parque Religioso Cruz da Menina, em honra da criança que foi apelidada de Francisca Mártir. Na época, os pais adotivos da menina foram acusados de assassinato três vezes e três vezes inocentados, devido à influência que exerciam na localidade. Hoje, o local é um ponto de romaria de fiéis, enquanto a capela construída no parque é um altar para orações. Esse episódio serve de inspiração para o projeto SerTão sangrento, obra de terror transmídia produzida para os

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suportes cinema, quadrinhos e video game. “Essa história me chamou muito a atenção e, depois de uma viagem que fiz ao Ceará, decidi adaptá-la para ficção num contexto em que Padre Cícero e Lampião fizessem parte dela”, conta Kleyner Arley, idealizador do projeto que iniciou as pesquisas sobre o tema em 2013. A narrativa de SerTão começa quando cinco cangaceiros de Lampião vão até essa cidade pouco tempo depois da morte de Francisca, numa missão de assassinato, e lá se deparam com um ambiente inóspito de terror e morte. Quem assiste ou assistiu à The walking dead encontrará referências claras à série televisa, principalmente no que diz respeito aos zumbis, novos habitantes da caatinga, chamados de “carniças” pelos cangaceiros. “Há


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várias referências de obras literárias e da cultura pop que serão perceptíveis aos mais atenciosos. As mais fortes delas são inspiradas no livro Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, e na franquia de games Assassin’s creed”, acrescenta Kleyner, em entrevista para a Continente. Tanto o média-metragem, como a HQ e o game têm previsão de lançamento para 2018. Até aqui, ainda não foi revelado o porquê de a morte de Francisca resultar no aparecimento dos mortos-vivos. Ainda que cada mídia possua sua própria história nivelada e “redonda”, a “experiência completa” de SerTão acontecerá para quem assistir ao filme, ler o quadrinho e jogar o game. Porém, pelo teaser lançado na fanpage oficial e pelas fotos já divulgadas do

quadrinho, nota-se uma coerência visual em cada formato. A construção imagética desses elementos utiliza a mesma paleta de cores nos quadrinhos e no jogo, com desenhos de Eldon Oliveira e Chateaubriand Almeida, e design de Rodrigo Motta. Na HQ e no jogo, cores saturadas, amareladas e alaranjadas sugerem mormaço, enquanto na prévia de um minuto e 12 segundos do filme, nota-se a saturação quente, ainda que mais delicada. “Ser tão sangrento” pode ser o trocadilho ideal para o terror pensado por Kleyner Arley – hoje, amparado por um time de cocriadores e idealizadores. Ambientado no Sertão, já cheio de lendas e mitos por si só, a adição de personagens fantasiosos e da ficção dão a SerTão sangrento uma ideia de

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1-3 HQ foi desenhada

por Eldon Oliveira e Chateaubriand Almeida

partilha de culturas (tradicional e pop), unidas na mesma coluna vertebral, que é o assassinato de Francisca, em Patos, desdobrado nos acontecimentos misteriosos posteriores. “Sou sertanejo e conheço melhor minha região, mas a história não vai se encerrar na Região Nordeste. Pretendemos conhecer histórias das outras regiões brasileiras e criar um universo compartilhado dos nossos fatos históricos com mitologia e cultura pop. Dar início a uma ideia que leve a cultura nordestina (e depois a de outras regiões) para o Brasil e o mundo.” EDUARDO MONTENEGRO


GUY VELOSO/DIVULGAÇÃO

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Portfรณlio

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FOTOS: GUY VELOSO/DIVULGAÇÃO

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Portfólio Guy Veloso

NÓS QUE AQUI ESTAMOS TEXTO Adriana Dória Matos

Pessoas que se chicoteiam até

sangrar para penitenciar-se. Gente que anda léguas, descalça, de joelhos ou se arrastando, para chegar a um templo e pagar uma promessa. Fiéis que entregam seu corpo ao transe, abrindo-se à experiência direta da incorporação. Os que acreditam no fim do mundo e sobre isso apregoam. Os que rezam pelas almas do purgatório. Massas de indivíduos que se espremem, acotovelam e unem seus suores, lágrimas e orações no percurso de uma procissão. Sacrifício,

fé, êxtase, misticismo. Quando alguém se entrega fervorosamente a uma crença, não importa a matriz religiosa, pois o princípio da devoção é o mesmo, iguala todos. Se essa é a realidade dos devotos, as fotografias de Guy Veloso a tornam clara, evidente. Longe de fazer proselitismo, ele opera uma imersão em várias comunidades religiosas brasileiras, sobretudo naquelas que sobrevivem no espaço mítico que chamamos de Brasil profundo, esteja ele geograficamente

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localizado nas brenhas, nos sertões, nos recônditos, ou em lugares onde a religiosidade prevalece, mesmo na proximidade dos centros urbanos. O que torna as fotografias desse paraense magnetizantes não é tanto o domínio técnico na captura dos temas ali retratados (embora ele esteja presente), mas a proximidade que há entre o fotógrafo e o tema eleito. Ainda – e sobretudo –, a aproximação com ritos capazes de causar estranhamento, medo, angústia, aversão, ojeriza, por trazerem vivências do passado ao presente e serem captados pelo fotógrafo em horas de culminância, ardor, violência; situações que quase sempre contradizem – e questionam, por sua simples existência – o racionalismo e a matéria. As fotos de Guy Veloso parecem nos dizer que o invisível está entre nós. E isso não se consegue apenas com as técnicas que o meio oferece, mas com envolvimento físico e psicofísico do fotógrafo. Guy Veloso enfrenta o corpo a corpo com o seu tema de modo íntimo e visceral.


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Penitentes,

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Procissão de Nossa

Laranjeiras, Sergipe, 2002 Senhora de Fátima, Belém, Pará, 2005

3 V ale do Amanhecer, Planaltina, Distrito Federal, 2013

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FOTOS: GUY VELOSO/DIVULGAÇÃO

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Portfólio ***

Num país de tanta religiosidade e sincretismo religioso como o Brasil (no Censo 2010, 87% da população de declarou cristã), este é um assunto que atrai diferentes gerações de fotógrafos, por isso contamos com vasto acervo a esse respeito. Do fotojornalismo e ensaísmo à documentação e antropologia visual, encontramos variados graus de aprofundamento no assunto, com abordagens que enfocam, principalmente, manifestações do catolicismo popular e religiões de matriz africana. Procissões, Semana Santa, Finados, variadas festas do calendário litúrgico e de terreiros, oferendas aos orixás, com seus elementos e protagonistas carregados de beleza dramática e, tantas vezes, trágica estão nos acervos de muitos fotógrafos. Entretanto, poucos são os que persistem nessas aproximações e realizam um mergulho, estabelecendo convivência estreita com os grupos religiosos,

que, nesses casos, resulta em cumplicidade e relação de confiança mútua, quando não em conversão. Na história da fotografia brasileira tornaram-se clássicos trabalhos de documentação da religiosidade nacional – em destaque aquela circunscrita às regiões Norte e Nordeste – empreendidos por fotógrafos como o piauiense José Medeiros (1921-1990), e o seu belo ensaio sobre a iniciação de filhas de santo da Bahia, feito nos anos 1950 para a revista O Cruzeiro, e o francês radicado no Brasil Marcel Gautherot (1910-1996), que fotografou várias procissões de Semana Santa e do Círio de Nazaré, entre os anos 1940-70. Aquela foi uma geração de fotógrafos modernos, motivados a desbravar e documentar um Brasil desconhecido pelas populações urbanas. Entre os fotógrafos dessa geração, que se dedicaram ao tema da religiosidade no Brasil, o francês Pierre Verger (1902-1996) é um caso especial. Verger estabeleceu uma relação íntima

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Romaria de Bom Jesus da Lapa, Bahia, 2002

e duradoura com o candomblé na África e no Brasil, que transcendeu em muito a documentação fotográfica, tornando-se ele um iniciado, que na conversão ganhou a denominação Fatumbi, “renascido pelo Ifá”. Seu trabalho etnográfico resultou em importantes registros textuais e visuais, publicados em livros como Orixás, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos e Ewé – O uso das plantas na sociedade iorubá. De um período mais recente, início dos anos 2000, três livros podem ser destacados pela qualidade e simetria na abordagem dessa temática. Benditos, do cearense Tiago Santana (Tempo D’Imagem) e Irredentos, do baiano Chistian Cravo (Christian Cravo e Áries Editora), foram lançados em 2000, enquanto que Imagens fiéis, do paulista José Bassit (Cosac & Naify), saiu em 2003. São ensaios em preto e branco, narrativas que variam do mais ensaístico e subjetivo, como ocorre com Santana e Cravo, ao mais


5 Transe, Umbanda, Belém, Pará, 2015

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6 Tambor de Mina, Belém, Pará, 2011

documental, como em Bassit. Os três se meteram pelos confins do Ceará e Bahia, selecionando os roteiros de grandes romarias e concentração da mais arraigada religiosidade popular (embora a documentação de Bassit tenha se expandido para centros religiosos de São Paulo e Minas Gerais). Logo associamos a publicação desses três livros à passagem do milênio, quando as populações foram mobilizadas por narrativas do fim do mundo (o que nos leva ao milenarismo e ao sebastianismo por eles revisitados) e refletiram sobre o que estava sendo deixado para trás com o século XX e o que teimava em subsistir no XXI, contra toda lógica, desenvolvimento e globalização. Exatamente como ocorria com aquelas seitas, sociedades e grupos, que mais pareciam renascidos ou remanescentes dos tempos dos Cruzados e Templários, dos peregrinos e penitentes, de Dom Sebastião de Portugal; ou dos tempos

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do Brasil Colônia e das catequeses compulsórias, antes, muito antes dos canais religiosos de TV e de expulsões televisionadas de demônios.

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Guy Veloso surge no contexto dessa geração de fotógrafos hoje na faixa entre 40 e 50 anos (ele é de 1969)

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que se detêm (ou se detiveram) sobre o tema da religiosidade, que atrai apreciadores de fotografia e arte, acadêmicos e pesquisadores que, entretanto, poucas vezes se declaram religiosos ou espiritualizados. Nesse caso, parece se tratar de um interesse mais objetivo, de viés antropológico, sociológico,


FOTOS: GUY VELOSO/DIVULGAÇÃO

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Portfólio histórico ou, simplesmente, estético e documental. Ser religioso distingue Guy Veloso como um fotógrafo e o seu tema, desde os primeiros registros que fez com câmera analógica nos anos 1980. Ele conta que sua atração por manifestações religiosas se deu ainda no ambiente doméstico. Sua avó morava numa rua de Belém por onde passava a procissão do Círio de Nazaré, uma das maiores manifestações nacionais de fé católica, que foi onde ele começou a unir os dois interesses, religião e fotografia, já que todo ano acompanhava a procissão, que passou a fotografar aos 18 anos. Embora nem sempre os temas escolhidos pelos fotógrafos estejam diretamente relacionados às motivações pessoais, este não é o caso de Guy, que se declara espírita e investe na busca pelo autoconhecimento relacionado à religiosidade, sendo marco dessa jornada a trilha que realizou em 1993,

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Dia da Consciência

Negra, União dos Palmares, Alagoas, 2010

8 Escorpião,

Encomendação das almas, Petrolina, Pernambuco, 2015

a pé, pelo Caminho de Santiago. A experiência resultou no seu primeiro livro, Via Láctea – Pelos caminhos de Santiago de Compostela (Tempo d’Imagem, 2000, 2ª edição), narrado em texto e imagens. Ele tinha 23 anos e acabara de concluir o curso de Direito, mas voltou da viagem sabendo que não exerceria a profissão. Fez publicidade, seguiu carreira pública, sempre com a fotografia em paralelo, até que investiu completamente na fotografia. Um insight sobre sua temática aconteceu numa viagem a Juazeiro do Norte, lugar para onde sempre retorna. Ele conta que todo ano, desde 1998, vai à cidade em novembro, acompanhar as romarias de Finados. Aqui chegamos ao ponto em que o tema religiosidade se torna sombrio e assustador para a maioria das pessoas, que é quando entramos no universo sofrido das promessas, sacrifícios e penitências. E são justamente os penitentes que, hoje, constituem o acervo mais denso da obra de Guy Veloso. No recém-lançado livro Guy

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Veloso (Ipsis, 2017), sexto volume da Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira, ele conta o modo de aproximação que estabeleceu com os penitentes. “Em 2002, fiz minha primeira viagem a Sergipe durante a Quaresma para procurar os grupos de penitentes. Boa parte são grupos secretos. Consegui, depois de muita conversa e contando com a ajuda de pessoas de Sergipe, como a professora Maurelina dos Santos, conhecê-los e ter permissão para fotografá-los. E, ao contrário do grupo original de Juazeiro, são pessoas comuns de várias religiões que, pela tradição familiar de gerações, durante a Quaresma e principalmente na Semana Santa, vão às ruas cobertas com panos ou com mortalhas, rezando pelas almas presas no Purgatório, que eles acreditam ainda estarem sofrendo. As almas sentem fome e o alimento é a oração. Eu fiquei louco com esse tema.” Alguns desses penitentes – homens – praticam o autoflagelo, somente parando de se açoitarem quando suas vestes estão banhadas de sangue.


Esse tema se desdobrou ao longo de todos esses anos na trajetória de Guy Veloso (em concomitância a outros), que partiu para uma investida mais abrangente a respeito dele que apenas o registro fotográfico, gravando áudios e vídeos e arquivando em seu acervo pessoal textos e objetos usados pelos penitentes, como as vestes e mortalhas, as matracas e os chicotes – todos presenteados a Guy pelas irmandades documentadas. Isso só foi possível, conta o fotógrafo, pela relação de confiança que estabeleceu entre ele e os grupos, como ocorreu com a irmandade mais antiga de Juazeiro da Bahia, fundada em 1901, que o integrou. “Ainda sobre os Penitentes, há uma história que é a que mais me toca: após fotografar por 7 anos seguidos em Juazeiro da Bahia o mesmo grupo de ‘Alimentação das Almas’, a sua chefa, Dona Jesulene Ribeiro, anunciou para todos que eu era oficialmente membro daquela confraria. Tinha os mesmos deveres e privilégios, só não ia coberto com panos. E é assim até hoje. Eu virei meu próprio tema”, conta o fotógrafo, no livro Guy Veloso. Tanto é assim que, este ano, ele teve a individual Penitents: world end rituals of faith exposta na Casa de las Americas em Denver, no Colorado, e lá participou de um debate com penitentes norte-americanos do grupo Maruca Salazar. Não era apenas o fotógrafo que estava ali, mas um penitente brasileiro, encarregado de trocar informações, orações e objetos com penitentes norteamericanos. “Depois de 500 anos, um representante de um grupo de penitentes encontra outro de uma mesma tradição, vinda da Península Ibérica”, comentou Guy. “Tanto as daqui como as de lá são irmandades estigmatizadas, que praticam rituais com tendência ao segredo. Mesmo em línguas diferentes, os cânticos e sonoridades são os mesmos.” Com tudo que já viveu, pesquisou e coletou junto a esses grupos, Guy Veloso pensa em desenvolver um projeto de documentação que registre para a histórias as quase 200 irmandades que visitou em todo Brasil. Aliás, diz ele, foi nas suas hipóteses e constatações em campo que ele

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confirmou a existência de grupos penitentes em todo o país. Da mesma forma íntima, respeitosa, discreta e empática que se aproximou dos penitentes, Guy Veloso aborda demais grupos religiosos com os quais estabelece contato para documentação. Ele destaca que, ao longo de todos esses anos, mantém a mesma conduta de trabalhar com o mínimo de equipamento, uma câmera com lente 50 mm, sem uso de flash, colete ou qualquer elemento que lembre os aparatos do fotógrafo

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profissional. Ele busca, ao máximo, ficar perto, ou mesmo invisível, diante dos seus temas, seja num terreiro de candomblé, umbanda ou Tambor de Mina, numa procissão ou festividade católica, entre os adeptos de Tia Neiva, no Vale do Amanhecer. O que ele deseja expressar nas suas fotografias une os indivíduos das mais variadas religiões: a conexão com o transcendente e com o mistério. ADRIANA DÓRIA MATOS, editora da Continente e professora da Unicap.


Dossiê ARTE SOBRE DETALHE DE OBRA DE KEITH HARING

A VIDA COM

HIV

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Há 35 anos foi notificado o primeiro caso de Aids no Brasil. Enquanto tratamentos médicos avançam, o estigma prevalece, acompanhado de um elemento que atua de modo voraz na propagação da infecção: a negligência das novas gerações TEXTO LUCIANA VERAS

One love One blood One life You got to do what you should One life With each other Sisters, brothers One life But we’re not the same We get to carry each other Carry each other… (U2, One)

Em 19 de outubro de 2017, quando o show da banda irlandesa U2 no estádio do Morumbi, em São Paulo, aproximavase das duas horas de duração, o vocalista Bono Vox dirigiu-se a 80 mil

pessoas para agradecer “às mulheres, aos homens e ao povo brasileiro”: “Na luta contra o HIV e a Aids, este país mostrou ao mundo o que fazer: como tratar as pessoas com dignidade. Vocês, brasileiros, conseguiram que os medicamentos que todo mundo dizia que eram muito caros para as vidas comuns se tornassem disponíveis para toda a população. Ainda não vivemos em um mundo livre da Aids, mas viveremos um dia. E sem a sua liderança, teria sido uma história diferente. Médicos, estudantes, ativistas LGBT, todos lutando para ajudar os pobres e as populações mais vulneráveis… Somos mais fortes quando trabalhamos como um só”. Assim, enquanto o guitarrista The Edge começava a dedilhar os acordes

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iniciais de One, os fãs mais velhos recordavam que, quando a canção fora tocada nas duas apresentações que o quarteto fizera naquele mesmo estádio, em janeiro de 1998, o gigantesco telão da Popmart Tour exibia animações com desenhos do artista visual norteamericano Keith Haring. “Um amor, um sangue, uma vida, você tem que fazer o que deve/ Uma vida com cada um, irmãs, irmãos/ Uma vida, mas não somos os mesmos, temos que carregar uns aos outros, carregar uns aos outros”, diz a letra escrita por Bono para o álbum Achtung baby, de 1991, versos que poderiam espelhar os grafismos de Haring, nos quais figuras se escoram e se interconectam em corpos cercados por corações.


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One, a música, surgiu no mesmo ano do falecimento do britânico Freddie Mercury, vocalista do Queen. Em fevereiro de 1990, Keith morrera, cinco meses antes do cantor e compositor brasileiro Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza. “Um amor, um sangue, uma vida” – a tríade enfeixa, não por acaso, as mortes dos três artistas, ocorridas por complicações relacionadas à síndrome da imunodeficiência adquiridas – em inglês, “acquired immunodeficiency syndrome” ou Aids. Em 2017, completam-se 35 anos dessa denominação, criada pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças/CDC, de Atlanta, nos Estados Unidos, em resposta ao primeiro epíteto usado para descrever a devastadora enfermidade,

que até hoje já matou quarenta milhões de pessoas em todo planeta: “gay-related immuno deficiency” ou Grid. Dois mil e dezessete marca, também, os 35 anos do primeiro registro oficial de um caso de Aids no Brasil, em São Paulo. “O câncer gay”, como a doença vinha sendo rotulada desde que os primeiros casos foram reportados em São Francisco e em Nova York, em 1981, chegara ao maior país da América Latina. Há quase quatro décadas, portanto, a Aids faz parte do imaginário coletivo – brasileiro, continental, mundial. Não espanta que, em um concerto de rock, o tema apareça, assim como em livros, filmes, seriados, telenovelas, músicas, obras de arte e outros produtos de consumo cultural. É impossível perceber a vida

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etalhe da obra D Ignorance = Fear (1989), do norteamericano Keith Haring, morto em 1990, em decorrência do HIV

contemporânea sem reconhecer, nela, a presença da moléstia incurável transmitida via sexo e sangue – por transfusões sanguíneas, durante a gestão ou parto e por compartilhamento de seringas entre usuários de drogas. “Meu prazer agora é risco de vida, meu sex and drugs não tem nenhum rock ‘n’roll/Eu vou pagar a conta do analista pra nunca mais ter que saber quem eu sou”, cantava Cazuza em Ideologia, composta em 1987. “Ideologia, eu quero uma pra viver” é o refrão do carro-chefe do último disco dele. Quando o ex-vocalista do Barão Vermelho morreu, no Rio de Janeiro, Daniel Fernandes ainda nem sabia ler. O goiano nascera em 1984, um ano depois de os cientistas Françoise


Dossiê RICK GERHARTER /CORTESIA DA PENGUIN RANDOM HOUSE

Barré-Sinoussi e Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, de Paris, isolarem, pela primeira vez, o retrovírus que haviam descoberto e batizado como LAV, que em 1985 seria nomeado o vírus da imunodeficiência humana, de sigla HIV a partir da designação em inglês (em 2008, os pesquisadores franceses receberiam o Nobel de Medicina pelo feito). Hoje, Daniel é o autor/editor/ apresentador do canal Prosa positiva, um dos vários espaços na plataforma YouTube para divulgar informações e o cotidiano de quem vive com HIV. E essa é a sua ideologia para viver. “Descobri o HIV em 1º de agosto de 2011. Provavelmente, já tenho o vírus no meu organismo desde 2007”, conta Daniel, que usou suas aulas de atuação em TV e cinema para gravar os vídeos. “Pensei na possibilidade de criar um canal. Falar sobre o quê? Foi conversando com minha mãe sobre a falta de informação de muitas pessoas em relação ao vírus HIV, preconceitos e outras dificuldades, que cogitei a possibilidade de um canal sobre a minha vivência. Ela achou o máximo e era exatamente o apoio de que precisava. Comecei pelo Facebook, anunciando minha sorologia. Resultados positivos! Com nervosismo em alta, em 1º de agosto de 2016, cinco anos depois do diagnóstico, coloquei no ar o primeiro vídeo do canal”, acrescenta. A data é simbólica e o Prosa positiva, direto, coloquial e educativo. “Quis trazer minha vivência, convidar profissionais de diversas áreas para abordarmos o tema e, claro, falar da experiência de outras pessoas que vivem com o vírus. A ideia não é romantizar o HIV, mas, sim, apresentar que é possível ter uma vida pós-diagnóstico. Vivo uma vida normal”, explica o youtuber, que reside na capital pernambucana, enquanto sua mãe, Edelza, a protagonista do vídeo publicado em junho deste ano, intitulado Meu filho tem HIV!, segue morando em Goiás. Ele passa boa parte do dia respondendo a mensagens que invadem seu perfil nas redes sociais: “É gratificante saber que, de algum modo, venho ajudando pessoas de diversos lugares”. Ativismo e consciência da necessidade de se falar abertamente sobre o assunto levam Daniel a minar o estigma que não se dissocia da vida

com HIV. Em todas as esferas de uma existência balizada pelo vírus, talvez sobretudo na de um jovem gay como ele, “preconceitos sempre existirão”, como sintetiza. “Mas acredito que, para muitos, é necessário vencer seu próprio preconceito, combater o medo e ter orgulho do que se é. Me espelho muito no movimento negro e no movimento gay. Diariamente, vamos superando obstáculos. Diariamente, é uma luta para ser vencida”, resume. O mesmo pensamento de “guerra” perpassa a leitura de How to survive a plague, no qual o jornalista e cineasta norte-americano David France narra “os bastidores da história de como cidadãos e a ciência domaram a Aids”, de acordo com o subtítulo da edição de novembro de 2016 da Alfred A. Knopf. O livro, vencedor do prêmio Baillie Gifford em não-ficção na Inglaterra e inédito no Brasil, nasceu do documentário homônimo de 2012. Ambas as obras, literária e audiovisual, recontam as vidas extraordinárias de cidadãos comuns que, confrontados com a perspectiva inexorável de perecer ante um mal para o qual ainda não existia tratamento, agigantaram-se. Organizados em entidades como a Act Up (acrônimo para a frase “Aids coalition to unleash power”, algo como “coalização da Aids para desencadear poder”) ou TAG (Treatment + Action Group ou grupo de tratamento e ação), estudaram, produziram conhecimento, provocaram a indústria farmacêutica e o governo em busca de testes clínicos para drogas, enfrentaram políticos reacionários e a polícia, foram presos e difundiram a mensagem de que não era possível silenciar ante o que acontecia. “Silence = death” era a frase estampada, um triângulo rosa sobre fundo preto, nas camisetas criadas pela Act Up. Silêncio equivalia à morte. Demorou vários anos até que Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos entre 1981 e 1989, pronunciasse em público, pela primeira vez, a palavra “Aids”. Na leitura de How to survive a plague, descobre-se, por exemplo, que, em 1987, quando cerca de 20 mil americanos já haviam morrido em decorrência das infecções oportunistas que caracterizam a doença, Reagan assim se expressava: “Quando se fala em prevenção da

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Aids, a medicina e a moralidade não ensinam as mesmas lições?”. David escreve em primeira pessoa, tendo chegado a Nova York em 1982, “para me juntar ao que os médicos classificavam de sistema de amplificação da doença”. E, ao longo de mais de 500 páginas, fala também de sua experiência pessoal – ele perdeu um companheiro e diversos amigos durante os “anos da peste”. “Não sou um memorialista, mas me dei conta de que era testemunha de algo extremo e de que o que eu estava produzindo era o relato de uma testemunha, por mais que fosse também pesquisa histórica e jornalismo. Senti que era importante deixar o leitor saber quem era a testemunha. Foi uma decisão difícil e também uma jornada difícil, que me levou a interrogar minhas próprias memórias e emoções e revisitá-las de um modo que eu havia logrado êxito em evitar ao longo de tantos anos”, revela à Continente.


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Seu relato sobre os que hoje sofrem do que ele chama de “Aids survivor syndrome” traduz o que o título da sua obra evoca – como sobreviver a uma peste? “As pessoas que atravessaram os anos da peste têm questões psicológicas. Compartilham uma espécie de síndrome pós-trauma. Quando entraram no ativismo, não tinham vida para além daquela batalha constante e diária. E nem expectativa de futuro. Ninguém achava que ia viver muito. E, de repente, a ideia de que havia um futuro era confusa e desorientadora”, situa o escritor e cineasta. O advento do AZT, em 1987, e a combinação dessa droga com outras substâncias para formar o “coquetel” e, em seguida, a terapia antirretroviral consolidada a partir de 1996, redefiniu a vida das PWA descritas no livro – “people with Aids” ou pessoas com Aids. Contudo, “a guerra continua em todo o planeta”, pontua David France. “Todos os infectados têm uma luta

recorrente não apenas contra o vírus, mas por aceitação e sobrevivência em vários níveis. Há uma guerra política, cultural e social diária. Sabemos que o estigma é severo e isolador e que, em várias partes do mundo, há leis que criminalizam as pessoas que vivem com o HIV. Isso as afasta do cuidado médico e do tratamento e assim crescem as chances de espalhar o vírus. Falta vontade política para romper o estigma e encorajar as pessoas a se testar. Foi graças ao ativismo de muitos que, hoje, o tratamento está disponível, mas ainda existem milhões de pessoas sem acesso à medicação, em especial nos países subdesenvolvidos. Tem gente morrendo do mesmo jeito horrendo que as pessoas morriam nos anos 1980”, lastima.

