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JCEmpresas
Segunda-feira, 26 de maio de 2014
Jornal do Comércio - Porto Alegre
& Negócios
RESPONSABILIDADE SOCIAL BRUNA BERSCH/FEEVALE/DIVULGAÇÃO/JC
Alunos criam estatuto para transformar a comunidade em associação
Pelo direito de ser
Além das oficinas de alfabetização e artes, a ação também inclui assessoramento jurídico
Projeto Múltiplas Leituras promove ações para preservação da cultura indígena em São Leopoldo Júlia Lewgoy
N
a escola estadual da comunidade caingangue Por Fi, no bairro Feitoria, em São Leopoldo, o indígena Josme Fortes é o único professor das 31 crianças. Aos alunos entre o 1º e 5º ano do Ensino Fundamental, ele ensina o caingangue como língua-mãe, mas leciona o português como segunda língua. “Nossas crianças não vão ficar a vida toda estudando aqui na aldeia. Temos medo que elas passem por dificuldades lá fora. Mas a nossa cultura é a nossa defesa”, explica. Toda terça-feira, Josme conta com a parceria de professores e alunos da universidade Feevale. Enquanto um grupo de crianças escuta lendas de seu povo em português ou aprende as letras do alfabeto, na oficina de letramento e alfabetização, outro experimenta pintar com tinta acrílica ou de-
senhar com lápis de cor na aula de artes. As atividades integram o projeto Múltiplas Leituras, que desde 2005 atua na preservação da cultura da comunidade Por Fi, envolvendo alunos e professores da universidade. Além das oficinas de alfabetização e artes, a ação também inclui assessoramento jurídico e diversas atividades dentro e fora da aldeia. Todas as decisões e avaliações sobre o projeto são feitas em conjunto com os líderes indígenas. “Só porque ficamos na periferia, olham para nós de um jeito diferente. Queremos mostrar nossa cultura, e a Feevale está nos ajudando nisso”, considera o cacique, Darci Rodrigues Fortes. Quem quiser conferir de perto, tem uma oportunidade: no dia 30 de maio, a aldeia estará aberta para receber visitantes interessados em sua cultura. O professor Josme acompanha as oficinas de alfabetização, ministradas pela professora Dalila Maldaner Backes e pela aluna voluntária Cíntia Fabiana Alves. Além de contribuir com a tradução, já que, muitas vezes, os pequenos falam caingangue entre si, ele também atua na mediação das atividades. Ficar em silêncio enquanto o
outro fala ou agendar as atividades para a próxima semana são ações que não fazem parte, originalmente, da cultura dos pequenos indígenas. Interpretações diferentes do tempo, da coletividade e das regras fazem a professora Dalila, assessora pedagógica do Múltiplas Leituras, se questionar até que ponto regrar os alunos não é uma imposição de cultura. “Mas, ao mesmo tempo, queremos dar a eles ferramentas para que possam se tornar protagonistas e não sejam sempre os excluídos da história”, argumenta. A Por Fi conta com uma das 83 escolas indígenas da rede estadual. Dessas, apenas duas possuem Ensino Médio e 42 atendem até o 9º ano do Ensino Fundamental. Como em São Lepoldo, metade das escolas indígenas acolhem alunos somente até o 5º ano. A transferência para uma escola tradicional significa perder o ensino formal do caingangue e da cultura indígena e ter que se adaptar ao português, às regras e às formas de enxergar o mundo fora da aldeia. “Nosso ideal é fazer com que essa transição seja o menos traumática possível e que os alunos não desistam da educação”, almeja Dalila.
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O projeto Múltiplas Leituras da Universidade Feevale mobiliza alunos e professores de diferentes setores. O núcleo de História, por exemplo, atua em uma pesquisa para mapear onde estão os alunos que já passaram pela escola da aldeia, para dar ferramentas à comunidade para reivindicar políticas públicas de educação. O grupo de Direito está desenvolvendo o Estatuto da Associação dos Indígenas da Comunidade Por Fi, documento que poderá ampliar a atuação do grupo junto ao poder público. “Uma das premissas do projeto é que a demanda tem que partir deles. O movimento indígena precisa ter autonomia. As conquistas são deles, mas a gente tem contribuído como pode”, defende a líder do projeto, Inês Reichert, professora do curso de História. A parceria também tem rendido encontros entre alunos dos cursos de Pedagogia, Artes, História e Direito com a comunidade, por meio de visitas à aldeia, discussões sobre o projeto em sala de aula e visitas dos líderes indígenas à universidade. Um dos objetivos dos professores é aproximar os alunos da questão indígena para evitar que os estereótipos se reproduzam. “Existe um mito de que índio que não mora no meio do mato não é mais índio, mas a gente não pode pensar que a cultura é algo congelado. Os indígenas urbanos têm direito de estar na cidade tanto quanto nós, mas nem por isso deixam de ser índios”, reflete a professora Inês.
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