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Foi no final dos anos 1980 que Susan Sontag escreveu Aids e suas metáforas, a partir de uma releitura de Doença como metáfora, que havia publicado em 1979

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o anos 1980, surge nos EUA uma N aguerrida militância, pressionando com ações o governo por políticas públicas. Na foto, um caixão de um ativista em Washington

partindo do seu próprio repertório como paciente de câncer. Ensaísta, escritora, crítica e também ativista, Susan pensava a Aids como “uma doença que representa uma censura à vida e à esperança” e “um constructo clínico”. “A peste é a principal metáfora a partir da qual a epidemia da Aids é compreendida. Do latim pestis, flagelo, calamidade. (…) A Aids banaliza o câncer”, ponderava em Aids e suas metáforas, editado no Brasil pela Companhia das Letras, atualmente disponível apenas como e-book. “Com o resultado positivo do exame do HIV (…), torna-se possível criar uma nova classe de párias vitalícios, os futuros doentes. (…) E leva muitos a uma espécie de morte social que precede a morte física”, vaticinava Susan, que viria a morrer, vítima de leucemia, em 2004. A noção de “morte social” e “morte física” integrou a formação acadêmica da infectologista Vera Magalhães. Graduada em Medicina pela UFPE, ela fez residência em clínica médica e escolheu incluir um opcional no Instituto Emílio Ribas, em São Paulo, numa época em que não existia residência em infectologia em Pernambuco. “Era 1986 e, quando retornei, senti uma diferença grande em relação ao tratamento. Diversos infectologistas não queriam atender o paciente com Aids. Enquanto isso, eu era plantonista do Hospital Oswaldo Cruz e atendia pessoas jovens, saudáveis, belas, que adoeciam em estado dramático. Naquela época, a maioria era de homossexuais masculinos. O fato de ser uma doença sexualmente transmissível e mortal causava repulsa, não apenas na sociedade, mas também nos profissionais de saúde”, recorda. “No Brasil, no início dos anos 1980, a epidemia atingia principalmente indivíduos homossexuais e bissexuais masculinos, brancos, de classe média ou alta e habitantes das grandes metrópoles”, radiografa o Manual de HIV/Aids, escrito pelos médicos Marcia Rachid (entre outros atributos, membro do Comitê Técnico Assessor para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos, Departamento de DST/


Dossiê FOTOS: DIVULGAÇÃO

Aids/Hepatites Virais do Ministério da Saúde) e Mauro Schechter (professor titular de Infectologia da UFRJ). Em sua décima edição, o tomo, publicado pela Thieme Revinter, prossegue na contextualização: “Progressivamente, homens heterossexuais, mulheres e crianças de todas as classes sociais foram sendo atingidos. (…) No início da epidemia, sangue e hemoderivados eram responsáveis por parcela significativa da transmissão do HIV”. Ou seja, embora não tenha demorado para se estabelecerem todas as possibilidades de contágio, o estereótipo do paciente de Aids e o eventual repúdio e ostracismo que ele causava haviam se inserido no zeitgeist. Muitas vezes, os pacientes, já acomodados em áreas específicas dos hospitais, definhavam sem qualquer suporte familiar. “Todos nós, médicos e a equipe de enfermagem, entrávamos de máscaras, gorros, capotes e luvas. Parecíamos uns extraterrestres. Tive um paciente, um artista plástico muito novo, que tentou se matar no hospital. Um outro homossexual, também bastante jovem, estava acometido de diversas infecções oportunistas e em estado grave. Chamávamos os familiares, explicávamos que ele estava morrendo de Aids e o pai, com o filho à beira da morte, falou: ‘Esse é o dia mais feliz da minha vida’. Muito maior do que a Aids sempre foi o preconceito”, diz Vera. O enigma do vírus capaz de causar uma infindável sequência de mazelas em pessoas outrora enérgicas – tuberculose, retinite por citomegalovírus, toxoplasmose, pneumocistose – de uma certa forma permeou o percurso profissional da médica: Vera fez doutorado em Doenças Infecciosas pela Unifesp, foi uma das primeiras a atuar na enfermaria exclusiva para Aids, aberta em 1987 no oitavo andar do Hospital das Clínicas, vinculada à UFPE, e foi professora-titular de Infectologia daquela instituição entre 2003 e 2017 – onde, já aposentada, continua a orientar trabalhos na pós-graduação. “Nos primeiros anos de epidemia, o impacto do HIV no organismo era devastador, tornando a história da doença terrível. O HIV é um retrovírus que, com a atuação da enzima transcriptase reversa, transforma seu RNA em DNA, código genético necessário para se

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multiplicar. O problema maior é que seu direcionamento de ação é no sistema imunológico. Ao entrar nos linfócitos T4, ataca a molécula CD4, o maestro da resposta imunológica do organismo, e causa uma imunodeficiência celular e, depois, global. Não poderia atacar uma célula mais importante. O CD-4 é essencial para a imunologia”, ensina.

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De impacto e devastação o artista visual mineiro Paulo Lima Buenoz entende. E não pouco. Sua obra reflete a convivência de 28 anos com o HIV. Corpocobaia e a delicadeza grave da vida, videoinstalação montada pela primeira vez em 2005, agrega fotografias em cores e em preto e branco que remontam ao período em que ele participou de um teste para medicação antirretroviral em Buffalo, no estado de Nova York. “Sou da geração que atingiu um período difícil, quando receber o diagnóstico era uma sentença de morte. A arte era o jeito de poder dar sentido e uma certa ordem para a complexidade do corpo. E de continuar vivendo. Em 1993, eu estava deslocado do meu lugar,

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do meu país, das minhas relações. A tensão entre pertencer e não pertencer era forte. Decidi participar como cobaia de um estudo científico para aprovação de remédio e fotografei todas as etapas. Era a sobrevivência no sentido mais real, sem saber se o que eu estava recebendo era remédio ou placebo. Através da arte, quis dar um sentido àquela experiência”, apregoa. “O que mantém um corpo vivo?” era a interrogação que perpassava a práxis e obras de Paulo, que buscavam, ao mesmo tempo, questionar e responder à pergunta sob a perspectiva da vida com HIV. Na instalação Perda, um conjunto de objetos – par de sapatos tingidos de vermelho, mala, duas taças de vinho a abrigar uma maçã e algumas pílulas, dois travesseiros e uma fotografia de dorso masculino – evocava ausência. Em Dis-placement, havia um armário onde estavam os potes dos remédios que ele tomara durante um ano; em Dis-ease, outra instalação montada no The Burchfield-Penney Art Center, em Buffalo, em 1997, paredes de veludo e um piso de brita emanavam a sensação de o “terreno nunca mais é tranquilo”.


2-3 David France é autor do documentário e posterior livro-reportagem How to survive a plague, sobre a luta ani-Aids nos EUA

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“Falar de doença e instabilidade era um jeito de dar conta do que eu estava vivendo e de fazer política. Um certo ativismo político”, rememora o artista, que tem obras nas coleções dos Museu de Arte Moderna/MAM e do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, do Itaú Cultural e do Museu de Arte Contemporânea do Ceará – MAC/CE. Professor de Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia (MG), Paulo reconhece que, atualmente, sua soropositividade brota de modo distinto na produção artística. Mas nunca deixará de aparecer. “Sempre vai surgir no microuniverso das pequenas sobrevivências do corpo. Até porque tenho 62 anos, convivi com tudo isso quando se falava ainda em ‘peste gay’, e posso dizer que, no macro, a vida é mais fácil, pois existe o tratamento. Mas a microexistência ainda é bastante difícil. As relações de trabalho e de afeto são, para mim, os lugares mais complicados. O estigma, nesse sentido, é igualzinho. Ou você acha que, se for para falar de doenças crônicas, é a mesma coisa contar para seu empregador ou para quem estiver interessado afetivamente

que você tem diabetes ou que tem Aids?”, indaga. A arte foi um dos campos para onde convergiram indagações e inquietações de artistas que não escondiam a infecção por HIV e suas consequências, ou buscavam ampliar a visibilidade da jornada de quem sucumbia diante da Aids. “O trabalho de Paulo Lima Buenoz articulava o tratamento à poética e abria publicamente a questão privada de estar tomando remédios, expondo-se diante de um mundo que não tinha condições de lidar com a doença”, observa o pesquisador e curador do MAC/CE Bitu Cassundé. O mesmo desdobramento entre o público e o privado se percebia, com mais ênfase, em artistas da América do Norte. Do Canadá, o trio General Idea – AA Bronson, Felix Partz e Jorge Zontal – se apoderou de uma imagem já disseminada, o logotipo colorido Love, criado por Robert Indiana, para inventar a pintura Aids. Uma simples troca de letras e o coletivo incitava a sociedade a forjar os elos, inevitáveis, entre doença e amor. A ideia, tal como o microorganismo causador da infecção,

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multiplicou-se com rapidez: da obra inicial, pensada para um evento da amfAR – American Foudation for Aids Research, nasceu a campanha IMAGEVIRUS, que consistia em reproduzir, em pôsteres e cartazes ao redor do planeta, o logo Aids com suas cores estridentes e sedutoras, que decerto não passavam incólumes onde quer que fossem expostas. Partz e Zontal faleceram em 1994, em decorrência da Aids. Ainda hoje suas concepções visuais provocam impacto, como se vê no Museu de Arte de São Paulo/MASP, onde um dos painéis do General Ideia se encontra na mostra Histórias da sexualidade, aberta à visitação até fevereiro de 2018. Outros artistas/ativistas embaralhavam as fronteiras entre o que se passava dentro e fora de suas casas, seus corpos, suas vidas. “Nos Estados Unidos, vários artistas foram militantes e bateram de frente com o governo e com os laboratórios, enfrentando as políticas e o preconceito contra uma sexualidade que era colocada em jogo. Esse ativismo migrava para o processo poético. A questão privada versus pública foi desdobrada nos trabalhos de Nan Goldin, Felix Gonzales-Torres, David Wojnarowicz, Peter Hujar e Keith Haring, que iam para a rua, eram combatentes e potencializavam suas questões pessoais em plataformas públicas extremamente potentes. Mesmo hoje, ainda é bonito ver o processo de transformação do que era de ordem íntima em uma questão coletiva e política, para sensibilizar, educar e fazer com que as pessoas refletissem”, expõe Bitu. Keith Haring, por exemplo, era membro do Act Up, para o qual produziu diversos desenhos, sempre sob a égide da frase “Silence = death”. Ele e os outros artistas citados por Bitu, com exceção de Nan Goldin, faleceram entre 1987 e 1997. No Brasil, na mesma época, José Leonilson operava em uma frequência diferente da modulada pelos norteamericanos. “Naquele período, as pessoas adoeciam e isso ficava visível. Não era possível negar. Seus trabalhos iriam atingir uma dimensão poética mais introspectiva e a doença migra de uma forma sofisticada e sutil para


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a produção, ao contrário da agudez extrema dos EUA”, compara o curador cearense. Mestre em Artes pela UFMG com a dissertação Leonilson – A natureza do sentir (2011), Bitu Cassundé lembra que seu conterrâneo chegou a tomar AZT e, assim, incorporou o desgaste do corpo com a medicação à arte: “Se, antes, havia os quadros em grandes dimensões, depois, ele deixa a pintura, já que as tintas lhe causavam um processo alérgico, e entra com força no bordado, pontuando, com sensibilidade e sofisticação, uma poética mais silenciosa”. Na série O perigoso, Leonilson constrói, em sete pequenos desenhos concebidos durante uma internação hospitalar, uma delicada radiografia da condição de viver

com HIV. “Um deles traz uma gota do seu sangue contaminado, pintada com nanquim; em outros, pequenas imagens do processo de tratamento sob o nome de flores – Margarida, Lisiantros, Copos de leite”, explana Bitu. O perigoso é de 1992, uma espécie de “canto do cisne”: em 1993, aos 36 anos, Leonilson partiu. “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”, escreveu Renato Russo em Pais e filhos, carro-chefe de As quatro estações, “porque se você parar para pensar, na verdade não há”. Em 1989, quando o quarto disco do Legião Urbana foi lançado, o líder da banda de Brasília descobriu que era soropositivo. Sete anos depois, faleceu. Para Renato, Leonilson, Cazuza, Keith, David, Peter, Felix e Freddie, de fato, não havia

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amanhã. Entretanto, suas vidas, suas obras a problematizar e amplificar a homossexualidade, ratificando o direito a ser e amar quem se quisesse, e mesmo suas mortes ajudaram a moldar a visão de mundo de uma geração. Ter crescido com a constatação da letalidade da Aids e da doença como um “castigo” é um dos combustíveis do projeto VHS HIV, dos cineastas Fábio Leal e Gustavo Vinagre.

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Fábio Leal, pernambucano, e Gustavo Vinagre, paulistano, são amigos, gays, dividem a mesma idade – 31 – e as lembranças de uma adolescência cercada de referências à Aids: a capa de uma revista semanal com a imagem de Cazuza corroído pelas visíveis


As vidas e obras de artistas como Renato Russo e Cazuza, mortos em decorrência de complicações da Aids, problematizam a homossexualidade e ratificam o direito de a pessoa ser quem quiser

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goiano Daniel O Fernandes administra o canal Prosa Positiva, que divulga o cotidiano com HIV

manifestações da Aids – essa edição de abril de 1989 é, ainda, um caso clássico do péssimo jornalismo que pode ser praticado no Brasil; o filme Filadélfia (1993), em que Tom Hanks interpreta um advogado que é demitido da sua empresa após apresentar claros sinais de infecção por HIV; e as mortes de atores como Rock Hudson (1985), Lauro Corona (1989), Thales Pan Chacon (1997), do escritor Caio Fernando Abreu (1996), dos irmãos Henfil (1988) e Betinho de Souza (1997) e do cineasta Leon Hirszman (1987). “A ideia para VHS HIV veio quando comecei a me relacionar com um soropositivo. Quando ele me contou, vi como eu era ignorante em relação ao assunto. Mesmo sendo privilegiado por

ter acesso às informações, não sabia de nada, e olhe que eu tinha crescido com um medo absurdo de contrair HIV”, confessa Fábio. O documentário, uma realização da Sancho e Punta (SP) e da Ponte Produções (PE), vem sendo filmado com recursos provenientes do edital do audiovisual do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura/Funcultura. “Vamos fazer um longa com dinheiro de curta”, avisa o diretor pernambucano: “Pensamos em um filme dividido em duas partes, começando com imagens nossas, de arquivo, falando de nós, das nossas mães, de como descobrimos o que eram sexo, Aids e morte ao mesmo tempo. Em seguida, queremos falar dos amigos próximos com HIV e, a partir desses relatos, dos médicos, de outras pessoas soropositivas e das políticas públicas”. Para fins de inscrição em um edital, uma pequena apresentação de VHS HIV foi montada, com preciosidades exibidas, nos anos 1980, pelas emissoras de televisão brasileiras. Em um dos excertos compilados por Fábio e Gustavo, a cantora Alcione, que se

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autointitula “rainha dos gays do Brasil”, é questionada por um repórter sobre “o” Aids: “O Norte, o Nordeste, essa área que eu sou acostumada a percorrer, ali não vejo falar “do” Aids. Acho que nem existem casos, se tiver, são tão poucos (…). Agora, a mulher brasileira é considerada a mais limpa do mundo: ela se depila, toma banho todos os dias. Os nossos gays são iguais. O nosso gay é limpíssimo, é muito higiênico. Então, a culpa não é dele, é do gay estrangeiro”. Desinformação e xenofobia combinamse em uma equação catastrófica, reproduzida no mundo inteiro nos anos mais letais da Aids. Em 1987, por exemplo, os Estados Unidos decretaram que qualquer pessoa HIV positiva não poderia entrar no país. A legislação só foi banida em 2010, sob a presidência de Barack Obama. A cisão da narrativa de VHS HIV em dois momentos reforçará outro aspecto relevante: a transição do VHS para digital reverbera a própria mudança na apresentação física da doença ou mesmo a ausência de sintomas evidentes. “As imagens de arquivo dos anos 1980, de revistas, telejornais e dramaturgia, estão


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em HVS, sujeitas a fungos e ações do tempo, assim como os corpos doentes daquela época, assolados pela magreza, por aquelas manchas da pele, pela toxoplasmose. Hoje em dia, o digital é cristalino e tudo está numa nuvem, assim como o vírus é quase uma virtualidade. As pessoas estão perfeitas, possuem a informação de que têm o vírus, não se vê doença alguma nos seus corpos, se estiverem em tratamento não transmitem o vírus. Mas, ainda assim, nós, como sociedade, não damos as condições para que elas escolham contar ou não contar que vivem com HIV. É muito estigma”, argumenta Fábio.

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Do grego stígma, atos, que significa “marca feita com ferro em brasa”, de acordo com o Dicionário Houaiss, a palavra estigma remete às stigmatas, as chagas sofridas por Jesus Cristo no momento da crucificação, passíveis de reaparecer nos cristãos, segundo o catolicismo, em instantes de fervor religioso. Nesse caso, ter o estigma associado ao Filho de Deus não seria encarado como maldição. No entanto, no Antigo Testamento da Bíblia, inúmeras são as passagens em que doentes são “manchados”. Em Levítico, capítulo 14, versículos 54 a 57: “Esta é a lei de toda sorte de praga de lepra, e de tinha, e da lepra das vestes, e das casas, e da inchação, e da pústula, e das manchas lustrosas, para ensinar quando qualquer coisa é limpa ou imunda. Esta é a lei da lepra”. Pústulas e manchas lustrosas são descrições que se encaixam no Sarcoma de Kaposi, uma das principais mazelas oportunistas que acometiam os soropositivos nos primeiros anos da epidemia. Marcas roxas, como as que o personagem de Tom Hanks exibia em Filadélfia, espalhavamse pelo corpo inteiro. Lepra, hoje conhecida como hanseníase, era causada por uma bactéria e, não sendo tratada, provocava deformações físicas. No Brasil, convencionouse que os leprosos deveriam ser afastados do convívio social. Em Pernambuco, o Sanatório Padre Antônio Miguel, o Hospital da Mirueira, era o local para onde os doentes eram mandados. “O Recife, até hoje, é uma das cidades com o maior número de portadores de hanseníase no mundo. As

pessoas ainda têm preconceito, quando o certo é que, se alguém se trata ou está em tratamento, não é problema de ninguém. O que aconteceu com o que antes chamávamos de lepra, ocorreu com a Aids. Ouvi de vários colegas que os doentes deveriam ser colocados em um hospital exclusivo. Pior foi ouvir que os pacientes com Aids deveriam ser todos colocados em uma ilha. Com a Aids, como com a hanseníase, voltamos à Idade Média”, reflete a infectologista e professora Vera Magalhães. Portanto, quando a Aids irrompe no Brasil, 35 anos atrás, as reações eram medievais, vide os médicos pernambucanos que sonhavam com um degredo e os hospitais que recusavam atendimento. “O primeiro caso de Aids na rede particular de saúde de Pernambuco foi um escândalo”, recorda a pesquisadora Ana Brito, do Instituto Aggeu Magalhães/Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco. “E veja que tivemos a sorte dos primórdios da epidemia no país terem acontecido quando se estava discutindo a criação do Sistema Único de Saúde, previsto na Constituição Federal de 1988. Eu era médica do sistema Inamps e, antes de 1990, quando é promulgada a Lei Orgânica de Saúde e surge o SUS, nos hospitais só entrava quem estivesse trabalhando com carteira assinada. E quem não tinha? Com o SUS, veio uma rede pública de ambulatórios e ações integradas de saúde que concorreu para um enfrentamento efetivo da Aids. De certa forma, a doença inicia, também, uma era na assistência domiciliar terapêutica, porque muitas pessoas terminavam indo para casa, em home care, já que os hospitais públicos não tinham leito suficiente e os privados e conveniados dos planos de saúde não queriam receber os pacientes. Eram os banidos”, acrescenta a médica epidemiologista, que foi professora da Faculdade de Ciências Médicas/UPE e, desde 1994, dedica-se a pesquisar repercussões da infecção por HIV. Em Aids e suas metáforas, Susan Sontag resgata declarações de próceres católicos brasileiros e ilustra um pensamento reincidente na primeira década da epidemia: “As afirmações dos que pretendem falar em nome de Deus podem, de modo geral, ser facilmente explicadas com a tradicional retórica do

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discurso sobre as doenças sexualmente transmissíveis – desde as fulminações de Cotton Mather até as recentes declarações de dois destacados religiosos brasileiros, o cardeal-arcebispo de Brasília, d. José Falcão, para quem a Aids é ‘consequência da decadência moral’, e o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, d. Eugênio Sales, que vê na Aids ao mesmo tempo um ‘castigo de Deus’ e ‘a vingança da natureza’”. Tal urgente e inegável vontade de exclusão era, em parte, similar aos preceitos que o filósofo francês Michel Foucault enfatizava em A loucura e a sociedade, conferência dada em 1970 na Faculdade das Artes Liberais da Universidade de Tóquio. No trecho extraído de Michel Foucault – Filosofia, diagnóstico do presente e verdade (Forense Universitária), ele postula: “Se é verdade que toda sociedade (…) exclui certo número de indivíduos e lhes cria um lugar à parte e marginal, em relação


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à produção econômica, em relação à reprodução social, em relação à circulação de símbolos, em relação à produção lúdica; se há sociedades em que todas essas exclusões ocorrem, nessas sociedades há sempre uma categoria de indivíduos que é excluída ao mesmo tempo, tanto da produção quanto da família, do discurso e do jogo. Esses indivíduos são, grosseiramente, os que se pode chamar de loucos”. Foucault morreu em 1984, em consequência da Sida, como a Aids é chamada na França. Não viveu para ver que a substituição de “loucos” pelo adjetivo com que os doentes eram agredidos, uma palavra ofensiva e pejorativa ainda utilizada como xingamento ou acusação nos dias atuais, ofereceria uma compreensão do panorama da existência com HIV. Nem para constatar que os ventos da contemporaneidade a soprar em 2017 não garantem a liberdade de uma vida

sem julgamentos ou discriminações para 36,7 milhões de pessoas. Tais dados são de 2016, compilados pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/ Aids – Unaids. Segundo a ONU, existem 7,6 bilhões de habitantes no planeta, de modo que 0,48% da população mundial tem HIV. O percentual pode parecer ínfimo, mas 36,7 milhões se igualam à soma das populações de metrópoles como Nova York, São Paulo, Moscou e a Cidade do México.

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Não são invisíveis nem podem ser proscritas as pessoas que vivem com HIV. Cândido da Silva, do núcleo pernambucano da Rede Nacional das Pessoas que Vivem com HIV/Aids e da Articulação Aids Pernambuco, é prova disso. Com 18 anos de infecção, e 15 de terapia antirretroviral, é ativista em tempo integral. “Nós, que vivemos com HIV, temos que estar sempre

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ândido da Silva, da C Articulação Aids PE, convive há 18 anos com a infecção e é ativista em tempo integral

mostrando a cara e debatendo. Não é nos escondendo que vamos parar com os estigmas que criaram. Temos que atuar. A Constituição diz que a saúde é um direto de todos e dever do Estado. Mas, no interior, por exemplo, as pessoas têm vergonha de ir buscar seus remédios, na capital falta medicamento e nas escolas não se fala em prevenção”, sustenta. O Brasil saudado pelo vocalista do U2 é o país que, em 1996, sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, sancionou a Lei 9.313, assegurando que “os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento”. É o mesmo país que, em 2001 e 2005, enfrentou companhias farmacêuticas para quebrar patentes, obtendo medicamentos antirretrovirais por um preço mais baixo.


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Porém, é o mesmo Brasil de projetos como Escola sem Partido ou de outras iniciativas que visam evitar a “doutrinação política e ideológica”, afastando do ambiente escolar qualquer discussão sobre sexualidade e gênero, e, o que é pior, o país em que os índices de novas infecções galopam entre os mais jovens. Na iminência da divulgação do novo boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, o que se dará no 1º de dezembro, o Dia Mundial de Luta contra a Aids, os dados relativos a 2015 são assombrosos: de 2006 a 2015, os casos de Aids entre jovens do sexo masculino com 15 a 19 anos passaram de 2,4 para 6,9 por 100 mil habitantes – o triplo em menos de uma década. Entre os jovens de 20 a 24 anos, no mesmo espaço de tempo, o percentual foi de 15,9 para 33,1 casos/100 mil habitantes. “Não basta falar só de preservativo. Temos que discutir Aids, sexualidade e gênero nas escolas, com os jovens, com os velhos também, em qualquer lugar. Se eu estiver no ônibus e ouvir uma conversa sobre HIV, puxo logo papo. Mas o contexto está difícil. Como pensar em melhorar a prevenção sem falar?”, questiona Cândido da Silva. O Brasil onde programas televisivos de 2017 repetem o script de 1987 e informam que beijar e abraçar não transmitem HIV. O Brasil onde sexualidade é tabu, violência de gênero torna as mulheres mais vulneráveis a infecções sexualmente transmissíveis e empregadores desrespeitam a Lei 12.984/2014, que “define o crime de discriminação dos portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes de Aids”. O Brasil de propostas de emendas constitucionais que ensejam o congelamento dos gastos em saúde e educação por 20 anos é uma nação que precisa falar de HIV.

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No início de novembro deste ano foi sancionada a Lei 13.504/17, a partir de um projeto apresentado em 2015 pelos deputados federais Jean Wyllys (PSOL-RJ), Erika Kokay (PT-DF) e Paulo Teixeira (PT-SP), que institui o “Dezembro vermelho”. A proposta é que o último mês do ano, que se inicia com o Dia Mundial de Luta contra a Aids, seja dedicado à

No Brasil, violência de gênero torna as mulheres mais vulneráveis a infecções sexualmente transmissíveis e empresas desrespeitam lei federal que criminaliza a segregação de quem vive com HIV realização de “atividades de educação e prevenção à infecção por HIV/Aids, e também à promoção dos direitos das pessoas vivendo com o vírus”, como fraseou Jean Wyllys em sua conta no Instagram, no dia em que comemorou a nova legislação. O relatório mais recente do Unaids, de junho de 2017, determina que existem 830 mil pessoas com HIV no Brasil. Nos 35 anos de epidemia no país, Pernambuco responde por 25.218 casos de Aids, registrados a partir de 1983 da seguinte forma: 16.344 do sexo masculino e 8.874 do sexo feminino. O percurso que transformou em estatística cada cidadão e cidadã desse quinhão começou, necessariamente, na testagem, antes oferecida para a população geral por meio dos Coas – Centro de Apoio e Orientação Sorológica, hoje CTA – Centro de Testagem e Aconselhamento. Ao todo, existem 32 CTAs no estado, alocados em cidades com maior número de habitantes (Recife, Caruaru, Petrolina, entre outros). Nesses locais, que são de responsabilidade de cada município, embora pertençam ao

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guarda-chuva do Programa Estadual de IST/Aids (recomendação da Organização Mundial de Saúde é para trocar a primeira letra da sigla “DST”, das doenças sexualmente transmissíveis, por “I” de infecções), o teste é “por livre demanda”: quem chegar e solicitar, há de ser testado. Numa manhã de segunda-feira de novembro, a Policlínica João de Barros Barreto, na Praça do Carmo, em Olinda, recebia cerca de 15 pessoas no corredor que antecede as quatro salas reunidas sob um cartaz que dizia “Coordenação DST/Aids”. Dois terços eram mulheres, algumas delas grávidas. Com pouco tempo de espera, era possível se cadastrar, informando dados básicos como nome e endereço e apresentando um documento de identificação com foto, a fim de fazer o teste rápido para HIV, sífilis e hepatite B e C, oferecido de segunda a sexta, das 7h30 às 11h. “Cerca de 25 a 30 pessoas passam por aqui diariamente para fazer o teste. É a porta de entrada para o sistema. Todos os resultados são entregues pelos psicólogos da nossa equipe. Se der positivo, a pessoa


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é encaminhada para a equipe de enfermagem para fazer novos exames”, informa Fátima Vieira, historiadora e sanitarista que coordena o programa municipal de DST/Aids de Olinda. O diagnóstico não se encerra com um teste, mas com dois, em um procedimento padrão em todo o país, mesmo em laboratórios particulares. “Fazemos o primeiro teste rápido e, se der reagente, pegamos outro teste, de outro laboratório. Se der reagente de novo, fechamos o diagnóstico, notificamos o paciente e tentamos obter o maior número de dados possíveis com relação à categoria de exposição, escolaridade, raça/cor e via de transmissão – se foi por uso de drogas, pelo sangue ou por relação sexual. Uma grande luta é treinar e sensibilizar os profissionais de saúde para que anotem todos os dados, o que nos dará um retrato fiel da realidade de circulação do vírus”, explana o médico epidemiologista François Figueiroa, coordenador do programa IST/Aids de Pernambuco desde 1994. “Reagente” significa que o teste acusará a presença de anticorpos

criados pelo organismo como reação à presença do vírus. É importante ressaltar que esse mesmo organismo leva de 30 a 90 dias para atingir a conversão sorológica. Ou seja, a exposição a uma situação de risco no fim de semana não poderá ser verificada em uma testagem feita na manhã seguinte. Uma vez confirmado que a pessoa tem HIV, o passo seguinte é ir até um SAE – Serviço de Atenção Especializada. Há 37 SAEs no estado – são organismos mesclados, pertencendo a universidades (existem, por exemplo, um SAE no Hospital Oswaldo Cruz, na UPE, ligado à Secretaria de Ciência e Tecnologia, e um SAE no Hospital das Clínicas, ligado à UFPE), a hospitais contratados, como o Imip, ou aos municípios, como são os do interior – Afogados da Ingazeira, Salgueiro, Petrolina, Ouricuri, entre outros. É no SAE, por exemplo, onde a pessoa com HIV fará seu cadastro para acompanhamento e retirada da medicação. A Barros Barreto, em Olinda, é CTA e SAE, o que dá a Fátima a experiência de 18 meses convivendo com pessoas

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arion de Andrade Lessa, M nome fictício, integra a seção PE do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas

que não querem, por exemplo, aderir ao tratamento: “Por conta do estigma, muita gente tem resistência em começar a tomar a medicação, pois entende que, assim, não será mais possível esconder que tem HIV do seu parceiro, por exemplo. Outras já começam logo, mas acham que podem abrir mão quando quiserem. Como o tratamento não é compulsório, como o teste, ou seja, a pessoa começa se quiser, criamos um grupo de estímulo à adesão ao tratamento, com cerca de 12 jovens e 30 adultos”. “Aderir ao tratamento” significa entrar no que o formulário do Sistema Único de Saúde – SUS descreve como “TARV”. Antes, os critérios para o tratamento antirretroviral eram distintos: o paciente precisava estar com uma contagem de linfócitos CD4 menor do que 200 unidades por milímetro cúbico de sangue ou ter desenvolvido alguma infecção oportunista.


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O ativista Cândido da Silva, da Articulação Aids PE, por exemplo, passou três anos sem se enquadrar nessa categoria e, portanto, sem tomar medicação. Era uma época em que não havia remédio suficiente para todos que já viviam com HIV. Em seguida, elevou-se o ponto de corte para 350/ mm3, depois, para 500/mm3. A partir de 2013, o Ministério da Saúde instituiu um novo protocolo. “Diante de um paciente com diagnóstico recente, o tratamento pode ser começado imediatamente. As vantagens do início precoce superam qualquer motivo para adiar”, opina Rafael Sacramento, infectologista carioca que é porta-voz e consultor do Médico Sem Fronteiras no Brasil para HIV e tuberculose. Ele explica que, no tratamento antirretroviral, a pessoa receberá uma combinação de drogas que funcionam como entrave para a replicação do vírus. São elas: os inibidores de transcriptase reversa, como a zidovudina (o AZT, que em 1987 custava 10 mil dólares por ano nos EUA), a lamivudina e didanosina, e os inibidores de protease (como o ritonavir e atazanavir) e de integrase (como dolutegravir). A opção mais difundida na atualidade é a combinação tenofovir/lamivudina, o “2 em 1”, com o dolutegravir, que passou a ser oferecido no SUS em 2017. Em geral, com alguns meses de tratamento rigoroso (no mínimo duas ou três, no máximo seis pílulas, ao contrário das três dezenas que poderiam ser ingeridas nos anos 1990), a quantidade de vírus diminui ao ponto de ficar indetectável – coeficiente obtido com a marca de menos de 40 cópias por mililitro de sangue. Mas como incentivar que as pessoas se tratem de uma “epidemia de preconceito, estigma e discriminação”, nas palavras de François Figueiroa? Transparência e diálogo franco são essenciais para erodir tabus. É nessa chave que atua Rafael, médico que desde a graduação lida com “populações negligenciadas” – já esteve no Quirguistão, na África e no território Yanomami; atualmente, trabalha nas três unidades carcerárias que compõem o Complexo do Curado, nome a partir do qual ficou conhecido o antigo Presídio Aníbal Bruno, hoje subdividido em três presídios menores (e ostentando o título de maior cadeia nacional).

Paciente com diagnóstico recente deve iniciar tratamento imediato, pois há muitas vantagens nessa conduta. Em alguns meses, a carga viral pode cair a ponto de se tornar indetectável ***

“Tenho que admitir que, quanto maior o poder econômico, maior o acesso à informação. Porém, já atendi várias pessoas de classes sociais mais favorecidas que eram totalmente ignorantes até se contaminarem. O que acontece é que elas, ao se descobrirem soropositivas, vão ao Google. No meu ambiente de trabalho, não. Muita gente nem sabe, às vezes, como abrir um preservativo. Dentro da prisão, o universo não é muito diferente do que essas pessoas, marcadas pela violência cotidiana desde a infância, viviam lá fora. O encarceramento traz características próprias, mas muitas vezes os detentos fazem sexo sem preservativo, e com multiplicidade de parceiros e de forma violenta, porque essa sempre foi a realidade deles. Então, às vezes falo, outras vezes mostro fotos, conto histórias para que eles consigam identificar a realidade do que pode ser uma vida com a infecção por HIV e uma vida com o vírus, mas sem tratamento. Digo, por exemplo, que eles não vão conseguir se defender. Mas reconheço, e isso me causa desconforto, que até

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como mecanismo de adesão preciso fazer piadas machistas para que eles alcancem aquela perspectiva. Parte da situação vivida hoje, com HIV e as ISTs, é fruto do machismo e da dominância masculina”, comenta o infectologista Rafael Sacramento. Por sugestão dele, e para facilitar a adesão ao tratamento dos presos (a prevalência de HIV nas unidades carcerária chega a ser 40 vezes maior do que na população em geral, segundo o infectologista), todos os prontuários dos detentos com HIV do Recife foram centralizados no Hospital Correia Picanço, em Parnamirim, na zona norte da capital pernambucana. Com 6,7 mil metros quadrados de área construída, em um terreno com quase o triplo do tamanho, o Correia é, desde 1992, o hospital-referência de Pernambuco: é o único com ambulatório exclusivo para as pessoas que vivem com HIV e é o único com uma emergência para HIV, cujos leitos são divididos apenas com pacientes acometidos de meningite. Outros hospitais no estado – Otávio de Freitas, Barão de Lucena, Clínicas, Oswaldo Cruz, Cisam – Maternidade


Por medo e preconceito, muitas famílias ainda abandonam nos hospitais seus parentes com HIV. Não é incomum, também, agentes de saúde reagirem a eles com discriminação da Encruzilhada e Imip – atendem HIV, mas o Correia é o epicentro. Uma vez lá, é impossível não gravitar ao redor da infecção pelo HIV e de suas implicações práticas e subjetivas. Implicação prática: durante muito tempo, o receituário e toda a papelada do Correia Picanço não tinham o nome da instituição, “apenas o símbolo do governo e o nome da Secretaria Estadual de Saúde”, conta Ângela Karine Queiroz, pediatra que desde março de 2012 é diretora-geral do hospital. Motivo: ninguém queria levar para casa um atestado com o emblema do “hospital de Aids”. Implicação subjetiva: até hoje, as pessoas que lá chegam, oriundas de algum SAE e com o resultado de “reagente” no teste, “lembram Cazuza e o filme Filadélfia e acham que vão pegar HIV e morrer no dia seguinte, mesmo com todos os avanços da terapia antirretroviral”, diz a psicóloga Jucilene Souza, desde 1993 no hospital. Outra implicação prática: segundo a enfermeira Adriana Paula da Silva, gerente do SAE que opera lá, até hoje “médicos e profissionais de saúde vêm nos procurar, com um atestado

ou receituário na mão, querendo saber se aquela pessoa tem Aids. Às vezes, trata-se da empregada da casa, em outras é alguém da família”. A própria Adriana dá o exemplo de uma implicação subjetiva: durante anos, cruzava com um vizinho no prédio onde morava e nos corredores do Correia Picanço, aonde ele ia retirar seus medicamentos. Ele nunca a cumprimentava quando se viam no elevador de casa. Quando ela se mudou, aí, sim, veio falar com ela no hospital. E Fátima Soares, assistente social, trabalha em outro hospital do estado e compara as rotinas: “Dificilmente, uma pessoa que precisa não vai ter acompanhante. Imagina se ela teve um acidente de moto? Ou se estiver se tratando de um câncer? Não precisaremos ligar para a família e pedir, por favor, para alguém vir vê-la. O diferencial é o estigma e o preconceito. Ligamos e dizemos: ‘Ele está morrendo, você tem que vir’. E, muitas vezes, quando os parentes chegam, é para a culpar a pessoa – ‘mas tu não procurou?’”. Em um caso clássico relatado pela diretora, um paciente jovem teve

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alta e passou dois anos à espera dos parentes, residindo no hospital. O Estado foi à Justiça contra a família. Jucilene, Fátima e Adriana falam, com afeto, da relação de longa data que mantêm com aquelas pessoas que veem todos os meses – “Tem gente que chegou aqui com bebê no colo e agora os filhos já estão na faculdade”, “pessoas com 25 anos de HIV que fazem questão de falar conosco”, “Temos um vínculo com eles” – e, com tristeza, da vigilância alheia que sentem quando vão beijar e abraçar essas mesmas pessoas: “Tem médico que acha estranho”. A perplexidade só não é menor do que a certeza de que “medo e preconceito estão em todas as áreas, todas as classes sociais, não é só entre os pobres, é entre a gente da alta também”. “Muita gente chega aqui totalmente descompensada pela forma como foi comunicada sobre o resultado do seu teste ou tratada por um médico na rede particular”, anota a assistente social Fátima Soares. Há pouco, o Correia Picanço passou por um censo para atualizar seu cadastro. “Encontramos pacientes cadastrados com nomes falsos. Antigamente, as pessoas tinham vergonha, até, de dizer o nome verdadeiro. Atualmente, temos 6.942 pacientes cadastrados que fazem uso da terapia antirretroviral. Como o hospital é referência, muita gente acaba vindo para cá, mesmo com SAEs mais próximos da sua residência. Temos pacientes de outras cidades e outros estados, que preferem viajar para manter o sigilo”, informa o infectologista Rodrigo Menezes, diretor-médico do hospital. No dia em que a Continente visitou o local, um baiano havia ido até lá para retirar seus frascos de comprimidos e há quem viaje de Alagoas, Piauí ou Paraíba para uma consulta. Os números, a estrutura e a estatura literal e simbólica do Correia Picanço (o nome vem de José Correia Picanço, cirurgião nascido no século XVIII, em Goiana, na Mata Norte pernambucana, que é considerado o fundador do ensino médico no Brasil) retratam o que é, hoje, a epidemia de HIV/Aids no Brasil. Apesar da existência de uma equipe multidisciplinar para o ambulatório (dermatologistas, psiquiatras, ginecologistas, neurologistas, dentistas e a tríade do atendimento primário


Dossiê JOÃO PAULO MACHADO/DIVULGAÇÃO

– assistente social, psicóloga e enfermeira), e da disponibilidade de 35 leitos na emergência, cinco leitos de UTI e 10 leitos para o hospital/dia, o funcionamento está sujeito às flutuações de um SUS cada vez mais enfraquecido. A cada mês, de acordo com a diretora Ângela Karine Queiroz, chegam 40 novos pacientes.

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Segundo François Figueiroa, o coordenador do programa estadual IST/Aids, o ideal seria que os casos de infecção por HIV pudessem ser cuidados na rede de atenção básica – postos de saúde de família, as unidades que existem nos bairros de cada um dos 185 municípios pernambucanos, com o que concorda o infectologista Rafael Sacramento. “Do ponto de vista técnico e estrutural, não existe diferença entre tratar diabetes e tratar HIV. Diabetes é doença complexa, o conceito de HIV é muito complexo, mas o que precisa ser atendido na saúde básica é justamente o que está mais disseminado. Uma gestação, que é um processo fisiológico complexo, é acompanhada, basicamente, por enfermeiros, e vemos uma redução da mortalidade materna e infantil com a assistência básica sendo dada de maneira correta. O problema é que as pessoas com HIV não se sentem confortáveis em ser atendidas no posto perto de casa por questões de confidencialidade”, detalha Rafael. Outro aspecto notável é um conjunto de ramificações: houve a pauperização, a interiorização, a feminização e o entardecer da Aids. A epidemia assola os mais pobres, chegou às cidades do interior, hoje as mulheres são 51% das pessoas com HIV no mundo, conforme o Unaids, e o aparecimento de pílulas para disfunção erétil reacendeu a vida sexual na “boa idade”, com o agravante de que homens septuagenários e mulheres sexagenárias nem sempre se acostumaram ao uso de camisinhas ou se achavam imunes a uma infecção ainda atrelada à impressão de populações-chave – pessoas que usam drogas injetáveis, homens que fazem sexo com homens (HSH), profissionais do sexo, pessoas trans e seus respectivos parceiros sexuais. “A doença cronificou. É muito grande o número de idosos, homens e mulheres, que chegam aqui.

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Tivemos um senhor de 92 anos que entrou com uma infecção respiratória. Provavelmente nunca tinha usado um preservativo na vida”, completa Rodrigo Menezes. E, com despreparo e discriminação na assistência primária, muitas pessoas desenvolvem, de fato, quadros de Aids por lapso de atendimento. Em Pernambuco, a principal causa de mortalidade em pacientes com HIV é a tuberculose – uma doença infecciosa bacteriana causada pelo bacilo de Koch, fatal durante séculos, mas facilmente tratável desde a descoberta dos antibióticos, em meados do século XX. No prontuário de todos os pacientes que ocupavam os leitos da UTI do Correia Picanço em uma manhã de novembro estava escrito que a internação se devia a “problemas respiratórios”. “Tuberculose é uma doença antiga, relacionada à pobreza e ao subdesenvolvimento. Nunca deixou de existir no Brasil, mas a coinfecção com o HIV traz questões como a toxicidade da interação entre os medicamentos antirretrovirais e os que tratam a tuberculose. O problema é

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7-8 A obra Dis-placement, do

artista visual mineiro Paulo Lima Buenoz, reflete sua convivência de 28 anos com o HIV

que, muitas vezes, os pacientes chegam às enfermarias em estado avançado de tuberculose e desconhecendo a sorologia para HIV, porque há o medo do teste. Um paciente com HIV deve ser atendido em qualquer serviço. Um atendimento na ponta, descentralizado, evitaria muitos diagnósticos tardios”, avalia a infectologista Vera Magalhães. O orçamento da Secretaria Estadual de Saúde para 2017 foi de R$ 4,3 bilhões. De acordo com a secretaria, “por ano, são investidos cerca de R$ 6 milhões para o Programa de IST/Aids”, incluindo “verba para ações no carnaval, compra de leite e de medicamentos para infecções oportunistas” e excluindo os antirretrovirais (enviados pelo Ministério da Saúde), os fundos que os municípios recebem do ministério, os preservativos (cerca de dois milhões de unidades por mês são encaminhadas a Pernambuco) e o custeio dos hospitais. Uma pequena fração de 0,139% do montante da saúde


ACERVO DO ARTISTA

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é, portanto, destinada às campanhas e iniciativas que a lei federal do “Dezembro vermelho” deseja fomentar em todo território nacional. No Brasil, que centraliza 49% das novas infecções na América Latina e onde 14 mil pessoas pereceram de causas relacionadas a Aids em 2016, Pernambuco disputa com a Bahia o nada honroso primeiro lugar regional no número de infecções anuais. No estado, como no restante do país, as pessoas com HIV parecem estar sempre sob pressão – “under pressure”, como cantariam David Bowie e Freddie Mercury na canção escrita em parceria pelo Camaleão e pelo quarteto inglês Queen: “Pressão nas pessoas e as pessoas nas ruas”.

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Em uma casa aprazível na Boa Vista, bairro central do Recife, com uma fachada em tons de lilás e um jardim de árvores altas, funciona há mais de duas décadas uma organização nãogovernamental que encadeia sua atuação a partir do trinômio “soropositividade, comunicação e gênero”. A palavra “ativismo” bem que poderia ser indexada à definição da Gestos, fundada em 1993 por quatro pessoas – Acioli Neto, Márcia Andrade, Sílvia Dantas e Alessandra Nilo – que, atordoadas com a perda de diversos amigos por complicações da Aids e com a lenta resposta do governo, optaram por agir. Do sofrimento e da dor da perda, elementos inseparáveis dos “anos da

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peste”, a Gestos ergueu um desempenho diligente ao ponto de inseri-la no patamar de interlocução com as esferas governamentais em todos os níveis e, sobretudo, de validá-la como instituição de amparo às pessoas que vivem e convivem com HIV. Há folhas impressas com os telefones da ONG coladas nas recepções do Correia Picanço ou de outros SAEs da região metropolitana; os próprios funcionários da rede estadual de Saúde indicam a Gestos para quaisquer assuntos relativos a HIV/Aids. Desde os anos 1990, quando os investimentos eram escassos, a Gestos, ancorada muitas vezes em recursos provenientes de cooperação internacional (Misereor, Fundação Ford, Open Society Institute, Terre des Hommes), oferece apoio psicoterapêutico e acompanhamento social e jurídico gratuito a quem vive HIV, acionando a Justiça para garantir a distribuição dos medicamentos ou para intervir contra empresas que demitem funcionários por discriminação. Mas sua sede, sempre repleta de gente e vitalidade, não tem letreiro algum. “O estigma é enorme e as pessoas nos pediram para não ter placa. Quando você pensa o que é Aids, por que alguém vai ser perseguido se tiver o vírus?”, pergunta Jô Menezes, coordenadora de programas institucionais da ONG. Para ela, a carga de preconceito é apenas um componente de um contexto difícil para equilibrar realidade e otimismo: “Se olharmos a história da humanidade, talvez nenhuma epidemia teve o apoio e a solidariedade da Aids. Passamos por sífilis, também sexualmente transmissível, tuberculose, hanseníase e todas essas estão negligenciadas. A Aids está entrando nesse rol agora. No Brasil, o SUS, que é fantástico e garante acesso à medicação e atendimento independentemente de classe social, está sendo sucateado. Em Pernambuco, até medicação fora da validade já foi entregue. A doença, antes de classe média, agora está pauperizada. Muitos chegam aqui completamente desassistidos, com fome. Não existe mais prevenção efetiva, pois botar uma campanha no Carnaval e outra no 1º de dezembro não é prevenção. Precisamos de ação educativa e diálogo, principalmente com os jovens. Se os pais e mães são


Dossiê DIVULGAÇÃO

formados pelo caldo conservador da mídia, e não existe espaço para discutir sexualidade nas escolas, os jovens não têm onde conversar”. Em setembro de 2015, a Gestos inaugurou o Espaço Saúde e Sexualidade para Jovens e Adolescentes, com o intuito de abraçar a juventude com dúvidas ou empecilhos na seara dos direitos sexuais e reprodutivos. A postura de acolhimento gerou um grupo de ativismo exclusivo para jovens soropositivos. Dois anos depois, numa tarde de novembro, a Continente acompanhou uma reunião semanal do GT jovem. A atmosfera do encontro remontava ao documentário How to survive a plague, de David France, ou despertava comparações com as cenas ficcionais de 120 batimentos por minuto, do cineasta francês Robin Campillo, vencedor do Grande Prêmio do Júri de Cannes em maio. Em ambos os filmes, a conduta combativa da Act Up, respectivamente na Nova York de 1987 e na Paris do início dos anos 1990, servia de esteio para a demonstração enérgica de quem não aceitava um veredicto de morte. Muito separa as realidades daquelas duas metrópoles da vivência contemporânea de Paulo, Diogo, Suetam, Cristina, Paulo F, Alexandre, Nati, Ítalo, Helton, Wesley, Tiago e Breno – sobrenomes omitidos a pedido deles. Mas, assim como os ativistas estrangeiros de 30 anos atrás, os daqui, cujas idades variam de 24 a 31 anos, pontuam suas travessias individuais com algumas doses de tristeza e revolta, mas em especial com um sentido de urgência para aprender e coerência para refletir o que é a vida com HIV. Todos aderiram ao tratamento, uns imediatamente após o diagnóstico, outros depois de algum tempo, e falam com segurança sobre o que é terapia antirretroviral e seus efeitos colaterais: alucinações, diarreia, náuseas, sudorese noturna… Palavras estranhas, como kaletra e efavirenz, compõem seu vocabulário corriqueiro; como alunos aplicados, afinal, estudaram os pormenores da infecção. Aprenderam, por exemplo, que se a carga viral estiver indetectável, como está em quase todos, o risco de transmissão é praticamente nulo. Mas que adianta ter certeza disso se ainda existe quem tem medo de tocar neles? Todos, sem exceção, reconhecem a

LUCIANA VERAS

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9-10 Pintura Aids (1988),

do coletivo canadense General Aidea, traz para o univserso pop a discussão da epidemia

importância do coletivo na batalha por aceitação – de si próprio e pela sociedade. “Este é um espaço diante de fatores que as pessoas sem o vírus não tem a dimensão de alcançar. Exemplo: ‘Como vou dizer para minha família ou pra meus companheiros?’, ‘Como vou lidar com um date, quando tenho que dizer?’ ou ainda ‘Meu CD4 não sobe e o remédio não desce. São minúcias únicas da experiência do que é viver com HIV”, deslinda a psicóloga Juliana Mazza. O que eles partilham é, de fato, incomparável. “Ter HIV é como se fosse uma outra saída do armário: primeiro se assumir gay, depois se assumir soropositivo”, define Helton. “Só conseguia pensar: Tenho prazo de validade?”, diz Ítalo. “Tentei suicídio oito vezes em dois anos. Mas vim para cá, estou ótimo, iniciei tratamento e minha carga viral está indetectável”, emenda Suetam. Cristina e Nati descobriram a sorologia positiva quando estavam grávidas. “Minha irmã diz que a salvação foi minha filha, pois foi através da gravidez que fiz o exame. Eu tinha 20 anos. Se não estivesse grávida, tinha me entregado”, garante Nati. Cristina tem quatro filhos, nenhum com HIV: “Eu estava só esperando o meu fim. Aprendi que cada vivência é diferente: viver com HIV e ter informação, viver com HIV e ser ativista, viver com HIV e ser pobre e viver com HIV e ter amigos. Não é coisa de outro mundo”. Seus depoimentos denotam o descaso e o preconceito do cotidiano. Paulo F. foi destratado pela enfermeira do

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laboratório particular onde fez o exame, em Belo Horizonte: “Ela disse que ‘reagente’ significava que eu tinha Aids e que iria morrer, que na verdade todo gay merecia morrer”. Alexandre perdeu o convívio dos amigos e da família, teve que largar o emprego, mas se reergueu. “Foi fundamental o conhecimento de outras histórias para poder aceitar a minha própria e não me importar mais se as pessoas acreditassem ou não no que eu fosse falar”. Paulo se chocou no Hospital Barão de Lucena: “A assistente social e a enfermeira me olharam com cara de filme de terror. Parecia que eu ia morrer no dia seguinte”. Há os que contaram para toda a família, como Diogo: “Minha vida inteira eu só lembrava de Cazuza, nunca conheci ninguém com HIV. Quis ser essa pessoa”. Há os que tiveram apoio total do namorado, como Tiago, que escondia a rotina de ir às consultas e retirar a medicação de todos, até que em um “lapso” contou a um amigo, que à revelia agendou uma ida dele à Gestos: “Eu já estava tomando os remédios, mas meu psicológico estava abalado”. Há os que são como Breno,


que pesquisa sobre vacinas, lê todas as bulas e se rebela quando confrontado com a desorganização do SUS: “Fui pegar meus remédios no SAE de Cavaleiro, em Jaboatão, e o farmacêutico disse que estava faltando e que eu passasse na semana que vem. Foi a única vez em que chorei por causa do HIV”. Ele, por conta própria, trocou a medicação e seguiu sem interromper o tratamento. E há a conscientização de que empatia é crucial, como atesta Wesley: “Sendo soropositivo, vejo muito comportamento e pensamento nossos de que nos envergonhamos. Uma coisa é o entendimento, outra é a vivência. É difícil esperar que, de pronto, o outro entenda o que é ser soropositivo”. O que todos entendem é a inevitabilidade da ação. Uns se mobilizam para retomar a rede local de jovens que vivem com HIV, outros participam de atos em escolas, uma parte se articula para melhorar as condições de assistência aos soropositivos em sua cidade. A importância do ativismo está assimilada, bem como a capacidade plena de cada um de contribuir para uma mudança de

atitude na sociedade. “Digo para todos eles que muito se fez pra se ter a política que existe hoje pra HIV/AIDS. Temos que manter o grito porque, senão, vamos perder direitos”, afirma a enfermeira Roberta Correia, coordenadora do GT jovem. O ativismo já frutificou: dois mil exemplares de Saúde: aderir ao tratamento do HIV é a meta – Dicas para levar uma vida saudável, cartilha elaborada com eles, vêm sendo distribuídos desde agosto. Ativismo não é prerrogativa exclusiva de juventude na Gestos. Existe um outro GT, carinhosamente chamado de vintage, em que adultos, sob a pressão mencionada em Under pressure, a canção de Bowie e Queen, vão às ruas. Nele, atua, por exemplo, Marion de Andrade Lessa (nome fictício inspirado no SAE Lessa de Andrade, no qual ela está cadastrada). Sem recurso algum, “por ousadia e conta própria, ela e outras cinco integrantes da seção pernambucana do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas frequentaram o Correia Picanço, entrevistaram cerca de 100 das 2.416 mulheres ligadas àquele SAE para compor o estudo Como vai seu tratamento?, apresentado em novembro

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no 7º Encontro Regional de Mulheres Vivendo com HIV, na Bahia. Marion é a feminização e o entardecer da epidemia. Constatou que vivia com HIV 10 anos após uma relação heterossexual, quando se viu emagrecendo sem causa aparente. Hoje, briga por mais “iniciativa e protagonismo” das mulheres no debate: “Não existe uma frase que tenha sido escrita por nós. Temos que falar. Não há estudos sobre o impacto do tratamento antirretroviral sobre as mulheres, por exemplo. E existem milhares de mulheres em situação de violência e exploração sexual. Não somos invisíveis”. Atrelar violência de gênero à Aids é uma das missões da Gestos, que há 10 anos lidera a campanha “Mulheres não esperam mais – Acabemos com a Aids e com a violência contra as mulheres”. “Não há nada direcionado para as mulheres, nenhum trabalho específico. Foi a Gestos que fez a primeira publicação nesse sentido no Brasil. Há vários estudos que coincidem em dizer que mulheres em situação de violência têm o dobro de vulnerabilidade ao HIV. Pois, em um contexto de violência doméstica familiar, não há, por exemplo, como negociar preservativo. E ainda tem um aspecto mais subjetivo. É como se a sociedade aceitasse mais a ideia de um homem viver com HIV. Mas a mulher, sempre mais vulnerável e em posição de subalternidade, ainda não”, enxerga a advogada Juliana Cesar, assessora de programas da Gestos e ex-coordenadora da mulher da Prefeitura do Recife. Um dos quadros mais antigos pendurados na parede da Gestos é de 1993, da San Francisco AIDS Foundation, com fotos de Annie Leibovitz de pessoas vivendo com HIV: homens, um casal heterossexual, um casal lésbico, mulheres, pais e filhos… “Be here for the cure. Get early treatment for HIV” é a frase emblemática. Tradução: “Esteja aqui para a cura. Receba tratamento imediato para HIV”. A luta continua.

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Em 2017, 35º ano da epidemia de HIV/ Aids no Brasil, o país se afunda em contradições. A transmissão vertical, a passagem do vírus de mãe para filho durante a gestação no parto, reduziu entre 2010 e 2015, com queda de 36%


Dossiê

na infecção por HIV em menores de cinco anos (dados do Unaids com base na proporção para cada 100 mil habitantes). Como comemorar, todavia, se ainda existem casos como o de uma gestante de Petrolina, no sertão de Pernambuco, que chegou para o parto com o diagnóstico de HIV dado no pré-natal, em medicação antirretroviral durante meses, e com indicação de cesárea, que desabou em choro convulsivo após ser informada de que não poderia amamentar? Quem reporta o episódio à Continente é a ginecologista e obstetra Renata Teixeira, responsável pelo pré-natal de alto risco no Hospital da Criança de Juazeiro, na Bahia, que atende às cidades separadas pelo Rio São Francisco. “Quando cheguei para vê-la, no dia seguinte, a vizinha da enfermaria me disse: ‘Doutora, ela está em pânico porque descobriu que tem Aids’. Fiquei estarrecida. Como ela não sabia que era soropositiva? Quando a gestante tem HIV, e se já estiver sendo tratada, como era o caso dela, ela toma AZT na veia três horas antes do parto, mesmo remédio que o bebê vai tomar, em xarope, até completar 18 meses. Essa gestante passou por enfermeiros, médicos, assistentes sociais, no mínimo em sete consultas, e ninguém foi capaz de explicar, com clareza, que ela tinha HIV e o que significava isso. De quem é a culpa? Não é dela”, presume. A Secretaria Estadual de Saúde, em parceria com a Aids Healthcare Foundation no Brasil, leva às ruas do Recife duas vezes por semana um trailer do projeto Quero fazer, no qual 11 profissionais recebem interessados em fazer o teste rápido e distribuem preservativos. É uma ação regular de prevenção no momento em que se analisa a chegada ao país da PrEP, a profilaxia pré-exposição, que consiste em uma prevenção de uso contínuo por ingestão de medicamentos (já existe a PeP, a profilaxia pós-exposição, em que qualquer pessoa que tenha se exposto a alguma situação de risco faz uso de terapia antirretroviral por 28 dias para evitar a infecção). No 11º Congresso de HIV/Aids, em setembro, em Curitiba, “havia diversas mesas sobre PrEP e apenas

No Recife, duas vezes por semana, trailer do projeto Quero Fazer, da Secretaria Estadual de Saúde em parceria com a Aids Healthcare Foundation, realiza testes rápidos de sangue e distribui preservativos uma sobre camisinha feminina”, recorda Jô Menezes, da Gestos. “O uso da PrEP se recomenda para pessoas que estariam em situação permanente de risco, como mulheres e homens profissionais do sexo ou profissionais de saúde, mas é controverso como prioridade de saúde pública. Se estamos vivendo um momento centrado no fundamentalismo, se não se pode falar abertamente sobre o uso do preservativo e se o aborto é crime, como vai ser oferecida a PrEP para as jovens? Se insistirmos na PrEP como carro-chefe da prevenção no Brasil, o que fazer com a altíssima epidemia de sífilis? Defender a PrEP como única estratégia de prevenção é fortalecer o setor privado e a medicalização da saúde e desconhecer o desmonte geral da SUS em que nos encontramos”, sugere a pesquisadora Ana Brito, da Fiocruz/PE. A meta da Unaids estabelecida para 2020 é expressa no mote 90 – 90 – 90: que nos próximos três anos, 90% das pessoas com HIV saibam seu estado sorológico; dessas, 90% estejam sob uso de antirretrovirais;

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11 Margarida (1992), desenho em tinta de

caneta da série O perigoso, foi feito por Leonilson durante internação hospitalar

e dessas, 90% estejam com carga viral indetectáveis. Utopia no Brasil? A maioria das pessoas ouvidas pela Continente acredita que sim. “As ilusões estão todas perdidas”, afirma Cazuza em Ideologia. Mas Daniel, Cândido, Marion e os jovens ativistas que vivem com HIV nos instruem que é possível impedir que o futuro repita o passado, como o cantor alertava em O tempo não para. Uma vida livre de prejulgamentos e clichês, uma vida inclusiva e respeitadora, uma vida sem chavões anacrônicos e com transparência para se discorrer sobre sexo e prevenção, é o único caminho viável. Uma vida em que todos, quem vive com HIV e a sociedade ao seu redor, associem compaixão e fortaleza para conviver como um só: essa tem que ser a esperança. LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente.


RUBENS CHIRI/PROJETO LEONILSON

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Ensaio

O DIÁRIO DE FLORA Anotações da esposa do diplomata Oliveira Lima, cujo sesquicentenário se comemora este mês, registram sua rotina como secretária do marido e sintetizam ambições tolhidas das mulheres no início do século XX TEXTO TERESA MALATIAN

1 Entre os papéis abrigados pela

Oliveira Lima Library, em Washington, desperta particular interesse o Boudoir diary escrito em 1915 por Flora de Oliveira Lima, esposa do diplomata e historiador Manoel de Oliveira Lima. Durante grande parte de sua vida, Flora atuou como secretária de seu marido, partilhou posicionamentos políticos por ele assumidos, participou de rodas de intelectuais, diplomatas e políticos no Brasil e na Europa, no contexto da belle époque. Percebese no seu diário a presença de uma narradora com interesses próprios, que construiu uma interpretação no feminino de muitas dessas vivências. Trata-se não apenas de uma narrativa de sua vida, mas também dos acontecimentos da vida do casal, em que a preocupação com a imagem pública se impõe ao desvendar da vida íntima, com a certeza de que esse registro seria lido um dia.

Os diários femininos constituem registros sujeitos à destruição, sendo, no entanto, de grande interesse para a História pela riqueza de seus conteúdos. Na França, por exemplo, no século XIX e início do XX, esses registros íntimos faziam parte da cultura das moças solteiras como uma forma de controle de si, segundo recomendações de professores e educadores. Os diários escritos naquela época constituem não apenas produtos da moral vigente, mas também indicadores de movimentos de contestação e emancipação das mulheres mediante práticas de elaboração do eu. Tal característica de sua produção justifica a ausência de temas como sexualidade, mudanças corporais, emoções fortes, de modo que os registros atenderam a uma função social específica: a disciplinarização das moças para torná-las boas esposas e mães cristãs.

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casal Flora e Oliveira O Lima, na maturidade

O Boudoir diary evidencia códigos vitorianos burgueses de relações entre público e privado, coletivo e individual, ostensivo e íntimo, masculino e feminino, combinados num jogo de ocultamento/revelação, normativos da construção e apresentação de uma imagem pessoal, extremamente adequados ao conceito de privacy. Compreende-se assim a adequação sugestiva do tipo de suporte escolhido para o registro, uma caderneta impressa cujo título remete ao espaço do toucador, a saleta reservada de um mundo essencialmente feminino, destinado ao arranjo pessoal da mulher, no qual o espelho tem papel fundamental. Espelho em que a autora se olha, se vê e lhe devolve uma imagem a ser partilhada com o leitor. Iniciado em Londres (1º/1/1915) e encerrado em Worcester, Massachussets (20/12/1915), inteiramente escrito em inglês1, revela


ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL JOÃO EMERENCIANO/PE

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Ensaio ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL JOÃO EMERENCIANO/PE

ambientação da personagem no cenário londrino, no qual o casal se estabeleceu em 1914, após a aposentadoria de Oliveira Lima do serviço diplomático. O que teria motivado a escrita desse diário? Tudo indica ter sido o desenrolar da Primeira Guerra Mundial, pois a constatação da transitoriedade e fragilidade do instante, além da possibilidade de morte trágica, são evidentes. A vida em Londres ressentiase dos posicionamentos políticos próAlemanha assumidos por Oliveira Lima durante a guerra e, não por acaso, o texto inicia-se com a referência à perda do transatlântico H.M.S. Formidable pela Inglaterra, evento que motivou a pergunta inicial de Flora: “How long will it last?”. Por trás dessa pergunta, subsiste oculta a indagação: O que você leitor quer que eu conte da minha vida, que sinto concretamente ameaçada? Os biógrafos de Flora ressaltam sua origem de sinhazinha do município de Vitória de Santo Antão. Nasceu no Engenho Castanha Grande, município de São Luís do Quitunde, em Alagoas, a 26 de agosto de 1863, e ainda menina mudou-se com a família para Pernambuco. Passou a infância no Engenho Cachoeirinha, de propriedade de seu pai, o Coronel Minô, personalidade representativa do mundo açucareiro. O casamento foi um momento de ruptura com o mundo dos engenhos e proporcionou a Flora Cavalcanti de Albuquerque a oportunidade de uma nova vida. Não existem, porém, registros memorialísticos acerca do seu encontro com Oliveira Lima, em 1890, no Recife, quando o jovem pernambucano radicado em Portugal ali esteve, recémnomeado para o cargo de secretário da legação de Lisboa. Flora foi privilegiada quanto ao nível de instrução, se considerarmos o padrão brasileiro da época, mesmo para as famílias abastadas. Nele, a instrução feminina era limitada a ler, escrever, o conhecimento das quatro operações, da doutrina cristã, de trabalhos de agulha. Diante da falta de escolas, muitas moças recebiam instrução em suas próprias casas, ministrada por irmãs mais velhas, padres e professoras particulares, em geral, europeias. Colégios femininos eram raros e o acesso ao ensino superior, inexistente para elas. Algumas faziam cursos nas Escolas Normais e se

preparavam para o magistério primário, profissão tipicamente feminina. Flora teve uma trajetória adequada a esse modelo, porém, após o casamento, reelaborou valores e normas para se adequar ao papel de esposa. Na época da residência em Londres, estampava no diário seu desagrado com a administração doméstica. O mesmo ocorria com a escrita das cartas de housekeeping, sobre as quais assim se manifestava: Isto é o que eu chamo minha literatura, a qual certamente não é nenhuma obra de ficção mas antes, de fato, exposição do enorme aborrecimento que é o cuidado com a casa em Londres. Mas, para além desse mundo doméstico, seu desempenho na vida intelectual do marido foi relevante, apesar de pouco reconhecido. Logo uma dúvida se apresenta ao leitor: quando, exatamente, Flora começou a ser secretária do marido? O primeiro livro de Oliveira Lima, Pernambuco, seu desenvolvimento histórico (1895), foi ditado a ela pelo historiador. Desde então, essa parceria não fez mais que crescer e se consolidar numa empresa familiar de grande produção intelectual, instalada, na época da escrita do diário, no home londrino relativamente abastado. A adequação a esse papel, que não estava previsto pelos códigos de condutas das mulheres do seu meio social, constitui uma adaptação à peculiar vida de um escritor. À medida que o conflito mundial atingia a vida do casal nesse tumultuado ano de 1915, as tensões em torno dos papéis iam fazendo-se mais nítidas. Ao descrever o cotidiano, Flora revelou a renúncia aos seus próprios interesses, devido ao trabalho absorvente de assistente do marido em registros como este: Eu nunca menciono o que faço antes do almoço porque é sempre a mesma coisa: escrever para Emmie em seu ditado. Com frequência ele está nervoso sobre seu trabalho, descontente porque ele gostaria de ter alguém que pudesse estar livre para trabalhar para ele o tempo todo, durante o dia todo, e eu não posso provavelmente fazer isso tendo tantas outras coisas por fazer. Esta foi uma dessas manhãs, mas, por outro lado, eu penso que é uma bênção para ele que eu não possa dar a ele todo o meu tempo que ele gostaria de ter para seu ditado

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ou eu estou certa de que isso apenas seria mau para sua saúde. Outra passagem revela sua ascendência sobre o marido, quando se tratava de organizar o trabalho intelectual: De novo esta manhã Emmie estava muito nervoso, reclamando de que eu não tenho tempo suficiente para seu ditado. Eu fingi estar magoada por ele não ter apreciado meu esforço em fazer o melhor para ajudá-lo e ele ficou com pena. Por vezes, quando ele começa a trabalhar, ele se sente um pouco perdido, tantas coisas ele quer dizer, sua cabeça cheia de tudo que ele leu sobre diferentes assuntos, as deduções a tirar de tudo isso, e naturalmente ele tem alguma dificuldade em colocar suas ideias juntas,


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especialmente quando dita. É muito diferente e mais fácil quando ele escreve. Eu suponho que deve ser a sugestão da pena. Mas, depois que ele começa, o ditado corre muito fluentemente, quase como se ele estivesse falando. E então ele fica muito satisfeito, um homem bem diferente. Flora sentia satisfação em revelarse uma interlocutora à altura: estava inteirada de toda a correspondência, além de trabalhar na catalogação dos livros da sua biblioteca, oferecendo ao leitor de seu diário detalhes precisos sobre o modo como o tempo era ocupado pelo casal. Era trabalho conjunto, assim definido – we worked –, portanto, sua contribuição era valorizada nos registros e, mesmo que aparentemente subalterna, fazia-se

indispensável ao escritor e tornava sua produção intelectual partilhada. Se num dado momento a sobrecarga de trabalho acabou levando o casal a cogitar de uma segunda secretária, Flora resistiu à perda desse papel privilegiado, reservando-se o direito de ser “naturalmente a primeira”, por seus conhecimentos de gramática, ortografia e, não menos importante, de inglês. Não constitui detalhe irrelevante, pois o fato de sempre usar o “nós” ao se referir ao trabalho intelectual realizado em conjunto sugere indagações: Até onde ia sua participação nele? Suas opiniões eram ouvidas? Tudo leva a pensar que o Boudoir diary expressou grandes resistências ao papel feminino que afastava o destino

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E ngenho Cachoeirrinha, onde Flora de Oliveira Lima passou sua infância

das mulheres das tentações literárias. Mais do que expor um conflito, o documento é a vívida construção de um eu literário que encontrou esse caminho privado para expressar-se em uma escrita própria. Ele constitui o testemunho do modo como Flora vivenciou e interpretou o casamento, que não lhe deu filhos. Viveu na Europa numa época em que ocorriam avanços femininos na vida pública, as suffragettes faziam campanhas públicas de grande repercussão e a emancipação da mulher era pauta de discussões. Embora não se possa ver nela uma militante feminista, construiu no seu diário um eu questionador dos papéis tradicionais relacionados ao destino de gênero. Em sua correspondência, Flora cultivava amizades femininas, de casal e familiares, prática comum entre mulheres do seu meio social, que mantinham intensa atividade epistolar. O tempo disponível para isso nunca lhe parecia suficiente, pois se queixava de não conseguir escrever suas próprias cartas, devido ao trabalho com “Emmie”. Experimentava grande satisfação em receber cartas e, portanto, a necessidade de construir uma individualidade, na qual o trato com as letras, considerado ofício masculino, tivesse um lugar significativo. O mesmo se pode dizer do seu interesse pela política, pois o diário traz também registros relevantes sobre a Primeira Guerra Mundial.

*** Durante o período de residência em Londres, o casal sofreu as consequências das posições germanófilas assumidas por Oliveira Lima na imprensa, sobretudo nos artigos Ecos da Guerra, publicados em O Estado de S. Paulo, os quais lhe causaram problemas políticos na Inglaterra, tendo sido afinal impedido de lá regressar em 1916, após a estadia nos Estados Unidos. Sob suspeita, com a casa vigiada, o casal enfrentou esse período conturbado com intensa produção intelectual, engajamento em redes de auxílio a refugiados políticos e apoio


Ensaio FOTOS: ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL JOÃO EMERENCIANO

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a movimentos pacifistas. Flora revela então em seus registros novamente a oscilação entre a admiração incondicional ao marido, numa clara postura de casal, e a tentativa de oferecer ao leitor com quem dialoga uma imagem de independência de opiniões. Seus comentários sobre a guerra avisam o leitor desse engajamento compatível com a participação política cada vez maior que as mulheres vinham tendo na Europa, e particularmente em Londres, onde o direito de voto era reivindicado: Desde que estourou a guerra, quase tudo que ele [Oliveira Lima] faz está relacionado a isso. Ecos da Guerra é o título de uma longa série de artigos tratando de cada incidente que ocorre, especialmente no campo diplomático. As responsabilidades da guerra é uma outra grande luta na qual a Alemanha entrou arrastada pela ação combinada da diplomacia inglesa e francesa dos últimos 15 anos. A casa era local de reunião de um grupo amplo, de origem diversificada, constituído por intelectuais e diplomatas, com quem mantinham

laços de amizade desde o período de residência na Bélgica. O casal era procurado pelos que necessitavam de intermediação para a resolução de seus problemas, proteção e auxílio na busca de empregos para os estrangeiros impedidos de retornar ao seu país, para o que muito contribuía a intermediação junto à Legação do Brasil. A roda de amigos oferecia também suporte psicológico mútuo, amparando os deprimidos e privados de contatos com seu país e com seus familiares. Nesse particular, o diário é bastante minucioso na apresentação dos relacionamentos, das conversas mantidas e das opiniões políticas externadas. O relato baseou-se, sobretudo, nos contatos estabelecidos com o grupo de diplomatas e intelectuais, além de diferentes experiências pessoais. Seu interlocutor constante e maior nesse aspecto era o marido e os artigos que ele escrevia para a imprensa brasileira, em que eram abordados diferentes aspectos do conflito. Como afirmou Flora, Eles são particularmente interessantes para mim, porque através deles eu tenho uma

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F lora ainda menina de engenho, e já adulta, em vários momentos, quando residia com o marido fora do país

boa ideia sobre o que está acontecendo sem o incômodo de ler os jornais. É um meio fácil de estar informada sobre este grande evento da história da humanidade, a guerra que parece visar à destruição do trabalho que representa 20 séculos de civilização cristã. No entanto, em seguida a esse registro, Flora se retratou desse comentário ao afirmar sua independência de opiniões: “Eu estava lendo esta tarde, após a saída de M. para o Record Office, um número do jornal socialista Labour Leader e também notas triviais sobre a guerra por Bernard Shaw. Aquelas são minhas ideias”. Vários temas tecem a teia dos registros sobre a guerra: as notícias sobre os atos bélicos, como o afundamento de navios, o bombardeio de Londres, as atrocidades alemãs, as dificuldades de abastecimento, as suspeitas de adesão ao inimigo da Inglaterra. O tempo todo, Flora manteve-se germanófila e


O desempenho de Flora na vida intelectual do marido foi relevante, apesar de pouco reconhecido. O primeiro livro de Oliveira Lima foi ditado a ela pelo historiador, firmando essa parceria familiar CONTINENTE DEZEMBRO 2017 | 47

realizou uma leitura das notícias e de suas vivências a partir desse prisma. A guerra invadiu sua vida, ocupou sua correspondência, mobilizou as conversas com as visitas, permeou as relações de amizade. Particularmente vivas, são as descrições dos bombardeios de Londres, nas quais a observação à distância dos estragos causados pelas bombas mistura temor e fascínio, compaixão e sentimento de vingança: Londres vive agora no terror das bombas dos zepelins que são aguardados para apresentar seus cumprimentos aos habitantes da Grande Metrópole a qualquer momento. O povo inglês, graças à sua posição geográfica e à sua poderosa marinha, nunca pensou que seus lares poderiam correr perigos de nenhum tipo, não importando quão terrível, quão cruel e sangrenta a guerra os empurrasse contra outras nações. Mesmo quando eles começaram esta contra a Alemanha nem por um momento pensaram que poderiam ser atacados na Inglaterra e em Londres. Pode-se ver uma grande mudança em seu modo de considerar as coisas desde o primeiro ataque sobre Dove e outros pontos. Eles perderam muito de sua arrogância, a qual deu lugar ao medo.


Ensaio ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL JOÃO EMERENCIANO/PE

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Em 16 de abril de 1915, Flora registrou um ataque alemão sobre diversas cidades da costa leste da Inglaterra como sensational news. Por terem sido lançadas muitas bombas sem causarem danos, considerava que os alemães poderiam testar a qual distância poderiam voar e “deixar seus cartões de visita” para avisar que um dia iriam de fato bombardear Londres sem serem perturbados em “sua obra de destruição”. No entanto, à medida que se intensificaram os bombardeios, cada vez mais próximos de Londres, Flora passou a temer pela sua sobrevivência e registrou o primeiro estrago causado pelos zepelins a essa cidade. Comentou a censura que impedia a divulgação desses eventos e ressaltou que ninguém em Londres pensava ser possível essa nova face da guerra, pois, até então, o conflito restringia-se ao mar e às trincheiras no continente. O bombardeio trouxe a guerra para perto de sua vida e das pessoas mais próximas, os noticiários de jornais foram colocados sob suspeita e as notícias propagadas sobre vitórias

dos exércitos ingleses e de seus aliados passaram a ser desacreditadas. Nesse clima, ocorreu o único relato de observação direta de Flora de bombardeio, dos zepelins com bombas e shells no Nortwest e em London Bridge, atingindo Holborn, Liverpool Street e Marble Arch. Em sua casa, todos se refugiaram no porão e, depois, Oliveira Lima e o mordomo correram à rua para ver o ataque, podendo assim testemunhar a queda de algumas bombas nas proximidades da casa. No dia seguinte, Flora verificou os estragos, registrando o número de 20 mortos. Os registros sobre os ataques dos submarinos alemães contra barcos de passageiros ou mercantes chegaram ao ápice com o espetacular afundamento do transatlântico Lusitânia. Preocupada com a viagem que o casal faria aos Estados Unidos, bem como com a vinda de sua irmã Neomísia para encarregar-se da casa, Flora teceu comentários angustiados sobre a tragédia, procurando os culpados. Procurou isentar os atacantes e atribuiu ao almirantado inglês a leviandade de não ter levado a sério as

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advertências feitas com antecedência de 10 dias pelo inimigo: Por fazer pouco da capacidade dos submarinos alemães e escarnecer de seu poder de fazer qualquer estrago àqueles grandes navios, tão perfeitamente protegidos pela esquadra britânica. É claro que aqueles passageiros americanos tinham maior confiança na proteção britânica do que em qualquer coisa na terra, e somente riram para os avisos dados pela Embaixada Alemã em Washington e pelos amigos alemães na Europa, então, pagaram com suas vidas a sua fé na Inglaterra.

***

O ponto crucial do posicionamento de Flora está nas notícias sobre as atrocidades alemãs, largamente utilizadas pela propaganda dos aliados. Impedida de verificar pessoalmente, descrente da imprensa, ela se informava junto a amigos e conhecidos para tirar a limpo essas histórias. Seu esquema de referência oscilou entre acreditar nas notícias sobre relacionamentos amistosos entre os soldados ingleses e alemães nas trincheiras, com a trégua


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orrespondênica de Flora de Oliveira Lima C para sua amiga Maria Soares Brandão

5 N o período em que o casal viveu em

Londres, as sufragistas faziam campanha pela emancipação da mulher

para o Natal de 1914, e a dúvida sobre a capacidade dos alemães de cometerem atos desumanos. Entre as notícias sobre os soldados que confraternizavam com apertos de mãos e fumavam cigarros juntos, e as notícias de violações e sevícias a seres humanos e animais, Flora se angustiava sem saber onde obter informações seguras. Nem mesmo Oliveira Lima podia socorrê-la, pois as fontes de informações eram as mesmas: amigos intelectuais e diplomatas, refugiados, feridos hospitalizados. Nessas batalhas da memória, que colocaram em choque versões concorrentes que atendiam aos interesses dos diferentes grupos envolvidos na guerra, Flora fez uma escolha. Recusou-se a dar aos boatos mais crédito que o de histoires de paysans destinadas a provar a crueldade dos alemães. Recusava-se a crer nessas notícias, considerando-as “absolutamente incríveis”, meras

invenções. Em abril, chocada pelo modo como os ingleses encaravam a guerra, como se ela não existisse, procurava na leitura de jornais franceses e alemães a comparação com os jornais ingleses para fundamentar uma atitude mais crítica diante do noticiário. Pôde constatar, com surpresa, que as vitórias inglesas eram as mesmas celebradas pelos alemães. Em sua tentativa de construção de um relato adequado ao grupo de que participava, Flora procurou outros testemunhos autorizados sobre a guerra com pessoas com quem convivia no cotidiano, como caixeiros, fornecedores, prestadores de serviços. Com os visitantes reunidos na casa de Wetherby Gardens, a guerra era assunto indefectível nas reuniões e separava os amigos em campos opostos, segundo seus posicionamentos em relação às potências beligerantes. Nesses diálogos, Flora tentava compreender os motivos da guerra, e alinhava explicações plausíveis: a guerra poderia ter sido evitada, não havia motivo para ela, tratava-se de uma guerra comercial, produto

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das diplomacias secretas. Nessas conjecturas, afirmou que a guerra fora motivada basicamente pela oposição entre república e monarquia: “De fato, o radicalismo juntou as mãos por toda a Europa para esmagar desta forma o governo que tinha feito da Alemanha o único país onde um progresso sem paralelo havia saído de uma sólida organização”. Esqueceu-se de que na liderança dos lados opostos havia duas monarquias, a britânica e a alemã. A escolha do lado alemão causa surpresa, pois o casal havia preferido fixar residência na Inglaterra, onde a estabilidade política se assentava em sólido parlamentarismo e a família real simbolizava a unidade nacional. Seu posicionamento indica sugestivamente o fascínio que a Alemanha exercia sobre muitos intelectuais na época, inclusive no Brasil, e não pode ser separado do grande progresso material e científico que aquele país alcançou na virada do século. Tais escolhas levaram Flora a polarizar a guerra como evento travado apenas entre as duas potências, deixando de lado as alianças, entendendo a guerra como


Ensaio

Flora ultrapassou o destino de gênero ao assumir um lugar distinto daquele de dona de casa. Teve um papel importante na carreira do marido, partilhando com ele espaços públicos e privados luta desigual entre a Alemanha e os Aliados. Nem mesmo suas amizades com os belgas exilados, e o fato de ter residido na Bélgica de 1908 a 1912, conseguiram abalar suas convicções germanófilas após a invasão desse país em 1914. Sua leitura estava imersa na rivalidade anglo-alemã e, pautada pela estrutura dos faits divers, constituía uma apreensão da realidade na qual a civilização e o progresso da Alemanha deveriam ser preservados. Aplaudiu vitórias alemãs, como a tomada de Varsóvia: “Varsóvia deve cair em mãos dos alemães ou titãs como eles podem bem ser chamados”. Essa conquista foi por ela comemorada com a degustação de um vinho especial com amigos, celebrando o avanço da “nação (que) estava inteiramente caída, esmagada pelo poderoso inimigo e clamando por paz”. Quando os jornais noticiaram a queda de Varsóvia, registrou: “Assim os alemães celebraram o primeiro ano da grande guerra”. Ao mesmo tempo em que escolheu o lado alemão, opção perigosa para quem vivia num país do grupo dos Aliados, engajou-se nos

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esforços pacifistas e lamentou a perda de milhares de vidas devido à estupidez humana, que considerava sem limites: De outro modo, como se pode explicar uma guerra como esta na qual 99% dos que estão combatendo tão desesperadamente não têm a menor ideia, eu estou certa de suas razões, boas ou más, que os levaram a esta condição de meros animais selvagens cheios de sede de sangue, quando eles não são compelidos por nenhum tipo de ódio e, em sua maioria, levam vidas comuns como criaturas afetuosas, pacíficas. Apesar disso, participou de reunião da International Women’s Congress, que trabalhava pela paz, e engajou-se na Permanent Peace Association, para a qual forneceu listas de brasileiras que poderiam ser convidadas para organizar um ramo brasileiro da associação no Rio de Janeiro, tendo escrito a elas e enviado uma cópia do jornal Towards Permanent Peace. Acompanhou o andamento e registrou diversos comícios pacifistas em Hyde Park, evocando valores cristãos e humanitários para fundamentá-los.

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Com tais informações e familiarizada com a atividade de Oliveira Lima na imprensa, permitia-se emitir opiniões sobre os Ecos da Guerra, que considerava bons demais para serem publicados nos jornais brasileiros, e o aconselhava a tentar sua publicação em jornais da América do Sul, especialmente Buenos Aires, quando O Estado de S. Paulo, pressionado por correntes pró-aliados, reduziu à metade a colaboração. Flora informava aos leitores ter sido chamada a ouvir a leitura, pelo marido, de alguns artigos sobre as responsabilidades da guerra, perante o amigo Bandeira de Melo. À medida que se aproximava a data de sua viagem aos Estados Unidos, mais


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ansiava pela paz, a qual pensava não ser desejada pelos aliados, interessados apenas em levar adiante sua obra de destruição. Sem dúvida, pesavam nesses posicionamentos as dificuldades que encontrava em Londres, onde o fato de que seu mordomo e sua cozinheira serem alemães motivou visitas da Scotland Yard.

*** Em Boston, onde o casal se estabeleceu durante o período em que Oliveira Lima ministrou curso em Harvard (1915–1916), continuam as mesmas estruturas de registro, com a diferença provocada pela distância do palco da guerra. A escolha do tema da guerra como diretor da

narrativa é de extrema importância para o sentido que a autora deu à sua biografia, bem como para a preservação desse documento. A carga emocional desse evento não está apenas colocada nos riscos e privações ocorridos durante o conflito, mas em seus desdobramentos posteriores, como o impedimento de retornar à Inglaterra e a necessidade de redirecionar a vida, que culminou com o estabelecimento do casal em Washington, onde terminaram seus dias, ele em 1928, ela em 1940. Nesse sentido, o diário contém o desejo de justificar-se não apenas perante os seus contemporâneos, mas para a posteridade, possibilidade da qual Flora possuía aguda percepção. Na

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Primeira Guerra Mundial e A os bombardeios na Inglaterra são relatados e comentados nos diários de Flora

sua condição de mulher, acabou escrevendo sobre o chamado “lado menor” da história, uma guerra vista da retaguarda, por meio de leituras, relatos de terceiros e reduzido testemunho direto das batalhas. Seria possível outra posição? Flora ultrapassou o destino de gênero ao assumir um lugar distinto daquele de dona de casa tradicional. Teve um papel importante na carreira do marido, partilhando com ele espaços públicos e privados. Nela, a “virtude doméstica”, valorizada tanto pelo meio onde nasceu, quanto na Inglaterra vitoriana, do período a que se refere o diário, encontrou escassa ressonância. Flora não se restringiu ao círculo social doméstico, do trato dos criados e da recepção aos amigos do marido, mas exerceu sobre este grande influência, embora não tivesse produzido obra sua visível, além dos papéis íntimos, dos quais o Boudoir diary é o mais significativo. Mesmo exibindo com orgulho sua casa bem-situada, mobiliada, organizada e frequentada, sua vida integrou a senhora do lar da família patriarcal do Nordeste com a colaboradora do marido. Numa produção intelectual que pode ser caracterizada como empresa doméstica, mantinha posição bastante independente, ultrapassando o papel de mulher passiva, dócil, assumindo novos papéis para os quais não fora destinada. Seu grau de independência é notável, e o eu construído no diário indica a busca constante de opiniões próprias, que encontraram nas práticas epistolares canais de expressão para um desejo de escrita não autorizada pelas relações de gênero, numa vida marcada pelas âncoras da memória da diplomacia e do engenho. 1. Vários trechos do diário foram traduzidos pela autora deste artigo. TERESA MALATIAN é historiadora, docente do programa de Pós-Graduação em História da Unesp/Franca, autora de Oliveira Lima – Historiador diplomata.


Depoimento

NINGUÉM DE BOCA FECHADA TEXTO RICARDO LÍSIAS

Comecei a pensar mais seriamente

em censura quando a Polícia Federal me convocou para depor. A intimação era bastante clara: se eu não aparecesse no dia marcado, após nova convocação poderia ser levado à força à delegacia. A mão pesada do poder judiciário se mostrou com bastante eloquência em diversos momentos do episódio. Pediam a minha prisão, acusando-me de “falsificação de documento” e “uso público de documento falso”. Em 2014, publiquei uma série de cinco e-books, com estrutura de folhetim, cuja narrativa, além de texto, trazia imagens, correspondências oficiais, e-mails e documentos de um processo jurídico fictício. O experimento, que chamei de Delegado Tobias, continha ainda uma extensão nas redes sociais. Eu e a editora abrimos um perfil do delegado no Facebook, adicionamos uma série de pessoas e, depois de lançar o primeiro e-book, fizemos a narrativa continuar em tempo real na internet. Alguns leitores viam as fotos e afirmavam conhecer o delegado. Outros se divertiam com a confusão que ele estava criando ao assumir claramente

ser uma personagem de ficção, mas ao mesmo tempo reivindicar uma espécie de “direito” de existir. “Sou de carne e osso”, dizia o delegado, contrapondo-se às minhas afirmações de que o havia inventado e, portanto, ele só existia no meu trabalho. No meio disso tudo, levei ficcionalmente o conflito à justiça e o próximo passo foi a criação de algumas decisões jurídicas, fiéis ao modelo oficial, que continuavam a narrativa. Os leitores se solidarizavam comigo, incomodados com as decisões que eu mesmo criava e que, por fim, estavam dando razão ao delegado e não a mim mesmo, o autor… Algumas pessoas retiraram esses documentos da minha obra e os enviaram isoladamente ao Ministério Público Federal, acusando-me de ser um falsário. Uma “investigação” não percebeu que se tratava de obra literária. Sugerindo minha culpa, um inquérito foi enviado à Polícia Federal, para que eu fosse oficialmente ouvido. Passei a tarde respondendo a perguntas de um delegado. Junto com meu depoimento, um advogado entregou uma petição com a minha defesa.

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O promotor que recomendou o arquivamento do inquérito, alguns meses depois, sublinhou que durante o século XX a arte estabeleceu formas bastante alternativas de suporte e circulação. Sem maiores ressalvas, um juiz aceitou o arquivamento e o caso se encerrou. Hoje, noto como fui ingênuo ao achar que, com isso, meus problemas com a justiça se encerrariam. Alguns meses depois, assisti à sessão da Câmara dos Deputados que afastou Dilma Rousseff da presidência. Acho que, independentemente do espectro ideológico a que os leitores desse texto se identifiquem, não é difícil concordar que aquela foi a noite do nosso horror. O pior da vida política brasileira estava todo ali: cinismo, machismo, misoginia, falta de elegância, decoro e bom gosto. Diante daquilo, achei-me obrigado a intervir. Criei então um projeto. Eu escreveria alguns textos diretamente ligados à política brasileira e os assinaria com pseudônimos que teriam o nome de algumas personagens. O primeiro seria o “Eduardo Cunha (pseudônimo)”. Comecei a escrever


KARINA FREITAS

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Depoimento IMAGENS: REPRODUÇÃO

um texto chamado Impeachment. Com a prisão do ex-deputado federal, abandonei a ideia inicial e passei a imaginar um diário dos seus dias na cadeia. Cada entrada foi redigida no próprio dia. Assim, em 31 de dezembro de 2016 eu tinha um texto de ficção narrando os dois meses e meio de Cunha na famosa cadeia de Curitiba. Como parte da intervenção, mantive meu nome sob o mais estrito sigilo. Procurei uma editora com quem nunca havia trabalhado antes e fizemos um contrato que previa o respeito integral ao pseudônimo. Apenas duas pessoas dentro da editora sabiam que eu era o autor. Além delas, só minha esposa. Uma semana antes do lançamento, O Globo publicou uma nota sobre o livro Diário da cadeia. Ato contínuo, Eduardo Cunha entrou com uma ação na justiça carioca solicitando a proibição do livro, uma indenização por danos morais, a retirada de qualquer menção do trabalho na internet e, por fim, a revelação do nome do autor para que ele pudesse ser responsabilizado inclusive na esfera criminal. Quando li esse trecho da ação, lembrei-me na mesma hora de Foucault: “Os textos, os livros, os discursos começaram a ter realmente autores (diferentes dos personagens míticos, diferentes das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores.”1 Eu, que não acredito exatamente em autoria já faz tempo, de novo teria que virar um autor por causa da justiça. Os advogados não informaram ao juízo que se tratava de um romance. Em toda a ação não há a palavra “literatura”. No que foi para mim uma enorme surpresa, a juíza responsável pelo caso concedeu a liminar, ordenou o recolhimento de todos os exemplares já distribuídos e exigiu o meu nome. No final do prazo, minha identidade foi entregue à justiça, que não a colocou em segredo, e, no dia 21 de abril, a Folha de S.Paulo informou que o autor do Diário da cadeia sou eu. Começou então o que é para mim uma espécie de tragicomédia jurídica. A tragédia fica por conta da censura a um livro de ficção, o que não acontecia no Brasil há bastante tempo. O resto da situação toda, que se desdobra até hoje,

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é uma espécie de teatro do absurdo. Poucos dias depois da revelação do meu nome, um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro derrubou a liminar que impedia a distribuição de Diário da cadeia e decidiu que a assinatura do livro é perfeitamente legal e legítima. Os argumentos são simples: em primeiro lugar, trata-se de uma obra de ficção, não é passível portanto de ser acusada de danos morais, invasão de privacidade, ofensa etc. Depois, está bem claro na capa que o “Eduardo Cunha” que assina o livro é um pseudônimo, não podendo assim ser o ex-deputado federal. A decisão desse primeiro desembargador foi confirmada por um segundo, depois pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, em seguida pelo ministro Moura Ribeiro, do Superior Tribunal de Justiça, então por dois plenos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e, no começo de novembro passado, pela 1° turma do Supremo Tribunal Federal. Todas essas decisões foram unânimes e sem ressalvas. A parte mais absurda está no seguinte detalhe: pelas constantes e eloquentes decisões

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da justiça, o pseudônimo que criei é válido e deve ser refeito. Agora, todo mundo tem que esquecer que sou o autor do Diário da cadeia!

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Além de nada inteligente, a censura em geral conduz a situações ridículas. Na Argentina, o excelente escritor Pablo Katchadjian acabou também precisando constituir advogados e defender-se perante um juiz por causa de um livro. Em 2009, ele fez uma simpática plaquete de tiragem bastante reduzida (200 exemplares) para distribuir entre os amigos. A ideia era excelente: ele inseriu diversas passagens de sua autoria no conto O Aleph, de Jorge Luis Borges, fazendo com isso um novo texto, chamado por ele de O Aleph engordado. O procedimento borgiano é uma bela homenagem ao autor de Ficções. Maria Kodama, que detém os direitos de Borges, viu na criação de Katchadjian algum tipo misterioso de ofensa e o interpelou na justiça. Além de impedilo de publicar novamente seu trabalho, solicitou uma indenização. O caso até hoje viveu inúmeras reviravoltas. Depois


1-2 Ricardo Lísias encena no book trailer do seu livro Inquérito policial Família Tobias, que deu continuidade à série Delegado Tobias

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de ser bem-sucedido nas instâncias inferiores, Katchadjian viu a justiça desconsiderar todas as suas alegações (que vão do citado procedimento borgiano2, até o esclarecimento de que toda a história da arte adota o mesmo mecanismo que ele. Marcel Duchamp foi um de seus exemplos). O escritor foi condenado a pagar uma multa de 16 mil dólares e seus bens ficaram bloqueados por algum tempo. Nesse momento, uma corte de apelação reviu a sentença e, outra vez, deu razão a Katchadjian, determinando o arquivamento do caso. A viúva deve recorrer. Existem formas muito mais efetivas e assustadoras de censura do que o constrangimento jurídico. A principal, por óbvio, é a ameaça à vida do escritor. O argentino Rodolpho Walsh desapareceu após escrever um texto fantástico justamente sobre as perseguições que os militares estavam realizando. Operação massacre é, desde o lançamento, um dos livros mais importantes sobre a violência tão comum no nosso continente. O mundo muçulmano, até hoje, de vez em quando aparece com um caso

gravíssimo de perseguição. Apesar da enorme repercussão negativa que a fatwa (ordem que uma autoridade religiosa lança para o assassinato de alguém) lançada pelo Aiatolá Khomeini contra Salman Rushdie, por causa de um trecho de Os versos satânicos, esse triste hábito continua. Recentemente, o escritor franco-argelino Kamel Daoud foi vítima da mesma violência, por conta de seu excelente romance de estreia, O caso Meursault. Indo na contramão do cânone literário, o livro narra a história da família do homem assassinado no início de O estrangeiro, a grande obra de Albert Camus. Agudo, o romance denuncia supressões e apagamentos, confirmando a célebre afirmação de Walter Benjamin de que os objetos culturais são, ao mesmo tempo, veículos de barbárie. O caso Meursault narra uma série de conversas que o irmão da vítima tem com um francês que havia ido à Argélia, fascinado, estudar O estrangeiro. Desde o começo, porém, o que ele ouve é a denúncia de como o cânone literário tende a muitas vezes seguir o mesmo caminho de opressão da geopolítica

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internacional: “Você registrou isso? Meu irmão se chamava Moussa. Ele tinha um nome. Mas continuará sendo o árabe, para sempre. O último da lista, excluído do inventário do seu Robinson. Estranho, não é? Há séculos o colono espalha a sua fortuna dando nomes às coisas de que se apropria e retirando os nomes daqueles que o incomodam. Se ele chama meu irmão de o árabe, é para matá-lo como se mata o tempo, passeando sem rumo.”3 O livro de Daoud não é, no entanto, apenas um acerto de contas com o europeu invasor – mesmo o da voz libertária de Camus, aqui mais francês que argelino. O próprio movimento de independência, com a sociedade politicamente radical que o seguiu, é alvo de crítica: “Ele se levantou, abriu uma gaveta com violência, tirou dali uma pequena bandeira argelina e se aproximou para agitá-la diante do meu nariz. Com o tom ameaçador e a voz meio anasalada, ele voltou a perguntar: ‘e isso aqui, você conhece?’”4 A crítica ecoou na Argélia e um ímã lançou uma fatwa contra Kamel Daoud. O caso também foi parar na justiça, como de hábito. Por fim, o autor obteve


Depoimento FOTOS: DIVULGAÇÃO

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a vitória nos tribunais e o religioso que o acossou recebeu uma pena de prisão e multa. Nada aconteceu com Daoud, por sorte. Independentemente da decisão da justiça, não é difícil que algum maluco, em busca da redenção eterna, ouça o chamado de um líder religioso e tente um ato extremo. Esse tipo de violência persegue a vítima por toda a vida.

***

A arte contemporânea parece estar em conflito constante com o ideário religioso. E aqui não estou citando apenas a barbaridade que é o Estado Islâmico ou o Talibã destruindo obras milenares, o governo iraniano punindo cineastas e os russos colocando na cadeia as roqueiras do Pussy Riot, depois de suas integrantes cantarem uma canção dentro de uma igreja e protestarem contra o governo de Vladimir Putin. O atual papa Francisco I, quando cardeal de Buenos Aires, armou um enorme escarcéu diante de uma exposição de Leon Ferrari, pressionando também o poder público e as instituições que apoiavam o artista a

tomar alguma atitude contra as obras, segundo ele, ofensivas à fé cristã. No Brasil, Ana Smile teve seu trabalho recolhido pela justiça pela mesma razão. Ela fabrica pequenas esculturas que misturam a estética pop à imagem de santos e com isso foi acusada de ofender a igreja. Achei os objetos dela bastante respeitosos e até mesmo evocativos da fé cristã. Evidentemente, mesmo que não fossem, caso do trabalho de Leon Ferrari, nada justifica uma tentativa de coação do Estado na criação e circulação da arte. Para quem tiver alguma curiosidade, o belo filme Jesus de Montreal, de Denys Arcand, mostra as consequências psicológicas que a censura, aqui também ligada à questão religiosa, pode trazer ao artista. O uso de animais vivos em obras de artes plásticas e apresentações de teatro costuma trazer problemas para os criadores. Nuno Ramos viu sua obra Bandeira branca mutilada durante a 29º Bienal de São Paulo, depois que uma decisão judicial, emitida após pressão realizada por grupos de proteção aos animais, retirou dois urubus do trabalho. A decisão foi bastante controvertida,

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3-4 Os escritores Pablo Katchadjian

e Kamel Daoud foram parar na justiça por suas obras ficcionais

sobretudo porque o artista não apenas estava munido de todas as licenças legalmente necessárias, como logo diversos especialistas afirmaram que não havia ali mal nenhum aos animais. Ao contrário, eram das aves mais bemtratadas de São Paulo.5 Em outra ocasião, uma peça de Angelica Liddell foi interrompida durante a Mostra Internacional de Teatro de 2014, de novo por grupos de ativistas, porque havia um cavalo no palco. Do mesmo jeito, tanto a artista quanto a organização do evento estavam municiadas com todas as autorizações legais. Havia um veterinário de plantão e o dono do animal autorizara a participação dele no espetáculo. Muitas vezes, porém, o uso de animais em obras de arte é bem mais controvertido. Em 1970, Cildo Meireles concebeu uma obra, Tiradentes – Totem monumento ao preso político, em que algumas galinhas eram queimadas vivas. Mesmo com todo o mal-estar


O moralismo é o velho argumento que conservadores lançam quando se veem incomodados por uma obra. Nem as tentativas de interdição são novas: a história da arte é a história da censura envolvido, à época, a performance fazia sentido: a referência à tortura era clara e o Brasil, de fato, só seria confrontado com obras muito radicais. O próprio artista, porém, afirma que hoje uma obra como Tiradentes não faria sentido. Claro que não, até porque épocas diferentes exigem aproximações distintas com essa e aquela linguagem. As formas de fato mudam com o tempo, o que significa que as obras estão sempre em confronto com as angústias, exigências e contradições dos momentos históricos diferentes. Aqui, acho importante ser bem claro: as pessoas devem manifestar desconforto, críticas e mesmo um possível repúdio a obras de arte, se assim acharem necessário. Dizer-se ofendido por um trabalho artístico não é de forma alguma censurá-lo. Em 2015, um grupo de pessoas se ofendeu com uma peça de teatro que pretendia usar o recurso do black face. O espetáculo ainda não havia estreado, mas os cartazes chamaram a atenção de ativistas do movimento negro. O recurso é antigo: um ator branco pinta o rosto de negro e normalmente representa

um estereótipo. No geral, trata-se de uma figura ridícula, inferior às demais no palco e que representará um lugar subalterno e humilhante. Um debate foi convocado sobre o caso, quando vários ativistas lembraram como o recurso é ultrapassado. Utilizá-lo contemporaneamente pode ser um ato racista. Depois de ampla discussão, o diretor resolveu cancelar o espetáculo. À época, algumas pessoas julgaram testemunhar um caso de censura. Não é isso. A arte não é uma instância social acima das outras. Ela se integra à sociedade, transformando-a e sendo transformada por ela. Se um procedimento de força tivesse sido utilizado, como a coação física, a ameaça à integridade do grupo ou ao bem-estar de seus integrantes, aí, sim, estaríamos diante de censura. Do mesmo jeito, não houve nenhum tipo de insinuação de levar o diretor e os outros envolvidos à justiça. No caso, ocorreu uma legítima manifestação de desconforto, que também não pode ser censurada. O diretor decidiu por livre e espontânea vontade cancelar a peça.

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Não foi o mesmo método, porém, usado por grupos de pressão que resolveram agir contra a exposição Queermuseu, montada no Santander Cultural em Porto Alegre em agosto deste ano. Em tom de franco descontrole, manifestações em frente à exposição começaram a assustar e assediar os visitantes. Aqui, houve clara intimidação física. Do mesmo jeito, o grupo impunha uma interpretação única às obras, interditando outros sentidos. Sem qualquer argumento, quadros se tornaram uma incitação à pedofilia e à zoofilia. Apesar de recomendação contrária do Ministério Público, a exposição foi fechada pelo patrocinador. O Museu de Arte Moderna de São Paulo, MAM/SP, também sofreu assédio (que redundou em agressão física a seus funcionários) de grupos que usaram um discurso moralizante para atacar uma performance. Aliás, o moralismo é o velho argumento que conservadores sempre lançam quando se veem incomodados por uma obra. Nem mesmo as tentativas de interdição são novas: a história da arte é a história da censura.


Depoimento LIGIA JARDIM/DIVULGAÇÃO

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A peça O evangelho segundo Jesus, rainha dos homens, da dramaturga escocesa Jo Clifford, também sofreu assédio jurídico e terminou duas vezes proibida de ser encenada pela justiça no Brasil, sob argumento de que um Jesus representado por uma atriz transexual seria uma agressão ao cristianismo. Nem sempre a tentativa de censura dá certo. No Rio Grande do Sul, um juiz repeliu de imediato a proibição, alegando liberdade artística e de expressão. Em São Paulo, o Tribunal de Justiça também derrubou a proibição com o mesmo argumento. Sem que houvesse qualquer manifestação, o Museu de Arte de São Paulo, Masp, decidiu, em atitude inédita, restringir a entrada dos visitantes à exposição Histórias da

sexualidade à idade mínima de 18 anos. Está aí um dos efeitos mais nefastos da violência contra a arte. Ela passa a fazer com que as instituições e os artistas, preocupados com possíveis ou imaginários danos, já se autocensurem antes de qualquer coisa. Depois de muito debate e constrangimento, o Masp retirou o caráter restritivo da classificação etária, sobretudo porque uma nota do Ministério Público Federal recomendou que não é papel do Estado regular a fruição artística de ninguém. O último episódio (até o fechamento desse texto) da agressão medieval que o Brasil vem assistindo às artes e ao pensamento se deu no início de novembro, com a visita da filósofa Judith Butler ao Brasil. Os mesmos grupos

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que lançaram os ataques descritos acima resolveram que a obra dela, uma das mais aplaudidas e discutidas do mundo contemporâneo, seria uma agressão à “família tradicional”, seja lá o que signifique isso. Um manifesto foi lançado na internet solicitando o cancelamento da sua visita ao Brasil, o que felizmente não foi atendido pelas instituições organizadoras do encontro. Na manhã da conferência de Butler, um pequeno grupo se reuniu na rua em frente ao auditório onde ela falava e, com cartazes ideologicamente desconexos e vulgares, queimou um boneco que a representava. O desfecho foi bastante sintomático: ao sair de São Paulo, Judith Butler foi vergonhosamente agredida no Aeroporto de Congonhas.


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Esse tipo de coisa ecoa os piores momentos da história da humanidade. Não deve passar despercebido um detalhe sobre as manifestações que pediram o fechamento das exposições e peças nos últimos meses: o sentido das obras propagado nas redes sociais e depois repetido nas manifestações públicas é sempre o da representação direta. Um dos quadros que mais causaram controvérsia na exposição Queermuseu foi Criança viada, da artista Bia Leite. Quem pediu o fechamento da exposição garantia que a associação da expressão que dá título à obra com a imagem de um menor de idade seria incitação à pedofilia. Sequer lhes passou pela cabeça que a obra poderia estar na

peça O evangelho A segundo Jesus, rainha dos homens foi duas vezes proibida de ser encenada pela justiça

verdade denunciando agressões a que as crianças estão sujeitas. Do mesmo jeito, o fato de uma menor de idade ter tocado os pés de um artista nu imediatamente se tornou um crime de exploração sexual infantil. Para essas pessoas, nudez é crime. Nenhuma delas imagina que roupas podem ser sexualmente muito mais provocantes e que a performance poderia justamente ressaltar a inocência possível em um corpo sem elas.6 A peça O evangelho segundo Jesus, rainha dos homens transmite valores cristãos de igualdade, tolerância e respeito ao outro. Nada nela ofende qualquer afirmação religiosa. O que há nas manifestações é exclusivamente transfobia. Foram bastante sintomáticos os protestos contra a presença da filósofa Judith Butler no Brasil. Quando se manifestaram sobre o black face em uma peça de teatro, o grupo de ativistas estava articulado e munia-se exclusivamente de argumentos. Houve um debate em que prós e contras foram colocados por pessoas com posições divergentes, todos falaram sentados, um por vez e respeitando o mediador. No caso de Butler, a maior parte das manifestações dizia coisas que nem mesmo estão na obra dela, citavam ideias inexistentes e amalucadas e faziam inúmeras insinuações de ameaça física. Não houve um instante de apresentação razoável de argumentos. A propensão por interpretar uma obra de arte como mera representação da realidade, sem a menor mediação, e a recusa ao debate argumentativo mostram que esses grupos não apenas estão várias gerações atrasados no desenvolvimento intelectual como, pior ainda, acreditam fanaticamente estar com a verdade. Por isso flertam o tempo inteiro com a violência, quando não a usam de fato. Não é só um enorme atraso, há um sério risco de colapso civilizatório entre nós. Por ser uma atividade essencialmente crítica, o trabalho

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artístico deve ter consciência de que, em sinal contrário, pode e deve ser argumentativamente confrontado. Para garantir esse confronto, a liberdade de expressão e de criação precisam ser valores indiscutíveis. A liberdade crítica também. Coação física, calúnia, linchamento virtual e tentativa de censura na justiça são inaceitáveis. Todos os espectros políticos que respeitam a existência do outro e permitem a construção de sentidos contrários aos seus têm o direito de se manifestar, mas jamais o de calar o contraditório. O debate é bemvindo e, se for intenso e tiver origem em ideias complexas e profundas, gera exclusivamente inteligência e desenvolvimento. É por isso que, além de covarde, toda censura é, no final de tudo, um ato de burrice. 1. Cf. FOUCAULT, Michel. O que é um autor. 2. Em entrevista recente, Alberto Manguel afirmou que o próprio Borges, se fosse levar em conta os argumentos de Maria Kodama, não poderia ter escrito o conto Pierre Menard, autor do Quixote. Cf.: http://www.peixe-eletrico.com/singlepost/2016/10/10/Peixe-el%C3%A9tricoentrevista-Alberto-Manguel?fb_comment_ id=829401487157653_878700025561132 3. Cf. DAOUD, Kamel. O caso Meursault. São Paulo: Editora Globo, 2016. Tradução de Bernardo Ajzemberg. Pág. 22. 4. Idem. Pág. 129 5. Um pouco depois de ter seu trabalho mutilado com a retirada dos animais, Nuno Ramos publicou um texto Bandeira branca, amor, em que discute o que aconteceu, afastando a possibilidade de censura, mas ao mesmo tempo salientando que vários sentidos que poderiam se constituir para a sua obra foram sequestrados pela decisão da justiça. Cf. Bandeira branca, amor. Em: Folha de S.Paulo. 17 de out. 2010. 6. Jorge Coli explorou bem essas questões ao discutir a exposição Histórias da sexualidade no MASP. Cf. COLI, Jorge. Toda nudez será castigada. Folha de S.Paulo, 12 de novembro de 2017. RICARDO LÍSIAS é autor de A vista particular, entre outros livros. Em 2018, lançará A literatura no banco dos réus – Uma tentativa de aproximação entre Arte e Direito.


SEBASTIÃO SALGADO/ REPRODUÇÃO

Artigo

UMA SETENTONA PODEROSA Sete décadas da lendária Agência Magnum, que foi criada em 1947 por quatro fotógrafos egressos dos campos de guerra e cheios de desejo libertário para a profissão em que atuavam TEXTO JOSÉ AFONSO JR. 1

Fazer em conjunto não é algo novo.

É algo que se renova. Muito antes da fotografia digital, da internet, dos aplicativos de fotografias, das redes sociais, das redes de articulação, a fotografia de notícias foi sacudida por uma iniciativa de quatro fotógrafos: montar uma agência de imagens baseada na independência editorial, exigência dos créditos e sem cortes nas fotos, pautas independentes e sem deadlines rígidos, liberdade de expressão temática e estética, e um sistema de financiamento de projetos próprio, sem depender de publicidade e interferências externas. E, sem esquecer, um detalhe singelo: a posse dos negativos das imagens pelo fotógrafo. Esse acúmulo de posturas que hoje pode parecer naturalizado para quem fotografa profissionalmente não correspondia à realidade no dia 6 de fevereiro de 1947, quando a Agência Magnum foi fundada. O nome foi

retirado da marca de champanhe com o qual brindavam a inauguração do empreendimento. Os fotógrafos (Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, George Rodger e David Seymour) compartilhavam afinidades e contradições. Os quatro tinham sido fotógrafos de guerra e sofrido tanto as agruras do campo de batalha como os desprazeres dos processos editoriais. A ideia da Magnum, segundo a biografia de Robert Capa escrita por Richard Whelan (Capa, a biography, 1985), já cozinhava na cabeça do fotografo húngaro durante a Segunda Guerra Mundial. Numa conversa entre ele e David Seymour, o Chim, eles faziam planos para o pós-guerra, em que pudessem ter mais autonomia profissional. Na perspectiva de Capa, algumas ideias eram centrais. Primeiro, gostaria de cobrir histórias que interessassem a ele, e não somente aquelas de interesse dos editores ou da mídia; depois, ele

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defendia manter a posse dos negativos e reter o copyright de suas imagens. Eram conceitos revolucionários em um ambiente no qual pagar aos fotógrafos pelas imagens também dava automaticamente direito perpétuo sobre as fotos, perda de direitos do fotógrafo sobre a imagem assim que se entregassem os negativos, bem como a falta de controle sobre o processo de edição na imagem e o não pagamento por republicação, entre outras atrocidades. O cenário do pós-guerra é emblemático e corresponde à época de ouro tanto do fotojornalismo como das revistas ilustradas. Um tempo ainda sem a televisão deixava a construção visual da realidade dependente – em muito – das fotografias de notícias. Revistas como Life, Paris Match e suas congêneres, como O Cruzeiro no Brasil, baseavam a linha editorial em um farto uso de fotografias. A situação, contudo, não era


livre de ambiguidades. Havia campo de trabalho, mas com total coisificação da figura do fotógrafo, um mero fazedor de imagens nas rotinas da imprensa. Nesse sentido, a ação dos quatro fundadores da Magnum é um marco divisor na história do fotojornalismo. Ao reivindicar a posse permanente dos negativos, os eixos políticos entre fotógrafos e meios de imprensa se abalavam. Os motivos são vários. O primeiro, claro, não ter patrão e, portanto, poder estabelecer relações mais igualitárias com os veículos. Segundo, ter o controle das cópias que eram fornecidas, o que corresponde a saber onde e como se publica. Terceiro, cobrar respeito ao corte da imagem e à descrição do que está mostrado, evitando assim a descontextualização, ainda tão comum, entre foto e texto. Quarto, poder se pautar de modo mais autônomo, permitindo realizar projetos de modo mais extenso e

aprofundado. Quinto, exigir os créditos de autoria junto com a publicação da foto, nada de aberrações como: “arquivo” ou “divulgação”. Por fim, estabelecer um sistema cooperativo de financiamento, no qual, sobre o valor de cada imagem comercializada, um percentual de 50% ficava com o fotógrafo, e os outros 50% eram para o custeio da Agência e para o fundo de projetos. A Magnum era uma “utopia fotográfica”, dizia Cartier-Bresson. A consolidação desse conjunto de posturas foi decisiva. Um dos desdobramentos mais importantes foi a compreensão do conceito de arquivo como algo muito mais amplo do que a existência material da fotografia. Verdadeiramente, como um depositário do ato de criação de alguém que fotografa algo. Esse viés, inclusive, serve de ponto de apoio à construção de boa parte das legislações ocidentais sobre o direito

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S ebastião Salgado integrou o elenco da Magnum, na qual desenvolveu ensaios contundentes, como este no garimpo em Serra Pelada (anos 1980)

autoral na fotografia. Hoje, entendido como a sobreposição de três perspectivas interdependentes: o direito do autor, inalienável; o direito de comercialização, negociável; e o direito de imagem das pessoas presentes nas fotos. Isso não foi obra da Magnum, mas, certamente, a agência foi a primeira a materializar a negociação das imagens nesses termos, propondo um novo modelo de relação entre fotógrafos, conteúdos e organizações editoriais.

*** Obviamente, o processo não se deu sem percalços. O motivo é simples, a grande força da Magnum coexiste com sua maior ameaça: nem todo fotógrafo brilhante tem a mesma habilidade na gestão de negócios. Assim, a história


Artigo FOTOS: REPRODUÇÃO

DAVID ALAN HARVEY/ REPRODUÇÃO

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da agência corresponde a uma série de altos e baixos, alguns que quase a levaram à falência. Em algumas ocasiões, por exemplo, Robert Capa, um dos seus fundadores e contumaz adicto das mesas de pôquer e das arquibancadas do turfe, sacava do cofre da Agência para apostar nas cartas e nas patas dos cavalos. Às vezes, as apostas certas pagavam as contas. Todavia, o modelo se consolidava em torno de uma fórmula que consistia em alinhar coberturas fora do eixo hegemônico – ou do interesse da grande imprensa – a uma estética que incorporava plasticidade à cobertura jornalística. Mais que isso, questionava um dos aspectos mais sagrados da fotografia: a compreensão de que a criação de uma imagem, a tão discutida fotografia autoral, devia-se somente ao gênio criador individual do fotógrafo. Em parte, isso se deve ao aspecto de que a própria história da fotografia

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2-5 Os quatro fundadores da Magnum: Capa, Bresson, Rodger e Seymour

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californiano David O Alan Harvey integra a agência desde o final dos anos 1990

é organizada em torno de grandes fotógrafos e correntes estéticas hegemônicas. Esse modo de ver o percurso criativo reforça o eixo entre autoria e sujeito, eliminando outras matrizes da composição criativa. Quando a Magnum se organiza de modo coletivo, esse processo se relativiza, procurando tanto preservar a individualidade de criação como compartilhar entre os membros um certo estilo de abordagem dos temas e, em paralelo, propondo uma postura mais autônoma e independente entre quem fotografa e quem publica. Pensar isso no pós-guerra era um ponto de virada dentro do fotojornalismo e também da história da fotografia. O processo de aceitação desse modelo de trabalho não ocorreu sem


O modo de trabalho dos fotógrafos da Magnum consistia em realizar coberturas fora do eixo hegemônico e do interesse comum da grande imprensa, incorporando plasticidade à cobertura jornalística resistências, muito menos de modo homogêneo. A história da fotografia se mostra entre possibilidades e limites. Os eixos de ações propostos pela Magnum não se restringiam somente a um modo de operação. Os desdobramentos atingiam desde os campos estéticos a novas articulações profissionais. Era uma atitude política. O fato de se ter maior liberdade editorial e de se pautar por temas que não estivessem no interesse prioritário da mídia foi capaz de contribuir para o surgimento, por exemplo, da fotografia humanista no fotojornalismo e na fotografia documental. Olhando o trabalho de Eugene Smith, expoente dessa linha e um dos fotógrafos da Magnum do “segundo recrutamento”, do início dos anos 1950, detectam-se nitidamente as matrizes dessa estética: escolher temas que tenham o homem e o trabalhador no centro da narrativa;

priorizar o uso do preto e branco; usar a luz existente e jamais flashes; produzir narrativas e não instantâneos estereotipados; realizar projetos com proximidade entre os sujeitos e com duração mais longa. Impossível, diante disso, não lembrar o estilo plástico de Sebastião Salgado, este, confesso admirador de Eugene Smith e também ex-fotógrafo da Magnum.

da fotografia digital, alterou as regras do jogo nos últimos anos. A sobrevivência da agência, em parte, resulta da sua diversidade, aliando as coberturas com outras fontes, como pedidos de empresas, exposições diversas, edição de livros, tiragens artísticas: a Magnum é múltipla, não vende só fotos, mas a memória testemunhal do seu acervo. Afinal, sete décadas de imagens *** acompanhando os grandes eventos É certo que a Magnum foi, e é, durante do mundo devem dar algum caldo. esses 70 anos, alvo de críticas. No Façamos o teste: as últimas fotos princípio, foi tratada como elitista, de Gandhi, feitas por Cartier-Bresson; depois, excessivamente documental, a foto de Denis Stock mostrando um anacrônica, formalista. Atualmente, James Dean encolhido no frio da Times sobram os adjetivos de que é datada Square; Che Guevara fumando um e não tem mais o impacto de décadas charuto Cohiba, feito por René Burri; o atrás, que está parada no tempo e cidadão chinês parando uma coluna de que sobrevive mais do acervo do tanques, fotografado por Stuart Franklin; que das imagens das coberturas. Se os Beatles gravando em Abbey Road, por isso é verdade, podem ser apontados David Hurn, e o inesquecível ensaio de também alguns desdobramentos Serra Pelada feito por Sebastião Salgado. que a Agência encontrou de modo a Todas essas imagens foram feitas em manter a marca viva no imaginário da pautas da Magnum. fotografia. O endurecimento do cenário Nesse conjunto, há ainda livros de para a imprensa, que provocou uma cobertura que a Magnum fez sobre o diminuição na renda e a banalização cinema, guerras, esportes, e até um

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Artigo RENÉ BURRI/ REPRODUÇÃO

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curioso – e excelente – livro com as principais folhas de contato dos negativos das coberturas mais relevantes da agência. Um verdadeiro tesouro para se estudar sobre edição de fotografias. Vale também conferir no site da agência diversos podcasts de vídeo: o Magnum in motion, uma forma de vestir novas roupas no valioso acervo da Agência.

*** Para além das lentes e fotos da Agência, as influências são imensuráveis. A ideia de fotógrafos de se juntar e formar uma estrutura independente repetese interminavelmente. No mundo inteiro, o modelo da Magnum inspirou agências como a Gamma, a Sigma e a Noor, não raro, com fotógrafos que já foram associados à Magnum. No Brasil, a história do fotojornalismo aponta que esse movimento se deu nos anos 1970, com a formação de iniciativas como a Ágil e a f4. Em Pernambuco, nos anos 1980–1990, a Agência Imago foi uma das iniciativas que tiveram na Magnum uma avó em termos de inspiração. Hoje, entre a geração de fotógrafos mais jovens, o desejo de ser fotógrafo

da Magnum e entrar para o quadro da agência é algo mais diluído. Em parte, pelo cenário atual da fotografia se apresentar de modo muito mais diverso, com diferentes alternativas de articulação produtiva. Dentre esses arranjos, os coletivos fotográficos assumem esse aspecto do fazer junto, discutir e elaborar a produção entre os componentes do grupo, sem um formato fixo, replicando em maior ou menor escala as sementes de autonomia e independência semeadas pela Magnum. A Magnum não foi a primeira agência de fotografias, sequer a pioneira em fazer isso no fotojornalismo. No período entre guerras, na Europa, EUA e mesmo no Brasil, já havia iniciativas de oferecer imagens para órgãos de imprensa em modo terceirizado e agenciado. Mas o impacto da Magnum consiste, no momento da sua criação, quase numa heresia ao mundo da fotografia: diversificar os modelos de produção visual da notícia. Existir por todo esse percurso corresponde a uma coerência: da crença na autonomia criativa e de uma improbabilidade,

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7 Copião do fotógrafo suíço René Burri, que, em

1963, trabalhando em Cuba, fez aquele que se tornaria o antológico portrait de Che Guevara

a de uma iniciativa descentralizada perdurar por tanto tempo. As proposições do modelo de trabalho da Magnum pareciam altamente estranhas e dramaticamente improváveis em 1947. Mas hoje exprimem o centro de gravidade de todas as iniciativas independentes que se formam juntando pessoas com um interesse comum: dar abrigo aos afetos inquietos e inconformados com o mundo e as regras que os cercam. A força talvez esteja em conciliar os interesses individualizados da profissão de fotógrafo, tão ligada a noções egocêntricas de individualidade e singularidade, com o modelo coletivo de produção que minimamente tenta promover a liberdade de ação. “Liberdade, essa palavra tão acalentada, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, como nos ensina Cecília Meireles. JOSÉ AFONSO JR. é professor da UFPE e pesquisador.


BENICIO DIAS/REPRODUÇÃO

Lançamento

Arruar

História pitoresca do Recife Antigo

OBRA DE MÁRIO SETTE, PUBLICADA PELA PRIMEIRA VEZ EM 1948, GANHA REEDIÇÃO PELA CEPE EDITORA. LEIA AQUI UM CAPÍTULO DO LIVRO CONTINENTE DEZEMBRO 2017 | 65


Lançamento

De Fora de Portas ao Aterro da Boa-Vista Quem dirá hoje da perfeita expressão jubilosa dos gulosos olhos de mulher que se viam, através da móvel moldura do postigo de uma cadeirinha de arruar, fugindo à clausura do lar, a percorrer as ruas da cidade, na indisfarçável cobiça de saber das suas novidades? Cadeirinha de arruar tão bonita, tão maneira, tão fofa, invejada pelas vizinhas que a espreitavam, fingindo desdém, pelas frestas do balcão. Assim valia a pena ir-se assistir ao sermão do Corpo Santo, ouvir a missa cantada no Poço, visitar a comadre de resguardo, andar mesmo à toa pelos pátios cheios das barraquinhas de uma novena de Nossa Senhora, quando não ouvir o oratório na Casa da ópera... Não se cansavam as pernas e dava-se tanto na vista! Cadeirinha de arruar, misto de recato e de ostentação. Um pouco de mistério e um muito de vaidade. E tão raras a princípio! Não era para quem queria e, sim, para quem podia. Distinguiam-se na cidade os seus donos, falava-se das transitadoras pela Boa Vista, por Santo Antônio, por Fora de Portas. As senhoras de relevo social, moradoras dos sobrados de azulejos, por cima dos trapiches ou das lojas dos maridos, ou já nos sítios de casas apalacetadas dos arrabaldes, possuíam as suas, com ornatos de talha, com estofos de gorgorão, com portinholas desenhadas, conduzidas por escravos em parelhas de igual altura, negros bonitões e robustos, trajando librés de cores berrantes e bonés de oleado que o jornal anunciava como “novidade de Paris”. Apareciam novos modelos: de cúpula dourada, com portinhas em alto-relevo, grades, correias de marroquim, e o que se tornou um auge de bom gosto: providas de vidros. Vidraças! Que luxo! Não se temia mais a poeira das varreduras nem os chuviscos imprevistos. Sobretudo, ia-se ali dentro, à vontade, vendo-se tudo, sem recear a indiscrição de uma mão afoita ousando atirar uma flor, ou um escritinho, se não mesmo o furtar de um beijo... Cadeirinhas douradas, “de caixão”, das mais suntuosas e pouco vistas, evocando aquelas em que passeavam as fidalgas parisienses, de cabeleiras empoadas. Bom mesmo atravessar a cidade numa delas, protegida pelos vidros, apreciando o movimento, olhando as lojas, descendo na igreja ou na costureira.

Cadeirinhas de arruar... Que de poemas inspirastes! Que de ansiedades e esperanças provocastes! Quantos homens ficaram horas, ao sol ou à chuva, esperando uma dessas balouçantes caixinhas de luxo, por se aninhar nela sinhazinha que ia pedir a bênção à madrinha, escoltada pelo pai, a cavalo, de chapéu alto e rebenque em punho! Às vezes as cadeirinhas tomavam estradas, viajavam. Caminho do Mondego, Estrada dos Apipucos, Caminho de Olinda. Ia-se passar a Festa ou pagar uma promessa na Sé. Na reclusão feminina dos tempos, a cadeirinha possibilitava uma rápida visão da rua, a surpresa de um quadro maldoso, a acolhida de um olhar ousado, a observação estranha de um outro bairro. Cadeirinhas de arruar... Seu nome resumia uma finalidade ampla, saborosa, mundana. Arruar. E a rua constituía um pecado tão feio! Rua tinha saibo de cousa proibida e de má fama. Moleque de rua... Povo da rua... Mulher de rua... Bolo de rua... Namoro de porta de rua... Mas arruar era tão gostoso! E a cadeirinha proporcionava esse gozo, com uma espécie de poder isolador, vendo-se tudo sem perigo de contágio. Vendo-se, ouvindo-se e sentindo-se. Camarim ambulante para se apreciarem as cenas constantes e variadas dessa peça social que as ruas oferecem a todo instante. Arruar! Ver apenas, não! Sentir a cidade. Evocar seu passado, partilhar do seu presente, sonhar com o seu futuro. Encontrar interesse vivo numa fachada de azulejos, numas pedras de calçamento, num bico de telhado, num cocuruto de mirante, numa cara de transeunte, numa escadaria de igreja, numa jaqueira de muro, num interior de loja, num lampião de esquina... Arruar... Conhecer e recordar. Pisar e querer adivinhar os que já pisaram. Ser ao mesmo tempo a geração de agora e as gerações de outrora. Arruar... Passatempo e análise. Regalo dos olhos e entendimento dos espíritos. Arruar... Ver as ruas e penetrar-lhes a história. A história cronológica e a história social. A história pitoresca também. Não somente a trilha inicial, a origem do arruado, o imperativo do cordeador, as exigências das posturas, mas, igualmente, os costumes, o vozear, as expansões, os vícios, as festas, os maus dias, os amores de seus habitantes... Arruar é abrir esse livro de história, folhear-lhe vagarosa e saborosamente os capítulos, contemplar-lhe as ilustrações, comparar-lhe aspectos e episódios, compreender-lhe o sentido através das épocas e das gentes. Hoje, já não se sabe arruar direito. Anda-se, ou melhor, corre-se pelas ruas. Os meios de transporte não favorecem esse prazer dos antigos. O automóvel e o ônibus passam rápidos,

O LIVRO

O AUTOR

Em ARRUAR – HISTÓRIA PITORESCA DO RECIFE ANTIGO, cuja primeira edição é de 1948, o escritor desvenda a história do Recife, passeando por suas ruas e logradouros. Suas considerações sobre a cidade mostram a mudança vivida por ela no início do século XX. Como ele mesmo diz, trata-se da “cristalização desse amor” pela capital pernambucana.

MÁRIO SETTE nasceu no Recife, em 1886. Ainda muito jovem (11 anos) mudou-se para o Rio de Janeiro, retornando poucos anos depois, aos 16. Tornou-se ficcionista, memorialista e cronista que habilmente registrou a história recifense e também elementos interessantes e pitorescos da cultura urbana. Seus escritos, hoje, tornam-se também história.

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BENICIO DIAS/REPRODUÇÃO

Sobrados da Rua Nova, Recife, 1940

indiferentes, ignorantes. Não importa o percurso; interessa apenas o término. O rio, as árvores, o templo, a rua, a estrada, o sobrado, o tipo popular, a ponte, o nome local, que fiquem depressa para trás. Não se arrua mais. Chispa-se, voa-se... O bonde, que sempre consentia um vagar para esse prazer, hoje com a superlotação é um sacrifício... Arruar é diferente do que fazemos hoje ao atravessar a cidade, no interesse do trabalho ou na distração de um passeio, a caminho da escola, da igreja, do cinema, da loja, da festa, sem darmos um reparo menos superficial à sua fisionomia, sem sorver melhor o seu perfume, sem escutar meditadamente a sua música... Vamos por aqui, por ali, a esmo, abstratos, guiados pelo hábito, sem atentar, como devêramos, no encanto deste trecho, na claridade desta manhã, no colorido deste ocaso, na harmonia deste movimento, no feitiço deste pitoresco. Atravessamos as ruas apenas com o cuidado nos automóveis e olhamos as placas das esquinas sem outro propósito do que lhes ler os nomes. Somos, no cenário de nosso nascimento e de nossa vida costumeira, quase uns estranhos, à sua história, às suas tradições, à sua poesia. O passado é um baú velho atochado de papéis amarelos que se destroem num momento azado. Os velhos monumentos foram embora e poucos se lembram deles. Mudam-se as expressões típicas da cidade, e ninguém quase protesta. Desdenhamos não somente o passado de nossa terra, mas o nosso próprio passado... E, no entanto, que lição e que entendimento proporciona o estudo e o conhecimento da nossa cidade! O seu rosto, o seu cheiro, as suas cores, os seus sons!... Há nela um sentido que

transcende de mero núcleo civilizado para atingir as raias de um templo de nós mesmos. Em cada rua destas, em cada telhado daqueles, numa ponte, numa calçada, numa nave, num cais, num jardim, viveu também alguém que nos precedeu no mundo e que nos foi querido. Nossos avós, nossos pais, irmãos de nosso sangue, uma madrinha, uma ama-seca, um amigo, já longe de nós, dormindo no cemitério, por ali andaram, por ali sorriram, por ali sofreram, por ali pensaram em nós... Por onde arruamos há os passos deles, num arruar distante, indeléveis nas recordações dos que sabem recordar. Entremos, por exemplo, nesta igreja. É velhíssima e nada mudou no seu interior. Os altares, os santos, os candelabros, as tribunas, a pia batismal, tudo está como era. Até o piso, até as soleiras, até os degraus. Rezamos hoje; rezaram ontem esses antepassados, essas criaturas muito amadas. Esses mesmos nomes de templo – Penha... Carmo... São Pedro... Madre de Deus... São José de Ribamar... Santa Cruz... Nossa Senhora do Terço... — estiveram nas suas bocas e nas suas vozes. Quando aquela mesma bênção foi dada, há anos, há séculos, eles estavam aqui mesmo, de joelhos, recebendo-a, batendo nos peitos e curvando as cabeças. Essa procissão que sai todas as quaresmas, com suas velas acesas dentro de angélicas de papel, com suas duas imensas fileiras de devotos, com seu andor velado por um baldaquino roxo e a ponta da cruz de fora, aos dobres dos sinos das matrizes, essa procissão eles a viram também como nós a vemos, eles também se encheram de recolhimento e de preces, eles ouviram os mesmos sinos, carregaram os mesmos barandões, adoraram a mesma imagem.

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Ali está o nosso velho e sempre novo teatro. Talvez nenhum ambiente nos sugira recordações como o dessa casa de espetáculos tão típica de nossa cidade. Gerações e gerações passaram pelos seus camarotes e pela sua plateia. Na emoção da arte, na ânsia de comunicabilidade, nos encontros de amores, na faceirice da vaidade. Se quiséssemos — ou melhor, se pudéssemos — realizar uma história dos indumentos, teríamos de reviver os aspectos dos saraus de várias épocas, enchendo aquele teatro, pela imaginação, com os cavalheiros e as damas, os rapazes e as sinhazinhas do seu tempo, ouvindo o auto pastoril, a ópera de Bellini, a tragédia de Dumas, o vaudeville de Feydeau, o drama de Pinheiro Chagas ou a revista de Artur Azevedo. Todas as modas por ali desfilaram. Da saia-balão à saia entravada. Para somente aludir às que se foram. Essas criaturas de outrora sentaram-se nas frisas e nas cadeiras, olharam o palco, choraram e riram-se, miraram-se aos espelhos do salão, apoiaram as mãos nas balaustradas, desceram as escadarias... Todas as paisagens e cenários de nossa cidade impregnaram-se desses olhares antigos. E como que procuramos adivinhar como é que esses olhos viam, o que os lábios diziam, o que os pensamentos traduziam, o que as almas sentiam... Temos o capricho de querer viver a nossa cidade por nós e pelos nossos antepassados. Não vemos apenas o rosto da cidade, mas também seu espírito. Na beleza do rio espraiado e sinuoso, nos reflexos das luzes, nas sombras do casario, na solidão dos sobrados, nas angústias dos becos, na quietude das alvarengas, no pinturesco do mercado, nos cotovelos das ruas tortas, no burburinho das docas, na alacridade dos sábados, nos arvoredos dos sítios, nos terraços das pontes, nos toques das igrejas, nos apitos dos trens, nos pregões dos vendedores, no vocabulário da gente... Tudo é nosso, tudo é expressivo, tudo é diferente das outras cidades. Cada cidade tem sua história, não apenas a política, mas, sobretudo, a peculiar aos seus costumes, aos seus regionalismos, aos seus modismos. E se aquela empolga, entusiasma, esta enternece e embala como um berço impelido por mãe carinhosa. História, ou histórias, semelhantes às contadas pelas velhas pretas de antigamente; histórias que ainda nos encantam quando vamos envelhecendo... Arruar é apreender o sentido dos vários trechos da cidade, penetrando-lhes a origem e saboreando o acerto de batismo dos bairros, das freguesias, dos logradouros. Recife, Santo Antônio, Afogados, Boa Vista, Várzea, Espinheiro, Camboa do Carmo... Nomes históricos, lendários, geográficos, pitorescos, a evocar um episódio, um costume, um aspecto, uma ironia, por vezes, quando não uma figura também. Quem, sabendo um pouco do nosso passado colonial, ao ir à Casa Forte não se recorda logo daquela formosa e galante dama pernambucana, D. Ana Paes, que teve a habilidade de passar conjugalmente pelos braços de três homens, harmonizando ao calor de seus beijos, portugueses e holandeses? Quem não se identifica de pronto com as raízes populares de denominações claríssimas como Caminho Novo, Porto da Madeira, Ponte Velha, Ilha do Retiro, Água Fria, Espinheiro, Fora-de-Portas? Meditemos nesses nomes, e cada um deles será um pequeno capítulo do romance do Recife. Que dizer, por exemplo, de Mangabeira de Cima a contrastar com a Mangabeira de Baixo, ali na Estrada do Arraial, que por si mesmo já constitui um cenário histórico? As duas

Rua da Aurora, Recife ,1938

árvores, no caminho há pouco rompido, eram duas balizas dos transeuntes. Mangabeira, a de baixo; Mangabeira, a do alto da ladeira. Orientavam os que iam ali, e quando o trem suburbano substituiu a diligência do Cláudio, deram nome às respectivas estações que nós ainda frequentamos. Bem próxima, Tamarineira também teve fonte semelhante. Formoso exemplar vegetal, sem dúvida, de copa farta e sombreadora, no amplo sítio local. Ninguém deixava de descansar um pouco debaixo da tamarineira, quer fosse para Cruz das Almas, quer se destinasse a Água Fria ou ao Monteiro. Mais tarde, compram o sítio para o novo asilo dos doidos. Festas da primeira pedra e da inauguração. Trazem da Misericórdia de Olinda os dementes. Mas o nome da árvore fica, e agora com um significado irônico — e de morada dos que não giram direito... Mangabeiras ou tamarineiras, elas sabiam convidar ao repouso da etapa e ainda davam o sabor dos frutos. Caíram aos golpes do machado, porém ficou a lembrança delas com as crismas a que deram lugar. Dos primitivos engenhos de açúcar há uma linda coleção de nomes no Recife: Apipucos, Madalena, Torre, Dois Irmãos. Do seu cenário de canaviais, de carros de bois, de moendas, de casas de purgar, eles se transformaram em povoados e hoje em arrabaldes. Dois Irmãos também foi Encanação devido aos mananciais de onde proveio a água para a cidade, melhoramento que muito deu que falar com seus chafarizes e torneiras. Quem nos dirá desse artista do ferro que de tão conhecido no mister e na simpatia batizou o trecho de sua tenda em Caldeireiro? Das virtudes e dos milagres da água numa volta do Capibaribe

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Arruar é apreender o sentido dos vários trechos da cidade, penetrando-lhes a origem e saboreando o acerto de batismo dos bairros onde iam se encher as vasilhas e banhar os corpos, nasceu o famoso Poço da Panela, que não se limitou ao fastígio das curas e da vida social, mas transcendeu para as glórias de uma das páginas mais belas e mais humanas de nossa história, quando ali escondiam escravos para libertá-los. Casa Amarela. Clima benéfico, onde de começo apenas se agrupavam mocambos entre veredas de ubaias e de pitangueiras. Um convalescente agradecido se fixa e levanta um prédio de tijolo e de telhas, que manda caiar de amarelo. Era a casa amarela indicadora, “Pegado à casa amarela”, “dobrando a casa amarela”, “confronte à casa amarela”... Povoação, teve também o seu trem. E a estação recebeu o nome popular. Nascido da gratidão do major ou do comendador que ficou bom do puxado ou da maleita. Ali o rio ainda não conhecera ponte. Havia canoas e uma balsa para a travessia. Era a “Passagem”. Mais conhecida assim por mais frequentada. Ia-se para a Madalena, para a Ponte d’Uchoa, para Caxangá. Mais tarde abriu-se rua, ergueram-se palacetes de azulejos e de caramanchões, fizeram uma ponte, rodaram seges. Porém dizia-se: — “Estou morando na Passagem”. Fonte semelhante tiveram o Porto da Madeira, o Aterro dos Afogados, o Chora-Menino, a Estância, a Boa Viagem, a Encruzilhada de Belém, a Ponte d’Uchoa. Numa as canoas vão buscar a lenha, noutras o lançamento de uma estrada onde existiam mangues, o sacrifício de crianças pagãs numa revolução, a estacada defensiva do negro que repele o invasor, os navios que se vão e deixam num voto de bonançosa travessia uma igrejinha entre coqueiros, o

cruzamento de caminhos em demanda de Beberibe e de Olinda, a pinguela de serventia num sítio particular... E são somente os arredores a nos oferecerem o embalo evocativo desses nomes tradicionais dos logradouros públicos? Não. No centro da cidade, quer nas artérias principais, quer nas de menor predicamento, há um mundo de reminiscências, de ensinamentos, de poesia. A começar pela nossa rua mais galante, mais nobre, a preferida: a Rua Nova. Um encanto de batismo. Transparente, preciso, sintético. Fácil, curto, expressivo. Rua Nova? Perfeitamente. O acesso recente, cômodo, útil. Pelo antigo, o rodeio era maior e sem dúvida a paisagem menos apreciável. Ao se rumar para Fora de Portas ou para o Aterro da Boa Vista, por ali era outra cousa. E a trilha vira arruado. Casas de um lado, depois de outro, salteadas e unidas. Boticas no andar térreo, moradias nas que tinham sobrados. Embaixo, vendiam-se panos, borzeguins, chapelinas, braceletes, meizinhas, bacalhau, manteiga fresca, queijo do reino. E até um dia, loja de tirar retratos ou de pentear cabelos. No alto, em varandas de pau surdiam de furto rostos de moças, quando não transitavam procissões de quaresma para encher de todo esses balcões rendados. Rua Nova... Passam cadeirinhas de arruar, ônibus de terraços, carroças de açúcar, traquitanas, bondes... Rua Nova sempre. E a do Queimado com seu “fogo” espetacular, no tempo em que o povo se armava de gamelas, de baldes, de quartinhas para apagá-lo? E a da Cadeia Velha com seu sobrado de grades onde espiavam condenados às galés ou à forca? E a das Águas Verdes com seu pântano de inverno? Cais do Apolo, vaidoso

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Mercado Público da Encruzilhada, Recife, 1940

de ter deixado de ser praia e com o seu teatro a atrair a alta sociedade para ouvir a Norma ou o Trovador. Rua do Cotovelo, rica de ângulos e de mistérios. Rua da Aurora, primeira a receber as pompas do Sol. Ponte Velha, a recordar os tempos em que Nassau do seu palácio olhava as matas do continente ou Franz Post pintava nossas primeiras telas. E os doces cultos ao Rosário, à Conceição, ao Bom Jesus, à Santa Cruz, à Santa Rita, traduzidos em artérias e pátios onde existiam igrejas ou nichos para se rezarem novenas e terços. As guerras de antanho emprestavam feitos para a Rua das Trincheiras, para o Largo das Cinco Pontas, para a Rua de São Jorge, para a dos Guararapes. Ouvimos cadências de marchas, entrechoques de piques, ribombos de peças, toques de chamarelas, ressoos de vitória e de reconquista. A nossa outra rua elegante de hoje, que se chama da Imperatriz, fora por muitos anos do Aterro da Boa Vista — vastos mangues que se encheram de lixo e de areia, transformando-se numa via pública a rivalizar depois com a sua vizinha de além-rio — a Rua Nova. E por que não falar também dos becos? Afigura-se-me que essas passagens estreitas nasceram de um imperativo de sociabilidade. Comunicações mais curtas e rápidas por necessidades de relações, de visitas, de comércio, de amores. Ia-se mais depressa por ali, por entre casas. E a passagem como serventia pública persistiu na paisagem urbana. Sua fisionomia, seu préstimo, sua figura popular veio a dar-lhe o nome. Beco da Viração, do Serigado, da Luxúria, do Sarapatel, do Veras, do Calabouço, da Roda, do Quiabo, das Sete Casas... Cada denominação dessas ressalta uma origem. É uma tela, é um retrato. Tem cor, tem cheiro, tem

malícia... As maxambombas, trifurcando-se a caminho de Dois Irmãos, do Arraial, da Várzea, com seus apitos e seus barulhos de vapor, batizaram o Largo do Entroncamento. Sumiram-se os trenzinhos suburbanos, demoliram a velha estação de três plataformas, porém o nome ficou nas bocas de novas gerações. Quem “adivinha” agora os quadros vivos ali representados todos os dias ao rápido encontro dos trens cheios de passageiros habituais ou de “passadores de festas”, na convivência diária dos mesmos vagões e por vezes dos mesmos bancos? Comenta-se o fato político da Europa ou do país, lê-se A Província ou a Gazeta da Tarde, discute— se a crise do açúcar, critica-se a prima-dona do Santa Isabel, planeja-se a dança do sábado, pensa-se na noite de Ano-Bom no Bonfim ou no Poço... Quem avalia o antigo Bairro do Recife torturado de ruas estreitas e becos incríveis de tortuosidade; o Largo do Corpo Santo, o Beco das Sete Casas, a Rua da Cadeia, o Arco do Bom Jesus, a Doca do Arsenal, o Cais da Companhia Pernambucana... Tudo isso se sumiu na paisagem da cidade. Ninguém o reconstitui mais sem tê-la conhecido. E mesmo entre os que o conheceram, quantos de memória pouco nítida! Não há saudosismo em recordá-lo. Nem desejo de que a vida houvesse parado. Há, porém, uma modalidade de amor a tudo o que desapareceu, e que se não foi nosso contemporâneo, terá sido de nossos bisavós: cenário de sua infância, de seus amores, de suas preocupações, de suas atividades, de seus sonhos e de suas saudades também... Daí nossa ânsia de saber-lhes particularizadamente dos costumes, dos trajos, dos hábitos sociais. Essa existência longínqua e apagada é bem verdade que se projeta

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No centro da cidade, quer nas artérias principais, quer nas de menor predicamento, há um mundo de reminiscências, de ensinamentos, de poesia somente numa quase realidade através das velhas crônicas, dos romances, dos relatos verbais de pessoas idosas, numa carta, mas, sobretudo, nas páginas amarelecidas dos jornais da época. Essas, sim, são de um flagrante que lembra os instantâneos de hoje. Porém é preciso saber interpretá-las, às vezes. Um anúncio de loja trai uma cena, até uma conversa. Uma reclamação revela um costume. Quem não o sentirá, lendo aquela advertência a um novo morador de rua, que ali não se tolera mais deitarem-se águas servidas da varanda abaixo? E a venda de uma cadeirinha estofada, por qualquer preço, certamente por ter caído da moda? E o toucado riquíssimo chegado de Lisboa, por encomenda, muito próprio para noiva, e do qual “se declara que é talvez o primeiro aqui visto, principalmente pelas ricas plumas que tem”? Qual a moça que não sonharia possuí-lo para sua tarde de núpcias? E a casa da Rua da Matriz por 6$000 mensais, uma botija de cerveja por um tostão, trazendo-se o casco, um queijo do reino por 1$500, leite diariamente por três vinténs a garrafa? Queixavam-se da carestia, sim, queixavam-se. E dos maus processos de educação. Meninos já grandes que antigamente dormiam nos colos das iaiás gordas, chupando os dedos — agora.... empinavam papagaios e tomavam genebra... Vejam só!... E que dizer das modas de antanho? Estou em que as mulheres especialmente se sentirão curiosas de conhecer os figurinos dessa época distante. Já havia, sim, publicações do gênero, doutrinando em galanteria, em feitios, em modelos. Não será difícil formular uns “retratos vivos” dessas elegantes de faces de papoila que se chamavam, por exemplo, coquetes e casquilhas, tinham mel nos lábios feiticeiros, vestiam lantejoulas, só faltavam cuspir à

francesa, mostravam dengues e medeixes, dardejavam olhares sedutores, dançavam valsas de corrupio e usavam adereços de diamantes, anéis de crisólitas, broches de coral, atacas de ouro... Mas gastavam fazenda muita para se vestir, bojudas e recheadas que eram. Patos, anquinhas, babados, mangas-presuntos. A ponto de se aconselhar aos pais e maridos: Se vossa filha ou esposa Já com seis varas de cassa Para um vestido bem passa. Por cumprir com o modernismo Dar-lhe mais é patetice. E, também a respeito: Antigamente, a mulher, quanto menor, melhor, porque levava menos fazenda nos vestidos; hoje, alta ou baixa, bojuda como uma pipa ou esguia como um espeto, gasta as mesmas varas de côvado porque o que sobeja no comprimento acomoda nas ancas, embora pareça campainha de cima de mesa. O hábito de sair de casa para compras, para consultas ao médico, para tratamento dos dentes, mesmo a passeio, seria restrito depois de haver sido por longos séculos proibido e pecaminoso. Mas o século XIX, já de início, se prometia revolucionário pelas terras do Brasil, mormente pelas de Pernambuco, até nas usanças e na guerra aos preconceitos. O arruar, como outros hábitos, ia ganhando alento. A ponto de um moralista se insurgir: Muita moça sai à rua Somente pra se mostrar E vai toda enfeitadinha Como se fosse casar. Arruar. Na cadeirinha de vidraça, a princípio, e depois na sege, no ônibus, no bonde... Vejam que escândalo!... Na promiscuidade desses transportes coletivos. Também as ruas já iam oferecendo atrativos e comodidades: sapatinhos de duraque e cetim a 4$500, frasco de extrato de Paris por 1$500, chita da mesma procedência a 120 rs, o côvado, e o leque de madrepérola, todo de seda, com figuras de cera em relevo, ou de longas plumas, a 15$000. “Um desperdício, minha gente!” Mas — o leque! Amenizava o calor, acompanhava graciosamente o ritmo das músicas, batia no ombro da amiga, e tapava o rosto pudicamente ao ouvir uma confissão, ao prodigalizar um sorriso... As lojas de Mesdames Rey, Milochaud, Théard, anunciavam tanta coisa: blondes, capotinhos de retrós, chapéus de palha de Itália, a fazenda da moda gros de Naples, as bareges de listras, os espartilhos, além de fazerem pregas a vintém a vara... E os artigos de compra discreta, quase em segredo: depilatório para os pelos do rosto e do corpo, a água-de-vênus para apagar manchas, os pós para criar e empretecer os cabelos. Não esquecer o xale de toquim de 50$000, a que a modinha exaltava o préstimo: Meu papai, eu quero sedas, Quero um xale de toquim... Os dentistas franceses ou ingleses abriam consultórios: inserir um dente, 10$; arrancá-lo, 2$; chumbar a ouro, 3$; dentadura completa, 30$. Preços de Mawson ou Gaignoux.

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Os cabeleireiros, outra tentação: o Jaime, o Gustave, o Desmarais, Mme. Potellier, o Odilon. “Quarto particular para cortar cabelos à moda.” Penteavam à marrafa a uma pataca. Tabela de preços para domicílio no estabelecimento. Penteado de noiva, 5$000. Arruar... para tirar o retrato, sim senhor. A moda do retrato dera que falar. Não mais as demoradas poses para os “óleos” dos artistas estrangeiros de passagem ou de estada na cidade. Agora, os daguerreótipos. O Mavignier, o Decoux, o J. Pereira tiravam esses retratos a 10$ em fumo e 20$ coloridos. Também miniaturas para caixa de rapé, broches, medalhas, alfinetes de gravatas. Depois, os retratos em negativo, às dúzias, para distribuir com parentes, padrinhos, amizades e... “Lá vem mamãe! Abriam-se fotografias de luxo, de artistas premiados na Exposição de Paris. Retratos a qualquer hora e com qualquer roupa. Não se entregavam senão os parecidos e não faziam as pessoas mais velhas. Ao contrário... E para tirá-los lá se ia a sinhá com seu vestido de seda de quadros, com bico francês no talho e babado largo em roda da saia. A Madama cobrara-lhe de feitio 10$. Se fora de merinó, 8$; de cambraia, 6$; e de chita, 4$. Para vestido de noiva (pobre não podia mais casar, meu pai do céu)... 15$000. Um poeta do tempo dizia, embora escrevendo em prosa, da sua perturbante impressão de um encontro de rua: “Vi passar, dentro de um palanquim, uma moça que me feriu o coração. Era uma jovem cor de pelica branca, olhos azulados cor de céu em primavera, boquinha composta de duas pétalas de rosa”. O vagar da cadeirinha dava tempo para todas essas minúcias, todas essas e mais algumas que o enamorado calou sem dúvida. O palanquim simboliza bem as baladas, os poemas de outrora, longos, rimados, líricos. Ao passo que o automóvel de hoje, chispando, mal permitindo distinguir o sexo de sua guiadora, tão confusa é a indumentária, será uma dessas poesias modernas em verso livre e de sentido super-realista. E que dizer dos outros atrativos? O Cosmorama, com vistas novas todas as semanas, inclusive as horríveis da guerra da Europa... Na Europa há sempre uma guerra. As sorveterias... O sorvete, outro capítulo verdadeiramente saboroso na história da cidade. De creme ou de frutas. O Café Rui tinha-o duplo. De começo, um tostão. Depois — talvez a tal guerra do momento... — subida para dois tostões. Mesmo assim: Das 10 às 9, fregueses, A sorveteria está pronta: Um sorvete a 2 tostões. Não há nada mais em conta. Numa das mesinhas, as famílias conversam: — Já soube da estreia da Companhia Lírica com A Favorita? — Preferia que fosse com A Sonâmbula. Toco a partitura toda.

— Será a 2ª récita de assinatura. Não vai? — E então! Meu marido assinou um camarote de 2ª ordem. — Nós, também. Camarotes só de 2ª ordem; é mais caro, porém... — Os de 1ª são para esse povo de pé-rapado que não mora na Madalena... Mas dizem que a prima-dona é um rouxinol. Do mesmo modo comentava-se a festa do Poço, a corrida do prado, as temporadas de festa nos arrabaldes ou em Olinda. Dali, da sorveteria, iam às lojas do Pavão ou do Zé Bigodinho, à Ville de Paris ou Paradis des Dames, comprar a carteirinha de 100 agulhas a 28:0 rs., as baleias a 1$ meia dúzia, o pente para alisar a 1$200 e, mais baixinho, o de “tirar piolhos”, a uma pataca. Linha de carretel, 80 rs. As anquinhas estavam subindo com a moda: 2$500 as francesas. Também chamadas, por quem vinha da Europa no paquete de vapor: tournure. Adquiria-se na Livraria do Pátio do Colégio a revista de moças A Bonina, os Suspiros Poéticos de um Desterrado... Nas lojas de ourives, as rosetas de ouro, os camafeus com cercadura de brilhantes, os diademas para os penteados... A rua era já um paraíso. O progresso cercava-a de comodidades — calçamento, luz, passeios de lajes, vitrinas e até músicas. Sim, ouviam-se pianos nas lojas que os vendiam, de cauda ou de coluna. Polcas, quadrilhas, valsas e até modinhas como a que dizia: Se eu brigar com meu amor Não se intrometa ninguém, Que, acabados os arrufos, Ou eu vou ou ele vem. Via-se, ouvia-se, sentia-se, amava-se. Os olhos, pelo menos, andavam livres das rótulas dos balcões ou dos postigos das janelas. Os janotas esperavam as gamenhas em plenas portas das lojas. E embora severamente acompanhadas — pudera não... — quem as privaria de dar ou receber um sorriso ou um sinal? Difícil falar, sim. Porém já o jornal consentia, em prolongamento dos olhares de rua, os quadrinhos com as confissões, as queixas, os avisos e até os “desabafos”:

Desabafo Enganei-me quando a vós me dirigi. Foi recebida e um recado fez-me nutrir esperanças. Julguei ser realidade mas eram aparências. O recado foi um estratagema. E o estratagema? Foi para ser [eu desfeiteado bruscamente. O fim meu era puro, confesso-o. A nossa união, talvez, se por acaso obtivesse vosso consentimento e de vossos pais. Foi um sonho — dissipou-se — procuro distrair-me — Contudo, desejo-lhe um futuro lisonjeiro.

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Perfil

O FANTASIOSO E FENOMENAL DILA É AQUI Natural de Cumaru, no Agreste pernambucano, o gravador, artista gráfico, editor, poeta e escritor José Soares da Silva é um dos grandes protagonistas da história da literatura de cordel e da gravura popular no Brasil TEXTO MARIA ALICE AMORIM

Dila é nome próprio. Dila, o poeta

do Agreste. Dila, o narrativista. Dila, o ex-cangaceiro. Dila, o capitão. Dila, o Barba Nova. Dila, o marechal do cordel de cangaço. Dila, o papa da xilogravura no Brasil. Dila, em grosso e varejo. Dila, Dila, o que há neste nome, explique-se: “Eu, Dila José Ferreira da Silva na vida do cangaço levei vários cercos, levei 2 tiros do Tenente Valentão, fui procurado no enterro de meu pai, em 1952 me livrei do último cerco pelo Tenente Abdias Patriota. Nos anos de 1940 fiz meu campo de trabalho em cima da história do cangaço, tenho de minha autoria 70 Cordel de cangaço; Escrevi Lampião e Maria Bonita com 48 páginas, 32, 24, 16, 12, e agora venho publicando o mesmo com 8 págs.…”. Nas tantas décadas em que trabalhou no próprio ateliê olhando todos os dias para a chaminé da antiga fábrica de caroá, em Caruaru, a escada íngreme, de madeira, artesanalmente talhada pelo

próprio Dila para estar ali encaixada, a um ângulo de quase 90°, a reduzida distância entre dois pisos, servia como espécie de portal e senha para mergulho num mundo à parte de qualquer lógica, previsibilidade, razão. Um mundo à maneira daquele maravilhoso mundo de Alice, pleno de enigmas e desrazão. Um mundo para iniciados. Próxima à janela, a mesa de trabalho, trabalho solitário, ancorado naquele cenário milimetricamente planejado para, em seguida, explodir em exuberância e liberdade criativa. As mãos, firmes, tramam histórias de grande beleza, manejando canivete, quicé, peixeira, lâmina de barbear. Mais adiante, antigo prelo manual para impressão de gravuras e clichês. Prensa, à Gutenberg, imprime textos montados com tipos móveis. Pendurados nas paredes ou pousados em armários, fotografias, impressos, matrizes em madeira e em borracha, alfabetos de formatos variados

C O N T I N E N T E D E Z E M B R O 2 0 1 7 | 74

em letras de metal e, sobretudo, a delicadeza de objetos em miniatura, objetos para além dos utensílios de trabalho, como cabeças de bonecas, talvez alusão à cena da epopeia do cangaço que tanto povoa a imaginação de José Soares da Silva, o fantasioso e fenomenal Dila. E assim o artista nos seduz e protagoniza, na história da literatura de cordel e da gravura popular, relevante papel de gravador, artista gráfico, editor, poeta, escritor, mais cultuado pelas artes dos gravados até mesmo do que pela poesia nem sempre conforme os modelos técnicos da poesia de cordel. Produziu folhetos, sobretudo autorais, contendo não apenas poemas, também lendas, narrativas em prosa, “literatura de cordel em contos”. Inovou nos anos 1970, com álbuns coloridos impressos no formato cordel. Criou infinidade de “rótulos simples e em cores para calçados,


RICARDO B. LABASTIER/JC IMAGEM

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Perfil ACERVO MARIA ALICE AMORIM

bebidas e doces”. Trabalhou de modo artesanal os rótulos, preparando-os em carimbos de borracha, para impressão em papel, em tecidos para bordado, e em outros usos no comércio. Criou clichês de madeira para logotipo. Gravuras em madeira, ou xilogravura. Todos, invenção que o artista sempre gostou de anunciar na quarta capa dos folhetos e alardeava em letras garrafais na fachada da residência-ateliê. Em 1974, quando Tânia Quaresma filmou o documentário Nordeste: cordel, repente, canção, na parede da casa onde Dila morou até 2016, em Caruaru, tinha o letreiro: Art Folheto São José. Romances e folhetos. Do autor e editor: Dila é aqui.

CARUARU

Domicílio escolhido na juventude, a cidade onde vive e criou os seis filhos com a esposa, Valdecila Leopoldina, fica na mesma região pernambucana, Agreste, a pouco mais de 50 quilômetros do domicílio de nascimento, Cumaru. Virginiano de 17 de setembro, ano 1937, Dila é filho de Domingos Soares da Silva e Josefa Maria da Silva. “A minha mãe era a Cangaceira Beleza e meu pai é apelidado de Relâmpago”, segreda e, sem jamais esconder a paixão, mergulha nas histórias de cangaço, nas invenções e reminiscências de quase seis décadas devotadas às artes gráficas, ao cordel, à xilogravura. A facilidade para os desenhos, segundo Dila, foi herdada do pai, um caricaturista que, em meio às fabulações, afirma ter nascido na Holanda, mudando-se para o Brasil aos sete anos, onde teve 130 filhos e 127 filhas, de 63 mulheres. “A minha vida é tão comprida, que, se eu for escrever todinha, não paro. Em 1952, era na Vanguarda e na Defesa (jornais de Caruaru), eu armava meus folhetos tudinho, compondo. Disseram: esse sujeito não é um idiota, não. O jornal Agreste já vem depois, mas eu entrei nele. Me botaram numa reportagem que eu fazia carimbo e xilogravura, e até a página do jornal montada na madeira. Trabalhava com uma faca de 12 polegadas, peixeira, e em poucas horas fazia uma página de jornal. Desenho de carro, o desenho que botasse eu ia traçando na madeira. Foi acima, foi abaixo, eu fiquei em Caruaru, era pra voltar no outro dia, fiquei seis meses. Quando cheguei em casa, o velho

estava meio aperreado. Disse: – mas você não deu notícia, não voltou mais, vai comprar folheto e não volta. E eu digo: vou voltar agora, eu tenho lá o compromisso de trabalhar. Cheguei a comprar seis máquinas, enchi a casa de folheto. Tinha semana de ter dois, três sacos de folheto amarrados pela boca. Em Caruaru, quando cheguei em 52, comecei a publicar pessoalmente, em 63 comecei com as máquinas.”

INOVAÇÕES GRÁFICAS

Quando inicia o manejo da prensa, ainda assim o ofício não se torna puramente mecânico. É pelo trabalho de mãos habilidosas que o artista cava respeito e admiração com o ofício de gravador de centenas de capas de folhetos, de criador de álbuns em xilogravura ou linóleo e impressos em policromia, de criador de rótulos de cachaça e remédios, de ilustrador de livros e publicações diversas. Com a experiência

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na fabricação de carimbos, substituiu o taco de madeira por lâminas de sola de sapato ou neolite, obtendo um resultado de impressão batizado pelo pesquisador Roberto Benjamin de folk-off-set. Inquieto, decidiu experimentar diversas cores numa mesma matriz, criar figuras e desenhos de cenário separadamente para montar novas gravuras a partir da combinação dessas matrizes autônomas. Inventou, ainda, de abrir letreiros e desenhos das capas de cordel numa mesma matriz, em borracha vulcanizada ou mesmo na madeira, recriando o tipo fixo, conforme lembra Roberto Benjamin, no texto Aparatos dos livros populares – Dila editor popular. Prefaciado pelo folclorista, escritor, poeta e professor pernambucano Aleixo Leite Filho, o livro popular Bagagem do Nordeste, de 1974, é um dos álbuns de Dila no qual apresenta o resultado das experimentações produzidas em


Dila combina elementos com esmero e assim constrói visualmente a representação do que para ele seria a imagem do cangaceiro, beato, santo, com a consistência de uma poética visual particular

cores e no formato 11x16 centímetros. Outro álbum, Rasto das histórias, editado por Roberto Benjamin, chegou a duas edições, em 1973 e 1975. Viver do cangaceiro sai em 1975, pela Artfolheto São José. O álbum Réstias do cangaceiro é de 1981. Dila passa, daí por diante, a adotar cores nas gravuras, quando o habitual era se valer da tradição do preto e branco da xilogravura popular. Usa quatro ou mais cores, o que significava imprimir, separadamente, uma a uma. Vermelho, amarelo, preto, sobre fundo branco, predominam na capa de Bagagem do Nordeste, enquanto sobressaem azul, amarelo e vermelho, sobre fundo branco, no Rasto das histórias. Nos dois álbuns, os letreiros são escavados direto na matriz repleta de símbolos culturais, como o cacto e a terra árida, o sol escaldante e o coqueiro, uma sandália de couro e o busto de um cangaceiro. No folheto da bagagem, um livro é a principal imagem da capa do

folheto em torno da qual giram as outras ideias. Na capa desse livro, um homem carrega mala na cabeça enquanto lê o livro que carrega na mão. Uma explícita homenagem às histórias que povoam o mitopoético mundo nordestino, e uma reverência ao mundo da leitura, inclusive expressa na quarta capa do folheto, na qual Dila registra gratidão a Chico Heráclio (“era filho do véio meu pai”) com gravura do busto e a legenda: “a quem devo minha leitura”.

DILA EDITOR

Foi durante décadas, dos anos 1960 em diante, que Dila imprimiu e comercializou folhetos nas feiras de Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Ceará. “A gente andava pra o sul, vendendo folheto, cantando e tirando conta.” O sul, nesse caso, era a Zona da Mata Sul de Pernambuco. Entre memórias vívidas e rasgos de imaginação, lembra que as primeiras xilogravuras foram publicadas em folhetos dele mesmo, de Francisco Sales Arêda e de outros poetas de feira. J. Borges, ou José Francisco Borges tem orgulho de dizer que estreou na literatura de cordel, em 1964, com o

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folheto O encontro de dois sertanejos no sertão de Petrolina, cuja capa vinha ilustrada com uma xilogravura de Dila. Além dessa, inúmeras foram produzidas para folhetos de variados autores, muitos transformados em clássicos do cordel, seja pela poesia, seja pela capa, como Discussão de um fiscal com uma fateira, de Manoel de Assis Campina. Qualidade e diversidade editorial aglutinavam representantes comerciais em torno de Dila. Na quarta capa do folheto Félix imitou Lampião, registra revendedores, o que inclui o poeta Olegário Fernandes, de Caruaru, e o comerciante Édson Pinto da Silva, tradicional distribuidor de literatura de cordel no Mercado de São José, no Recife. Entre as cidades onde adquirir as edições, Patos, João Pessoa e Campina Grande, Paraíba; Mossoró, Rio Grande do Norte; Juazeiro, Ceará; Maceió, Alagoas; Feira de Santana e Ribeira do Pombal, Bahia. Foram muitos os autores para quem editou e ilustrou, Dila recorda: “Os poetas Vicente Vitorino, Chico Sales, J. Borges, Antônio Ferreira de Morais – que é o autor de Rogaciano e Angelita, o folheto de 16 páginas que mais


Perfil LEO CALDAS

se vendeu na face da Terra –, e João José da Silva, que fazia aqui também depois que vendeu a tenda. Só não Olegário, que tinha uma máquina, e publicava para ele mesmo. Tinha o João Ferreira da Silva, que foi-se embora para a Bahia. Tinha o João Ferreira dos Santos. Tinha Joaquim Luiz, de Belo Jardim. Tinha Severino de Assunção, de Taquaritinga”. Talvez devoto de São José, Dila adota o santo para patrono de mutantes nomes de fantasia da editora: Só Cordel São José, Folhetaria São José, Artfolheto São José, Artesanato São José, Gráfica São José. A editora usou, ainda, o nome de Folhetaria e Confecções Brasil, Folhetaria São Damião, Preéllo Santa Bárbara, Sabaó Folheto, Gráfica Sabaó, XilgCordel, Fhòlhéteria Càra d’Dillas. O registro da autoria de texto e xilogravura é tão variável quanto o de editor. Entre muitos, há: José Cavalcanti e Ferreira Dila, José Ferreira da Silva Dila, Henrique Sabaó Sabóia Dila, José Ferreira da Silva Dila Sabóia, Dyyllas Sabóia, Dyyllas, Dillas ou Dila. De modo frequente, a quarta capa apresenta o nome da folhetaria e a cara do artista, às vezes fotografia em clichê, muitas vezes em autorretrato desenhado. Quando aparece, então, vestido de cangaceiro, Dila faz harmonizar a própria figura com o mundo fabular no qual viveu imerso e com os epítetos que vai conferindo a si mesmo nas editorações: marechal do cordel do cangaço, excangaceiro, entre outros.

MITOS MOVEM ARTISTA

Xilógrafo cultuado pela mídia, recebe comentário entusiasmado de Jeová Franklin, jornalista com publicações sobre xilogravura popular: “Dila é o mais fantástico e criativo gravador do Nordeste”, reproduzido na quarta capa do folheto Cangaceiros do Coronel Eudócio. Temas recorrentes articulam topoi, exemplum, profecias, oposições, paradoxos, dialogias: santos e demônios, fada e diabo, cangaceiros e romeiros, beatos e bandidos, homem que vira bode, Lampião que sonha com o satanás. Na edição de 1976 do folheto Jesus e o Diabo, o embate entre bem e mal tem vencedor. Jesus aparece montado em típica representação do diabo, besta com rabo, chifres, patas dianteiras com casco para trás. O ânimo do bicho é

de desolação, com a cara enfiada no chão. Em Lampião e Belzebu, não se sabe qual vencerá. O diabo atrai o olhar, seja pela posição à direita da capa, seja pelo short em listras verticais harmonizando com listras horizontais de chifres, rosto expressivo, queixo e tridente enormes, ponta do rabo em tridente. Evidente polarização de bem e mal. Gravura sempre talhada com esmero aponta o artista complexo, intuitivo, autor de narrativa imagética original, fora do previsível, sem iniciação em desenho acadêmico. Lembra o poeta que, pelos anos 1970, trabalhou para o marchand Carlos Ranulpho. Ganhou visibilidade, é certo. A extensa e rica produção conquistou mais e mais espaço em diversos livros de arte e pesquisas acadêmicas, mundo afora. Justamente a partir do início dos anos 2000, quando se envolve na criação das ilustrações para reedição do Folklore pernambucano, de Francisco Pereira

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da Costa, pela Cepe, o novidadeiro Dila resolve fazer “literatura de cordel em contos”, “literatura de cordel em prosas”. Ele confessou então: “Estou escrevendo o que passSSou-se na vida, não é em verso mais não. Estou com preguiça de escrever em verso, porque num minuto eu armo uma página, conto a história. E em prosa qualquer um pode escrever”. Dila disse, à época, que já havia escrito uns 20 desses, “fora o que ainda vou escrever”.

RELEVÂNCIA DA OBRA

Sofisticado jogo de luz e sombra, a composição das cenas desenhadas por Dila dá conta da vertigem provocada pelas fantasias do artista. Têm vitalidade. Com movimento, volumetria, profundidade, riqueza de detalhes, expressividade do rosto – olhar, nariz, boca, queixo, orelhas –, Dila nos arrebata principalmente quando faz retratos, inclusive o próprio,


como no folheto Dila o ex-cangaceiro, de 1981. Sobressai o rigor de quem domina os materiais, extraindo deles a plasticidade mesmo quando a técnica é de mais difícil execução, na madeira, por exemplo. Para dialogar com as cenas, e organizar o enquadramento, muitas das capas trazem vinhetas, volutas, molduras. Constrói títulos em letreiro escavado, às vezes na diagonal, ascendente, o caso do folheto acima mencionado. Nesse livrinho, coerente com o tema e o título, põe na quarta capa soneto próprio, narrando os tempos no cangaço, quando uma bala alojou-se na perna, seduzindo leitores e ouvintes pela corriqueira fabulação. A assinatura, outro cuidado, está sempre pousada na cena, e quase sempre em locais surpreendentes, inesperados, com nítido propósito de agregar harmonia. Dila combina os elementos com esmero e assim constrói visualmente a representação do que para ele seria

a imagem de cangaceiro, beato, santo, artisticamente oferecendo muito mais do que propagandeava, com a consistência de uma poética visual particular. No folheto Lampião de Vila Bela, uma sextilha de cordel reproduzida na quarta capa, intitulada Epígrafe, e assinada por “Dilla”, atesta a versatilidade criadora não apenas no traço, também na voz poética: Eu fui menino atrevido Nasci de Bigôde e Pêra Vim da turma do Cangaço Que cantou “Mulher Rendeira” Criei-me com Cascavel Que fez a minha carreira

OITENTA ANOS

Pelas artes e genialidade, Dila é Patrimônio Vivo de Pernambuco desde a implantação da legislação de 2002. Há uma década, outubro de 2007, o aniversário de 70 anos foi festejado com o livro Xilogravura do Mestre Dila:

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uma visão poética do Nordeste, na VI Bienal do Livro de Pernambuco, estande da União de Cordelistas de Pernambuco (Unicordel). O organizador foi Hérlon Cavalcanti, presidente da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel, na qual Dila ocupa, e não sem razões, a cadeira 20, cujo patrono é o paraibano Zé Limeira, Poeta do Absurdo. Após décadas imprimindo folhetos e gravuras, Dila declara em 2006: “Faz três anos que eu não faço folheto, mas agora eu vou começar. Faz três anos que eu faço em off-set. Os tipos ficaram meio rombudos, aí deu preguiça e tem chegado muito serviço. Mas eu vou voltar”. E voltou, entretanto por pouco mais. Em junho de 2012, sofre um AVC. Permanece lúcido, embora limitado para tarefas manuais e viagens. Um ano antes, julho de 2011, havia recebido homenagem no Recife, durante a 12ª Fenearte, dedicada ao cordel. Com o falecimento da esposa, em setembro de 2016, deixa a casa-ateliê para morar com a filha mais velha, Conceição, noutro bairro de Caruaru. O acervo está sob a guarda dos filhos, que planejam inaugurar, no antigo endereço, o Memorial Mestre Dila. Memorial onde será possível apreciar o universo poético expresso em palavras e imagens dançantes, vistas e sonhadas. Com eles e com olhos e mãos de quem vê e toca o sagrado, o mítico-imaginário, o artista engendrou mundos habitados por besta-fera, fadas, cangaceirama, messias, mundos situados no inferno, em Plutão, cheios de diabos e diabas. Fluxo criador sem trégua, fertilidade incansável de gênio artístico. “Quando minha mãe morreu, perguntou: – Quer ir, Dila? Eu respondi: – Não, eu vou depois.” E quando esse depois chegar, Dila? “Sonho vendendo meus cordéis do outro lado do mundo. Isto me leva a cinco caminhos. O nome Dila, meu bisavô. Dila, meu pai. Dila, meu irmão gêmeo. Dila, uma irmã gêmea, que foi dada com três dias de nascida e nela foi colocado outro nome. Esses Dila todinhos eram uma pessoa só, que morria e voltava pra casa, com 10 anos de idade. E, quando eu morrer, se não me agradar, eu tô de volta.” MARIA ALICE AMORIM, é jornalista, escritora, pesquisadora de cultura popular e doutora em Comunicação e Semiótica.


Crítica

DA CRÍTICA DE CEMITÉRIO: REPENSANDO A “MORTE DO AUTOR” 50 ANOS DEPOIS TEXTO EDUARDO CESAR MAIA Deixe-me ver se entendo – comentou um aluno. O que você me diz é que se digo algo em voz alta, sou eu quem o diz, mas se escrevo exatamente o mesmo num pedaço de papel, então é outra pessoa. É assim? Sim – disse. E a isso chamamos ficção. O aluno pegou seu caderno, anotou algo e me passou uma folha de papel em que dizia: “Esta é a maior imbecilidade que ouvi em minha vida”. David Sedaris (Mi vida en rose, 2005)

Em artigo recente, intitulado A

segunda morte do autor, publicado na revista Cult, o teórico da literatura Francisco Bosco lançou a seguinte pergunta: “A arte pode ser feita por programas de computador? Ou ela requer alguma dimensão específica e irredutivelmente humana?”. O questionamento de Bosco é desenvolvido num texto muito interessante sobre a possibilidade (ou impossibilidade)

de que formas de inteligência artificial possam criar obras de arte verdadeiramente inovadoras e relevantes, ou sejam apenas capazes de elaborar composições baseadas na reorganização de informações prévias – o que excluiria, portanto, o ato criativo genuíno. Admito de antemão que não tenho maiores conhecimentos técnicos para escrever aqui sobre qual valor artístico poderiam ter obras geradas por softwares autônomos (sem qualquer orientação humana na execução), e não me importa parecer conservador por desconfiar que essa suposta “segunda morte do autor” acabará se revelando mais um modismo intelectual de inspiração anti-humanista (como tantos houve no século passado!), tão idealista e abstrato quanto a primeira “morte”, decretada há meio século por autores (leiam bem: autores) como Barthes,

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Foucault e, posteriormente, Derrida. Seria possível especular aqui sobre a improbabilidade de surgimento de um gerador de obras cubistas de alto valor estético chamado e-Cubism, patenteado pela Microsoft; ou de um aplicativo com imaginação poética e capacidade metafórica lançado pela Apple. Mas não o farei… Por total incompetência em assuntos tecnológicos. Tentarei traçar aqui outro caminho, aproveitando a efeméride dos 50 anos da publicação do famoso ensaio de Roland Barthes – intitulado justamente A morte do autor – para retomar a discussão original, mostrar sua importância renovadora para a crítica literária, a permanência de sua influência e, principalmente, para problematizar alguns dos seus pressupostos filosóficos. Como se sabe, no âmbito dos estudos literários, essa ideia teve grande difusão, e os motivos desse


ESTUDO N. 2, GUERRA DE TORTAS, ADRIAN GHENIE, 2008/REPRODUÇÃO

teórica (a subjetividade) e um valor político-ideológico (o individualismo) marcadamente burguês.

GOLPES NA CRÍTICA

sucesso teórico são variados. Antes mesmo do já mencionado ensaio de Barthes, apresentado em um simpósio realizado em 1967 e publicado nos Estados Unidos, em inglês, no periódico Aspen (vol. 5-6), algumas correntes críticas já tinham ensaiado a possibilidade de prescindir, na explicação das obras, da figura do autor (a Nova Crítica e o Formalismo Russo, por exemplo), endossando o método do close reading (leitura cerrada), isolando a obra de seu contexto social e histórico, e, principalmente, descolando a interpretação literária das circunstâncias biográficas e do perfil psicológico dos escritores. No entanto, somente com a conexão filosófica entre fenomenologia e estruturalismo, realizada por pensadores como Barthes e Foucault, é que se pôde radicalizar a crítica ao subjetivismo a ponto de se pregar o fim da ideia de

autoria. Mas já não se tratava somente de recusar o sujeito autoral, como já sugeriam linhas teóricas anteriores, senão de combater a concepção mesma de sujeito individual, base da tradição humanista. Segundo o crítico belga Antoine Compagnon, no ótimo O demônio da teoria, “O autor foi, claramente, o bode expiatório principal das diversas novas críticas, não somente porque simbolizava o humanismo e o individualismo que a Teoria Literária queria eliminar dos estudos literários, mas também porque sua problemática arrastava consigo todas as outras”. Eliminar o autor significava, portanto, um logro revolucionário para a teoria, pois as principais noções literárias tradicionais se remetiam à noção de intencionalidade autoral. Descartava-se assim, com um só golpe, um fator de incerteza

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Como sugeri anteriormente, um aspecto fundamental fortemente presente em diversas teorias e correntes filosóficas pós-modernistas se revela na crise das noções de sujeito e indivíduo, principalmente no âmbito das criações artísticas. A perspectiva humanista – da arte como forma de criação e recriação individual, como formação pessoal (Bildung) e, enfim, como uma atividade privilegiada de construção e aprimoramento do homem – foi colocada em descrédito tanto por razões teóricas como por considerações de ordem puramente ideológica. A ideia de “individualidade criadora” foi combatida por diversas correntes teóricas, sob a premissa de que fazer referência à autoria geraria um fator de insegurança filosófica para uma crítica que se pretendia científica. A perspectiva de LéviStrauss, expoente do estruturalismo, de que “a finalidade das ciências humanas não é constituir o homem, mas dissolvê-lo”, é bastante explícita e representativa dessa tendência. A concepção de autor como criador, fundamental para a crítica humanista tradicional, passa a ser vista como um mero construto linguístico e ideológico de uma sociedade burguesa decadente, e qualquer manifestação da individualidade deveria ser encarada com desconfiança, como uma potencial ação tirânica e arbitrária, seja na arte, na literatura ou mesmo na crítica literária.

BARTHES E FOUCAULT

Nesse sentido, as concepções teóricas a respeito da linguagem e da literatura do crítico e pensador Roland Barthes e do teórico social e filósofo Michel Foucault são basilares para a compreensão da ideia de morte do autor. Com Barthes, por exemplo, como antes com Heidegger, há algo de problemático na descrição do fenômeno totalizante homemlinguagem-mundo. Ainda que sua direção-geral possa parecer correta, ao assinalar a totalidade do fenômeno linguístico em relação ao mundo


Crítica FOTOS: REPRODUÇÃO

humano, parece-me que o crítico francês, algumas vezes, e apesar da sutileza de seu pensamento, cai em uma espécie de exaltação hipostática que, paradoxalmente, ajuda a criar um tipo de essencialismo metafísico. Esses autores têm razão em afirmar que não há compreensão possível de mundo (e, portanto, nenhuma forma de conhecimento ou sentido) independentemente da linguagem, mas, em alguns momentos de entusiasmo retórico, exacerbam tanto essa noção que terminam praticamente imaginando a linguagem como entidade autônoma, que prescindiria dos homens concretos, dos indivíduos. Seus relatos filosóficos por vezes dão margem à compreensão da linguagem como uma nova deidade, que vive e existe acima dos homens, dotada de vontade própria. A leitura desses pensadores frequentemente deixa a impressão de que a linguagem (entendida como sistema autossuficiente ou mera manifestação da ideologia) possui algo como uma vida própria, e que um homem (qualquer homem) não é senão um veículo temporal por meio do qual a linguagem se expressaria. Sob certa perspectiva, a ideia é rigorosamente correta, pois a linguagem efetivamente é um todo orgânico que ultrapassa qualquer homem individual; mas, por outro lado, é uma descrição absurda se não for matizada, pois a linguagem não é senão a dimensão da expressão social da vida desses mesmos homens concretos e, sem eles, não há linguagem. Acreditar, portanto, na autorreferencialidade absoluta é acreditar na autossuficiência da linguagem – o que configura uma aporia idealista evidente. Para Foucault, que proferiu a famosa conferência O que é um autor, em 1969, o uso pragmático da linguagem está contaminado e dominado pela ideologia e a experiência direta (sensorial, por exemplo) já não pode realizar mudanças significativas no sistema linguístico: a linguagem é considerada um sistema da ideologia que só muda aparentemente – como diria o príncipe Fabrizio Falconeri – para permanecer exatamente igual. Seríamos, portanto, vítimas da

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ilusão referencial, assim como somos vítimas da ideologia burguesa. Está pressuposto, assim, que a realidade é uma convenção, um discurso previamente aceito; e que a linguagem é algo essencialmente inerte, já estabelecido e conformado, e não um fenômeno humano vital e pragmático, sujeito a modificações e inovações.

A MORTE DO AUTOR

No momento em que Barthes escreveu A morte do autor, a ideia de intencionalidade autoral já havia sido, como comentei antes, relativizada e fragilizada por outros teóricos e filósofos, mas a importância capital desse texto está na radicalização da proposta teórica. O pensador francês se opõe franca e abertamente a uma série de ideias consagradas pela crítica literária tradicional. Em primeiro lugar, ele critica a concepção romântica de inspiração criativa e de literatura como confidencialismo, justamente porque é dessa noção que derivaria a ideia de que interpretar é encontrar o sentido que o autor pôs na obra,

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sobrando para o leitor simplesmente a possibilidade de encontrar (ou não) a forma verdadeira e única de ler, a que foi estabelecida por quem escreveu o texto. Para fundamentar sua objeção ao papel passivo do leitor estabelecido pela visão tradicional, Barthes utiliza o conceito de Escritura, que é “a destruição de toda voz, de toda origem”. Essa perda da identidade individual se deve à capacidade neutralizante da Escritura, que seria uma espécie de tecido de citações e referências a inumeráveis centros da cultura. O autor seria simplesmente uma localização por onde fala a linguagem, a qual se caracteriza pelos ecos, repetições, tautologias e intertextualidades. O teórico francês afirma, genealogicamente, que “o autor é um personagem moderno”, que surge juntamente com a ideia romântica de gênio, a qual estaria ligada diretamente ao prestígio que o sujeito individual teria adquirido depois da Idade Média, com o humanismo renascentista, com os valores racionalistas e empiristas da Ilustração e com a fé na pessoa, recrudescida pela Reforma Protestante.


1-2 As concepções teóricas a respeito

da linguagem e da literatura de Roland Barthes e Michel Foucault são basilares para a compreensão da ideia de A morte do autor

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Contudo, para Barthes, simultaneamente herdeiro e agudo crítico de valores e concepções marxistas numa época de intensas polarizações ideológicas, a influência fundamental para a noção moderna de indivíduo proviria da ideologia capitalista, que era justamente o inimigo a ser combatido. Para ele, portanto, qualquer manifestação da individualidade (construto burguês) é uma ação tirânica, e a autoridade do autor seria uma das representações máximas dessa tirania. Assim, a Linguagem – a Escritura –, impessoal e anônima, substitui o autor como princípio produtor e explicativo da literatura. Esse coquetel teórico refinado, por um lado, e contaminado por uma série de apriorismos ideológicos, por outro, levaria a uma desconfiança radical em relação ao poder referencial da linguagem. Quer dizer, a linguagem é tomada como um sistema autorreferente que não representa o mundo, senão somente a si mesma. Mas, é possível conceber uma linguagem autossuficiente? A radicalidade da

proposição barthesiana o faz cair numa armadilha idealista ao pressupor a prioridade ontológica da linguagem; e o faz incorrer num contrassenso evidente, já que o homem tem desenvolvido historicamente a linguagem – que é algo vivo e dinâmico – para tratar de problemas que não pertencem exclusivamente ao âmbito da própria linguagem. Ainda que entendamos e aceitemos, com Wittgenstein, que nossa linguagem é o limite de nosso mundo, estaríamos numa posição distinta do radicalismo epistêmico e ideológico que subjaz à ideia de morte do autor. Ainda segundo o ensaio, “o escritor se limita a imitar um gesto sempre anterior, nunca original”; é um mero rapsodo, um coletor de fragmentos, um organizador de algo prévio: nunca um criador de algo novo, como na concepção crítica tradicional e humanista. Porém, abdicar completamente da ideia de autoria se faz muito difícil quando pensamos em figuras e instrumentos literários tradicionais como metáfora, estilo, ironia, sátira ou refinamento formal – como compreendê-los sem relacioná-los à

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intencionalidade autoral? Ou vamos crer, de fato, que uma obra literária pode ser simples produto de arranjos combinatórios ou da mera organização de algo que já estava na linguagem? E aqui poderíamos nos remeter novamente – com um ceticismo ainda mais aguçado – ao artigo de Francisco Bosco e a ideia de criação artística realizada por computadores (a tal segunda morte). Meio século depois do debate original, a expressão morte do autor ainda funciona como uma espécie de bandeira, ou melhor: uma estratégia retórica de defesa do leitor, pois o que permanece de mais interessante e atual nessa proposta teórica é a ampla liberdade que se concede ao ato interpretativo. Há uma infinidade de interpretações possíveis que não podem ser controladas por nenhuma autoridade última – nem mesmo a do autor do texto –, e é o leitor, portanto, que assume um lugar privilegiado e ativo no processo hermenêutico. Em sua origem, pois, a concepção é realmente instigante (a totalidade sistêmica e complexa que é a linguagem abarca uma rede de influências das que ninguém, por mais individualista e personalista que seja, pode se safar completamente); o problemático, no entanto, está no salto falaz – non sequitur – e na disjunção que se estabelece a partir da premissa teórica barthesiana (“o nascimento do autor tem de pagar-se com a morte do Autor”), que o faz negar radicalmente a relevância das contribuições do autor e de suas intenções aos estudos literários. Da mesma forma, a retórica anticapitalista que permeia os conceitos de Ideologia e Escritura, tampouco – e de nenhuma forma – pode ser inferida a partir da premissa teórica sobre a linguagem como metassistema, e funciona simplesmente como uma declaração de princípios políticos-ideológicos, mas não como uma argumentação intelectualmente consistente. EDUARDO CESAR MAIA é critíco literário, mestre em Filosofia, doutor em Teoria da Literatura e professor da UFPE.


Indicações Playlist

Sintonia com a música do mundo Pensando a música como parte de um tempo e um espaço, o artista e DJ frânces Benjamin Moreau criou o site Radiooooo. A partir de um mapamúndi, podemos sintonizar a música de qualquer país da Terra e de diferentes décadas – de 1900 à contemporaneidade – numa playlist curada por especialistas. Funcionando como plataforma colaborativa, o Radiooooo recebe sugestões de usuários de todos os lugares do mundo, que são avaliadas de acordo com a linha curatorial do site. No Brasil, por exemplo, ao clicarmos na música da década de 1970, passeamos pelo som de artistas como Secos & Molhados, Arnaldo Baptista, Gal Costa, Lô Borges, Cartola, Artur Verocai. A seleção varia não só de acordo com tempo e espaço geográfico, mas também pelo nível de “esquisitice” musical que escolhemos.

Documentário

A jornada de Coltrane No começo do documentário Chasing Trane, é apresentado o primeiro registro fonográfico de John Coltrane, a gravação de seu saxofone na banda da marinha norte-americana. Mas o som que saía daquele instrumento não coincidia com o nome do instrumentista. O filme de John Scheinfeld narra a trajetória que transformou o músico mediano nascido na Carolina do Norte no virtuose de fama internacional e no compositor brilhante, que deu vida a álbuns como o inspirado A love supreme (1965). O mais incrível é que essa transcendência foi conquistada após superar o vício das drogas, motivo pelo qual foi expulso do conjunto de Dizzie Gillespie e do lugar que considerava ser, até então, o topo de sua carreira, a banda de Miles Davis, com quem gravou o álbum nº 1 do jazz, Kind of Blue. O crescimento artístico dessa lenda é contado a partir de depoimentos de parentes, amigos, músicos, críticos, biógrafos e das memórias de Coltrane, narradas pelo ator Denzel Washington. Ao mesmo tempo, é descortinada a essência do homem que entendia a música como uma forma de se conectar com o divino.

Biografia

Gilvan Lemos: o último capítulo Show

Metá Metá no Guaiamum Treloso Após a divulgação dos cearenses do Cidadão Instigado para a edição de 2018 do Guaiamum Treloso Rural, outra atração confirmada pela produção da prévia é o trio Metá Metá. Esses são apenas dois nomes dentre os 20 que estarão no festival com data marcada para 20 de janeiro, na Fazenda Bem-Te-Vi, em Aldeia. Homenageando o folclore brasileiro, além de apresentações musicais, o evento inclui em sua programação atividades ao ar livre, visando o contato do público com a natureza, já que, desde o ano passado, escolheu uma locação mais campestre. As ilustrações ficam por conta dos artistas Heitor Pontes e Alexandre Pons e trazem versões contemporâneas de personagens do imaginário popular com discursos de engajamento. Ingressos já estão à venda.

O jornalista Thiago Corrêa preparara dezenas de perguntas para o escritor Gilvan Lemos, mais elas jamais foram respondidas pelo escritor pernambucano, que veio a falecer em 2015, sendo cortejado e velado na sua cidade natal, São Bento do Una, no agreste de Pernambuco. Mesmo com a morte de Gilvan, o trabalho de apuração é um dos grandes trunfos deste livro, que faz parte da Coleção Memória, da Cepe. Em Gilvan Lemos, há detalhes que não prejudicariam na compreensão da vida e obra do escritor, caso não estivessem presentes, mas foram arranjados de forma laboriosa pelo jornalista. Assim, viajamos para os anos 1920, aos primeiros anos do menino que sofreu de conjuntivite e fortes enxaquecas, episódios que são contados com humor e através de depoimentos dados por Gilvan a Thiago em entrevistas anteriores. Numa delas, contou o caso de um forasteiro “ricaço” que lhe pagou a entrada do cinema (e alguns confeitos) no Cine Theato Rex, quando ainda era criança. Conhecido como solitário, reservado e tímido, o autor de Jutaí menino (1962) está presente exatamente assim no livro biográfico, num quebra-cabeça bem-SSmontado.

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Exposição

Exposição

Cultura canavieira

Aloisio Magalhães, 90 anos Em cartaz no Museu do Homem do Nordeste (Muhne), a exposição O açúcar e o homem: Museografia revisitada de Aloisio Magalhães faz parte das comemorações aos 90 anos do designer e artista plástico pernambucano. A mostra faz uma clara referência à sua primeira realização expográfica, intitulada O açúcar e o homem, montada no então Museu do Açúcar, na década de 1960, hoje Muhne. Na sala Waldemar Valente, são apresentadas plantas originais do edifício, fotografias de todos os módulos da exposição de 1963 e a recriação de dois deles com objetos originais, que destacam a sua faceta como museologista, formado pela École du Louvre, na França. As atividades de Aloísio no Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) e n’O Gráfico Amador, entre 1940 e 1950, também podem ser vistas na mostra, que segue aberta ao público até 11 de fevereiro.

A exposição itinerante Rurais, dos fotógrafos Joãomiguel Pinheiro e Francisco Baccaro, aporta na Praça do Carmo, em Olinda, entre os dias 13 e 16 de dezembro. As fotografias que compõem a mostra retratam o universo da cana-de-açúcar, as queimadas, a colheita e toda a cultura que permeia o cotidiano do homem da Zona da Mata pernambucana. Um ônibus e uma tenda são utilizados como espaço expositivo para as 38 fotos, fazendo uso da iluminação natural na sua apresentação. Além disso, no veículo, foi feita uma ambientação com a criação de uma paisagem sonora, formada pelos sons das queimadas e do corte da cana. Rurais estreou em novembro no Festival Arte na Usina, na Usina Santa Terezinha, em Água Preta, passou por Paudalho e Caruaru, e agora encerra sua temporada no Recife.

Galeria virtual

Um acervo de artistas pernambucanos

Teatro

A invenção do Nordeste Depois de encenarem o aclamado, tanto pelo público quanto pela crítica, espetáculo Jacy, é a vez da companhia potiguar Carmin apresentar A invenção do Nordeste. Com a montagem anterior, tiveram cinco indicações a prêmios em São Paulo, no Prêmio Aplauso Brasil e na APCA – Associação Paulista dos Críticos de Artes. O texto parte da obra A invenção do Nordeste e outras artes, do professor Durval Muniz da Brito. A partir de sua leitura, a atriz Quitéria Kelly, que dirige a montagem, despertou para a necessidade de um espetáculo que buscasse desconstruir os diversos estereótipos que perseguem a figura do nordestino e do Nordeste. No elenco, Mateus Cardoso, Robson Medeiros e Henrique Fontes, que assina a dramaturgia junto com Pablo Capistrano. A peça foi apresentada em Natal e São Paulo e ainda não tem previsão de encenação no Recife.

Está no ar, desde outubro, uma plataforma virtual voltada à compra e venda de obras de arte, a Spot Art (http://www.spotart.com. br/). O espaço online reúne, em boa parte de seu acervo, trabalhos de artistas pernambucanos como Christina Machado, Luciano Pinheiro, Gilvan Samico, Carlos Pragana, Mané Tatu. Os valores das obras oferecidas variam. Há pinturas de Bajado, o artista de Olinda, variando entre R$ 1.879 e R$ 6.994, mas também trabalhos por menos de R$ 200, como o famoso lambe-lambe do coração de Chris Machado (a R$ 190), além de esculturas em papel do coletivo Vacilante (a R$ 270) e aquarelas de Simone Mendes (a R$ 180). No endereço, o artista pode sugerir a venda da sua obra através de um link, mas sua proposta será avaliada por curadores. Também é possível conferir exposições virtuais dos artistas cadastrados. Há cerca de 2 mil itens disponíveis, em variados estilos e suportes.

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Continente Online

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DIVULGAÇÃO

DOSSIÊ Leia a entrevista completa com o escritor e cineasta norte-americano David France, autor de How to survive a plague, e veja um vídeo do Prosa positiva, canal no YouTube criado por Daniel Fernandes para falar do cotidiano de quem vive com HIV.

PORTFÓLIO Vamos disponibilizar o link para o artigo A fé na encruzilhada, de José de Souza Martins, publicado na revista Zum, sobre o trabalho de Guy Veloso. Também indicaremos vídeos feitos pelo fotógrafo relacionados com a série Penitentes.

CONTINENTE ONLINE No último mês do ano, trazemos conteúdos exclusivos em nosso site. Um deles é o perfil do cantor, compositor, ator e performer Rubi, cuja potência artística está nos shows da turnê A mulher do fim do mundo, de Elza Soares, com quem divide o vocal de Benedita. O texto é de Erika Muniz, que entrevistou o artista, radicado em São Paulo, além de parceiras e amigas. Trazemos ainda um texto de Bárbara Buril sobre os 20 anos do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam); outro de Carol Santos, sobre as mulheres que fazem o noise, gênero musical; e, ainda, uma reportagem sobre o cinema de arte feito em Hollywood, por Rodrigo Carreiro.

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ENSAIO Leia o artigo de Anna Camanducaia, sobre a Biblioteca Oliveira Lima, em Washington, que reúne mais de 60 mil volumes – entre livros, manuscritos, panfletos, jornais – que pertenceram ao diplomata brasileiro, publicado na Continente nº 148, em abril de 2013.


EXPEDIENTE

Cartas

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A revista Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDÊNCIA DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora)

VIA FACEBOOK ARTE E NEGRITUDE

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HERMETO

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Massa! Parabéns!

A revista Continente apresenta matéria sobre artistas visuais negrxs escrita e pesquisada pela jornalista e amiga Christiane Gomes, que mostra seu aprofundamento numa temática cada vez mais visibilizada e crucial para se compreender a sociedade brasileira e o sistema da arte que nos aparta, nos exotiza e raramente reconhece a urgência dos temas e estéticas abordados. Parabéns, querida! RENATA FELINTO

Parabéns à revista pela sensibilidade com nossa causa, e por tanta arte. Vida longa. MARCELO SILVA

Parabéns à revista, temos que fazer mais matérias envolvendo a população negra. PAULO CONCEIÇÃO

Q maravilha! O campo se ampliando. Parabéns. SUZANA MARTINS

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*Parte da justificativa do deputado para o consentimento de voto de aplauso à Continente na Assembleia Legislativa de Pernambuco

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ORLANDO PEDROSO é artista gráfico e ilustrador, trabalhou com quase todas as publicações da grande imprensa.

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Nascida para ser senhora de engenho, Flora de Oliveira Lima seguiu o marido diplomata em sua carreira internacional

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